quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Harry Potter e o Enigma do Príncipe 26/30 Final


CAPITULO VINTE E SEIS
A CAVERNA
HARRY SENTIU O CHEIRO DE SAL e o marulho das ondas; uma brisa leve e gelada despenteou
seus cabelos quando ele se virou para contemplar o mar enluarado e o céu de estrelas. Estava
parado no alto de uma rocha escura, sob a qual a água espumava e se revolvia. Ele olhou por cima
do ombro. Às suas costas, erguia-se um penhasco, escarpado, negro e indistinto. Algumas rochas,
como aquela em que Harry e Dumbledore se achavam, pareciam ter se destacado da face do
penhasco em algum momento do passado. Era uma paisagem desolada e agreste; a monotonia do
mar e da rocha sem árvore, capim ou areia a interrompê-la.
— Que é que você acha? — perguntou Dumbledore. Era como se estivesse pedindo a
opinião de Harry sobre um bom lugar para um piquenique.
— Eles traziam os garotos do orfanato para cá? — perguntou Harry, que não conseguia
imaginar um local menos convidativo para um passeio.
— Não era bem para cá. Há uma aldeiazinha a meio caminho dos rochedos às nossas costas.
Acredito que traziam os órfãos para tomar um pouco de ar e ver as ondas. Não, acho que apenas
Tom Riddle e suas jovens vítimas algum dia visitaram este lugar. Trouxas não poderiam chegar
aqui, a não ser que fossem alpinistas excepcionais, e barcos não podem se aproximar das pedras;
as águas ao redor são muito perigosas. Imagino que Riddle tenha descido; a magia teria sido mais
útil do que as cordas. E trouxe com ele duas crianças pequenas, provavelmente pelo prazer de
aterrorizá-las. Acho que só a viagem em si teria bastado, não?
Harry tornou a erguer os olhos para o penhasco e sentiu arrepios.
— Mas o destino final de Tom, e o nosso, fica um pouco mais adiante. Vamos.
Dumbledore fez sinal a Harry para se aproximar da borda da rocha em que vários nichos
pontudos serviam para apoiar os pés e davam acesso às pedras arredondadas e semi-submersas na
água junto ao paredão rochoso. Era uma descida traiçoeira, e Dumbledore, ligeiramente estorvado
pela mão murcha, movia-se com lentidão. As pedras mais abaixo escorregavam por causa da água
do mar. Harry sentia os salpicos de água salgada baterem em seu rosto.
— Lumus — disse Dumbledore, ao chegar à pedra mais próxima do paredão. Centenas de
pontinhos de luz dourada faiscaram na superfície escura do mar a menos de um metro abaixo do
lugar em que estava agachado; a parede negra do rochedo iluminou-se também.
— Está vendo? — perguntou o diretor em voz baixa, erguendo um pouco mais a varinha.
Harry viu uma fissura no penhasco onde a água escura remoinhava.
— Você não se importa de se molhar um pouco?
— Não — respondeu Harry.
— Então, tire a sua Capa da Invisibilidade, não é necessária agora, e vamos dar um
mergulho.
E, com a súbita agilidade de um homem mais jovem, Dumbledore escorregou pela pedra,
caiu no mar e começou a nadar de peito, com movimentos perfeitos, em direção à fenda na face
do penhasco, a varinha acesa presa entre os dentes. Harry tirou a capa, enfiou-a no bolso e
acompanhou-o.
A água estava gelada; as roupas pesadas de água enfunavam-se em torno dele e o puxavam
para baixo. Sorvendo profundamente o ar que enchia suas narinas com um travo de sal e algas,
Harry nadou em direção à luz bruxuleante que diminuía à medida que adentrava a caverna.
A fenda logo se alargou, formando um túnel escuro que Harry sabia que se encheria de água
na maré alta. As paredes limosas tinham menos de um metro entre si e refulgiam como piche
molhado à passagem da luz empunhada por Dumbledore. Um pouco mais para dentro, a
passagem fazia uma curva para a esquerda, e Harry viu que se embrenhava profundamente na
rocha. Continuou a nadar na esteira do diretor, as pontas de seus dedos dormentes roçando a
rocha úmida e áspera.
Então ele o viu sair da água mais adiante, sua cabeleira prateada e as vestes escuras
refulgindo. Quando Harry chegou ao mesmo ponto, deparou com degraus que conduziam a uma
ampla caverna. Subiu a escada, a água escorrendo de suas vestes encharcadas, e emergiu, tremendo
descontroladamente, no ar parado e enregelante.
Dumbledore estava de pé no meio da caverna, a varinha no alto, e girava lentamente no
mesmo lugar, examinando as paredes e o teto.
— É, é este o lugar — confirmou Dumbledore.
— Como o senhor pode saber? — perguntou Harry num sussurro.
— Tem magia conhecida — respondeu Dumbledore com simplicidade.
Harry não conseguia definir se os arrepios que sentia se deviam ao frio que penetrava seus
ossos ou à mesma percepção de encantamentos. Apenas observava enquanto Dumbledore
continuava a girar, evidentemente concentrando-se em coisas que Harry não era capaz de ver.
— Isto é apenas a antecâmara, o saguão de entrada — disse Dumbledore, passados alguns
instantes. — Precisamos penetrar a câmara interior... agora os obstáculos erguidos por Voldemort
é que barrarão o nosso caminho, e não os que a natureza criou...
O diretor se aproximou da parede da caverna e acariciou-a com os dedos enegrecidos,
murmurando palavras em uma língua estranha que Harry não entendeu. Duas vezes Dumbledore
andou ao redor da caverna, tocando a maior área da rocha áspera que pôde, parando
ocasionalmente, correndo os dedos para frente e para trás em um determinado ponto, até parar
finalmente, a mão espalmada contra a parede.
— Aqui — disse ele. — Passaremos por aqui. A entrada está oculta. Harry não perguntou a
Dumbledore como sabia. Nunca vira um bruxo resolver as coisas assim, simplesmente com o
olhar e o toque; mas o garoto já descobrira, havia muito tempo, que estampidos e fumaça eram,
em geral, marcas de inépcia e não de capacidade.
Dumbledore se afastou e apontou a varinha para a parede rochosa da caverna. Por um
instante, apareceu ali o contorno de um arco, fulgurante e branco como se houvesse uma forte luz
por trás da fresta.
— O senhor conseguiu! — exclamou Harry entre os dentes que castanholavam de frio, mas,
antes mesmo que as palavras saíssem de sua boca, o contorno desapareceu, deixando a rocha mais
nua e sólida que antes. Dumbledore se virou.
— Harry, desculpe, me esqueci. — E apontou imediatamente a varinha para o garoto, cujas
roupas ficaram instantaneamente quentes e secas como se tivessem sido penduradas diante de um
fogo escaldante.
— Obrigado — agradeceu Harry, mas Dumbledore já voltara sua atenção para a parede
maciça da caverna. Não tentou outros feitiços, simplesmente ficou ali, parado, observando a
parede com atenção, como se nela estivesse escrito alguma coisa de extraordinário interesse.
Harry ficou muito quieto; não queria perturbar a concentração de Dumbledore.
Então, passados dois minutos completos, o diretor disse baixinho:
— Ah, certamente que não. Tão grosseiro!
— O quê, professor?
— Está me parecendo — disse Dumbledore, enfiando a mão boa nas vestes e tirando uma
faquinha de prata do tipo que Harry usava para cortar ingredientes para poções — que precisamos
pagar para passar.
— Pagar? — exclamou Harry. — O senhor tem de dar alguma coisa à porta?
— Tenho. Sangue, se não estiver muito enganado.
— Sangue?
— Eu disse que era grosseiro — comentou Dumbledore, em tom desdenhoso e até
desapontado, como se Voldemort se mostrasse aquém dos padrões esperados. — A idéia, como
certamente você terá captado, é que o inimigo deve se enfraquecer para entrar. Mais uma vez,
Lord Voldemort não conseguiu compreender que há coisas bem mais terríveis do que a lesão
física.
— Bem, mas se for possível evitar... — replicou Harry, que já sentira dor suficiente para
não querer mais.
— Às vezes, porém, é inevitável — disse Dumbledore, jogando para cima a manga das
vestes e expondo o antebraço da mão machucada.
— Professor! — protestou Harry, adiantando-se depressa ao ver Dumbledore erguendo a
faca. — Eu faço isso, sou...
Ele não sabia o que dizer: mais jovem, mais apto? Dumbledore, porém, apenas sorriu.
Houve um lampejo prateado e um esguicho escarlate; a face da rocha pontilhou-se de gotas
escuras e brilhantes.
— Você é muito bom, Harry — disse o diretor, agora passando a ponta da varinha no corte
profundo que fizera no próprio braço, fechando-o instantaneamente, da mesma maneira que
Snape curara os ferimentos de Malfoy. — Mas o seu sangue vale mais do que o meu. Ah, parece
que deu resultado, não?
O contorno fulgurante de um arco reapareceu na parede e, desta vez, não se apagou: a rocha
suja de sangue circunscrita pelo arco simplesmente sumiu, deixando uma abertura para uma
aparente e absoluta escuridão.
— Depois de mim, acho — disse Dumbledore, e ele cruzou o arco com Harry em seus
calcanhares, acendendo depressa a varinha ao entrar.
Eles depararam com uma cena extraordinária: estavam à beira de um grande lago negro, tão
vasto que Harry não conseguia divisar suas margens distantes, em uma caverna tão alta que seu
teto não era visível. Uma luz verde e indistinta brilhava ao longe, talvez no meio do lago; refletiase
na água imóvel abaixo. O brilho verde e a luz das duas varinhas eram as únicas coisas que
rompiam o negrume veludoso, embora seus raios não tivessem um alcance tão longo quanto
Harry esperara. A escuridão era de certo modo mais densa do que a escuridão normal.
— Vamos caminhar — disse Dumbledore em voz baixa. — Cuidado para não pisar na água.
Fique junto de mim.
Ele saiu margeando o lago, e Harry seguiu logo atrás. Seus passos ecoavam como tapas na
estreita orla de pedra que contornava o lago. Caminharam uma boa distância, mas a paisagem não
variava: de um lado, a áspera parede da caverna; do outro, a vastidão sem fim do negrume
espelhado, no meio da qual havia aquele misterioso brilho verde. Harry achou o lugar e o silêncio
opressivos, enervantes.
— Professor? — perguntou ele por fim. — O senhor acha que a Horcrux está aqui?
— Ah, sim. Tenho certeza que está. A questão é, como chegar a ela?
— Não podíamos... não podíamos simplesmente tentar um Feitiço Convocatório? —
perguntou Harry, convencido de que era uma sugestão idiota, mas querendo, mais do que
admitiria, sair o mais depressa possível daquele lugar.
— Certamente que poderíamos — respondeu Dumbledore, parando tão de repente que
Harry quase colidiu com ele. — Por que você não tenta?
— Eu? Ah... O.k.
Harry não esperara por isso, mas pigarreou e ordenou em voz alta, a varinha no ar:
— Accio Horcrux!
Com um ruído de explosão, algo muito grande e claro irrompeu da água escura a uns seis
metros de distância; antes que Harry pudesse ver o que era, a coisa tornou a mergulhar na água
com um estrondo que produziu ondas largas e profundas na superfície lisa do lago. Harry saltou
para trás assustado e bateu na parede; seu coração ainda retumbava quando ele se virou para
Dumbledore.
— Que foi aquilo?
— Alguma coisa, acho, que está pronta a reagir se tentarmos nos apossar da Horcrux.
Harry olhou novamente para o lago. Sua superfície retomara a aparência vítrea, escura e
brilhante: as ondas tinham desaparecido anormalmente rápido; o coração de Harry, no entanto,
continuou a bater com força.
— O senhor achava que ia acontecer isso?
— Achei que alguma coisa aconteceria se fizéssemos uma tentativa óbvia de nos apoderar
da Horcrux. Foi uma boa idéia, Harry; o modo mais simples de descobrirmos o que estamos
enfrentando.
— Mas não sabemos que coisa era aquela — replicou Harry, olhando para a água
sinistramente lisa.
— Que coisas são aquelas, você quer dizer — corrigiu-o Dumbledore. — Duvido muito
que seja apenas uma. Vamos continuar a andar?
— Professor?
— Que foi, Harry?
— O senhor acha que vamos precisar entrar no lago?
— Entrar? Só se tivermos muito azar.
— O senhor acha que a Horcrux está no fundo?
— Ah, não... Acho que está no meio.
E Dumbledore apontou para a luz verde e indistinta no centro do lago.
— Então teremos de atravessar o lago para chegar até a Horcrux?
— Acho que sim.
Harry não disse nada. Seus pensamentos resumiam-se em monstros lacustres, serpentes
gigantescas, demônios, cavalos-marinhos e fadas...
— Ah-ah — exclamou Dumbledore, tornando a parar; desta vez, Harry realmente colidiu
com ele; por um momento, o garoto oscilou na beira da água escura, e a mão sã do diretor
agarrou-o fortemente pelo braço e o puxou de volta. — Desculpe, Harry, eu devia ter avisado.
Fique junto à parede, por favor; acho que encontrei o lugar.
Harry não fazia idéia do que Dumbledore queria dizer; até onde podia perceber, este trecho
de margem escura era exatamente igual a qualquer outro, mas o professor Dumbledore, pelo
visto, detectara alguma coisa diferente. Desta vez, ele estava passando a mão, não na parede
rochosa, mas no ar, como se esperasse encontrar e agarrar alguma coisa invisível.
— Oho — exclamou ele feliz, segundos depois. Sua mão agarrara no ar alguma coisa que
Harry não conseguia ver. Dumbledore se aproximou mais da água; o garoto observou, nervoso, as
pontas dos sapatos de fivela do diretor chegarem até o limite da borda rochosa do lago. Mantendo
a mão fechada no ar, Dumbledore ergueu a varinha com a outra e deu uma pancadinha no próprio
punho.
Imediatamente apareceu no ar uma corrente grossa de cobre esverdeado que se alongou do
fundo do lago até a mão fechada de Dumbledore. Ele bateu na corrente, que começou a deslizar
por dentro de sua mão fechada como uma cobra e a se enroscar no chão com um ruído metálico
que ecoou vibrantemente nas paredes rochosas, e foi puxando alguma coisa das profundezas do
lago escuro. Harry ofegou quando a proa fantasmagórica de um barquinho veio à tona, tão verde
e brilhante quanto a corrente, e flutuou quase sem marolas até o ponto da margem em que Harry e
Dumbledore estavam parados.
— Como é que o senhor soube que o barco estava ali? — perguntou Harry espantado.
— A magia sempre deixa vestígios — respondeu o diretor, quando o barco bateu
suavemente na margem —, vestígios por vezes muito característicos. Fui professor de Tom
Riddle. Conheço o estilo dele.
— O barco é... é seguro?
— Ah, acho que sim. Voldemort precisava criar um meio de atravessar o lago sem atrair a
cólera das criaturas que colocou nele, caso um dia quisesse visitar ou remover sua Horcrux.
— Então as coisas na água não nos farão mal se atravessarmos no barco de Voldemort?
— Acho que devemos nos conformar com a idéia de que, em algum momento, elas
perceberão que não somos Lord Voldemort. Até aqui, porém, temos nos saído bem. Elas nos
deixaram erguer o barco.
— Mas por que deixaram? — perguntou Harry, que não conseguia esquecer a visão de
tentáculos emergindo da água escura quando se distanciaram da margem.
— Voldemort devia estar razoavelmente confiante de que ninguém, exceto um grande
bruxo, seria capaz de encontrar o barco. Penso que estaria disposto a arriscar a improvável
possibilidade de alguém conseguir isto, porque sabia que deixara mais à frente outros obstáculos
que somente ele poderia superar. Veremos se tinha razão.
Harry examinou o barco. Era realmente muito pequeno.
— Não parece ter sido construído para duas pessoas. Será que nos agüentará? Não será peso
demais?
Dumbledore riu.
— Voldemort não deve ter se preocupado com o peso, mas com o poderio mágico que
cruzasse o seu lago. Eu pensaria que ele deve ter lançado um encantamento sobre o barco de tal
ordem que apenas um bruxo por vez poderá usá-lo.
— Mas então...?
— Acho que você não conta, Harry: é menor de idade e não-qualificado. Voldemort jamais
esperaria que um adolescente de dezesseis anos chegasse aqui: acho improvável que os seus
poderes sejam considerados, se comparados aos meus.
Tais palavras não ajudaram a levantar o moral de Harry, e Dumbledore, talvez percebendo
isso, acrescentou:
— Um erro de Voldemort, Harry, um erro de Voldemort... a velhice é tola e esquecida
quando subestima a juventude... desta vez, você embarca primeiro, e tenha cuidado para não tocar
na água.
Dumbledore se afastou para um lado e Harry subiu cautelosamente no barco. O professor
subiu também, enrolando a corrente no fundo. Os dois ficaram espremidos; Harry não pôde se
sentar confortavelmente, agachou-se, deixando os joelhos para fora do barco, que se pôs
imediatamente em movimento. Não se ouvia outro som exceto o sussurro da proa cortando a
água; o barco se deslocava sem ajuda, como se uma corda invisível o puxasse em direção à luz no
centro. Em pouco tempo, deixaram de avistar as paredes da caverna; eles poderiam estar no mar
não fosse pela falta de ondas.
Harry baixou os olhos e viu o reflexo dourado da luz de sua varinha faiscar e cintilar na
água escura enquanto avançavam. O barco esculpia fundas rugas na superfície vidrada, sulcos no
espelho escuro...
Então Harry a viu, branca como mármore, boiando a centímetros da superfície.
— Professor! — exclamou, e sua voz assustada ecoou sonoramente pela água silenciosa,
— Harry?
— Acho que vi uma mão na água, uma mão humana!
— Sei, tenho certeza de que viu — respondeu Dumbledore calmamente.
Harry olhou espantado para a água à procura da mão que desaparecera, uma sensação de
náusea subindo-lhe à garganta.
— Então aquela coisa que saltou da água...
Harry obteve a resposta antes que Dumbledore pudesse falar; a luz da varinha deslizara por
um novo trecho da água e, desta vez, lhe mostrou um defunto de cara para cima centímetros
abaixo da superfície; seus olhos abertos toldados como se tivessem teias de aranha, seus cabelos e
suas vestes girando em torno dele como fumaça.
— Tem cadáveres aí dentro! — disse Harry, e sua voz saiu muito mais aguda e diferente do
que o normal.
— Tem — respondeu Dumbledore placidamente —, mas por ora não precisamos nos
preocupar com eles.
— Por ora? — respondeu Harry, despregando o olhar da água para fixá-lo em Dumbledore.
— Não enquanto estiverem apenas boiando tranqüilamente abaixo de nós. Nada temos a
recear de um cadáver, Harry, como nada temos a recear da escuridão. Lord Voldemort, que
naturalmente tem um receio íntimo de ambos, discorda. Mas, de novo, ele revela sua própria falta
de sabedoria. É o desconhecido que receamos quando olhamos para a morte e a escuridão, nada
mais.
Harry não respondeu; não queria discutir, mas achava pavorosa a idéia de que havia
cadáveres flutuando em volta e abaixo deles, e, além disso, não acreditava que não fossem
perigosos.
— Mas um deles saltou — disse ele tentando manter a voz estável e calma como a de
Dumbledore. — Quando tentei convocar a Horcrux, um cadáver pulou do lago.
— Verdade... E estou seguro que, quando apanharmos a Horcrux, veremos que são menos
pacíficos. Mas, como muitas criaturas que habitam o frio e a escuridão, eles temem a luz e o calor
que evocaremos em nosso auxílio, se houver necessidade. Fogo, Harry — Dumbledore
acrescentou com um sorriso, em resposta à expressão atordoada de Harry.
— Ah... certo — concordou ele rápido. E virou a cabeça para olhar a luz verde, destino
inexorável do barco. Agora, Harry não podia fingir que não estava apavorado. O grande lago
negro coalhado de cadáveres... parecia fazer horas que ele encontrara a professora Trelawney, que
dera a Rony e Hermione a Felix Felicis... desejou de repente ter se despedido melhor deles... nem
ao menos vira Gina...
— Quase lá — anunciou Dumbledore animado.
De fato, a luz verde parecia estar finalmente aumentando, e minutos depois o barco parou,
batendo suavemente em alguma coisa que Harry a princípio não pôde ver, mas, quando ergueu a
varinha iluminada, constatou que tinham chegado a uma ilhota de rocha lisa no centro do lago.
— Cuidado para não tocar na água — tornou a recomendar Dumbledore quando Harry
desembarcou.
A ilha não era maior do que o escritório de Dumbledore: uma extensão de rocha plana e
escura em que não havia nada exceto a fonte daquela luz verde, que parecia muito mais forte vista
de perto. Harry semicerrou os olhos; a princípio pensou que fosse algum tipo de lampião, mas
logo percebeu que a luz vinha de uma bacia de pedra muito parecida com a Penseira, apoiada
sobre um pedestal.
Dumbledore se aproximou da bacia, seguido por Harry. Lado a lado, eles a examinaram. A
bacia estava cheia de um líquido verde-esmeralda que emitia uma luz fosforescente.
— Que é isso? — perguntou Harry em voz baixa.
— Não tenho bem certeza — respondeu Dumbledore. — Alguma coisa mais preocupante
do que sangue e cadáveres.
Dumbledore empurrou para cima a manga das vestes que lhe cobria a mão escurecida e
esticou as pontas dos dedos queimados para a superfície da poção.
— Senhor, não, não toque...!
— Não posso tocar — informou Dumbledore com um ar de riso. — Está vendo? Só posso
chegar até aqui. Tente.
De olhos arregalados, Harry levou a mão à bacia e tentou tocar a poção. Bateu em uma
barreira invisível a uns três centímetros que o impedia de se aproximar mais. Por mais que
empurrasse, aparentemente seus dedos não encontravam nada, exceto ar sólido e inflexível.
— Afaste-se, por favor, Harry — pediu Dumbledore.
O professor ergueu a varinha e fez gestos complicados sobre a superfície da poção,
murmurando silenciosamente. Nada aconteceu, a não ser, talvez, o brilho da poção se intensificar.
Harry guardou silêncio enquanto Dumbledore trabalhava, mas, passado algum tempo, o diretor
recolheu a varinha e Harry achou que era seguro falar.
— O senhor acha que a Horcrux está aí dentro?
— Ah, sim. — Dumbledore examinou a bacia mais de perto. Harry viu seu rosto refletido,
de cabeça para baixo, na superfície lisa da poção verde. — Mas como alcançá-la? A poção não
aceita ser penetrada à mão, desaparecida ou dividida ou apanhada ou aspirada, nem pode ser
transfigurada, encantada, tampouco alterada em sua natureza.
Quase distraído, Dumbledore tornou a erguer a varinha, girou-a no ar e recolheu uma taça
de cristal que acabara de conjurar do nada.
— Só posso concluir que essa poção deve ser bebida.
— Quê? — exclamou Harry. — Não!
— Penso que sim: somente bebendo-a posso esvaziar a bacia e ver o que guarda no fundo.
— Mas e se... e se a poção matar o senhor?
— Ah, duvido que produzisse tal efeito — disse Dumbledore tranqüilo. — Lord Voldemort
não iria querer matar a pessoa que alcançasse sua ilha.
Harry não conseguiu acreditar. Seria mais um exemplo da insana determinação de
Dumbledore de ver o bem em todas as pessoas?
— Senhor — disse Harry, tentando manter a voz equilibrada —, senhor, é o Voldemort que
estamos...
— Desculpe, Harry; eu devia ter dito que ele não iria querer matar imediatamente a pessoa
que alcançasse sua ilha — corrigiu Dumbledore. — Iria querer mantê-la viva tempo suficiente
para descobrir como conseguiu penetrar tão fundo suas defesas e, o que é mais importante, por
que queria tanto esvaziar a bacia. Não esqueça que Lord Voldemort acredita que somente ele sabe
sobre suas Horcruxes.
Harry fez menção de falar, mas desta vez Dumbledore ergueu a mão pedindo silêncio,
franzindo ligeiramente a testa para o líquido esmeralda, evidentemente refletindo.
— Sem dúvida — disse por fim —, esta poção deve produzir um efeito tal que me impeça
de levar a Horcrux. Deve me paralisar, me fazer esquecer o que vim fazer, causar tanta dor que
me distraia ou me incapacitar de alguma forma. Assim sendo, Harry, sua tarefa será garantir que
eu não pare de beber, mesmo que tenha de virar a poção na minha boca enquanto eu protesto.
Compreendeu?
Seus olhos se encontraram por cima da bacia; cada rosto pálido iluminado por aquela
estranha luz verde. Harry não respondeu. Teria sido por isso que fora convidado a vir, para forçar
Dumbledore a beber uma poção que talvez lhe causasse dor insuportável?
— Você lembra — disse Dumbledore — a condição que impus para trazê-lo?
Harry hesitou, fixando seus olhos azuis que tinham esverdeado à luz refletida pela bacia.
— Mas e se...?
— Você jurou obedecer a qualquer ordem que eu lhe desse, não foi?
— Jurei, mas...
— Eu o preveni, não foi, que poderia haver perigo?
— Foi — respondeu Harry —, mas...
— Bem, então — tornou Dumbledore mais uma vez, jogando para cima as mangas das
vestes e erguendo a taça vazia —, já recebeu as minhas ordens.
— Por que não posso beber a poção em seu lugar? — perguntou o garoto desesperado.
— Porque sou muito mais velho, muito mais esperto e muito menos valioso. De uma vez
por todas, Harry, você me dá sua palavra de que fará tudo que puder para não me deixar parar de
beber?
— Será que eu não poderia...? — Dá?
— Mas...
— Sua palavra, Harry.
— Eu... está bem, mas...
Antes que Harry pudesse continuar protestando, Dumbledore mergulhou a taça de cristal na
poção. Por uma fração de segundo, Harry teve esperança de que ele não conseguisse tocar na
poção com a taça, mas o cristal afundou na superfície que nada conseguira tocar; quando a taça se
encheu até em cima, Dumbledore levou-a à boca.
— À sua saúde, Harry.
E esvaziou a taça. Harry observou-o, aterrorizado, suas mãos apertando a borda da bacia
com tanta força que as pontas dos seus dedos ficaram dormentes.
— Professor? — chamou ele, ansioso, quando Dumbledore baixou a taça vazia. — Como
está se sentindo?
Dumbledore sacudiu a cabeça, os olhos fechados. Harry se perguntou se estaria sentindo
dores. Dumbledore tornou a mergulhar a taça na bacia às cegas, encheu-a e bebeu-a.
Em silêncio, Dumbledore bebeu três taças da poção. Então, na metade da quarta taça, ele
cambaleou e caiu contra a bacia. Seus olhos continuaram fechados e sua respiração se tornou
ofegante.
— Professor Dumbledore? — chamou Harry com a voz tensa. — O senhor está me
ouvindo?
Dumbledore não respondeu. Seu rosto se contraía, como se ele dormisse profundamente,
mas experimentasse um terrível pesadelo. A mão com que segurava a taça foi afrouxando: a
poção ia derramar. Harry estendeu a mão e agarrou a taça de cristal, mantendo-a em pé.
— Professor, o senhor está me ouvindo? — repetiu ele alto, sua voz ecoando pela caverna.
Dumbledore ofegou, e em seguida falou com um timbre irreconhecível, porque Harry
jamais ouvira Dumbledore amedrontado daquela forma.
— Não quero... não me force...
Harry olhou para o rosto pálido que ele conhecia tão bem, para o nariz torto e os oclinhos de
meia-lua, e não soube o que fazer.
— ... não gosto... quero parar... — lamentou-se Dumbledore.
— O senhor... o senhor não pode parar, professor. O senhor tem de continuar a beber,
lembra? O senhor me disse que não podia parar de beber. Tome...
Odiando-se, sentindo repulsa pelo que estava fazendo, Harry forçou a taça a encostar à boca
de Dumbledore e virou-a, fazendo com que o professor bebesse o que restava.
— Não... — gemeu ele, quando Harry mergulhou a taça mais uma vez na bacia e encheu-a.
— Não quero... não quero... me deixe...
— Tudo bem, professor — disse Harry com a mão trêmula. — Tudo bem, estou aqui...
— Faça isso parar, faça isso parar — gemeu Dumbledore.
— Sim... sim, isto fará parar — mentiu Harry. E virou o conteúdo da taça na boca aberta do
professor.
Dumbledore berrou; o ruído ecoou ao redor da vasta câmara e atravessou a água negra e
parada.
— Não, não, não... não... não posso... não posso, não me force, não quero...
— Está tudo bem, professor, está tudo bem! — disse Harry em voz alta, suas mãos
tremendo tanto que teve dificuldade em encher a sexta taça de poção; a bacia agora estava pela
metade. — Nada está acontecendo com o senhor, o senhor está seguro, nada disso é real, juro que
não é real... agora tome, tome...
E, obedientemente, Dumbledore bebeu, como se Harry estivesse lhe oferecendo um
antídoto, mas, ao esvaziar a taça, ele caiu de joelhos, tremendo, descontrolado.
— É tudo minha culpa, tudo minha culpa — soluçou —, por favor, pare com isso, sei que
errei, ah, por favor pare com isso e eu nunca, nunca mais...
— Isto fará parar, professor — disse Harry, sua voz falhando ao virar a sétima taça de poção
na boca de Dumbledore.
O professor começou a se encolher como se torturadores invisíveis o cercassem; a mão que
ele sacudia quase derrubou a taça, novamente cheia, das mãos trêmulas de Harry, gemendo.
— Não os machuquem, não os machuquem, por favor, por favor, a culpa é minha,
machuquem a mim...
— Aqui, beba isso, beba isso, o senhor vai ficar bom — disse Harry desesperado, e mais
uma vez Dumbledore obedeceu, abrindo a boca, embora mantivesse os olhos fechados e tremesse
violentamente da cabeça aos pés.
Então, ele caiu para frente, berrando, esmurrando o chão, enquanto Harry enchia a nona
taça.
— Por favor, por favor, por favor, não... isso não, isso não, farei qualquer coisa...
— Beba, professor, beba...
Dumbledore bebeu como uma criança morta de sede, mas, quando terminou, voltou a berrar
como se suas entranhas estivessem em chamas.
— Não, por favor, chega...
Harry encheu a décima taça de poção e sentiu o cristal arranhar o fundo da bacia.
— Falta pouco, professor, beba, beba...
Ele amparou Dumbledore pelos ombros, e mais uma vez o professor esvaziou a taça; Harry
tornou a se levantar, e, quando estava enchendo a taça, Dumbledore começou a gritar mais
angustiado do que antes:
— Quero morrer! Quero morrer! Pare com isso, pare com isso, quero morrer!
— Beba, professor, beba...
Dumbledore bebeu, e mal terminara berrou:
— MATE-ME!
— Esta... esta fará parar! — ofegou Harry. — Beba... já vai passar... já vai passar!
Dumbledore engoliu o conteúdo da taça até a última gota e então, com um enorme arquejo,
rolou de borco.
— Não! — gritou Harry, que se pusera de pé para encher mais uma vez a taça; em lugar
disso, largou-a na bacia, atirou-se no chão ao lado de Dumbledore e virou-o de barriga para cima;
os óculos do professor estavam tortos, sua boca aberta, seus olhos fechados. — Não — disse
Harry, sacudindo Dumbledore —, não, o senhor não está morto, o senhor disse que não era
veneno, acorde, acorde: Rennervate! — gritou o garoto, apontando a varinha para o peito de
Dumbledore; houve um lampejo vermelho, mas nada aconteceu. — Rennervate... senhor... por
favor...
Os olhos de Dumbledore piscaram; o coração de Harry saltou no peito.
— Senhor, o senhor está...?
— Água — pediu Dumbledore rouco.
— Água — ofegou Harry — ... sim...
Ele ficou em pé de um salto e agarrou a taça que largara na bacia; mal registrou o medalhão
de ouro com a corrente enroscada embaixo da taça.
— Aguamenti! — ordenou Harry, espetando a taça com sua varinha. A taça se encheu de
água cristalina; Harry caiu de joelhos ao lado de Dumbledore, ergueu sua cabeça e levou a taça
aos seus lábios, mas estava vazia. Dumbledore gemeu e começou a ofegar.
— Mas eu pus... espere... Aguamenti! — tornou Harry a ordenar, apontando a varinha para
a taça. Mais uma vez, por um segundo, a água brilhou dentro dela, mas, quando a aproximou da
boca de Dumbledore, a água novamente desapareceu.
"Senhor, estou tentando, estou tentando! — exclamou Harry, desesperado, mas achou que o
professor não podia ouvi-lo; ele rolara para um lado e inspirava profunda e ruidosamente
parecendo agonizar. — Aguamenti... Aguamenti... AGUAMENTI!"
A taça se enchia e tornava a esvaziar. A respiração de Dumbledore foi enfraquecendo. Com
o cérebro girando de pânico, Harry percebeu, instintivamente, a única maneira possível de obter
água, porque assim tinha planejado Voldemort...
Ele se atirou para a margem rochosa e mergulhou a taça no lago, erguendo-a, totalmente
cheia, com água gelada que não desapareceu.
— Senhor... aqui! — gritou Harry e, precipitando-se para Dumbledore, virou a água,
desajeitado, em seu rosto.
Foi o melhor que pôde fazer, porque a sensação gélida em seu braço livre não era o frio
prolongado da água. Uma mão branca e escorregadia agarrara seu pulso, e a criatura a quem
pertencia puxava-o pela rocha lentamente de volta ao lago. A superfície não era mais um espelho;
revolvia-se, e para todo lado que Harry olhava, cabeças e mãos brancas emergiam da água escura,
homens, mulheres e crianças, com olhos encovados e cegos, moviam-se em direção à rocha: um
exército de mortos ressurgindo do lago negro.
— Petrificus Totalus! — berrou Harry, lutando para se agarrar à superfície lisa e molhada
da ilha enquanto apontava a varinha para o Inferius que segurava seu braço: o morto-vivo soltouo
e tornou a cair espalhando água.
Harry se levantou; mas outros tantos Inferi já estavam subindo na rocha, cravando suas
mãos ossudas na superfície escorregadia, seus olhos cegos e esbranquiçados fixos nele, seus
trapos encharcados arrastando pelo chão, os rostos encovados rindo debochadamente.
— Petrificus Totalus! — tornou a urrar Harry, recuando e varrendo o ar com a varinha; seis
ou sete mortos tombaram, mas outros tantos vinham em sua direção. — Impedimento!
Incarcerous!
Alguns tropeçaram, uns dois foram imobilizados com cordas, mas aqueles que galgavam a
rocha atrás deles simplesmente pulavam por cima ou pisavam nos corpos caídos. Ainda cortando
o ar com a varinha, Harry berrou:
— Sectumsempra! SECTUMSEMPRA!
Embora aparecessem cortes nos trapos encharcados e em sua pele gélida, eles não tinham
sangue para derramar: continuavam a avançar, insensíveis, as mãos enrugadas estendidas para
ele, e, ao recuar para mais longe, Harry sentiu que o abraçavam pelas costas, braços finos e
descarnados, frios como a morte, e seus pés perderam o chão quando o ergueram e levaram
seguramente, para a água, e ele percebeu que não o soltariam, que ele se afogaria e se tornaria
mais um guardião morto do fragmento da alma partida de Voldemort...
Então, o fogo irrompeu na escuridão: carmim e ouro, um círculo de fogo que cercou a ilha e
fez os Inferi que imobilizavam Harry tropeçarem e vacilarem; eles não ousaram atravessar as
chamas para chegar à água. Largaram Harry; ele bateu no chão, escorregou pela rocha e caiu,
arranhando os braços, mas tornou a se pôr de pé, ergueu a varinha e olhou assustado para os
lados.
Dumbledore estava mais uma vez de pé, pálido como qualquer dos Inferi em volta, porém
mais alto que todos, as chamas dançando em seus olhos; sua varinha estava erguida como uma
tocha e da ponta saíam chamas, como um imenso laço, envolvendo todos em calor.
Os mortos-vivos colidiram entre si, tentando, às cegas, fugir do fogo que os encerrava...
Dumbledore apanhou o medalhão no fundo da bacia de pedra e guardou-o nas vestes. Em
silêncio, fez sinal a Harry para juntar-se a ele. Distraídos pelas chamas, os Inferi pareciam não
registrar que suas vítimas estavam deixando a ilha; Dumbledore levava Harry para o barco, o anel
de fogo deslocava-se com eles, cercava-os, os atordoados mortos-vivos acompanharam-nos até a
beira do lago onde mergulharam, agradecidos, em suas águas escuras.
Harry, completamente trêmulo, achou por um momento que Dumbledore não fosse capaz de
subir no barco; o professor cambaleou um pouco ao tentar; aparentemente, todos os seus esforços
convergiam para manter o anel protetor de fogo à sua volta. Harry segurou-o e ajudou-o a sentar.
Quando já estavam espremidos e seguros a bordo, o barco começou a se deslocar pela água
escura, afastando-se da rocha ainda envolta naquele anel de fogo; embaixo, os Inferi
enxameavam, mas não se atreviam a emergir.
— Senhor — ofegou Harry Potter —, senhor eu me esqueci... do fogo... eles avançaram
para mim e entrei em pânico...
— Muito compreensível — murmurou Dumbledore. O garoto alarmou-se ao ouvir a voz do
professor tão fraca.
Eles tocaram na margem com uma batidinha, e Harry saltou, voltando-se ligeiro para ajudar
Dumbledore. No momento em que chegou à margem, o bruxo baixou a mão da varinha; o anel de
fogo desapareceu, mas os mortos-vivos não tornaram a emergir da água. O barquinho afundou no
lago mais uma vez; se entrechocando, a corrente metálica também deslizou para dentro do lago.
Dumbledore deu um grande suspiro e encostou-se à parede da caverna.
— Estou fraco...
— Não se preocupe, senhor — disse Harry imediatamente, ansioso com a extrema palidez
do professor e seu ar de exaustão. — Não se preocupe, levarei nós dois de volta... se apóie em
mim, senhor...
E, puxando o braço bom de Dumbledore por cima dos ombros, Harry guiou o diretor pela
margem do lago, carregando grande parte do seu peso.
— A proteção foi... afinal... bem engendrada — disse Dumbledore baixinho. — Uma pessoa
sozinha não teria conseguido... você se portou bem, muito bem, Harry...
— Não fale agora — disse Harry, apreensivo com a voz pastosa e os passos arrastados de
Dumbledore —, poupe suas energias, senhor... logo estaremos fora daqui...
— O arco deverá ter se lacrado outra vez... minha faca...
— Não é preciso, eu me cortei na rocha — falou Harry com firmeza —, só me diga onde...
— Aqui...
Harry esfregou o braço arranhado na pedra: uma vez recebido o tributo de sangue, o arco
reabriu-se instantaneamente. Eles atravessaram a caverna externa, e Harry ajudou Dumbledore a
entrar na água gelada do mar que enchia a fenda no penhasco.
— Vai dar tudo certo, senhor — Harry repetia sem parar, mais preocupado com o silêncio
de Dumbledore do que estivera com a fraqueza de sua voz. — Estamos quase chegando... Posso
Aparatar com o senhor para voltarmos... não se preocupe...
— Não estou preocupado, Harry — disse Dumbledore, sua voz um pouco mais forte apesar
da frieza da água. — Estou com você.
CAPITULO VINTE E SETE
A TORRE ATINGIDA PELO RAIO
DE VOLTA À NOITE ESTRELADA, Harry carregou Dumbledore para cima do pedregulho mais
próximo e ajudou-o a ficar de pé. Encharcado e trêmulo, ainda sustentando o peso de
Dumbledore, Harry se concentrou como nunca fizera antes em sua destinação: Hogsmeade.
Fechando os olhos e apertando, com toda a força, o braço de Dumbledore, ele mergulhou naquela
sensação de horrível compressão.
O garoto percebeu que dera certo antes de abrir os olhos: o cheiro de sal e brisa marinha
haviam desaparecido. Ele e Dumbledore estavam tremendo e pingando água no meio da escura
rua principal de Hogsmeade. Por um terrível momento, sua imaginação lhe mostrou mais Inferi
que surgiam dos lados das lojas e se arrastavam em sua direção, mas ele piscou e viu que nada se
movia; tudo estava quieto, a escuridão era total, exceto por uns poucos lampiões e janelas iluminadas
no primeiro andar.
— Conseguimos, professor! — sussurrou Harry com dificuldade; ele percebeu, de repente,
que sentia uma pontada ardida no peito. — Conseguimos! Encontramos a Horcrux!
Dumbledore vacilou de encontro a Harry. Por um momento, o garoto pensou que sua
Aparatação amadora tivesse desequilibrado o professor; então viu o rosto de Dumbledore, mais
pálido e úmido que nunca, à luz distante do lampião de rua.
— Senhor, o senhor está bem?
— Já estive melhor — respondeu Dumbledore com a voz sumida, embora os cantos de sua
boca tentassem sorrir. — Aquela poção não era uma bebida saudável...
E, para horror de Harry, o professor caiu ao chão.
— Senhor... tudo o.k., senhor, o senhor vai ficar bom, não se preocupe...
Ele olhou em volta, desesperado, procurando ajuda, mas não havia ninguém à vista, e só
conseguia pensar que, de alguma maneira, tinha de levar Dumbledore, depressa, para a ala
hospitalar.
— Precisamos levar o senhor para a escola, senhor... Madame Pomfrey...
— Não — contestou Dumbledore. — É... do professor Snape que preciso... mas acho que
não... posso ir muito longe no momento...
— Certo... senhor, escute... vou bater em uma porta, encontrar um lugar em que possa
ficar... e então correr para buscar Madame...
— Severo — repetiu Dumbledore claramente. — Preciso do Severo...
— Muito bem, então, Snape... mas vou ter de abandonar o senhor um momento para poder...
Antes, porém, que Harry pudesse fazer qualquer movimento, ele ouviu os passos de alguém
correndo. Seu coração pulou: alguém vira, alguém sabia que eles precisavam de ajuda; e, ao olhar
à sua volta, viu Madame Rosmerta correndo pela rua escura em sua direção, usando sandálias
altas de pelúcia e um roupão bordado com dragões.
— Vi vocês aparatarem quando estava fechando as cortinas do quarto! Graças a Deus,
graças a Deus, não podia imaginar o que... mas que aconteceu com o Alvo?
Ela parou de repente, ofegando, e encarou Dumbledore de olhos arregalados.
— Ele está passando mal — disse Harry. — Madame Rosmerta, será que ele pode ficar no
Três Vassouras enquanto vou até a escola buscar ajuda?
— Você não pode ir lá sozinho! Você não percebe... você não viu?
— Se a senhora me ajudar a carregá-lo — falou Harry, sem ouvi-la —, acho que podemos
levá-lo para dentro...
— Que aconteceu? — perguntou Dumbledore. — Rosmerta, que está havendo?
— A... a Marca Negra, Alvo.
E ela apontou para o céu, em direção a Hogwarts. Harry foi tomado de pavor ao ouvir essas
palavras... ele se virou e olhou.
Lá estava no céu sobre a escola: o crânio verde chamejante com uma língua de cobra, a
marca deixada pelos Comensais da Morte sempre que entravam em um prédio... sempre que
matavam...
— Quando foi que apareceu? — perguntou o diretor, e sua mão se fechou dolorosamente no
ombro de Harry na tentativa de se pôr de pé.
— Deve ter sido há poucos minutos, não estava lá quando pus o gato para fora, mas quando
cheguei ao primeiro andar...
— Precisamos voltar ao castelo imediatamente. Rosmerta. — E, embora oscilasse um
pouco, Dumbledore parecia estar em pleno comando da situação. — Precisamos de transporte...
vassouras...
— Tenho umas duas atrás do bar — respondeu a bruxa, parecendo muito assustada. — Quer
que eu vá buscar...?
— Não, Harry pode fazer isso.
Harry ergueu a varinha na mesma hora.
— Acuo vassouras de Rosmerta.
Um segundo depois, ele ouviu um forte estampido, e a porta do bar se escancarou; duas
vassouras voaram para a rua, apostando corrida para chegar ao lado de Harry, onde pararam de
chofre, estremecendo, à altura de sua cintura.
— Rosmerta, por favor, mande uma mensagem ao Ministério — disse Dumbledore,
montando a vassoura mais próxima. — Pode ser que ninguém em Hogwarts tenha percebido que
há um problema... Harry, ponha a sua Capa da Invisibilidade.
Harry tirou a capa do bolso e atirou-a sobre o corpo antes de montar sua vassoura; Madame
Rosmerta já estava voltando com passinhos vacilantes para o seu bar quando Harry e Dumbledore
deram impulso no chão e levantaram vôo. Enquanto voavam, velozes, para o castelo, Harry
olhava de esguelha para o professor, pronto a agarrá-lo se caísse, mas a visão da Marca Negra
tivera efeito estimulante em Dumbledore: ele estava curvado sobre a vassoura, os olhos fixos na
Marca, seus longos cabelos e barba prateados esvoaçando às suas costas, à brisa noturna. E Harry,
também, olhava para a caveira à frente, e o medo crescia dentro dele como uma bolha venenosa,
comprimindo seus pulmões, varrendo qualquer outro desconforto de sua mente...
Quanto tempo haviam passado fora? Será que a sorte de Rony, Hermione e Gina, a esta
altura, já teria acabado? Teria sido um deles a razão da Marca ter surgido na escola, ou Neville ou
Luna, ou outro membro da AD? E, se fosse... ele é quem pedira a eles para patrulharem os
corredores, quem pedira para deixarem a segurança de suas camas... seria novamente responsável
pela morte de um amigo?
Quando sobrevoaram a estrada escura e serpeante que tinham descido a pé mais cedo, Harry
ouviu, acima do assobio do ar noturno, os murmúrios de Dumbledore em uma língua
desconhecida. Achou que entendia a razão daquilo, pois sentiu a vassoura vibrar um momento
quando transpuseram os muros da propriedade: Dumbledore estava desfazendo os encantamentos
que ele mesmo lançara em torno do castelo para que pudessem entrar. A Marca Negra brilhava
imediatamente acima da Torre de Astronomia, a mais alta do castelo. Será que isto significava
que a morte ocorrera ali?
Dumbledore já cruzara as ameias da torre, e estava desmontando; Harry pousou ao lado
dele, segundos depois, e olhou para os lados.
As ameias estavam desertas. A porta para a escada espiral que levava ao castelo estava
fechada. Não havia sinal de conflito, de combate mortal, de cadáver.
— Que significa isso? — perguntou Harry a Dumbledore, erguendo os olhos para a caveira
verde com língua de serpente, refulgindo malignamente no alto. — É a Marca verdadeira?
Alguém foi mesmo... professor?
A fraca claridade verde da Marca, Harry viu Dumbledore apertar o peito com a mão escura.
— Vá acordar Snape — disse ele com a voz fraca, mas clara. — Conte-lhe o que aconteceu
e traga-o aqui. Não faça mais nada, não fale com mais ninguém e não tire a sua capa. Esperarei
aqui.
— Mas...
— Você jurou me obedecer, Harry, vá!
Harry correu para a porta que abria para a escada espiral, mas, assim que sua mão tocou no
anel de ferro da porta, ouviu gente correndo do outro lado. Ele olhou para Dumbledore, que lhe
fez sinal para recuar. Harry se afastou, puxando ao mesmo tempo a varinha.
A porta se escancarou e alguém irrompeu por ela gritando:
— Expelliarmus!
O corpo de Harry se tornou instantaneamente rígido e imóvel, e ele se sentiu tombar contra
a parede da Torre, escorado como uma estátua instável, incapaz de se mexer ou falar. Não
conseguiu entender como acontecera, Expelliarmus não era um Feitiço Paralisante...
Então, à luz da Marca, ele viu a varinha de Dumbledore traçar um arco por cima das ameias
e compreendeu... Dumbledore o imobilizara silenciosamente, e o segundo que levara para lançar
o feitiço lhe custara a chance de se defender.
Encostado nas ameias, com o rosto muito branco, Dumbledore, ainda assim, não mostrava
sinal de pânico ou aflição. Simplesmente olhou para quem o desarmara e disse:
— Boa-noite, Draco.
Malfoy adiantou-se, olhando rapidamente ao redor para verificar se ele e o diretor estavam a
sós. Seus olhos bateram na segunda vassoura.
— Quem mais está aqui?
— Uma pergunta que eu poderia fazer a você. Ou está agindo sozinho?
Harry viu os olhos claros de Malfoy se voltarem para Dumbledore, à claridade esverdeada
da Marca Negra.
— Não — respondeu ele. — Tenho apoio. Há Comensais da Morte em sua escola esta noite.
— Bom, bom — comentou Dumbledore, como se Malfoy estivesse lhe mostrando um
trabalho escolar ambicioso. — De fato muito bom. Você encontrou um meio de trazê-los para
dentro, foi?
— Foi — replicou Malfoy ofegante. — Bem debaixo do seu nariz, e o senhor nem
percebeu!
— Engenhoso. Contudo... me perdoe... onde estão eles? Você parece indefeso.
— Eles encontraram uma parte de sua guarda. Estão lutando lá embaixo. Não vão demorar...
eu vim na frente. Tenho... tenho uma tarefa a fazer.
— Bem, então, não deve se deter, faça-a, meu caro rapaz — disse Dumbledore baixinho.
Fez-se silêncio. Harry continuava preso em seu corpo invisível e paralisado, observando os
dois, apurando os ouvidos para os ruídos da luta distante que travavam os Comensais da Morte e,
diante dele, Draco Malfoy só fazia olhar para Alvo Dumbledore que, inacreditavelmente, sorria.
— Draco, Draco, você não é um assassino.
— Como é que o senhor sabe? — replicou Draco prontamente. Ele deve ter percebido como
suas palavras soaram infantis; Harry viu-o corar à claridade verde da Marca.
— O senhor não sabe do que sou capaz — disse o garoto, com mais firmeza —, o senhor
não sabe o que eu fiz!
— Ah, sei, sim — respondeu o diretor brandamente. — Você quase matou Cátia Bell e
Rony Weasley. Você tem tentado, com crescente desespero, me matar o ano todo. Perdoe-me,
Draco, mas suas tentativas têm sido ineficazes... tão ineficazes, para ser sincero, que me pergunto
se, no fundo, você realmente queria...
— Queria sim! — confirmou Malfoy com veemência. — Estive trabalhando nisso o ano
todo, e hoje à noite...
De algum ponto nas profundezas do castelo, Harry ouviu um grito abafado. Malfoy se
enrijeceu e espiou por cima do ombro.
— Alguém está resistindo com valentia — comentou Dumbledore em tom de conversa. —
Mas você ia dizendo... sim, que conseguiu introduzir Comensais da Morte em minha escola, o
que, admito, pensei que fosse impossível.., como fez isso?
Mas Malfoy não respondeu: ainda tentava escutar o que estava acontecendo no andar de
baixo, e parecia quase tão paralisado quanto Harry.
— Talvez você devesse continuar a tarefa sozinho — sugeriu Dumbledore. — E se o seu
apoio tiver sido rechaçado pela minha guarda? Como você talvez tenha percebido, há membros
da Ordem da Fênix aqui hoje à noite, também. E, afinal, você não precisa realmente de ajuda...
não tenho varinha no momento... não posso me defender.
Malfoy apenas olhava o diretor.
— Entendo — disse Dumbledore bondosamente, quando viu que Malfoy não se mexia nem
falava. — Você tem medo de agir até que eles cheguem.
— Não tenho medo! — vociferou Malfoy, embora não fizesse movimento para atacar
Dumbledore. — O senhor é quem deveria estar com medo!
— Mas por quê? Acho que você não vai me matar, Draco. Matar não é tão fácil quanto
crêem os inocentes... portanto, enquanto esperamos por seus amigos, me conte... como foi que
você os trouxe clandestinamente para dentro? Parece que levou muito tempo para descobrir um
meio de fazer isso.
Malfoy parecia estar reprimindo o impulso de gritar ou de vomitar. Engoliu em seco e
inspirou profundamente várias vezes com o olhar fixo em Dumbledore, sua varinha apontando
diretamente para o coração do diretor. Então, como se não conseguisse se conter, ele respondeu:
— Tive de consertar aquele Armário Sumidouro que ninguém usa há anos. Aquele em que
Montague sumiu no ano passado.
— Aaaah.
O suspiro de Dumbledore foi quase um lamento. Ele fechou os olhos por um instante.
— Foi uma idéia inteligente... há um par, não é?
— O outro está na Borgin & Burkes — respondeu Malfoy —, e os dois formam uma
passagem. Montague me contou que ficou preso no Armário de Hogwarts, suspenso no limbo,
mas às vezes ele ouvia o que estava acontecendo na escola e, outras, o que estava acontecendo na
loja, como se o Armário se deslocasse entre os dois pontos, mas não conseguia que ninguém o
ouvisse... no fim, ele saiu aparatando, apesar de nunca ter passado no teste. Quase morreu na
tentativa. Todo o mundo achou que era uma história realmente empolgante, mas eu fui o único
que percebi o que significava, nem o Borgin sabia, fui o único que percebi que talvez houvesse
um jeito de entrar em Hogwarts através dos Armários, se eu consertasse o que estava quebrado.
— Muito bom — murmurou Dumbledore. — Então os Comensais da Morte puderam passar
da Borgin & Burkes para a escola e ajudá-lo... um plano inteligente, um plano muito inteligente...
e, como você diz... bem debaixo do meu nariz...
— É — exclamou Malfoy que, bizarramente, parecia extrair coragem e consolo do elogio
do diretor. — É, foi!
— Houve vezes, no entanto — continuou Dumbledore —, em que você perdeu a certeza de
que conseguiria consertar o Armário, não é? E então lançou mão de recursos óbvios e mal
avaliados como me mandar um colar maldito, que estava fadado a ir parar em mãos erradas...
envenenar um hidromel que era pouquíssimo provável eu beber...
— É, mas, nem assim o senhor descobriu quem estava por trás disso, não é? — debochou
Malfoy, enquanto Dumbledore escorregava um pouco pelas ameias, aparentemente perdendo as
forças nas pernas, e Harry lutava sem sucesso, mudamente, contra o feitiço que o prendia.
— Na verdade, descobri. Eu tinha certeza de que era você.
— Por que não me deteve, então? — quis saber Malfoy.
— Tentei, Draco. O professor Snape tem vigiado você por ordens minhas...
— Ele não estava obedecendo as suas ordens, ele prometeu a minha mãe...
— Naturalmente isto é o que ele lhe diria, Draco, mas...
— Ele é um agente duplo, seu velho idiota, ele não está trabalhando para o senhor, o senhor
é que pensa que está!
— Devemos concordar em discordar nesse ponto, Draco. Acontece que eu confio no
professor Snape...
— Bem, então o senhor não está mais entendendo nem controlando nada! — desdenhou
mais uma vez Malfoy. — Ele tem me oferecido muita ajuda... querendo toda a glória para ele...
querendo um pouco de ação... "Que é que você anda fazendo? Mandou aquele colar, que idiotice,
poderia ter estragado tudo..." Mas não contei a ele o que estive fazendo na Sala Precisa, ele vai
acordar amanha e tudo estará acabado, e ele não será mais o favorito do Lorde das Trevas, ele não
será nada comparado a mim, nada!
— Muito gratificante — comentou Dumbledore brandamente. — Todos gostamos de
receber aplausos pelos nossos esforços, é mais do que natural... mas você deve ter tido um
cúmplice... alguém em Hogsmeade que pôde passar para Cátia o... o... aaaah...
Dumbledore fechou outra vez os olhos e cabeceou como se estivesse prestes a cochilar.
— ... naturalmente... Rosmerta. Há quanto tempo ela está dominada pela Maldição
Imperius?
— Enfim percebeu, não é? — caçoou Malfoy.
Ouviu-se um segundo grito vindo do andar de baixo, mais alto do que o anterior. Malfoy
olhou mais uma vez, nervosamente, por cima do ombro e, em seguida, para Dumbledore, que
continuou:
— Então a pobre Rosmerta foi forçada a se esconder no próprio banheiro e passar o colar
para a primeira estudante de Hogwarts que entrou lá desacompanhada? E o hidromel
envenenado... bem, naturalmente Rosmerta pôde envenená-lo para você antes de mandar a
garrafa para Slughorn, acreditando que seria o meu presente de Natal... sim, muito esperto...
muito esperto... o coitado do Sr. Filch não pensaria, é claro, em verificar uma garrafa do hidromel
de Rosmerta... mas diga-me, como esteve se comunicando com a Rosmerta? Pensei que tínhamos
todos os meios de comunicação de saída e entrada da escola monitorados.
— Moedas encantadas — respondeu Malfoy, como se sentisse uma compulsão de continuar
falando, embora a mão com que segurava a varinha tremesse muito. — Fiquei com uma e ela com
a outra e, assim, pude lhe mandar mensagens...
— Não foi esse o método secreto de comunicação que o grupo que se intitulava Armada de
Dumbledore usou no ano passado? — indagou Dumbledore. Sua voz era descontraída e informal,
mas Harry o viu escorregar mais uns dois centímetros pela parede enquanto falava.
— É, copiei a idéia deles — disse Malfoy, com um sorriso enviesado. — Tirei também a
idéia de envenenar o hidromel da Sangue-Ruim da Granger, ouvi quando ela disse na biblioteca
que o Filch não era capaz de reconhecer poções...
— Por favor, não use essa palavra ofensiva na minha presença — pediu Dumbledore.
Malfoy deu uma gargalhada desagradável.
— O senhor ainda se incomoda que eu esteja dizendo "Sangue-Ruim" quando estou prestes
a matá-lo?
— Incomodo-me. — Harry viu os pés do diretor deslizarem ligeiramente pelo chão e ele
tentar se manter de pé. — Quanto a estar prestes a me matar, Draco, você já teve longos minutos.
Estamos sozinhos. Estou mais indefeso do que você poderia ter sonhado em me encontrar e, ainda
assim, você não me matou...
Malfoy torceu a boca involuntariamente, como se tivesse provado alguma coisa muito
amarga.
— Agora, quanto a esta noite — continuou Dumbledore —, estou um pouco intrigado como
tudo aconteceu... você sabia que eu tinha saído da escola? Mas, é claro — ele respondeu à própria
pergunta —, Rosmerta me viu saindo, avisou-o usando suas engenhosas moedas, com certeza...
— Isto mesmo. Ela me disse que o senhor ia beber alguma coisa, que voltaria...
— Bem, sem dúvida eu bebi alguma coisa... e de certa maneira... voltei... — murmurou
Dumbledore. — Então, você decidiu montar uma armadilha para mim?
— Decidimos colocar a Marca Negra sobre a Torre e fazer o senhor voltar correndo para cá,
para ver quem tinha sido morto. E deu certo!
— Bem... sim e não... Mas eu devo entender, então, que ninguém foi morto?
— Alguém morreu — respondeu Malfoy, e sua voz pareceu subir uma oitava. — Um dos
seus... não sei quem, estava escuro... passei por cima do corpo... eu devia estar esperando aqui em
cima quando o senhor voltasse, só que aquela sua Fênix se meteu no caminho...
— Elas fazem isso — confirmou Dumbledore.
Ouviu-se um estampido e gritos embaixo, mais altos que antes; parecia que as pessoas
estavam lutando na escada de acesso ao lugar em que se encontravam Dumbledore, Malfoy e
Harry, e o coração de Harry reboou inaudivelmente em seu peito invisível... alguém fora morto...
Malfoy passara por cima do corpo... mas quem seria?
— De qualquer maneira, temos pouco tempo — disse Dumbledore. — Então vamos discutir
as suas opções, Draco.
— Minhas opções! — exclamou Malfoy alto. — Estou aqui com uma varinha... prestes a
matar o senhor...
— Meu caro rapaz, vamos parar de fingir. Se você fosse me matar, teria feito isso quando
me desarmou, não teria parado para conversarmos amenamente sobre meios e modos.
— Não tenho opções! — respondeu Malfoy, e subitamente ficou tão pálido quanto
Dumbledore. — Tenho de fazer isto. Ele me matará! Ele matará minha família toda!
— Eu avalio a dificuldade de sua posição. Por que pensa que não o confrontei antes? Porque
eu sabia que você seria morto se Lord Voldemort percebesse que eu suspeitava de você.
Malfoy fez uma careta ao ouvir aquele nome.
— Não me atrevi a falar antes sobre a missão que lhe fora confiada, prevendo que ele talvez
usasse a Legilimência contra você — continuou Dumbledore. — Agora, finalmente, podemos
falar às claras... não houve mal algum, você não feriu ninguém, embora tenha tido muita sorte que
suas vítimas impremeditadas sobrevivessem... posso ajudá-lo, Draco.
— Não, não pode. — A mão de Malfoy que empunhava a varinha tremia muito fortemente.
— Ninguém pode. Ele me mandou fazer isso ou me matará. Não tenho escolha.
— Venha para o lado certo, Draco, e podemos escondê-lo mais completamente do que pode
imaginar. E, mais, posso mandar membros da Ordem à sua mãe hoje à noite, e escondê-la
também. Seu pai no momento está seguro em Azkaban... quando chegar a hora posso protegê-lo
também... venha para o lado certo, Draco... você não é assassino...
Malfoy arregalou os olhos para Dumbledore.
— Mas cheguei até aqui, não? — disse ele lentamente. — Acharam que eu morreria na
tentativa, mas estou aqui... e o senhor está em meu poder... sou eu que empunho a varinha... sua
vida depende da minha piedade...
— Não, Draco — respondeu Dumbledore baixinho. — É a minha piedade, e não a sua, que
importa agora...
Malfoy não respondeu. Estava boquiaberto, a mão da varinha continuava a tremer. Harry
achou que a vira baixar um nada...
Mas, de repente, passos atroaram escada acima e, um segundo depois, Malfoy foi
empurrado para longe quando quatro pessoas de vestes negras irromperam pela porta em direção
às ameias. Ainda paralisado, assistindo sem piscar, Harry encarou com terror os quatro estranhos:
pelo visto, os Comensais da Morte tinham vencido a luta lá embaixo.
Um homem pesadão, com um estranho sorriso enviesado e malicioso, deu uma risadinha
asmática.
— Dumbledore encurralado! — exclamou ele, virando-se para uma mulherzinha atarracada
que parecia ser sua irmã e ria ansiosa. — Dumbledore sem varinha, Dumbledore sozinho!
Parabéns, Draco, parabéns!
— Boa-noite, Amico — cumprimentou Dumbledore calmamente, como se lhe desse as
boas-vindas ao seu chá festivo. — E trouxe Aleto também... que gentileza...
A mulher deu uma risadinha zangada.
— Então acha que suas gracinhas vão ajudá-lo no leito de morte? — zombou ela.
— Gracinhas? Não, não, são boas maneiras — respondeu Dumbledore.
— Liquide logo — disse o estranho parado mais próximo de Harry, um homem magro e
comprido com espessos cabelos e costeletas grisalhos, cujas vestes negras de Comensal da Morte
pareciam desconfortavelmente apertadas. Tinha uma voz que Harry jamais ouvira igual: um
latido rouco. O garoto sentiu nele um forte cheiro de terra, suor e, sem dúvida, sangue. Suas mãos
imundas tinham longas unhas amarelas.
— E você, Lobo? — perguntou Dumbledore.
— Acertou — respondeu o outro, rouco. — Feliz em me ver, Dumbledore?
— Não, não posso dizer que esteja...
Fenrir Lobo Greyback riu, mostrando dentes pontiagudos. Um filete de sangue escorria pelo
seu queixo, e ele lambeu os lábios, lenta e obscenamente.
— Você sabe como gosto de criancinhas, Dumbledore.
— Devo entender que você agora anda atacando, mesmo fora da lua cheia? Que insólito...
você criou um gosto por carne humana que não pode ser satisfeito uma vez por mês?
— Acertou — disse Greyback. — Choca você isto, não, Dumbledore? Assusta você?
— Bem, não posso fingir que não me desgoste um pouco. E, sim, estou um pouco chocado
que o Draco, aqui, convidasse logo você a vir a uma escola onde seus amigos vivem...
— Não convidei — sussurrou Malfoy. Ele não estava olhando para Greyback; parecia nem
querer olhar para o lobisomem. — Eu não sabia que ele vinha...
— Eu não iria querer perder uma viagem a Hogwarts, Dumbledore — respondeu
roucamente o lobisomem. — Não quando há gargantas a estraçalhar... uma delícia, uma delícia...
E Lobo ergueu uma de suas unhas amarelas e palitou os dentes da frente, olhando,
malicioso, para Dumbledore.
— Eu poderia estraçalhar você de sobremesa...
— Não — interrompeu-o o quarto Comensal da Morte rispidamente. Tinha uma cara
sombria e bruta. — Temos as nossas ordens. Draco é quem tem de fazer isso. Agora, Draco, e
rápido.
Malfoy demonstrava menos determinação que nunca. Parecia aterrorizado ao encarar o rosto
de Dumbledore, agora ainda mais pálido e mais baixo do que o normal, porque deslizara bastante
pela parede da ameia.
— Ele não vai demorar muito neste mundo, se quer saber! — comentou o homem do sorriso
enviesado, acompanhado pelas risadinhas asmáticas da irmã. — Olhem só para ele, que
aconteceu com você, Dumby?
— Ah, menor resistência, reflexos mais lentos, Amico — respondeu Dumbledore. — Em
suma, velhice... um dia, talvez, lhe aconteça o mesmo... se você tiver sorte...
— Que está querendo dizer, que está querendo dizer? — berrou o Comensal da Morte,
repentinamente violento. — Sempre o mesmo, não é, Dumby, fala, fala e não faz nada. Nem sei
por que o Lorde das Trevas está se preocupando em matar você! Vamos, Draco, mate de uma
vez!
Mas naquele momento ouviram-se de novo ruídos de luta lá embaixo, e uma voz gritou:
"Eles bloquearam a escada... Reducto! REDUCTO!"
O coração de Harry deu um salto: então esses quatro não tinham eliminado toda a oposição,
tinham apenas aberto caminho até o alto da Torre entre os grupos que lutavam, e, pelos ruídos,
criado uma barreira às suas costas...
— Agora, Draco, rápido! — falou encolerizado o homem de cara brutal.
Mas a mão de Malfoy tremia tanto, que ele mal conseguia fazer pontaria.
— Eu farei isso — rosnou Greyback, andando em direção a Dumbledore com as mãos
estendidas e os dentes à mostra.
— Eu disse não! — berrou o homem de cara bruta; houve um lampejo, e o lobisomem foi
afastado com violência; ele bateu nas ameias e cambaleou, enfurecido. O coração de Harry batia
com tanta força que parecia impossível que ninguém o ouvisse parado ali, aprisionado pelo feitiço
de Dumbledore... se ao menos pudesse se mexer, poderia lançar um feitiço por baixo da capa.
— Draco, mate-o ou se afaste, para um de nós... — guinchou a mulher, mas naquele exato
momento a porta para as ameias se escancarou mais uma vez e surgiu Snape, de varinha na mão,
seus olhos negros apreendendo a cena, de Dumbledore apoiado na parede aos quatro Comensais
da Morte, incluindo o lobisomem enfurecido e Malfoy.
— Temos um problema, Snape — disse o corpulento Amico, cujos olhos e varinha estavam
igualmente fixos em Dumbledore —, o menino não parece capaz...
Mas outra voz chamara Snape pelo nome, baixinho.
— Severo...
O som assustou Harry mais que qualquer coisa naquela noite. Pela primeira vez,
Dumbledore estava suplicando.
Snape não respondeu, adiantou-se e tirou Malfoy do caminho com um empurrão. Os três
Comensais da Morte recuaram calados. Até o lobisomem pareceu se encolher.
Snape fitou Dumbledore por um momento, e havia repugnância e ódio gravados nas linhas
duras do seu rosto.
— Severo... por favor...
Snape ergueu a varinha e apontou diretamente para Dumbledore.
— Avada Kedavra!
Um jorro de luz verde disparou da ponta de sua varinha e atingiu Dumbledore no meio no
peito. O grito de horror de Harry jamais saiu; silencioso e paralisado, ele foi obrigado a
presenciar Dumbledore explodir no ar: por uma fração de segundo, ele pareceu pairar suspenso
sob a caveira brilhante e, em seguida, foi caindo lentamente de costas, como uma grande boneca
de trapos, por cima das ameias, e desapareceu de vista.
CAPÍTULO VINTE E OITO
A FUGA DO PRÍNCIPE
HARRY TEVE A SENSAÇÃO DE QUE ELE também estava sendo arremessado pelo espaço; não
tinha acontecido... não podia ter acontecido...
— Fora daqui, rápido — disse Snape.
Ele agarrou Malfoy pelo cangote e forçou-o a sair pela porta, à frente dos outros; Greyback
e os irmãos atarracados os seguiram, os dois ofegando agitados. Quando eles desapareceram pela
porta, Harry percebeu que recuperara os movimentos; o que o mantinha agora paralisado contra a
parede não era magia, mas choque e horror. Arrancou a Capa da Invisibilidade na hora em que o
Comensal da Morte de cara bruta, o último a deixar o alto da Torre, ia sumindo pela porta.
— Petrificus Totalus!
O Comensal da Morte se dobrou como se tivesse sido atingido por algo sólido e caiu no
chão, rígido como uma estátua de cera, mas mal acabara de bater no chão e Harry já passava por
cima dele e descia correndo a escada escura.
O terror assaltava Harry... tinha de chegar a Dumbledore e tinha de pegar Snape... por
alguma razão, as duas coisas estavam ligadas... poderia reverter o que acontecera se pudesse
juntar os dois... Dumbledore não podia ter morrido...
Ele saltou os dez últimos degraus da escada espiral e parou onde aterrissara, a varinha em
punho: o corredor mal iluminado estava cheio de poeira; metade do teto parecia ter cedido e, à
sua frente, travava-se uma batalha violenta. Enquanto ele tentava distinguir quem enfrentava
quem, ouviu a voz que odiava gritar: "Acabou, hora de partir!", e viu Snape virar no fim do
corredor; ele e Malfoy pareciam ter aberto caminho entre os combatentes e escapado ilesos.
Quando Harry se atirou no encalço deles, um dos bruxos se destacou do conflito e avançou para
ele; era o lobisomem Greyback. Derrubou Harry antes que ele pudesse erguer a varinha: o garoto
caiu de costas, sentindo os cabelos imundos no rosto, o fedor de suor, e o sangue na boca e no
nariz, um bafo quente e voraz em seu pescoço...
— Petrificus Totalus!
Harry sentiu Greyback desmontar em cima dele; com um esforço descomunal, ele empurrou
o lobisomem no chão na hora em que um jorro de luz verde veio em sua direção; ele desviou-se e
mergulhou no meio dos combatentes. Seus pés bateram em alguma coisa mole e escorregadia no
chão, e ele perdeu o equilíbrio: havia dois corpos caídos ali, de cara para baixo, em uma poça de
sangue, mas não havia tempo para investigar. Harry viu uma cabeleira vermelha agitando-se
como línguas de fogo à sua frente. Gina lutava contra o Comensal da Morte pesadão, Amico, que
lançava feitiço sobre feitiço contra a garota, que se desviava; o bruxo ria, sentindo prazer no
esporte:
— Crucia.. Crucio... você não pode dançar para sempre, lindinha...
— Impedimento! — berrou Harry.
Seu feitiço atingiu Amico no peito. Ele soltou um guincho porcino de dor ao ser arrebatado
e arremessado contra a parede oposta, de onde deslizou para o chão e desapareceu atrás de Rony,
da professora McGonagall e Lupin, cada qual enfrentando um Comensal da Morte; mais além,
Harry viu Tonks dando combate a um enorme bruxo louro que lançava feitiços em todas as
direções, fazendo-os ricochetear nas paredes em volta, rachar pedra e estilhaçar a janela mais
próxima...
— Harry, de onde é que você veio? — gritou Gina, mas não havia tempo para responder. O
garoto baixou a cabeça e prosseguiu disparado pelo corredor, escapando por um triz de algo que
explodiu acima de sua cabeça, fazendo chover cacos de parede sobre todos. Snape não podia
escapar, ele tinha de pegar Snape...
— Isto é para você! — gritou a professora McGonagall, e Harry viu de relance a mulher
Comensal da Morte, Aleto, fugindo pelo corredor com os braços sobre a cabeça, o irmão em seus
calcanhares. Harry disparou atrás dos dois, mas seu pé prendeu em alguma coisa e, no momento
seguinte, ele estava caído sobre as pernas de alguém. Olhando para os lados, identificou o rosto
pálido e redondo de Neville chapado no chão.
— Neville, você está...?
— Tô bem — murmurou ele, apertando a barriga. — Harry... Snape e Malfoy... passaram
correndo...
— Eu sei, estou sabendo! — respondeu Harry no chão, mirando um feitiço no Comensal da
Morte responsável por grande parte do caos. Atingido no rosto, o homem soltou um uivo de dor;
virou-se, cambaleou e, então, bateu em retirada atrás de Amico e Aleto.
Harry se ergueu do chão e tornou a desembestar pelo corredor, sem dar atenção aos
estampidos às suas costas, aos chamados dos outros para que voltasse e ao grito mudo dos vultos
caídos, cujo destino ele ainda desconhecia...
Derrapou na curva, seus tênis sujos de sangue escorregavam; Snape levava uma enorme dianteira
— era possível que já tivesse entrado no Armário na Sala Precisa, ou será que a Ordem tomara
providências para fechá-lo e impedir que os Comensais da Morte se retirassem por ali? Harry não
ouvia nada, exceto as batidas dos próprios pés correndo, do próprio coração ribombando
enquanto acelerava pelo corredor seguinte, deserto. Então, ele viu marcas de sangue no chão
indicando que pelo menos um dos Comensais da Morte fugitivos rumava para as portas de
entrada — talvez a Sala Precisa estivesse, de fato, bloqueada...
Harry entrou derrapando por outro corredor, e um feitiço passou voando; ele mergulhou
atrás de uma armadura que explodiu; viu, então, os irmãos Comensais que desciam correndo a
escadaria de mármore e disparou feitiços contra os dois, mas atingiu apenas várias bruxas de
peruca, em um quadro do patamar, que fugiram aos guinchos para os quadros vizinhos; quando
transpunha os destroços da armadura, Harry ouviu mais gritos; outras pessoas no castelo pareciam
ter acordado...
Lançou-se por um atalho, na esperança de ultrapassar os irmãos e alcançar Snape e Malfoy,
que, àquela altura, certamente já teriam chegado aos jardins; lembrando-se de saltar o degrau que
sumia na metade da escada secreta, ele irrompeu pela tapeçaria que havia embaixo e saiu em um
corredor onde estavam parados vários alunos da Lufa-Lufa de pijama, desnorteados.
— Harry! Ouvimos um barulho, e alguém mencionou a Marca Negra... — começou
Ernesto Macmillan.
— Sai do caminho! — berrou Harry, empurrando dois garotos e correndo em direção ao
patamar e ao último lance da escadaria de mármore. As portas de carvalho na entrada tinham sido
arrombadas; havia manchas de sangue no chão, e vários estudantes aterrorizados se encolhiam às
paredes, uns dois deles cobriam o rosto com os braços; a enorme ampulheta da Grifinória fora
atingida por um feitiço, e os rubis que continha ainda caíam, produzindo um ruído seco no piso
lajeado...
Harry voou pelo Saguão de Entrada e saiu para os jardins escuros: mal conseguia divisar
três vultos que corriam pelo gramado em direção aos portões, onde poderiam Aparatar — pelo
jeito, o enorme Comensal da Morte louro e, mais à frente, Snape e Malfoy...
Harry sentiu o ar frio da noite dilacerar seus pulmões quando disparou atrás deles; ele viu
um lampejo ao longe que momentaneamente recortou a silhueta dos fugitivos; apesar de não
saber o que seria, continuou a correr, ainda não se aproximara o suficiente para fazer pontaria...
Outro lampejo, gritos, jorros de luz em resposta, e Harry entendeu: Hagrid saíra de sua
cabana e estava tentando deter os Comensais da Morte em fuga e, embora cada hausto parecesse
rasgar seus pulmões e a pontada em seu peito ardesse como uma labareda, Harry acelerou
enquanto uma voz em sua cabeça dizia: Hagrid não... Hagrid também não...
Alguma coisa atingiu Harry, com força, nos rins, e ele caiu; seu rosto bateu no chão, o
sangue espirrou das narinas: concluiu, mesmo enquanto se virava, com a varinha em punho, que
os irmãos que ele ultrapassara ao pegar o atalho se aproximavam às suas costas...
— Impedimento! — berrou ele, tornando a se virar, agachando-se rente ao chão escuro e,
milagrosamente, seu feitiço atingiu um deles, que cambaleou e caiu, derrubando o outro; Harry
ergueu-se de um salto e continuou a correr atrás de Snape...
E, à claridade da lua crescente que surgiu inesperadamente por trás das nuvens, ele viu a
vasta silhueta de Hagrid; o Comensal da Morte louro alvejava-o com sucessivos feitiços, mas a
imensa força de Hagrid e a pele dura que herdara da mãe giganta pareciam protegê-lo; Snape e
Malfoy, no entanto, continuavam a correr; logo estariam fora dos portões, e poderiam Aparatar...
Harry passou, desembalado, por Hagrid e seu oponente, mirou nas costas de Snape e berrou:
— Estupefaça!
Errou; o jorro de luz vermelha passou ao largo da cabeça de Snape; o professor gritou:
"Corra, Draco!", e virou-se; a uns dezoito metros de distância, ele e Harry se encararam antes de
erguer simultaneamente as varinhas.
-Cruc...
Snape, porém, aparou o feitiço, derrubando Harry para trás antes que ele pudesse completar
a maldição. O garoto rolou para um lado e tornou a se levantar na hora em que o enorme
Comensal às suas costas berrou: "Incêndio!"; Harry ouviu uma forte explosão e uma luz laranja
se derramou sobre todos: a casa de Hagrid estava pegando fogo.
— Canino está preso lá dentro, seu maligno...! — urrou Hagrid.
— Cruc... — berrou Harry pela segunda vez, mirando no vulto iluminado à luz das chamas,
mas Snape tornou a bloquear o feitiço; Harry podia ver seu sorriso desdenhoso.
— Suas Maldições Imperdoáveis não me atingem, Potter! — gritou ele, sobrepondo-se ao
ruído das chamas, aos gritos de Hagrid e aos ganidos alucinados de Canino. — Você não tem a
coragem nem a habilidade...
— Incarc... — urrou Harry, mas Snape desviou o feitiço com um gesto quase indolente.
— Revide — gritou Harry. — Revide, seu covarde...
— Você me chamou de covarde, Potter? — gritou Snape. — Seu pai nunca me atacava, a
não ser que fossem quatro contra um, que nome você daria a ele?
— Stupe...
— Bloqueado outra vez e outra e mais outra, até você aprender a manter a boca e a mente
fechadas, Potter! — debochou Snape, desviando mais uma vez o feitiço. — Agora, venha! —
gritou o professor para o Comensal da Morte às costas de Harry. — Está na hora de ir, antes que
o Ministério apareça.
— Impedi...
Antes, porém, que Harry pudesse terminar o feitiço, sentiu uma dor excruciante; tombou no
gramado, alguém estava gritando, ele certamente morreria de tormento, Snape ia torturá-lo até
morrer ou enlouquecer...
— Não! — urrou Snape, e a dor parou tão subitamente quanto começara; Harry ficou
enroscado no gramado escuro, apertando a varinha ofegante; em algum lugar no alto, Snape
gritava: — Você esqueceu as suas ordens? Potter pertence ao Lorde das Trevas... temos de deixálo!
Vá! Vá!
E Harry sentiu o chão estremecer sob seu rosto quando os irmãos e o enorme Comensal em
obediência correram para os portões. O garoto soltou um grito inarticulado de raiva: naquele
instante, não se importava se ia viver ou morrer; pondo-se em pé com esforço, ele cambaleou às
cegas em direção a Snape, o homem que agora ele odiava tanto quanto odiava o próprio
Voldemort...
— Sectum...
Snape acenou com a varinha, e o feitiço foi de novo repelido; mas Harry agora estava a
poucos passos, e finalmente podia ver com clareza o rosto de Snape: ele já não ria desdenhoso
nem caçoava; as labaredas mostravam um rosto enfurecido. Reunindo todo o seu poder de
concentração, Harry pensou Levi...
— Não, Potter! — gritou Snape. Houve um forte estampido e Harry voou para trás,
tornando a bater duramente no chão e, desta vez, a varinha escapou-lhe da mão. Ele ouvia os
gritos de Hagrid e os uivos de Canino, quando Snape se aproximou e contemplou-o ali caído, sem
varinha, indefeso como Dumbledore estivera. O rosto pálido do professor, iluminado pela cabana
em chamas, estava impregnado de ódio, tal como estivera pouco antes de amaldiçoar
Dumbledore.
— Você se atreve a usar os meus feitiços contra mim, Potter? Fui eu quem os inventei: eu, o
Príncipe Mestiço! E você viraria as minhas invenções contra mim, como o nojento do seu pai,
não é? Eu acho que não... não!
Harry mergulhara para recuperar a varinha; Snape lançou um feitiço na varinha, que voou
longe, no escuro, e desapareceu de vista.
— Me mate, então — ofegou Harry, que não sentia o menor medo, apenas raiva e desdém.
— Me mate como matou ele, seu covarde...
— NÃO... — gritou Snape, e seu rosto ficou inesperadamente desvairado, desumano, como
se sentisse tanta dor quanto o cão que gania e uivava preso na casa incendiada às suas costas — ...
ME CHAME DE COVARDE!
E ele golpeou o ar: Harry sentiu uma espécie de chicotada em brasa atingi-lo no rosto e foi
atirado de costas no chão. Manchas luminosas explodiram diante de seus olhos e, por um
momento, todo o ar pareceu ter fugido do seu corpo, então, ele ouviu um farfalhar de asas no ar e
uma coisa enorme obscureceu as estrelas: Bicuço mergulhara contra Snape, que cambaleou para
trás ao ser atacado por garras afiadíssimas. Enquanto Harry procurava sentar, a cabeça atordoada
pelo último impacto contra o chão, ele viu Snape a toda velocidade, o enorme animal
perseguindo-o, aos gritos, como Harry jamais o vira gritar...
O garoto levantou-se com dificuldade, procurando, às tontas, a varinha, na esperança de
prosseguir em sua caçada, mas, mesmo enquanto apalpava a grama, catando gravetos, percebeu
que seria tarde demais; de fato, até conseguir localizar a varinha e se virar, ele viu apenas o
hipogrifo circulando sobre os portões. Snape conseguira Aparatar fora dos limites da escola.
— Hagrid — murmurou Harry, ainda atordoado, olhando para os lados. — HAGRID?
Ele cambaleava em direção à casa em chamas quando um enorme vulto emergiu da cabana,
carregando Canino às costas. Com um grito de agradecimento, Harry caiu de joelhos; todos os
seus membros tremiam, seu corpo doía inteiro, e sua respiração provocava pontadas dolorosas.
— Você tá bem, Harry? Você tá bem? Fala comigo, Harry...
O enorme rosto peludo de Hagrid pairava acima de Harry, escondendo as estrelas. O garoto
sentia o cheiro de madeira e pêlo de cachorro queimados; ele esticou a mão e tocou o corpo
quente e vivo de Canino, agitando-se ao lado dele.
— Estou bem — ofegou Harry. — E você?
— Claro que estou... precisa mais do que isso para me liquidar. Hagrid enfiou as mãos por
baixo dos braços de Harry e ergueu-o com tal força que os pés do garoto abandonaram
momentaneamente o chão, enquanto o gigante o punha de pé. Harry viu o sangue escorrendo pelo
rosto do amigo, o corte profundo embaixo de um olho que inchava rapidamente.
— Devíamos apagar o incêndio em sua casa — disse Harry —, o feitiço é Aguamenti...
— Eu sabia que era alguma coisa assim — murmurou Hagrid, e erguendo um fumegante
guarda-chuva rosa florido ordenou: — Aguamenti!
Um jorro de água saiu da ponta do guarda-chuva. Harry ergueu o braço da varinha que
parecia de chumbo e também murmurou: "Aguamenti"; juntos, ele e Hagrid despejaram água na
casa até que a última chama se extinguisse.
— Não tá muito ruim — comentou Hagrid esperançoso alguns minutos depois, olhando
para o rescaldo fumegante. — Nada que Dumbledore não possa consertar...
Harry sentiu uma dor lancinante no estômago ao som desse nome. No silêncio e quietude, o
horror despertou em seu íntimo.
— Hagrid...
— Eu estava enfaixando as pernas de uns tronquilhos, quando ouvi os Comensais vindo —
disse Hagrid triste, ainda contemplando a cabana destruída. — Devem ter queimado os gravetos,
os coitadinhos...
— Hagrid...
— Mas que aconteceu, Harry? Vi os Comensais da Morte descerem correndo do castelo,
mas que diabos o Snape estava fazendo no meio deles? Aonde é que ele foi?... Estava
perseguindo eles?
— Ele... — Harry pigarreou; a garganta seca com o pânico e a fumaça. — Hagrid, ele
matou...
— Matou? — exclamou Hagrid em voz alta, encarando Harry. — Snape matou? De que
você está falando, Harry?
— Dumbledore. Snape matou... Dumbledore.
Hagrid ficou olhando para ele, o pouco do seu rosto à mostra manifestava total
incompreensão.
— Dumbledore o quê, Harry?
— Está morto. Snape o matou...
— Não diz isso — censurou-o Hagrid com rispidez. — Snape matar Dumbledore... não seja
idiota, Harry. De onde tirou essa idéia?
— Vi acontecer.
— Não pode ter visto.
— Vi, Hagrid.
Hagrid sacudiu a cabeça; em seu rosto havia uma expressão incrédula mas simpática, e
Harry percebeu que o amigo pensava que ele tivesse levado uma pancada na cabeça, que
estivesse atordoado, talvez com seqüelas de um feitiço...
— O que deve ter acontecido foi que Dumbledore deve ter mandado Snape acompanhar os
Comensais da Morte — explicou Hagrid confiante. — Imagino que ele precise manter o disfarce.
Olhe, vamos levar você de volta à escola. Venha, Harry...
O garoto não tentou discutir nem explicar. Ainda tremia descontroladamente. Cedo Hagrid
descobriria, cedo demais... Quando caminhavam para o castelo, Harry observou que agora havia
luz em muitas janelas: podia imaginar nitidamente as cenas quando as pessoas fossem, de um
aposento a outro, contar que os Comensais da Morte tinham entrado, que a Marca brilhava sobre
Hogwarts, que alguém devia ter sido morto...
À frente, as portas de carvalho estavam abertas, inundando de luz a estrada e o gramado.
Insegura e lentamente, pessoas vestidas com roupões desciam os degraus da entrada, procurando,
nervosas, sinal dos Comensais da Morte que tinham se embrenhado na noite. Os olhos de Harry,
porém, estavam fixos no gramado ao pé da torre mais alta. Imaginou ver caída ali uma massa
escura, embora estivesse realmente muito longe para enxergar alguma coisa. Mesmo enquanto
olhava em silêncio o lugar onde supunha que o corpo de Dumbledore estivesse, ele viu gente
começando a se deslocar para lá.
— Que é que todos estão olhando? — perguntou Hagrid, quando os dois se aproximaram da
fachada do castelo, Canino colado aos seus calcanhares. — Que é aquilo caído no gramado? —
perguntou Hagrid bruscamente, rumando para a Torre de Astronomia, onde ia se formando um
pequeno ajuntamento. — Está vendo, Harry? Bem no pé da Torre? Embaixo do lugar onde a
Marca... caramba... você acha que alguém foi atirado...?
Hagrid se calou, o pensamento parecia terrível demais para ser expresso em voz alta. Harry
caminhava ao seu lado, sentindo o desconforto e as dores no rosto e nas pernas onde fora atingido
por feitiços, na última meia hora, embora de um modo estranhamente neutro, como se outro
alguém próximo a ele os sentisse. Real e inelutável era a sensação terrível que comprimia o seu
peito...
Ele e Hagrid atravessaram, como em sonho, a multidão que murmurava até bem à frente,
onde estudantes e professores estarrecidos tinham deixado uma clareira.
Harry ouviu o lamento de dor e surpresa de Hagrid, mas não parou; continuou a avançar até
chegar onde Dumbledore jazia, e se agachou ao seu lado.
O garoto percebera que não havia esperança no instante em que o Feitiço do Corpo Preso
que Dumbledore lançara sobre ele cessara; percebera que aquilo só poderia ter acontecido porque
quem lançara o feitiço estava morto; contudo, ainda não tinha se preparado para vê-lo ali, de
braços e pernas abertos, quebrado: o maior bruxo que Harry conhecera ou jamais conheceria.
Os olhos de Dumbledore estavam fechados; exceto pelo estranho ângulo dos braços e
pernas, ele poderia estar dormindo. Harry estendeu a mão, acertou os oclinhos de meia-lua no
nariz torto do diretor e limpou um filete de sangue de sua boca, com a manga das próprias vestes.
Então, contemplou o rosto velho e sábio, e tentou absorver a enorme e incompreensível verdade:
nunca mais Dumbledore falaria com ele, nunca mais poderia ajudar...
A multidão murmurava às costas de Harry. Decorrido o que lhe pareceu um longo tempo,
ele tomou consciência de que estava ajoelhado em cima de algo duro, e olhou para baixo.
O medalhão que tinham conseguido roubar, havia tantas horas, caíra do bolso de
Dumbledore e abrira-se, talvez em conseqüência da força com que batera no chão. E, embora
Harry não pudesse sentir maior choque, horror ou tristeza do que já sentia, ele percebeu, ao
apanhá-lo, que alguma coisa estava errada...
Revirou o medalhão nas mãos. Não era tão grande quanto o que vira na Penseira, nem tinha
marcas distintivas, nenhum sinal do S caprichoso que supostamente era a insígnia de Slytherin.
Além disso, não havia nada dentro a não ser um pedaço de pergaminho dobrado e encaixado à
força onde devia haver um retrato.
Com um gesto automático, sem realmente pensar no que fazia, Harry tirou o fragmento de
pergaminho, abriu-o e leu-o à luz das muitas varinhas agora acesas atrás:
Ao Lorde das Trevas
Sei que há muito estarei morto quando ler isto,
mas quero que saiba que fui eu quem descobriu o seu segredo.
Roubei a Horcrux verdadeira e pretendo destruí-la assim que puder.
Enfrento a morte na esperança de que, quando você encontrar um adversário à
altura, terá se tornado outra vez mortal.
R.AB.
Harry não sabia o que significava aquela mensagem nem se importava com isso. Uma única
coisa importava: aquilo não era uma Horcrux. Dumbledore se enfraquecera bebendo a terrível
poção para nada. Harry amassou o pergaminho na mão e as lágrimas queimaram seus olhos no
momento em que, às suas costas, Canino começava a uivar.
CAPITULO VINTE E NOVE
O LAMENTO DA FENIX
— VEM CÁ, HARRY...
— Não.
— Você não pode ficar aí, Harry... agora vem...
— Não.
Ele não queria sair do lado de Dumbledore, não queria ir a lugar nenhum. A mão de Hagrid
em seu ombro tremia. Então, outra voz disse:
— Harry, vamos.
Uma mão menor e mais quente envolvera a dele e puxava-o para cima. Ele cedeu à pressão,
sem realmente pensar. Somente quando estava atravessando, às cegas, o aglomerado de pessoas
percebeu, por um leve perfume floral no ar, que era Gina quem o levava de volta ao castelo.
Vozes incompreensíveis o bombardearam, soluços, gritos e lamentos perfuraram a noite, mas
Harry e Gina seguiram andando, subiram os degraus de pedra para o saguão: rostos flutuavam na
periferia da visão de Harry, pessoas o espiavam, sussurrando, se questionando, e os rubis da
Grifinória cintilavam no chão como gotas de sangue quando se dirigiram à escadaria de mármore.
— Vamos à ala hospitalar.
— Não estou ferido — respondeu Harry.
— São ordens da McGonagall — argumentou Gina. — Todos estão lá, Rony, Hermione,
Lupin, todo o mundo...
O medo tornou a se agitar no peito de Harry; esquecera-se dos vultos inertes que deixara
para trás.
— Gina, quem mais morreu?
— Não se preocupe, não foi nenhum dos nossos.
— Mas a Marca Negra... Malfoy disse que passou por cima de um corpo...
— Passou por cima de Gui, mas tudo bem, ele está vivo.
Havia, no entanto, alguma coisa na voz dela que Harry identificou como um mau agouro.
— Você tem certeza?
— Claro que tenho... ele está meio... meio avariado, é só. Greyback o atacou. Madame
Pomfrey diz que ele não será mais o mesmo... — A voz de Gina tremeu um pouquinho. — Não
sabemos realmente quais serão as seqüelas... quero dizer, Greyback é um lobisomem, mas na hora
estava sob forma humana.
— Mas os outros... vi outros corpos no chão...
— Neville está na ala hospitalar, mas Madame Pomfrey acha que vai se recuperar totalmente, e o
professor Flitwick foi nocauteado, mas está bem, só um pouco abalado. Ele insistiu em sair para
cuidar do pessoal da Corvinal. E há um Comensal morto, foi atingido por uma Maldição da Morte
que o louro grandalhão estava lançando para todo lado... Harry, se não tivéssemos a sua Felix
Felicis, acho que teríamos sido mortos, mas tudo parecia se desviar de nós...
Tinham chegado à ala hospitalar, quando empurraram as portas, Harry viu Neville deitado,
aparentemente adormecido, em uma cama próxima. Rony, Hermione, Luna, Tonks e Lupin
estavam agrupados em torno de outra cama, no extremo oposto da enfermaria. Ao ouvirem as
portas se abrindo, todos se viraram. Hermione correu para Harry e abraçou-o; Lupin se adiantou
também, ansioso.
— Você está bem, Harry?
— Estou ótimo... e o Gui?
Ninguém respondeu. Harry olhou por cima do ombro de Hermione e viu um rosto
irreconhecível no travesseiro de Gui, tão cortado e despedaçado que parecia grotesco. Madame
Pomfrey aplicava em seus ferimentos um ungüento verde de cheiro acre. Harry lembrou-se de
Snape fechando com simples acenos de varinha os ferimentos produzidos pelo Sectumsempra em
Malfoy.
— A senhora não pode fechar os ferimentos com um feitiço ou outra coisa qualquer? —
perguntou Harry à enfermeira.
— Não tem feitiço que dê resultado. Já experimentei tudo que sei, mas não há cura para
mordidas de lobisomem.
— Mas ele não foi mordido na lua cheia — lembrou Rony, que fixava o rosto do irmão,
como se pudesse forçar a cura só de olhar. — Greyback não estava transformado, então, com
certeza, Gui não vai virar um... um verdadeiro...?
O garoto olhou inseguro para Lupin.
— Não, não acho que Gui vá virar um lobisomem de verdade — concordou Lupin —, mas
isto não significa que não haja alguma contaminação. São ferimentos malditos. Provavelmente
não cicatrizarão totalmente... e Gui talvez adquira alguma característica lupina daqui para a
frente.
— Dumbledore talvez saiba alguma coisa que dê jeito — falou Rony. — Cadê ele? Gui
lutou contra aqueles maníacos por ordem dele. Dumbledore tem obrigações para com ele, não
pode deixar meu irmão assim...
— Rony... Dumbledore está morto — disse Gina.
— Não! — Lupin olhou desvairado de Gina para Harry, como se esperasse que o garoto a
desmentisse, mas ao ver que Harry não o fez, Lupin desmontou em uma cadeira ao lado da cama
de Gui, as mãos cobrindo o rosto. Harry nunca vira Lupin se descontrolar; teve a sensação de
estar invadindo algo privado, indecente; ele virou a cabeça e deparou com Rony, com quem
trocou um olhar silencioso que confirmava o que Gina acabara de dizer.
— Como foi que ele morreu? — sussurrou Tonks. — Como foi que aconteceu?
— Snape o matou — respondeu Harry. — Eu estava lá e vi. Voltamos direto para a Torre de
Astronomia porque vimos a Marca lá... Dumbledore estava mal, fraco, mas acho que percebeu
que era uma armadilha quando ouviu passos rápidos subindo a escada. Ele me imobilizou, não
pude fazer nada, estava coberto pela Capa da Invisibilidade... então, Malfoy entrou e desarmou
Dumbledore...
Hermione levou as mãos à boca, e Rony gemeu. A boca de Luna tremeu.
— ... chegaram mais Comensais da Morte... depois Snape... e Snape o matou. A Avada
Kedavra. — Harry não conseguiu prosseguir.
Madame Pomfrey caiu no choro. Ninguém lhe deu atenção a não ser Gina, que sussurrou:
— Psiu! Escute!
Engolindo em seco, Madame Pomfrey apertou a boca com os dedos, olhos arregalados. Em
algum lugar lá fora, na escuridão, uma Fênix cantava de um jeito que Harry jamais ouvira: um
lamento comovido de terrível beleza. E ele sentiu, como antes sentira ao ouvir o canto da fênix,
que a música vinha de dentro e não de fora dele: era o seu próprio pesar que se transformava
magicamente em canto, ecoava pelos jardins e entrava pelas janelas do castelo.
Quanto tempo ficaram ali escutando, ele não sabia, nem por que o som do próprio luto
parecia aliviar um pouco sua dor, mas pareceu ter decorrido um longo tempo até a porta do
hospital se abrir e a professora McGonagall entrar. Como os demais, ela apresentava marcas da
batalha recente: tinha arranhões no rosto e as vestes rasgadas.
— Molly e Arthur estão a caminho — anunciou ela, e o encanto da música se quebrou:
todos despertaram como se saíssem de um transe, tornaram a se virar para Gui, ou então
esfregaram os olhos, ou sacudiram a cabeça. — Harry, que aconteceu? Segundo Hagrid, você
estava com o professor Dumbledore quando ele... quando aconteceu. Ele diz que o professor
Snape esteve envolvido em alguma...
— Snape matou Dumbledore — respondeu Harry.
Ela o encarou por um momento, então seu corpo balançou de modo alarmante; Madame
Pomfrey, que parecia ter se controlado, acorreu depressa, e, do nada, conjurou uma cadeira que
empurrou para baixo de McGonagall.
— Snape — repetiu McGonagall com um fio de voz, desabando na cadeira. — Todos nos
perguntávamos... mas ele confiava... sempre... Snape... não consigo acreditar...
— Snape era um Oclumente excepcionalmente talentoso — comentou Lupin, sua voz
anormalmente áspera. — Sempre soubemos disso.
— Mas Dumbledore jurou que ele estava do nosso lado! — sussurrou Tonks. — Sempre
pensei que Dumbledore soubesse alguma coisa de Snape que ignorávamos...
— Ele sempre insinuou que tinha uma razão inabalável para confiar em Snape — murmurou
a professora McGonagall, agora secando as lágrimas nos cantos dos olhos com um lenço
debruado em tecido escocês. — Quero dizer... com o passado de Snape... é claro que as pessoas
duvidavam... mas Dumbledore me confirmou, de modo explícito, que o arrependimento de Snape
era absolutamente sincero... não queria ouvir uma palavra contra ele.
— Eu adoraria saber o que Snape disse para convencê-lo — comentou Tonks.
— Eu sei — disse Harry, e todos se viraram, encarando-o. — Snape passou a Voldemort a
informação que fez Voldemort caçar meus pais. Então, Snape disse a Dumbledore que não tinha
consciência do que estava fazendo, que lamentava realmente o que tinha feito, lamentava que eles
tivessem morrido.
— E Dumbledore acreditou nisso? — perguntou Lupin incrédulo. — Acreditou que Snape
lamentava a morte de Tiago? Snape odiava Tiago...
— E achava que minha mãe também não valia nada porque tinha nascido trouxa... "Sangue-
Ruim", foi como a chamou...
Ninguém perguntou como Harry sabia disso. Todos pareciam estar absortos no horror da
revelação, tentando digerir a verdade monstruosa do que acontecera.
— É tudo minha culpa — disse subitamente a professora McGonagall. Ela parecia
desorientada, torcia o lenço molhado nas mãos. — Minha culpa. Mandei Filio chamar Snape esta
noite, mandei buscá-lo para vir nos ajudar! Se eu não tivesse alertado Snape para o que estava
acontecendo, talvez ele nunca tivesse se reunido aos Comensais da Morte. Acho que ele não sabia
que estavam na escola até Filio lhe contar, acho que Snape não sabia que eles vinham.
— Não é sua culpa, Minerva — disse Lupin com firmeza. — Todos queríamos mais ajuda,
ficamos contentes quando soubemos que Snape estava a caminho...
— Então, quando chegou ao lugar do confronto, ele se passou para o lado dos Comensais da
Morte? — perguntou Harry, que queria saber cada detalhe da duplicidade e infâmia de Snape,
reunindo febrilmente mais razões para odiá-lo, para lhe jurar vingança..
— Não sei exatamente como aconteceu — disse a professora McGonagall perturbada. — É
tudo tão confuso... Dumbledore tinha nos dito que ia se ausentar da escola por algumas horas e
que devíamos patrulhar os corredores só por precaução... Remo, Gui e Ninfadora viriam se reunir
a nós... então patrulhamos. Tudo parecia tranqüilo. Todas as passagens secretas para fora da
escola estavam vigiadas. Sabíamos que ninguém poderia entrar pelo ar. Havia poderosos
encantamentos sobre cada entrada do castelo. Continuo sem saber como é possível que os
Comensais da Morte tenham entrado...
— Eu sei — interpôs Harry, e explicou brevemente a existência do par de Armários
Sumidouros e a passagem mágica que formavam. — Eles entraram pela Sala Precisa.
Quase involuntariamente, ele olhou para Rony e Hermione, que pareciam arrasados.
— Meti os pés pelas mãos, Harry — disse Rony sombriamente. — Fizemos o que você
pediu: consultamos o Mapa do Maroto e não vimos o Malfoy, e pensamos que devia estar na Sala
Precisa, então eu, Gina e Neville fomos montar guarda... mas Malfoy conseguiu passar por nós.
— Ele saiu da Sala mais ou menos uma hora depois que começamos a vigiar — acrescentou
Gina. — Estava sozinho, segurando aquele horrível braço seco...
— A Mão da Glória — explicou Rony. — Só o portador enxerga, lembram?
— De qualquer forma — continuou Gina —, ele devia estar conferindo se a barra estava
limpa para deixar os Comensais saírem, porque, no momento em que nos viu, ele lançou alguma
coisa no ar e ficou tudo escuro como breu...
— Pó Escurecedor Instantâneo do Peru — esclareceu Rony, com amargura. — Do Fred e do
Jorge. Vou ter uma conversinha com eles a respeito das pessoas que eles deixam comprar os
produtos da loja.
— Tentamos tudo: Lumus, Incêndio — explicou Gina. — Nada penetrou a escuridão; só
nos restou sair tateando pelo corredor, enquanto ouvíamos gente passar correndo por nós. E óbvio
que Malfoy estava enxergando por causa da tal Mão da Glória, e orientou os Comensais, mas não
nos atrevemos a lançar feitiços nem nada, com medo de atingirmos a nós mesmos, e até
chegarmos a um corredor iluminado, eles já tinham ido embora.
— Sorte a de vocês — disse Lupin rouco. — Rony, Gina e Neville toparam conosco quase
em seguida e nos contaram o que tinha acontecido. Encontramos os Comensais da Morte minutos
depois, a caminho da Torre de Astronomia. É óbvio que Malfoy não esperava que houvesse mais
gente vigiando; pelo jeito, tinha esgotado o suprimento de Pó Escurecedor. Lutamos, eles se
dispersaram e nós os perseguimos. Um deles, Gibbon, escapou e subiu a escada da Torre...
— Para lançar a Marca? — perguntou Harry.
— Deve ter feito isso, sim, eles devem ter combinado antes de deixarem a Sala Precisa —
disse Lupin. — Mas acho que Gibbon não gostou da idéia de esperar lá em cima por Dumbledore,
sozinho, porque voltou correndo para se juntar aos que estavam lutando e foi atingido por uma
Maldição da Morte, que por pouco não me atingiu também.
— Então, enquanto Rony estava vigiando a Sala Precisa com Gina e Neville — perguntou
Harry, virando-se para Hermione —, você estava...?
— Na porta do escritório de Snape — sussurrou Hermione, com os olhos cintilantes de
lágrimas —, com Luna. Ficamos lá um tempão, e nada... não sabíamos o que estava acontecendo
lá em cima, Rony tinha levado o Mapa do Maroto... já era quase meia-noite quando o professor
Flitwick desceu correndo para as masmorras. Gritava que havia Comensais da Morte no castelo,
acho que nem registrou que Luna e eu estávamos ali, adentrou o escritório de Snape e nós o ouvimos
dizer ao professor que precisava acompanhá-lo para ir ajudar, então ouvimos um baque forte
e Snape saiu disparado da sala e nos viu e... e...
— E aí? — instou Harry.
— Fui tão idiota, Harry! — lamentou Hermione num sussurro agudo. — Ele disse que o
professor Flitwick tinha desmaiado e que devíamos cuidar dele, enquanto ele... enquanto ele ia
ajudar a combater os Comensais da Morte...
A garota cobriu o rosto, envergonhada, e continuou a falar por trás dos dedos, o que abafou
sua voz.
— Entramos no escritório para ver se podíamos ajudar o professor Flitwick e o encontramos
inconsciente no chão... e, ali, é tão óbvio agora, Snape deve ter estupefeito Flitwick, mas não
percebemos, Harry, não percebemos, deixamos o Snape escapar!
— Não é sua culpa — disse Lupin com firmeza. — Hermione, se você não tivesse
obedecido e saído do caminho, Snape provavelmente teria matado você e Luna.
— Então ele subiu — continuou Harry, que visualizava Snape correndo pela escadaria de
mármore acima, suas vestes negras esvoaçando às costas como sempre, puxando a varinha de
baixo da capa enquanto subia — e encontrou o lugar onde todos lutavam...
— Estávamos num apuro, estávamos perdendo — disse Tonks em voz baixa. — Gibbon
estava fora de combate, mas os outros Comensais pareciam dispostos a lutar até a morte. Neville
tinha sido atingido, Gui, atacado ferozmente pelo Greyback... estava tudo escuro... voavam
feitiços para todo lado... o garoto Malfoy desaparecera, devia ter saído despercebido e subido
para a Torre... então outros Comensais correram para acompanhá-lo, mas um deles bloqueou a
escada depois de passar com algum feitiço... Neville avançou para a escada e foi atirado no ar...
— Nenhum de nós conseguiu passar — disse Rony —, e aquele Comensal grandalhão
continuava a disparar feitiços para todo lado, que ricocheteavam nas paredes e por um triz não
nos atingiam...
— Então, Snape estava ali — completou Tonks — e em seguida não estava...
— Vi quando vinha correndo em nossa direção, mas logo depois o feitiço daquele enorme
Comensal passou por mim, sem me atingir, me abaixei e perdi noção do que estava acontecendo
— contou Gina.
— Vi Snape atravessar correndo a barreira mágica como se ela não existisse — disse Lupin.
— Tentei segui-lo, mas fui jogado para trás exatamente como Neville...
— Ele devia conhecer um feitiço que desconhecíamos — sussurrou McGonagall. — Afinal
de contas... ele era o professor de Defesa contra as Artes das Trevas... presumi que estivesse
correndo no encalço dos Comensais da Morte que tinham fugido para o alto da Torre.
— E estava — falou Harry com selvageria —, mas para ajudar, não para deter os
Comensais... e aposto como era preciso ter uma Marca Negra para atravessar aquela barreira...
então que aconteceu quando ele voltou?
— Bem, o Comensal grandalhão tinha acabado de disparar um feitiço que fez metade do
teto ceder, e também desfez o feitiço que bloqueava a escada — relembrou Lupin. — Todos
avançamos, pelo menos os que ainda estavam de pé, então Snape e o garoto saíram do meio da
poeira, obviamente nenhum de nós os atacou...
— Simplesmente os deixamos passar — disse Tonks, quase inaudivelmente —, pensamos
que estavam sendo perseguidos pelos Comensais, e, no momento seguinte, os outros Comensais e
Greyback estavam voltando e recomeçando a lutar, pensei ter ouvido Snape dizer alguma coisa,
mas não entendi...
— Ele gritou "Acabou" — disse Harry. — Tinha feito o que pretendia.
Todos se calaram. O lamento de Fawkes ainda ecoava pela propriedade às escuras. E,
enquanto a música ressoava no ar, pensamentos involuntários, indesejáveis, invadiram,
sorrateiros, a mente de Harry... será que já tinham retirado o corpo de Dumbledore do pé da
Torre? Que será que aconteceria ao corpo em seguida? Onde será que repousaria? Ele apertou as
mãos nos bolsos com força. Sentiu a pequenez fria da falsa Horcrux contra as juntas de sua mão
direita.
As portas da ala hospitalar se abriram de repente, sobressaltando a todos: o Sr. e a Sra.
Weasley vinham entrando pela enfermaria, Fleur logo atrás, seu belo rosto aterrorizado.
— Molly... Arthur... — disse a professora McGonagall, levantando-se, depressa, para
cumprimentá-los. — Lamento muito...
— Gui — sussurrou a Sra. Weasley, passando direto pela professora ao avistar o rosto
desfigurado do filho. — Ah, Gui!
Lupin e Tonks tinham se levantado, ligeiros, e se afastaram para o casal poder se aproximar
da cama. A Sra. Weasley curvou-se para o filho e levou os lábios à testa dele.
— Você disse que Greyback o atacou? — perguntou o Sr. Weasley, aflito, à professora
McGonagall. — Mas não estava transformado? Então, que significa isso? Que acontecerá ao Gui?
— Ainda não sabemos — respondeu a professora, olhando desamparada para Lupin.
— É provável que haja certa contaminação, Arthur — explicou , Lupin. — É um caso raro,
provavelmente único... não sabemos qual será o comportamento dele quando acordar...
A Sra. Weasley tirou o ungüento de cheiro acre das mãos de Madame Pomfrey e começou a
aplicá-lo nos ferimentos de Gui.
— E Dumbledore... — disse o Sr. Weasley. — Minerva, é verdade... ele realmente...?
Quando a professora McGonagall confirmou, Harry sentiu um movimento de Gina ao seu
lado e se virou. Os olhos da garota ligeiramente apertados estavam fixos em Fleur, que olhava
Gui com uma expressão atemorizada no rosto.
— Dumbledore se foi — sussurrou o Sr. Weasley, mas sua mulher só tinha olhos para o
filho mais velho; ela começou a soluçar, as lágrimas caindo no rosto mutilado de Gui.
— É claro que a aparência não conta... não é r... realmente importante... mas ele era um g...
garotinho tão bonito... e ia se... se casar!
— E qu é qu a senhorr querr dizerr com isse? — perguntou Fleur, repentinamente, em alto e
bom som. — Qu querr dizerr com "ei ia se casarr"?
A Sra. Weasley ergueu o rosto manchado de lágrimas, parecendo espantada.
— Bem... só que...
— A senhorra ache qu Gui vai desistirr de casarr comigue? — quis saber Fleur. — A
senhorra ache qu porr cose desses morrdides, ei non vai me amarr?
— Não, não foi o que eu...
— Porrqu ele vai! — afirmou Fleur, empertigando-se e jogando seus longos cabelos
prateados para trás. — Serra prrecise mais qu um lobisome para fazerr Gui deixarrr de me amarr!
— Bem, claro, tenho certeza — respondeu a Sra. Weasley —, mas pensei que talvez... visto
que... que ele...
— A senhorr penso qu eu non ia querrerr casarr com ei'? U err' esse a su esperrance? —
desafiou Fleur, com as narinas tremendo. — Qu me imporrte a aparênce dei? Ache qu sou
bastante bonite porr nós dois! Todes esses marrcas mostrram qu me marride é corrajose! E eu é
qu vou fazerr isse! — acrescentou com ferocidade, empurrando a Sra. Weasley para o lado e
arrebatando o ungüento das mãos dela.
A Sra. Weasley recuou para junto do marido e ficou observando Fleur tratar dos ferimentos
de Gui, com uma expressão muito curiosa no rosto. Ninguém disse nada. Harry nem sequer ousou
se mexer. Como os demais, ficou aguardando a explosão.
— Nossa tia-avó Muriel — disse a Sra. Weasley após um longo silêncio... — tem uma linda
tiara, feita pelos duendes... e estou segura que posso convencê-la a lhe emprestar para o
casamento. Ela gosta muito do Gui, entende, e a tiara ficaria muito bonita em seus cabelos.
— Muite obrrigade — respondeu Fleur formalmente. — Tan certez de qu ficarrá bonite!
E então — Harry não viu direito como aconteceu — as duas mulheres estavam chorando e
se abraçando. Completamente desnorteado, pensando que o mundo enlouquecera, o garoto se
virou. Rony manifestava tanto aturdimento quanto o que Harry sentia, e Gina e Hermione
trocavam olhares chocados.
— Está vendo! — exclamou uma voz cansada. Tonks olhava aborrecida para Lupin. — Ela
ainda quer casar com Gui, mesmo que ele tenha sido mordido! Ela não se incomoda!
— É diferente — respondeu Lupin, quase sem mover os lábios, parecendo subitamente tenso. —
Gui não será um lobisomem típico. Os casos são completamente diferentes...
— Mas eu também não me incomodo, nem um pouco! — retrucou Tonks, agarrando Lupin
pela frente das vestes e sacudindo-o. — Já lhe disse isso um milhão de vezes...
E o significado da alteração no Patrono de Tonks e seus cabelos sem cor, e a razão por que
viera correndo procurar Dumbledore quando ouvira falar que alguém fora atacado por Greyback,
tudo se tornou repentinamente claro para Harry; afinal não tinha sido por Sirius que Tonks se
apaixonara...
— E eu já disse a você um milhão de vezes — respondeu Lupin evitando os olhos dela,
encarando o chão — que sou velho demais para você... pobre demais... perigoso demais...
— E tenho lhe dito o tempo todo que a sua atitude é ridícula, Remo — interpôs a Sra.
Weasley por cima do ombro de Fleur, em quem dava palmadinhas carinhosas.
— Não estou sendo ridículo — respondeu Lupin com firmeza. — Tonks merece alguém
jovem e saudável.
— Mas ela quer você — interpôs o Sr. Weasley com um sorrisinho.
— Afinal de contas, Remo, os homens jovens e saudáveis não permanecem sempre assim.
— Ele fez um gesto triste para o filho, deitado entre eles.
— Este não... não é o momento para discutir o assunto — replicou Lupin, evitando os
olhares de todos e olhando, aflito, para os lados. — Dumbledore está morto...
— Dumbledore teria se sentido o mais feliz dos homens em pensar que havia um pouco
mais de amor no mundo — disse secamente a professora McGonagall, no momento em que as
portas da enfermaria tornaram a se abrir e Hagrid entrou.
A pequena parte de seu rosto que não estava sombreada por cabelos ou barba estava
molhada e inchada; o pranto o sacudia, na mão trazia um enorme lenço manchado.
— Fiz... fiz o que mandou, professora — disse com a voz sufocada.
— Re... removi ele. A professora Sprout fez a garotada voltar para a cama. O professor
Flitwick está descansando, mas diz que logo estará bem, e o professor Slughorn diz que o
Ministério foi informado.
— Obrigada, Hagrid. — A professora McGonagall se levantou imediatamente e voltou sua
atenção para o grupo em torno da cama de Gui. — Terei de ver o pessoal do Ministério quando
chegar, Hagrid, por favor avise os diretores das Casas... Slughorn pode representar a Sonserina...
de que quero vê-los sem demora no meu escritório. Gostaria que você se reunisse a nós, também.
Ao ver Hagrid assentir, dar as costas e sair da enfermaria arrastando os pés, ela olhou para
Harry.
— Antes de me reunir com o Ministério, eu gostaria de dar uma palavrinha rápida com
você, Harry. Se quiser me acompanhar...
Harry se ergueu, murmurou um "vejo vocês daqui a pouco" para Rony, Hermione e Gina, e
saiu da enfermaria com a professora McGonagall. Os corredores estavam desertos, e o único som
era o distante canto da Fênix. Passaram-se vários minutos até Harry tomar consciência de que não
estavam seguindo para o escritório da professora McGonagall, mas para o de Dumbledore, e mais
alguns segundos até ele se lembrar que, claro, ela era subdiretora... e, pelo visto, agora a
diretora... portanto, a sala atrás da gárgula agora lhe pertencia...
Em silêncio, eles subiram a escada móvel em espiral e entraram no escritório redondo. Ele
não sabia o que esperar: que a sala tivesse cortinas pretas, talvez, ou mesmo que o corpo de
Dumbledore estivesse ali. De fato, a sala estava quase exatamente igual ao que era, quando ele e
Dumbledore a deixaram apenas horas antes: os instrumentos de prata zumbiam e soltavam
fumaça sobre as mesas de pernas finas, a espada de Gryffindor, em sua caixa de vidro, refulgia ao
luar, o Chapéu Seletor estava na prateleira, atrás da escrivaninha. Mas o poleiro de Fawkes estava
vazio; a fênix continuava a cantar o seu lamento nos jardins. E um novo retrato se reunira às
fileiras de diretores e diretoras de Hogwarts já falecidos... Dumbledore dormia em uma moldura
dourada sobre a escrivaninha, seus oclinhos de meia-lua encarapitados no nariz torto, parecendo
em paz e despreocupado.
Depois de olhar uma vez para o retrato, a professora McGonagall fez um gesto estranho,
como se estivesse se revestindo de coragem, e, em seguida, contornou a escrivaninha para olhar
de frente para Harry, seu rosto tenso e enrugado.
— Harry — disse ela —, eu gostaria de saber o que você e o professor Dumbledore
estiveram fazendo hoje à noite quando se ausentaram da escola.
— Não posso responder, professora. — Ele já esperava a pergunta e tinha a resposta pronta.
Fora ali, naquela mesma sala, que Dumbledore lhe recomendara que não confiasse o teor de suas
aulas a ninguém, exceto a Rony e Hermione.
— Harry, talvez seja importante.
— E é muito, mas ele não queria que eu contasse a ninguém. A professora lançou-lhe um
olhar penetrante.
— Potter — (Harry registrou o uso do seu sobrenome) —, à luz da morte do professor
Dumbledore, acho que você deve entender que a situação mudou um pouco...
— Acho que não — respondeu Harry, encolhendo os ombros. — O professor Dumbledore
nunca me disse que parasse de seguir suas ordens se ele morresse.
— Mas...
— Mas tem uma coisa que a senhora precisa saber antes que o Ministério chegue aqui.
Madame Rosmerta está dominada pela Maldição Imperius, esteve ajudando Malfoy e os
Comensais da Morte, foi assim que o colar e o hidromel envenenado...
— Rosmerta? — exclamou a professora McGonagall incrédula, mas, antes que pudesse
prosseguir, ouviram uma batida na porta e os professores Sprout, Flitwick e Slughorn entraram na
sala, seguidos por Hagrid, que ainda chorava copiosamente, seu corpanzil sacudindo de pesar.
— Snape! — exclamou Slughorn, que parecia abaladíssimo, pálido e suado. — Snape! Fui
professor dele! Pensei que o conhecia!
Antes, porém, que algum deles pudesse reagir, uma voz enérgica falou do alto da parede:
um bruxo de rosto macilento e franja preta e curta acabara de regressar ao seu quadro vazio.
— Minerva, o Ministro estará aqui dentro de segundos, ele acabou de desaparatar do
Ministério.
— Obrigada, Everardo. — E a professora McGonagall se virou imediatamente para os
professores.
— Quero falar sobre o que acontecerá com Hogwarts antes que ele chegue — disse
depressa. — Pessoalmente, não estou convencida de que a escola deva reabrir no próximo ano. A
morte do diretor pelas mãos de um de nossos colegas é uma mácula terrível na história de
Hogwarts. É abominável.
— Tenho certeza de que Dumbledore teria querido manter a escola aberta — disse a
professora Sprout. — Acho que se um único aluno quiser freqüentá-la, a escola deverá estar
aberta para este aluno.
— Mas será que teremos um único aluno depois disso? — perguntou Slughorn, agora
secando a testa suada com um lenço de seda. — Os pais vão querer manter os filhos em casa, e
não posso culpá-los. Pessoalmente, acho que não corremos maior perigo em Hogwarts do que em
qualquer outro lugar, mas não se pode esperar que as mães pensem o mesmo. Vão querer manter
suas famílias reunidas, o que é muito natural.
— Concordo — disse a professora McGonagall. — De qualquer forma, não é verdade que
Dumbledore nunca tenha considerado uma situação em que Hogwarts pudesse fechar. Quando a
Câmara Secreta reabriu, ele cogitou fechar a escola: e devo dizer que o homicídio do professor
Dumbledore, para mim, é mais chocante do que a idéia do monstro de Slytherin vivendo à solta
nas entranhas do castelo...
— Devemos ouvir o conselho diretor — propôs o professor Flitwick, com a sua voz fininha;
tinha um grande hematoma na testa, mas, sob outros aspectos, parecia não ter sido afetado pela
queda no escritório de Snape. — Precisamos seguir os procedimentos de praxe. Não se deve
tomar uma decisão precipitada.
— Hagrid, você ainda não disse nada — observou a professora McGonagall. — Qual é a
sua opinião, Hogwarts deve permanecer aberta?
Hagrid, que, durante a conversa, estivera chorando silenciosamente no grande lenço
manchado, agora ergueu os olhos inchados e vermelhos e respondeu, rouco:
— Não sei, professora... os diretores das Casas e a diretora da escola é que devem decidir...
— O professor Dumbledore sempre prezou as suas opiniões — tornou a professora
McGonagall gentilmente —, e eu também.
— Bem, eu vou continuar aqui. — Grandes lágrimas ainda vazavam pelos cantos de seus
olhos e escorriam para a barba emaranhada. — É a minha casa, tem sido minha casa desde os
treze anos. E se tiver garotos querendo aprender comigo, eu vou ensinar. Mas... não sei...
Hogwarts sem Dumbledore...
Ele engoliu em seco e desapareceu mais uma vez por trás do lenço, e todos silenciaram.
— Muito bem — disse a professora McGonagall, espiando os jardins pela janela para ver se
o Ministro já vinha chegando —, então concordo com Filio que o certo será ouvir o conselho
diretor, que tomará a decisão final.
— Agora, quanto a mandar os estudantes para casa... há razões em favor de antecipar em
vez de adiar a partida. Poderíamos programar o Expresso de Hogwarts para amanhã se for
necessário...
— E os funerais de Dumbledore? — perguntou Harry, finalmente falando.
— Bem... — disse a professora McGonagall, perdendo um pouco de sua vivacidade ao
sentir a voz tremer — eu... eu sei que era desejo de Dumbledore ser enterrado aqui, em
Hogwarts...
— Então, é o que acontecerá, não? — perguntou Harry impetuosamente.
— Se o Ministério achar apropriado. Nenhum outro diretor jamais foi...
— Nenhum outro diretor jamais contribuiu tanto para esta escola — resmungou Hagrid.
— Hogwarts deveria ser a morada final de Dumbledore — disse o professor Flitwick.
— Sem a menor dúvida — concordou a professora Sprout.
— E, neste caso — argumentou Harry —, a senhora não deveria mandar os estudantes para
casa até terminarem os funerais. Eles vão querer se...
A última palavra ficou presa em sua garganta, mas a professora Sprout completou a frase
para ele.
— Despedir.
— Bem observado — esganiçou-se o professor Flitwick. — Realmente bem observado!
Nossos estudantes deveriam prestar homenagens, seria acertado. Podemos providenciar o
transporte para casa depois.
— Apoiado — bradou a professora Sprout.
— Presumo... sim... — disse Slughorn, agitado, enquanto Hagrid concordava, deixando
escapar um soluço estrangulado.
— Ele está chegando — anunciou a professora McGonagall de repente, olhando para os
jardins. — O Ministro... e, pelo visto, trouxe uma delegação.
— Posso ir, professora? — perguntou Harry na mesma hora.
O garoto não tinha o mínimo desejo de ver Scrimgeour, ou ser interrogado por ele, essa
noite.
— Pode, e vá depressa.
Ela andou até a porta e abriu-a para Harry. Ele desceu ligeiro a escada espiral e continuou
pelo corredor deserto; deixara a Capa da Invisibilidade na Torre de Astronomia, mas não fazia
diferença; não havia ninguém nos corredores para vê-lo passar, nem mesmo Filch, Madame Nora
ou Pirraça. Não encontrou vivalma até virar para o corredor que levava à sala comunal da
Grifinória.
— É verdade? — sussurrou a Mulher Gorda quando ele se aproximou. — É realmente
verdade? Dumbledore... morto?
— É.
Ela soltou um lamento e, sem esperar pela senha, girou para admiti-lo.
Tal como Harry suspeitara, a sala comunal estava lotada. E silenciou quando ele passou pelo
buraco do retrato. Ele notou Dino e Simas sentados em um grupo próximo: isto significava que o
dormitório devia estar vazio ou quase. Sem falar com ninguém, nem olhar diretamente para
colega algum, Harry passou direto pela sala e pela porta que levava aos dormitórios dos garotos.
Conforme desejara, Rony o aguardava sentado na cama, e ainda vestido. Harry se acomodou
na própria cama e, por um momento, eles apenas se encararam.
— Estão falando em fechar a escola — disse Harry.
— Lupin falou que fariam isso — comentou Rony. Houve uma pausa.
— Então? — perguntou Rony muito baixinho, como se achasse que a mobília poderia estar
ouvindo. — Vocês encontraram uma? Conseguiram pegá-la? Uma... uma Horcrux?
Harry sacudiu negativamente a cabeça. Tudo que se passara naquele lago escuro parecia
agora um pesadelo muito antigo; teria mesmo acontecido, e apenas há algumas horas?
— Não conseguiram pegá-la? — Rony pareceu desconcertado. — Não estava lá?
— Não — respondeu Harry. — Alguém já tinha levado e deixado uma imitação no lugar.
— Já tinha levado...?
Em silêncio, Harry tirou o medalhão falso do bolso, abriu-o e entregou-o a Rony. A história
completa poderia esperar... não tinha importância essa noite... nada tinha importância exceto o
fim, o fim de sua aventura sem sentido, o fim da vida de Dumbledore...
— R.A.B. — sussurrou Rony —, mas quem é?
— Não sei — respondeu Harry, deitando-se na cama inteiramente vestido e olhando para o
teto estupidamente. Não sentia a menor curiosidade pelo tal R.A.B.; duvidava que voltasse a
sentir curiosidade na vida. Deitado ali, ele percebeu subitamente que os jardins estavam
silenciosos. Fawkes parará de cantar.
E ele soube, sem saber como sabia, que a fênix partira, deixara Hogwarts para sempre, da
mesma forma que Dumbledore deixara a escola, deixara o mundo... deixara Harry.
CAPÍTULO TRINTA
O TÚMULO BRANCO
TODAS AS AULAS FORAM SUSPENSAS, todos os exames adiados. Alguns estudantes foram retirados
às pressas de Hogwarts, pelos pais, nos dois dias que se seguiram — as gêmeas Patil partiram
antes do café na manhã após a morte de Dumbledore, e Zacarias Smith saiu do castelo
acompanhado pelo arrogante pai. Por outro lado, Simas Finnigan recusou-se terminantemente a
voltar para casa com a mãe; discutiram aos gritos no Saguão de Entrada, e só resolveram a
questão quando a mãe concordou que ele ficaria para os funerais. Ela teve dificuldade em
encontrar acomodação em Hogsmeade, Simas contou a Harry e Rony, porque acorriam à aldeia
bruxos e bruxas, preparando-se para prestar as últimas homenagens a Dumbledore.
Houve alguma excitação entre os alunos mais jovens que nunca tinham visto aquilo, a
carruagem azul-clara do tamanho de uma casa, puxada por doze enormes palominos alados, que
surgiu no céu, no fim da tarde, antes dos funerais e aterrissou na orla da Floresta. Harry observou
de uma janela uma mulher gigantesca e bela, de pele morena e cabelos negros, descer os degraus
da carruagem e se atirar nos braços de Hagrid, que a aguardava. Entrementes, uma delegação de
funcionários do Ministério, inclusive o próprio ministro da Magia, foi acomodada no castelo.
Harry evitava diligentemente o contato com qualquer de seus membros; tinha certeza de que mais
cedo ou mais tarde tornariam a lhe pedir contas do último passeio de Dumbledore fora de
Hogwarts.
Harry, Rony, Hermione e Gina passavam todo o tempo juntos. O tempo bonito parecia
zombar deles; Harry imaginava como teria sido se Dumbledore não tivesse morrido e eles
contassem com todo aquele tempo juntos no finalzinho do ano, os exames de Gina já concluídos,
a pressão dos deveres escolares aliviada... e, hora a hora, ele adiava dizer o que sabia que devia
dizer, fazer o que sabia que era certo fazer, porque era difícil abrir mão de sua maior fonte de
consolo.
Eles visitavam a ala hospitalar duas vezes por dia: Neville recebera alta, mas Gui continuava
sob os cuidados de Madame Pomfrey. As cicatrizes não indicavam melhora; na verdade, Gui
agora apresentava uma nítida semelhança com Olho-Tonto Moody, embora, felizmente, tivesse
os olhos e as pernas inteiras e sua personalidade continuasse o que sempre fora. O que parecia ter
mudado é que agora ele passara a gostar muito de bifes malpassados.
— ... e é um sorrte que ei vá se casarr comigue — disse Fleur, feliz, afofando os travesseiros
de Gui —, porrque as brritanique cozinhe demás a carrne, eu semprre disse isse...
— Acho que simplesmente vou ter de aceitar que Gui vá mesmo casar com ela — suspirou
Gina mais tarde naquela noite, quando ela, Harry, Rony e Hermione se sentaram ao lado da janela
aberta da sala comunal da Grifinória contemplando os jardins ao crepúsculo.
— Ela não é tão ruim — comentou Harry. — Mas é feia — acrescentou depressa, quando
Gina ergueu as sobrancelhas e deu uma risadinha relutante.
— Bem, suponho que se mamãe pode suportar, eu também posso.
— Morreu mais alguém que conhecemos? — perguntou Rony a Hermione, que passava os
olhos no Profeta Vespertino.
Hermione fez uma careta ao ouvir a forçada frieza na voz dele.
— Não — respondeu em tom de censura, dobrando o jornal. — Ainda estão procurando
Snape, mas nem sinal...
— Claro que não — retrucou Harry, que se irritava toda vez que tocavam neste assunto. —
Não acharão Snape enquanto não acharem Voldemort, e, considerando que nunca conseguiram
fazer isso até hoje...
— Vou me deitar — bocejou Gina. — Não tenho dormido bem desde... bem... estou bem
precisada de um soninho.
Ela beijou Harry (Rony desviou o olhar oportunamente), fez um aceno com a mão para os
outros dois e foi para o dormitório das garotas. Assim que a porta se fechou atrás dela, Hermione
se curvou para Harry com uma expressão bem hermionesca no rosto.
— Harry, descobri uma coisa hoje de manhã na biblioteca...
— R.A.B.? — perguntou Harry se aprumando na cadeira.
Ele não se sentiu como tantas vezes antes, excitado, curioso, doido para chegar ao fundo do
mistério; ele simplesmente sabia que a tarefa de descobrir a verdade sobre a Horcrux genuína
tinha de ser concluída antes que ele pudesse avançar pelo caminho escuro e tortuoso que se
estendia à sua frente, o caminho que ele e Dumbledore tinham iniciado juntos, mas que, agora,
ele sabia que teria de trilhar sozinho. Talvez ainda houvesse umas quatro Horcruxes em algum
lugar lá fora, e cada uma precisaria ser encontrada e destruída para que houvesse sequer
possibilidade de Voldemort ser liquidado. Ele não parava de recitar seus nomes mentalmente,
como se listando-os pudesse trazer as Horcruxes para o seu alcance: "o medalhão... a taça... a
cobra... alguma coisa de Gryffindor ou de Ravenclaw... o medalhão... a taça... a cobra... alguma
coisa de Gryffindor ou de Ravenclaw..."
Este mantra parecia perpassar sua mente quando ele adormecia, e seus sonhos eram
coalhados de taças, medalhões e objetos misteriosos que ele não conseguia pegar, embora
Dumbledore lhe oferecesse prestimosamente uma escada de corda que se transformava em cobras
no instante em que começava a galgá-la...
Ele mostrara a Hermione a nota no interior do medalhão na manhã seguinte à morte de
Dumbledore, e, embora a amiga não tivesse reconhecido imediatamente as iniciais como
pertencentes a algum bruxo obscuro sobre quem lera, desde então ela corria à biblioteca com
maior freqüência do que seria estritamente necessário a alguém que não tinha deveres de casa a
preparar.
— Não, Harry, estou tentando — respondeu ela, triste —, mas ainda não encontrei nada...
há uns dois bruxos razoavelmente famosos com essas iniciais: Rosalinda Antígona Bungs...
Roberto Axebanger Brookstanton, o "Machadada"... mas aparentemente não se enquadram. Pelo
bilhete, a pessoa que roubou a Horcrux conhecia Voldemort, e não consigo encontrar o menor
indício de que Bungs ou Axebanger tenham tido qualquer relação com ele... não, na realidade, eu
queria falar sobre.... bem, Snape.
Ela parecia nervosa até de mencionar aquele nome.
— Que tem ele? — perguntou sombriamente, recostando-se na cadeira.
— Bem, é que eu tinha certa razão naquela história do Príncipe Mestiço — começou ela
hesitante.
— Você tem de insistir nesse assunto, Hermione? Como é que você acha que eu me sinto
com relação a isso agora?
— Não... não... Harry, não me referi a isso! — apressou-se ela a corrigir, olhando em volta
para verificar se havia alguém ouvindo. — É que eu tinha razão sobre a Eileen Prince ter sido
dona do livro. Sabe... ela era a mãe do Snape!
— Eu bem que achei que ela não era grande coisa — comentou Rony. Hermione não lhe
deu atenção.
— Continuei a examinar o resto dos Profetas antigos e encontrei uma pequena nota
anunciando o casamento de Eileen Prince com um tal Tobias Snape, e mais tarde, outra
anunciando que tinha dado à luz um...
— ... homicida — completou Harry com violência.
— Bem... é — concordou Hermione. — Então eu tinha certa razão. Snape devia sentir
orgulho de ser "meio Príncipe", entende? Tobias Snape era trouxa segundo a informação do
Profeta.
— É, isso se encaixa — admitiu Harry. — Ele daria destaque ao lado puro-sangue para
poder fazer amizade com Lúcio Malfoy e os outros... ele é como Voldemort: mãe de sangue puro,
pai trouxa... vergonha dos pais, tentando ser temido pelo uso das Artes das Trevas, arranjou um
novo nome imponente... Lord Voldemort, o Príncipe Mestiço, como é que Dumbledore não
percebeu...?
Harry se calou, olhando para fora. Não conseguia deixar de pensar na confiança
indesculpável de Dumbledore em Snape... mas, como Hermione inadvertidamente acabara de
lembrá-lo, ele, Harry, também fora enganado... apesar da crescente maldade dos feitiços
anotados, recusara-se a fazer mau juízo do garoto tão inteligente que o ajudara tanto...
Ajudara-o... era um pensamento quase insuportável agora...
— Eu ainda não entendo por que ele não denunciou você por estar usando aquele livro —
comentou Rony. — Ele devia saber de onde você estava tirando tudo aquilo.
— Ele sabia — explicou Harry com amargura. — Soube quando usei o Sectumsempra. Não
precisou realmente de Legilimência... talvez soubesse até antes, ouvindo o Slughorn comentar
como eu era brilhante em Poções... ele não devia ter deixado seu antigo livro no fundo daquele
armário, não é?
— Mas por que ele não denunciou você?
— Acho que ele não queria ser associado àquele livro — respondeu Hermione. — Acho que
Dumbledore não teria gostado muito se soubesse. E o próprio Snape fingiu que o livro não tinha
pertencido a ele,
Slughorn teria reconhecido a caligrafia na mesma hora. De qualquer forma, o livro foi
deixado na antiga sala de aula de Snape, e aposto como Dumbledore sabia que a mãe dele se
chamava "Prince".
— Eu devia ter mostrado o livro a Dumbledore — concluiu Harry. — O tempo todo ele
esteve me mostrando como Voldemort era maligno, mesmo quando freqüentava a escola, e eu
tinha uma prova de que Snape também era...
— "Maligno" é uma palavra forte — comentou Hermione baixinho.
— Era você quem vivia me dizendo que o livro era perigoso!
— O que estou tentando dizer, Harry, é que você está se culpando demais. Eu achei que o
Príncipe tinha um senso de humor perverso, mas nunca imaginei que fosse um homicida
potencial...
— Nenhum de nós poderia ter imaginado que o Snape... sabe — acrescentou Rony.
Os três silenciaram, cada qual absorto nos próprios pensamentos, mas Harry tinha certeza de
que seus amigos, tal como ele próprio, estavam imaginando a manhã seguinte, quando
Dumbledore seria enterrado. Harry nunca fora a um enterro; não tinha havido corpo para enterrar
quando Sirius morreu. Ele não sabia o que esperar, e estava um pouco preocupado com o que
poderia ver, com o que poderia sentir. Perguntou-se se a morte de Dumbledore seria mais real
para ele quando terminassem os funerais. Embora houvesse momentos em que a brutal realidade
do acontecido ameaçasse esmagá-lo, havia lacunas de insensibilidade durante as quais ele ainda
encontrava dificuldade em acreditar que Dumbledore realmente partira, apesar de não falarem em
outra coisa no castelo. Reconhecia que não procurara desesperadamente uma brecha, um jeito de
Dumbledore voltar, ao contrário do que fizera no caso de Sirius... ele apalpou no bolso a corrente
fria da falsa Horcrux, que agora carregava para toda parte, não como um talismã, mas como um
lembrete do que custara e do que ainda faltava fazer.
No dia seguinte, Harry levantou cedo para fazer as malas; o Expresso de Hogwarts estaria
partindo uma hora após os funerais. Embaixo, no Salão Principal, encontrou o ambiente
anormalmente quieto. Todos usavam vestes formais, e ninguém parecia ter muita fome. A
professora McGonagall deixara vazio o cadeirão ao centro da mesa dos professores. A cadeira de
Hagrid também estava desocupada: Harry achou que ele talvez não tivesse conseguido enfrentar o
café da manhã; o lugar de Snape, no entanto, fora ocupado, sem a menor cerimônia, por Rufo
Scrimgeour. Harry evitou seus olhos amarelados esquadrinhando a sala; teve a incômoda
sensação de que Scrimgeour o procurava. Na comitiva do ministro, Harry identificou os cabelos
ruivos e os óculos de aros de tartaruga de Percy Weasley. Rony não demonstrou ter percebido a
presença do irmão, exceto pela virulência com que espetava o peixe defumado.
A mesa da Sonserina, Crabbe e Goyle cochichavam. Corpulentos como eram, pareciam
estranhamente solitários sem a companhia da figura alta e pálida de Malfoy entre os dois,
despachando ordens. Harry não pensara muito em Malfoy. Toda a sua animosidade convergia
para Snape, mas não esquecera o medo na voz de Malfoy no alto da Torre, nem o fato de que ele
baixara a varinha antes de chegarem os outros Comensais da Morte. Harry não acreditava que
Malfoy teria matado Dumbledore. Continuava a desprezar o garoto por sua fascinação pelas Artes
das Trevas, mas uma minúscula gotinha de piedade já se misturava ao seu desagrado. Perguntavase
onde estaria Malfoy agora, e o que Voldemort estaria obrigando-o a fazer, sob ameaças de
morte a ele e à família.
Seus pensamentos foram interrompidos por uma cotovelada de Gina em suas costelas. A
professora McGonagall ficara de pé, e os murmúrios tristes no Salão Principal tinham cessado
prontamente.
— Está quase na hora — começou ela. — Por favor, acompanhem os diretores de suas
Casas até os jardins. Alunos da Grifinória, venham comigo.
Eles deixaram seus bancos disciplinadamente, quase em silêncio. Harry viu Slughorn, de
relance, à frente da fila da Sonserina, trajando magníficas vestes verde-esmeralda, bordadas com
fios prateados. O garoto nunca vira a professora Sprout, diretora da Lufa-Lufa, com uma
aparência tão limpa; não havia um único remendo em seu chapéu e, quando chegaram ao Saguão
de Entrada, encontraram Madame Pince parada ao lado de Filch, ela usando um véu negro e
grosso até os joelhos, e ele, uma gravata e um terno antiquado cheirando fortemente a naftalina.
Todos seguiam, conforme Harry constatou ao descer os degraus de pedra da entrada, em
direção ao lago. Ele sentiu o sol morno acariciar seu rosto, enquanto acompanhava em silêncio a
professora McGonagall ao lugar em que tinham disposto centenas de cadeiras enfileiradas com
uma passagem pelo centro; havia uma mesa de mármore à frente das cadeiras. Fazia um
belíssimo dia de verão.
Uma variedade extraordinária de pessoas já se acomodara em metade das cadeiras;
malvestidas e bem-vestidas, velhas e jovens. A maioria Harry nunca vira, mas reconheceu
algumas, entre elas membros da Ordem da Fênix: Kingsley Shacklebolt, Olho-Tonto Moody,
Tonks, seus cabelos milagrosamente tinham recuperado o tom rosa-berrante, Remo Lupin, com
quem ela parecia estar de mãos dadas, o Sr. e a Sra. Weasley, Gui amparado por Fleur e seguido
por Fred e Jorge, usando paletós pretos de pele de dragão. Estavam também presentes Madame
Maxime, que, sozinha, ocupava duas cadeiras e meia, Tom, o taberneiro do Caldeirão Furado,
Arabela Figg, a bruxa abortada vizinha de Harry, a guitarrista cabeluda do grupo bruxo As
Esquisitonas, Ernesto Prang, motorista do Nôitibus, Madame Malkin, da loja de vestes no beco
Diagonal, e outras pessoas que Harry só conhecia de vista, como o barman do Cabeça de Javali e
a bruxa do carrinho de lanches do Expresso de Hogwarts. Os fantasmas do castelo também
estavam lá, quase invisíveis ao sol forte mas discerníveis quando se moviam, tremeluzindo
incorporeamente no ar luminoso.
Harry, Rony Hermione e Gina tomaram os últimos assentos na fila ao lado do lago. As
pessoas sussurravam entre si; o som lembrava o farfalhar da brisa na grama, mas o canto dos
pássaros se sobrepunha a tudo. A multidão continuava a crescer; sentindo um arroubo de afeição
pelos dois, Harry viu Luna ajudando Neville a se sentar. Tinham sido os únicos de toda a Armada
a responder à convocação de Hermione na noite em que Dumbledore morrera, e Harry sabia por
quê: eram os que sentiam maior falta do grupo... provavelmente, os únicos que verificavam
regularmente as moedas na esperança de que houvesse outra reunião...
Cornélio Fudge passou por eles em direção às filas mais à frente, com uma expressão de
infelicidade, girando o chapéu-coco como era seu hábito; em seguida, Harry reconheceu Rita
Skeeter, e enfureceu-o ver um bloco de notas naquelas mãos de garras vermelhas; e, com um
surto de fúria ainda mais forte, Dolores Umbridge, com uma expressão de tristeza pouco
convincente em sua cara de sapo, um laço de veludo negro no alto dos cachos azulados. Ao ver o
centauro Firenze, que estava parado como uma sentinela à margem do lago, ela se sobressaltou e
correu rápido para uma cadeira bem distante.
Os professores finalmente se sentaram. Harry viu Scrimgeour, com ar grave e digno, na
primeira fila ao lado da professora McGonagall. O garoto questionava se Scrimgeour ou
quaisquer daqueles figurões lamentava realmente que Dumbledore tivesse morrido. Ouviu, então,
uma música estranha e sobrenatural e esqueceu sua antipatia pelo Ministério, olhando para os
lados à procura de sua origem. Ele não foi o único: muitas cabeças se viraram, olhando um pouco
assustadas.
— Lá dentro — sussurrou Gina no ouvido de Harry.
Então ele os viu nas águas verdes banhadas de sol, a centímetros da superfície, lembrando-o
aflitivamente dos Inferi; um coro de sereianos cantava em uma língua que ele não entendia, seus
rostos pálidos ondeando, seus cabelos arroxeados boiando à volta. A música deixou arrepiados os
cabelos na nuca de Harry, embora não fosse desagradável. Falava muito claramente de perda e
desespero. Ao olhar os rostos ferozes dos cantores, o garoto teve a sensação de que os sereianos,
pelo menos, lamentavam a morte de Dumbledore. Então Gina tornou a cutucá-lo, e ele se virou
para olhar.
Hagrid vinha andando pela passagem entre as cadeiras. Chorava silenciosamente, seu rosto
brilhava de lágrimas, e trazia nos braços, envolto em veludo roxo salpicado de estrelas douradas,
o que Harry sabia ser o corpo de Dumbledore. Ao vê-lo, o garoto sentiu uma dor aguda na
garganta: por um momento, a música estranha e a consciência de que o corpo do diretor estava
tão próximo pareceram roubar todo o calor do dia. Rony estava branco e chocado. Caíam
lágrimas copiosas no colo de Gina e Hermione.
Os garotos não conseguiam ver com clareza o que acontecia à frente. Hagrid parecia ter
colocado o corpo cuidadosamente sobre a mesa. Agora retirava-se pela passagem, assoando o
nariz ruidosamente e atraindo olhares escandalizados de algumas pessoas, inclusive, Dolores
Umbridge... mas Harry sabia que Dumbledore não teria se importado. Ele tentou fazer um gesto
simpático quando Hagrid passou, mas os olhos do amigo estavam tão inchados que era de
admirar que conseguisse sequer ver aonde ia. Harry olhou para a última fila, à qual se
encaminhava o amigo, e entendeu o que o orientava; ali, calça e paletó, cada peça do tamanho de
uma tenda, encontrava-se o gigante Grope, sua enorme e feia cabeça de pedregulho curvada,
dócil, quase humano. Hagrid sentou-se ao lado do meio-irmão, que lhe deu fortes palmadas
carinhosas na cabeça, fazendo as pernas de sua cadeira enterrarem no chão. Harry sentiu um
impulso momentâneo e maravilhoso de rir. Então, a música parou, e ele tornou a se virar para
frente.
Um homenzinho com os cabelos em tufos e simples vestes pretas se erguera e agora estava
parado diante do corpo de Dumbledore. Harry não conseguia distinguir o que ele dizia.
Chegavam-lhe palavras estranhas por cima das centenas de cabeças. "Nobreza de espírito...
contribuição intelectual... grandeza de coração..." não significavam muita coisa. Não tinham
muito a ver com o Dumbledore que Harry conhecera. De repente, o garoto se lembrou da versão
de Dumbledore de algumas palavras: "pateta", "esquisitice", "choramingas" e "beliscão", e mais
uma vez ele precisou reprimir o riso... que estava acontecendo com ele?
Houve um ruído de água revolvida à esquerda, e ele viu que os sereianos tinham vindo à
tona para ouvir, também. Harry se lembrou de Dumbledore agachando à beira do lago dois anos
antes, muito próximo do lugar em que Harry estava sentado, conversando em serêiaco com a líder
desse povo. Harry se perguntou onde Dumbledore teria aprendido aquela língua. Havia tanta
coisa que nunca perguntara, tanta coisa que deveria ter dito...
E, então, subitamente, a terrível verdade o devassou, mais completa e inegavelmente do que
até aquele momento. Dumbledore estava morto, partira... ele apertou o medalhão com tanta força
que doeu, mas não pôde impedir que lágrimas quentes saltassem dos seus olhos; desviou o olhar
de Gina e dos outros e fixou-o ao longe, na direção da Floresta, enquanto o homenzinho de preto
continuava a falar... percebeu um movimento entre as árvores. Os centauros tinham vindo prestar
suas homenagens também. Não saíram a céu aberto, mas Harry os viu parados, quietos, meio
encobertos pelas sombras, observando os bruxos, os arcos pendurados do lado do corpo. E Harry
lembrou-se do pesadelo que fora sua primeira ida à Floresta, a primeira vez que encontrara a
coisa que então era Voldemort, e como a enfrentara, e como, pouco tempo depois, ele e
Dumbledore tinham discutido as razões de se travar uma batalha perdida. Era importante, dissera
Dumbledore, lutar, e recomeçar a lutar, e continuar a lutar, porque somente assim o mal poderia
ser acuado, embora jamais erradicado...
E Harry, sentado ali sob o sol quente, percebeu com muita clareza como as pessoas que
gostavam dele tinham se colocado à sua frente, um por um, sua mãe, seu pai, seu padrinho e,
finalmente, Dumbledore, todos decididos a protegê-lo; mas, agora, isso acabara. Não podia mais
deixar ninguém ficar entre ele e Voldemort; tinha de abandonar definitivamente a ilusão que já
devia ter perdido com um ano de idade: que a proteção dos braços paternos significava que nada
poderia atingi-lo. Neste pesadelo não haveria despertar, não haveria sussurro tranqüilizante no
escuro dizendo-lhe que, na realidade, estava seguro, que era tudo sua imaginação; o último e
maior de seus protetores morrera, e ele estava mais sozinho do que jamais estivera.
O homenzinho de preto parara finalmente de falar e retomara seu lugar. Harry aguardou que
mais alguém se levantasse; esperava discursos, provavelmente do Ministro, mas ninguém se
mexeu.
Então várias pessoas gritaram. Vivas chamas irromperam em torno do corpo de Dumbledore
e da mesa em que jazia: cada vez mais altas, ocultando seu corpo. Subiram espirais de fumaça
branca no ar, desenhando estranhas formas: Harry pensou, por um momento de sustar o coração,
que estava vendo uma fênix voar feliz para o infinito, mas, no segundo seguinte, o fogo
desaparecera. Em seu lugar havia um túmulo de mármore branco, encerrando o corpo de
Dumbledore e a mesa em que repousara.
Ouviram-se mais alguns gritos de espanto quando uma saraivada de flechas voou pelo ar,
mas elas caíram muito aquém da multidão. Era, Harry entendeu, a homenagem dos centauros: viu
quando eles deram as costas e tornaram a desaparecer entre as árvores sombrias. De modo
semelhante, os sereianos imergiram lentamente nas águas verdes e desapareceram de vista.
Harry olhou para Gina, Rony e Hermione: o rosto do amigo estava franzido como se a
claridade do sol o cegasse. O de Hermione estava vidrado de lágrimas, mas Gina já não chorava.
Sustentou o olhar de Harry com aquela mesma expressão decidida e intensa que ele vira quando a
garota o abraçara depois de conquistar a Copa de Quadribol em sua ausência, e ele soube que
naquele momento os dois se compreendiam perfeitamente, e quando lhe contasse o que ia fazer
agora, ela não diria "Cuidado" nem "Não faça isso", mas aceitaria sua decisão porque não
esperava dele outra atitude. Então, ele se revestiu de coragem para dizer o que sabia que teria de
dizer, desde que Dumbledore morrera.
— Gina, escute... — começou em voz muito baixa, em meio ao burburinho de conversas
que crescia à sua volta e às pessoas que começavam a se levantar. — Não posso mais namorar
você. Temos de parar de nos ver. Não podemos ficar juntos.
Ela disse, com um sorriso estranhamente enviesado:
— É por algum motivo nobre e idiota, não é?
— Essas últimas semanas com você têm parecido... parecido fazer parte da vida de outra
pessoa — explicou Harry. — Mas não posso... não podemos... Tem coisas que preciso fazer
sozinho agora.
Ela não chorou, olhou-o apenas.
— Voldemort usa as pessoas chegadas aos seus inimigos. Já usou você de isca uma vez, e
foi só por ser irmã do meu melhor amigo. Pensa no enorme perigo que poderá correr se
continuarmos a namorar. Ele saberá, ele descobrirá. Ele tentará me atingir através de você.
— E se eu não me importar? — perguntou Gina impetuosamente.
— Eu me importo. Como é que você acha que eu me sentiria se hoje fosse o seu enterro... e
a culpa fosse minha...?
Ela desviou o olhar em direção ao lago.
— Eu nunca desisti de você. Não de verdade. Sempre tive esperança... Hermione me disse
para tocar a minha vida, talvez sair com outra pessoa, me descontrair um pouco perto de você,
porque eu nunca conseguia falar quando você estava na sala, lembra? E ela achou que talvez você
prestasse um pouco mais de atenção em mim se eu fosse mais... eu mesma.
— Menina esperta, essa Hermione — comentou Harry tentando sorrir. — Eu só queria ter
convidado você para sair antes. Poderíamos ter tido séculos... meses... anos talvez...
— Mas você esteve muito ocupado salvando o mundo bruxo — replicou Gina, quase
sorrindo. — Bem... não posso dizer que esteja surpresa. Eu sabia que isto aconteceria um dia. Eu
sabia que você não seria feliz se não estivesse caçando o Voldemort. Vai ver é por isso que eu
gosto tanto de você.
Harry não agüentou ouvir essas coisas, e achou que não manteria sua decisão se continuasse
sentado ao lado de Gina. Viu que Rony abraçava Hermione e acariciava seus cabelos enquanto
ela soluçava em seu ombro, e que escorriam lágrimas da ponta do seu nariz comprido. Com um
gesto angustiado, Harry ficou de pé, deu as costas a Gina e ao túmulo de Dumbledore, e saiu
andando pela margem do lago. Andar parecia bem mais suportável do que ficar sentado: da
mesma forma que partir o mais cedo possível para procurar as Horcruxes e liquidar Voldemort o
faria sentir-se melhor do que esperar para fazer isso...
— Harry!
Ele se virou. Rufo Scrimgeour vinha mancando ligeiro em sua direção, margeando o lago,
apoiando-se na bengala.
— Eu estava na esperança de poder dar uma palavra... você se incomoda se eu caminhar um
pouco com você?
— Não — respondeu Harry, com indiferença, retomando a caminhada.
— Harry, foi uma horrível tragédia — começou o bruxo em voz baixa. — Nem sei lhe dizer
o horror que senti quando soube. Dumbledore era um bruxo extraordinário. Tínhamos as nossas
desinteligências, como você bem sabe, mas ninguém melhor do que eu...
— Que é que o senhor quer? — perguntou Harry sem emoção. Scrimgeour pareceu
contrariado, mas, como antes, alterou rapidamente sua expressão para mostrar pesarosa
compreensão.
— Naturalmente, você está arrasado. Sei que era muito ligado a Dumbledore. Imagino que
você talvez tenha sido o aluno de quem ele mais gostou na vida. Os laços entre os dois...
— Que é que o senhor quer? — repetiu Harry, parando. Scrimgeour parou também, apoiouse
na bengala e encarou Harry, sua expressão agora astuta.
— Dizem que você estava com Dumbledore quando se ausentou da escola na noite de sua
morte.
— Quem diz?
— Alguém estupefez um Comensal da Morte no alto da Torre depois que Dumbledore
morreu. Havia também duas vassouras lá. O Ministério sabe somar dois mais dois, Harry.
— Que bom ouvir isso. Bem, aonde eu fui com Dumbledore e o que fizemos é unicamente
da minha conta. Ele não queria que as pessoas soubessem.
— Tal lealdade, naturalmente, é admirável — disse Scrimgeour, que parecia conter com
dificuldade sua irritação —, mas Dumbledore se foi, Harry. Ele se foi.
— Ele só terá ido desta escola quando ninguém mais aqui for leal a ele — respondeu Harry,
com um sorriso forçado.
— Meu caro rapaz... nem mesmo Dumbledore é capaz de ressurgir da...
— Não estou afirmando que ele seja. O senhor não entenderia. Mas não tenho nada a lhe
dizer.
Scrimgeour hesitou. Então, num tom que evidentemente pretendia que fosse gentil, disse:
— O Ministério pode lhe oferecer todo tipo de proteção, sabe, Harry. Eu teria prazer em
colocar uns dois aurores a seu serviço...
Harry riu.
— Voldemort quer me matar pessoalmente, e os aurores não poderão detê-lo. Então muito
obrigado pelo oferecimento, mas não vou aceitar.
— Então — disse Scrimgeour, seu tom frio —, o pedido que lhe fiz no Natal...
— Que pedido? Ah, sim... aquele para eu anunciar ao mundo que o senhor está fazendo um
ótimo trabalho em troca de...
— Levantar o moral de todos! — concluiu Scrimgeour com rispidez.
Harry estudou-o por um momento.
— Já soltaram o Lalau Shunpike?
O rosto de Scrimgeour tingiu-se de um púrpura intenso que lembrou muito o do tio Válter.
— Vejo que você é...
— Por inteiro um homem de Dumbledore — completou Harry. — Com certeza.
Scrimgeour olhou-o aborrecido por mais um momento, deu-lhe as costas e se afastou,
mancando, sem dizer mais nada. Harry viu Percy e o restante da delegação à espera do Ministro
lançando olhares nervosos na direção de Hagrid e Grope, que soluçavam ainda sentados. Rony e
Hermione correram ao encontro de Harry e passaram por Scrimgeour, indo em direção oposta; o
garoto se virou e continuou sua caminhada devagar, dando tempo para os amigos o alcançarem, o
que finalmente aconteceu embaixo de uma bétula onde costumavam sentar em épocas mais
felizes.
— Que é que Scrimgeour queria? — sussurrou Hermione.
— O mesmo que queria no Natal — respondeu Harry, sacudindo os ombros. — Queria que
eu desse informações confidenciais sobre Dumbledore e virasse o novo garoto propaganda do
Ministério.
Rony pareceu lutar intimamente por um momento, então anunciou em voz alta para
Hermione:
— Olha, me deixa voltar para dar um murro no Percy.
— Não — disse ela com firmeza, segurando-o pelo braço.
— Mas eu vou me sentir melhor!
Harry riu. Até Hermione esboçou um sorriso, que desapareceu quando ela ergueu os olhos
para o castelo.
— Não consigo suportar a idéia de que talvez nunca voltemos —disse ela baixinho. —
Como é que Hogwarts pode fechar?
— Talvez não feche — falou Rony. — Não corremos maior perigo aqui do que em casa,
não é? Está igual em toda parte. Eu diria até que Hogwarts está mais segura, há mais bruxos para
defender o lugar. Que é que você acha, Harry?
— Não vou voltar nem que reabra.
Rony olhou-o boquiaberto, mas Hermione disse com tristeza:
— Eu sabia que você ia dizer isso. Mas, então, o que vai fazer?
— Vou voltar mais uma vez à casa dos Dursley, porque era o que Dumbledore queria. Mas
será uma visita breve, e então partirei para sempre.
— Mas aonde é que você vai, se não voltar para a escola?
— Pensei talvez em voltar para Godric's Hollow — murmurou Harry. Vinha ruminando esta
idéia desde a noite em que Dumbledore morrera. — Para mim, tudo começou ali. Tenho a
sensação de que preciso ir até lá. E posso visitar os túmulos dos meus pais, gostaria de fazer isso.
— E depois? — perguntou Rony.
— Depois tenho de rastrear as outras Horcruxes, não é? — respondeu Harry, os olhos no túmulo
branco de Dumbledore refletido nas águas do lago. — É o que ele queria que eu fizesse, por isso
é que me contou tudo que sabia sobre elas. Se Dumbledore estiver certo, e tenho certeza de que
está, ainda há quatro Horcruxes por aí. Preciso encontrar todas e destruí-las, e depois correr atrás
da sétima porção da alma de Voldemort, a que ainda habita o corpo dele, e sou eu quem vai matálo.
E se eu encontrar Severo Snape pelo caminho — acrescentou Harry —, tanto melhor para
mim, tanto pior para ele.
Fez-se um longo silêncio. A multidão quase toda se dispersara, os poucos remanescentes
guardavam uma imensa distância da figura de Grope consolando Hagrid, cujos uivos de dor
ecoavam pelo lago.
— Estaremos lá, Harry — disse Rony.
— Quê?
— Na casa dos seus tios — respondeu Rony. — Então acompanharemos você, aonde for.
— Não — disse Harry depressa; não contara com isso, tentara fazer os amigos entenderem
que ia empreender essa perigosíssima viagem sozinho.
— Você já nos disse uma vez — disse Hermione em voz baixa — que havia tempo para
desistir, se a gente quisesse. Tivemos tempo, não é mesmo?
— Estamos com você para o que der e vier — afirmou Rony. — Mas, cara, você vai ter de
passar na casa dos meus pais antes de qualquer outra coisa, até mesmo de Godrics Hollow.
— Por quê?
— O casamento de Gui e Fleur, lembra?
Harry olhou para ele, espantado; a idéia de que algo normal como um casamento ainda
pudesse existir parecia inacreditável e, contudo, maravilhosa.
— Ah é, não devemos perder esta festa por nada — disse ele por fim.
Sua mão fechou automaticamente em torno da falsa Horcrux, mas, apesar de tudo, apesar do
caminho escuro e tortuoso que ele via estender-se à sua frente, apesar do encontro final com
Voldemort, que ele sabia que teria de ocorrer, fosse em um mês, um ano ou dez, ele sentiu um
novo ânimo ao pensar que restava um último e dourado dia de paz para aproveitar com Rony e
Hermione.
***
                                               FIM

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