segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Harry Potter e o Enigma do Príncipe 1/5



CAPÍTULO UM
O OUTRO MINISTRO
ERA QUASE MEIA-NOITE e o Primeiro-Ministro estava sentado sozinho em seu gabinete,
lendo um longo memorando que resvalava pelo seu cérebro sem deixar o menor registro.
Aguardava um telefonema do presidente de um país longínquo e, entre a preocupação se o infeliz
iria telefonar e a tentativa de reprimir lembranças do que fora uma semana difícil, longa e
cansativa, não sobrava muito espaço em sua mente. Quanto mais tentava focalizar as palavras na
página diante dele, tanto mais claramente via o rosto triunfante de um dos seus adversários
políticos. O homem aparecera no telejornal daquele dia não somente para enumerar os terríveis
acontecimentos da semana anterior (como se alguém precisasse de lembretes) como também para
explicar que a culpa de cada um deles e de todos, sem exceção, cabia ao governo.
O pulso do Primeiro-Ministro acelerou só de pensar nessas acusações, porque não eram
justas nem verdadeiras. Como é que o seu governo poderia ter impedido aquela ponte de ruir? Era
um absurdo insinuarem que não estava gastando o suficiente na conservação de pontes. Essa tinha
menos de dez anos, e os maiores especialistas não sabiam explicar por que rachara exatamente ao
meio, projetando dezenas de carros nas profundezas do rio. E como ousavam sugerir que aqueles
dois homicídios bárbaros divulgados com estardalhaço eram conseqüência da falta de
policiamento? Ou que o governo deveria ter previsto o furacão inesperado que ocorrera no oeste
do país e causara tantos prejuízos a pessoas e propriedades? E seria culpa sua que um dos
ministros de segundo escalão, Herberto Chorley, tivesse escolhido logo esta semana para agir tão
bizarramente que agora iria passar um bom tempo em casa?
"Uma sensação de perigo se apoderou do país", concluíra seu adversário, ocultando a custo
um largo sorriso.
E, infelizmente, era a pura verdade. O próprio Ministro sentia isso; o povo realmente parecia
mais infeliz do que de costume. Até o tempo estava lúgubre; toda essa névoa gélida em pleno
verão... não era certo, não era normal...
Ele virou a segunda página do memorando, verificou o quanto ainda faltava e achou que
seria inútil se esforçar. Espreguiçando-se, contemplou pesaroso o seu gabinete. Era uma bela sala,
com uma elegante lareira de mármore defronte às janelas de guilhotina, muito bem fechadas para
evitar o frio atípico da estação. Com um leve arrepio, o Primeiro-Ministro se levantou, foi até a
janela e contemplou a névoa fina que colava nos vidros. Foi então, quando estava de costas para a
sala, que ouviu um leve pigarro.
Ele congelou, encarando o próprio rosto apavorado refletido na vidraça escura. Conhecia
aquele pigarro. Já o ouvira antes. Virou-se, muito lentamente, e confrontou a sala vazia.
— Alôô! — disse, tentando aparentar mais coragem do que sentia. Por um breve momento
permitiu-se a esperança impossível de que ninguém lhe respondesse. Mas ouviu imediatamente
uma voz seca e decidida que parecia estar lendo um texto pronto. Vinha — e o Primeiro-Ministro
soube assim que ouviu o primeiro pigarro — do homenzinho bufonídeo de longa peruca prateada,
retratado em um pequeno quadro a óleo encardido do outro lado da sala.
— Para o Primeiro-Ministro dos trouxas. E urgente que nos encontremos. Favor responder
imediatamente. Atenciosamente, Fudge. — O homem no quadro lançou um olhar de indagação
ao Primeiro-Ministro.
— Ehh — começou o Primeiro-Ministro —, ouça... não é um bom momento... estou
esperando um telefonema, sabe... do presidente do...
— Isto pode ser remarcado — respondeu logo o quadro. O Primeiro-Ministro desanimou.
Era o que receava.
— Mas eu realmente tinha esperanças de falar...
— Faremos com que o presidente esqueça o telefonema. Ele não ligará hoje, ligará amanhã
à noite — disse o homenzinho. — Tenha a bondade de responder imediatamente ao Sr. Fudge.
— Eu... ah... está bem — disse o Primeiro-Ministro vencido. — Receberei Fudge.
Voltou, então, depressa à sua escrivaninha, endireitando a gravata. Mal se sentara e se
recompusera para aparentar uma expressão descontraída e impassível, ou assim esperava, um
clarão de chamas muito verdes apareceu na abertura sob o console da lareira de mármore. Ele
observou, tentando não demonstrar surpresa nem preocupação, um homem corpulento emergir
das chamas, rodopiando rápido como um pião. Segundos depois, ele engatinhava da lareira para
um bonito tapete antigo, sacudindo as cinzas das mangas de sua longa capa listrada, segurando
um chapéu-coco verde-limão.
— Ah... Primeiro-Ministro — disse Cornélio Fudge, adiantando-se em largos passos, com a
mão estendida. — Que bom revê-lo!
O Primeiro-Ministro não poderia retribuir o cumprimento com sinceridade, então nada
respondeu. Não sentia o mais remoto prazer de ver Fudge, cujas raras aparições, além de serem
em si decididamente alarmantes, em geral significavam que ele estava prestes a ouvir notícias
muito ruins. Além do mais, Fudge parecia inegavelmente aflito. Estava mais magro, mais calvo,
mais grisalho, e seu rosto parecia amarrotado. O Primeiro-Ministro já vira políticos com essa
aparência antes, e nunca tinha sido um bom augúrio.
— Em que posso servi-lo? — perguntou, apertando brevemente a mão de Fudge e indicando
a cadeira mais dura diante da escrivaninha.
— É difícil saber por onde começar — murmurou Fudge, puxando a cadeira, sentando-se e
apoiando o chapéu sobre os joelhos. — Que semana, que semana...
— Também teve uma semana ruim? — perguntou o Primeiro-ministro secamente,
esperando, assim, deixar implícito que já tinha um prato cheio nas mãos sem precisar de mais
colheradas de Fudge.
— E claro que tive — respondeu o bruxo, esfregando os olhos num gesto cansado e olhando
mal-humorado para o Primeiro-Ministro. — Tive a mesma semana que o senhor, Primeiro-
Ministro. A ponte de Brockdale... os assassinatos de Bonés e Vance... sem falar nas confusões no
oeste...
— O senhor... ehh... sua... o senhor está querendo me dizer que gente do seu mundo esteve...
esteve envolvida... nesses acontecimentos, é isso?
Fudge fixou no Primeiro-Ministro um olhar severo.
— Claro que esteve. Certamente o senhor percebeu o que está acontecendo, não?
— Eu... — hesitou o Primeiro-Ministro.
Era exatamente esse tipo de atitude que o fazia detestar as visitas de Fudge. Afinal de
contas, era o Primeiro-Ministro e não gostava que ninguém o fizesse sentir-se como um escolar
ignorante. Mas sempre fora assim desde o primeiro encontro com Fudge, em sua primeiríssima
noite como Primeiro-Ministro. Lembrava como se fosse ontem, e sabia que isto o atormentaria
até morrer.
Encontrava-se sozinho neste mesmo gabinete, saboreando o seu triunfo depois de tantos
anos de sonho e armações, quando ouvira um pigarro às suas costas, exatamente como hoje à
noite, e, ao se virar, dera de cara com aquele feio quadrinho que se dirigia a ele, anunciando que o
ministro da Magia estava a caminho para vir se apresentar.
Naturalmente, pensara que a longa campanha e a tensão da eleição o tivessem enlouquecido.
Ficara absolutamente aterrorizado ao ver um quadro falando com ele, embora isso não fosse nada
comparado ao que sentira quando um homem que anunciou ser bruxo projetou-se da lareira e lhe
apertou a mão. Permaneceu mudo enquanto Fudge cortesmente explicava que ainda havia bruxos
e bruxas vivendo em segredo no mundo inteiro, e reafirmava que ele não precisava se preocupar,
pois o ministro da Magia responsabilizava-se por toda a comunidade bruxa e impedia que a
população não-bruxa soubesse de sua existência. Era, dissera Fudge, uma tarefa difícil que
abrangia tudo, desde leis sobre o uso responsável de vassouras à manutenção da população de
dragões sob controle (o Primeiro-Ministro se lembrava de ter procurado se agarrar na
escrivaninha ao ouvir isso). Fudge, então, paternalmente, dera uns tapinhas no ombro do atônito
Primeiro-Ministro.
— Não se preocupe — dissera —, provavelmente o senhor não tornará a me ver. Só o
incomodarei se houver alguma coisa realmente grave ocorrendo do nosso lado, alguma coisa que
possa afetar os trouxas... a população não-bruxa, melhor dizendo. Não ocorrendo nada, é viver e
deixar viver. E devo dizer, o senhor está aceitando a notícia bem melhor do que o seu antecessor.
Aquele tentou me atirar pela janela, achou que eu era uma peça pregada pela oposição.
Ao ouvir isso, o Primeiro-Ministro recuperou finalmente a voz.
— Então, o senhor não é uma peça?
Fora a sua última e desesperada esperança.
— Não — respondeu Fudge gentilmente. — Receio que não. Olhe.
E transformou a xícara de chá do Primeiro-Ministro em um gerbo.
— Mas — ofegou o Primeiro-Ministro, ao ver a xícara começar a roer o canto do seu
próximo discurso —, mas por que... por que ninguém me disse nada...?
— O ministro da Magia só aparece para o Primeiro-Ministro dos trouxas em exercício —
respondeu Fudge, repondo a varinha no bolso interno do paletó. — Achamos que é melhor assim,
para resguardar o sigilo.
— Mas, então — baliu o Primeiro-Ministro —, por que o Primeiro-Ministro anterior não me
avisou?
Ao ouvir isso, Fudge deu uma gargalhada.
— Meu caro Primeiro-Ministro, será que o senhor algum dia contará a alguém?
Ainda rindo, Fudge lançara um pó na lareira, entrara nas chamas verde-esmeralda e
desaparecera com um barulhinho surdo. O Primeiro-Ministro ficara ali parado, imóvel, e
percebeu que jamais enquanto vivesse se atreveria a mencionar tal encontro a alguém, porque,
afinal, quem iria acreditar?
Ele levara algum tempo para se recuperar do choque. A princípio, tentara se convencer de que
Fudge fora de fato uma alucinação provocada pelas noites em claro durante a exaustiva campanha
eleitoral. Na inútil tentativa de ser livrar de todos os vestígios desse desagradável encontro, ele
dera o gerbo a uma sobrinha, que adorou o presente, e instruiu o seu secretário particular para
retirar o quadro do feio homenzinho que anunciara a chegada de Fudge. Para sua grande aflição,
no entanto, o quadro se mostrou impossível de remover. Depois que vários marceneiros, uns dois
construtores, um historiador de arte e o ministro da Fazenda tentaram inutilmente arrancá-lo da
parede, o Primeiro-Ministro desistira e simplesmente se conformara em torcer para que o quadro
permanecesse imóvel e silencioso pelo resto do seu mandato. Ocasionalmente, ele poderia jurar
que vislumbrava pelo canto do olho o ocupante do quadro bocejar ou, então, coçar o nariz; e, uma
ou duas vezes, saíra da moldura sem nada deixar além de um pedaço de tela encardida. No
entanto, ele havia se condicionado a não olhar muito para o quadro e sempre repetir para si
mesmo, com firmeza, que os seus olhos o iludiam quando via uma coisa dessas.
Então, havia três anos, em uma noite muito semelhante a de hoje, o Primeiro-Ministro
estava sozinho em seu gabinete quando o quadro mais uma vez anunciara a chegada iminente de
Fudge, que irrompera da lareira com as roupas encharcadas e tomado de intenso pânico. Antes
que o Primeiro-Ministro pudesse perguntar por que estava pingando água em cima do tapete,
Fudge começara um discurso sobre uma prisão de que o Primeiro-Ministro jamais ouvira falar,
um tal "Sério" Black, alguma coisa cuja pronúncia lembrava Hog-warts e um menino chamado
Harry Potter, coisas que para ele não faziam o menor sentido.
— ... Acabei de chegar de Azkaban — ofegara Fudge, deixando cair da aba do chapéu-coco
para o bolso uma quantidade de água. — Meio do mar do Norte, sabe, um vôo horrível... os
dementadores estão furiosos — e estremeceu —, nunca tiveram uma fuga antes. Seja como for,
eu precisava vir procurá-lo, Primeiro-Ministro. Black é um conhecido assassino de trouxas e pode
estar planejando se reunir a Você-Sabe-Quem... mas, naturalmente, o senhor nem sabe quem é
Você-Sabe-Quem! — Por um momento Fudge olhou desamparado para o Primeiro-Ministro,
depois acrescentou:
— Bem, sente-se, sente-se, é melhor eu lhe explicar... tome um uísque...
O Primeiro-Ministro não gostou nem um pouco que o mandassem sentar em seu próprio
gabinete, e menos ainda que lhe oferecessem o seu próprio uísque, mesmo assim sentou-se.
Fudge puxara a varinha, conjurara dois enormes copos cheios de um líquido âmbar, empurrara
um deles na mão do Primeiro-Ministro e puxara uma cadeira.
Fudge falara mais de uma hora. Num determinado momento, recusara-se a pronunciar um
certo nome em voz alta e, em vez disso, escrevera-o em um pedaço de pergaminho, que enfiara
na mão livre do Primeiro-Ministro. Quando finalmente Fudge fez menção de se retirar, o
Primeiro-Ministro também se levantou.
— Então o senhor acha que... — e apertara os olhos para ler o nome que segurava na mão
esquerda — o tal Lord Vol...
— Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado! — rosnou Fudge.
— Desculpe... Então o senhor acha que Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado continua
vivo?
— Bem, Dumbledore diz que sim — respondeu ele, abotoando o colarinho de sua capa
listrada —, mas nunca o encontramos. Se quer saber, ele não é perigoso a não ser que consiga
apoio, por isso é que devemos nos preocupar com Black. Então, o senhor divulgará aquele aviso?
Excelente. Bem, espero que não tornemos a nos ver, Primeiro-Ministro! Boa-noite.
Mas eles tornaram a se ver. Menos de um ano depois, um Fudge atormentado se
materializara na sala do gabinete ministerial para informar ao Primeiro-Ministro que tinha havido
um probleminha na Copa do Mundo de Catrebol (ou pelo menos fora isso que entendera), em que
vários trouxas tinham sido "envolvidos", mas que o Primeiro-Ministro não se preocupasse, o fato
de que Você-Sabe-Quem fora mais uma vez avistado nada significava. Fudge estava seguro de
que era um incidente isolado, e a Seção de Ligação com os Trouxas já estava fazendo as
alterações de memória necessárias naquele mesmo instante.
— Ah, e ia quase me esquecendo — acrescentou Fudge. — Estamos importando três
dragões estrangeiros e uma esfinge para o Torneio Tribruxo, uma operação rotineira, mas o
Departamento para Regulamentação e Controle das Criaturas Mágicas diz que, segundo as
normas, temos de informá-los quando trazemos animais perigosos do exterior.
— Eu... que... dragões? — gaguejou o Primeiro-Ministro.
— É, três — disse Fudge. — E uma esfinge. Bem, um bom-dia para o senhor.
O Primeiro-Ministro tivera a inútil esperança de que os dragões e a esfinge fossem o pior,
mas não. Menos de dois anos depois, Fudge irrompera pela lareira, dessa vez, com a notícia de
que houvera uma fuga em massa de Azkaban.
— Uma fuga em massa? — repetira o Primeiro-Ministro roucamente.
— Não precisa se preocupar, não precisa se preocupar! — bradara Fudge, já com um pé nas
chamas. — Vamos recapturá-los sem perda de tempo... só achei que o senhor devia saber!
E, antes que o Primeiro-Ministro tivesse tempo de gritar: "Espere um instante!", Fudge se
fora em uma chuva de fagulhas verdes.
Seja o que for que a imprensa e a oposição pudessem dizer, o Primeiro-Ministro não era
tolo. Não escapara à sua atenção que, apesar das palavras tranqüilizadoras de Fudge no primeiro
encontro, ultimamente andavam se vendo bastante, e a cada visita Fudge parecia mais
atrapalhado. Por menos que gostasse de pensar no ministro da Magia (ou como sempre o
chamava mentalmente, o Outro ministro), o Primeiro-Ministro não podia deixar de temer que a
próxima vez que ele aparecesse as notícias seriam bem mais preocupantes. A visão de Fudge
emergindo novamente da lareira, desalinhado, apreensivo e muito surpreso que o Primeiro-
Ministro não soubesse exatamente por que viera, era o pior acontecimento de uma semana
extremamente frustrante.
— Como iria saber o que está acontecendo na comunidade... eh... bruxa? — retorquiu o
Primeiro-Ministro. — Tenho um país para governar e preocupações suficientes neste momento
sem...
— Temos as mesmas preocupações — interrompeu-o Fudge. — A ponte de Brockdale não
ruiu por desgaste natural. Aquilo não foi realmente um furacão. Os homicídios não foram obra de
trouxas. E a família de Herberto Chorley estaria mais segura sem ele. Neste momento, estamos
providenciando sua remoção para o Hospital St. Mungus para Doenças e Acidentes Mágicos.
Será removido hoje à noite.
— Que é que o senhor... receio... quê? — engrolou o Primeiro-Ministro.
Fudge inspirou profundamente e disse:
— Primeiro-Ministro, sinto muito ter de lhe informar que ele voltou. Aquele-Que-Não-
Deve-Ser-Nomeado voltou.
— Voltou? Quando o senhor diz "voltou"... significa que está vivo? Quero dizer...
O Primeiro-Ministro vasculhou a memória procurando detalhes da terrível conversa que
tinham tido três anos antes, quando Fudge lhe falara do bruxo a quem todos mais temiam, o bruxo
que cometera centenas de crimes pavorosos antes de desaparecer misteriosamente há quinze anos.
— Exatamente, vivo. Isto é... não sei... será que está vivo um homem que não pode ser
morto? Não compreendo muito bem, e Dumbledore não quer me explicar direito... mas, enfim,
sem dúvida ele tem um corpo e está andando e falando e matando, então suponho, para os efeitos
desta conversa, que, sim, está vivo.
O Primeiro-Ministro não sabia o que dizer, mas o hábito arraigado de querer parecer bem
informado qualquer que fosse o assunto que alguém abordasse o fez rebuscar na memória
detalhes das conversas que tinham tido anteriormente.
— O Sério Black está com... eh... Aquele-Que-Não-Deve-Ser-No-meado?
— Black? Black? — repetiu Fudge, desatento, girando velozmente o chapéu-coco nos
dedos.
— O senhor quer dizer o Sirius Black? Pelas barbas de Merlim, não. Black morreu. Afinal,
estávamos... eh... enganados a respeito de Black. Era inocente. E tampouco estava mancomunado
com Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado. Quero dizer — acrescentou, em sua defesa, girando o
chapéu ainda mais rápido —, todas as pistas apontavam para ele, tínhamos mais de cinqüenta
testemunhas oculares, mas, de qualquer forma, como disse, ele morreu. Aliás, foi assassinado.
Dentro do Ministério da Magia. Mandei instaurar um inquérito...
Para sua grande surpresa, ao ouvir isto, o Primeiro-Ministro sentiu momentânea compaixão
por Fudge. Mas o sentimento foi logo ofuscado por um lampejo de presunção ao lembrar que, por
maior que fosse sua incapacidade de se materializar em lareiras, nunca tinha havido nenhum
homicídio em nenhum dos departamentos do governo sob sua responsabilidade... pelo menos até
agora...
Enquanto o Primeiro-Ministro disfarçadamente batia três vezes na madeira de sua
escrivaninha, Fudge continuou:
— Mas Black agora é passado. A questão é que estamos em guerra, Primeiro-Ministro, e é
preciso tomar algumas medidas.
— Em guerra? — repetiu o Primeiro-Ministro, nervoso. — Sem dúvida, o senhor está
exagerando um pouco, não?
— Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado agora recebeu reforços dos seus seguidores que
fugiram de Azkaban em janeiro — informou Fudge, falando cada vez mais rápido e girando o
chapéu com tal fúria que em seu lugar só se via um borrão verde-limão. — Desde que saíram da
clandestinidade, eles estão provocando o caos. A ponte de Brockdale: foi ele, Primeiro-Ministro,
ameaçou fazer um massacre de trouxas se eu não lhe entregasse o meu cargo e...
— Céus, então a morte daquelas pessoas é culpa sua, e sou eu que estou tendo de responder
por treliças enferrujadas e juntas de expansão corroídas, e sabe-se lá o que mais! — exclamou o
Primeiro-Ministro, furioso.
— Minha culpa! — exclamou Fudge corando. — O senhor está me dizendo que teria cedido
a uma chantagem dessas?
— Talvez não — respondeu o Primeiro-Ministro, levantando-se e caminhando pela sala —,
mas eu teria envidado todos os esforços para prender o chantagista antes que ele cometesse uma
atrocidade igual!
— O senhor realmente acha que eu não me esforcei? — perguntou Fudge encolerizado. —
Todos os aurores do Ministério estavam, e estão, tentando encontrar Você-Sabe-Quem e capturar
seus seguidores, mas acontece que estamos falando de um dos bruxos mais poderosos de todos os
tempos, um bruxo que nos escapa há quase trinta anos!
— Então suponho que o senhor vá me dizer que ele também provocou o furacão no oeste do
país? — perguntou o Primeiro-Ministro, sentindo sua irritação crescer a cada passo que dava.
Enfurecia-o descobrir a razão de todos esses terríveis acidentes e não poder revelar nada
publicamente; isto era quase pior do que levar a culpa de tudo.
—Aquilo não foi um furacão — confirmou Fudge, infeliz.
— Faça-me o favor! — vociferou o Primeiro-Ministro, agora decididamente pisando forte
pela sala. — Arvores arrancadas, telhados destruídos, postes vergados, ferimentos pavorosos...
— Foram os Comensais da Morte — disse Fudge. — Os seguidores d'Aquele-Que-Não-
Deve-Ser-Nomeado. E suspeitamos da participação dos gigantes.
O Primeiro-Ministro estacou como se tivesse batido em um muro invisível.
— Participação do quê? Fudge fez uma careta.
— Ele usou os gigantes da última vez, queria causar uma grande impressão. A Seção de Contrainformação
tem trabalhado vinte e quatro horas por dia, equipes de obliviadores estão em campo
tentando alterar a memória de todos os trouxas que viram o que realmente aconteceu, a maior
parte do Departamento para Regulamentação e Controle das Criaturas Mágicas está percorrendo
Somerset, mas não conseguimos encontrar gigantes, tem sido um fracasso.
— Não me diga! — exclamou o Primeiro-Ministro furioso.
— Não negarei que o moral está muito baixo no Ministério. Com tudo isso acontecendo, e
ainda por cima perdemos Amélia Bonés.
— Perderam quem?
— Amélia Bonés. A chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia. Achamos que
Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado pode ter sido o assassino, porque era uma bruxa muito
talentosa e... e tudo indica que resistiu o máximo.
Fudge pigarreou e, aparentemente com esforço, parou de girar o chapéu-coco.
— Mas este homicídio saiu nos jornais — disse o Primeiro-Ministro, momentaneamente
distraído de sua raiva. — Nossos jornais. Amélia Bonés... disseram apenas que era uma mulher
de meia-idade que morava sozinha. Foi um... um homicídio bárbaro, não? Muito divulgado. A
polícia está tonta, sabe.
Fudge suspirou.
— Claro que está. Ela foi encontrada morta em um aposento trancado por dentro, não foi?
Mas nós sabemos exatamente quem foi, não que isso adiante muito para sua captura. E teve
também o da Emelina Vance, talvez o senhor não tenha ouvido falar deste...
— Ouvi, sim! — respondeu o Primeiro-Ministro. — Aliás, aconteceu aqui perto. Os jornais
deitaram e rolaram: Nem no quintal do primeiro-ministro vigoram a lei e a ordem...
— E, como se tudo isso não bastasse — continuou Fudge, mal ouvindo o que dizia o
Primeiro-Ministro —, os dementadores estão por toda parte, atacando as pessoas a torto e a
direito...
Em um passado mais feliz, a frase teria sido ininteligível ao Primeiro-Ministro, mas, agora,
estava mais bem informado.
— Pensei que os dementadores guardassem prisioneiros em Azkaban — arriscou cauteloso.
— Guardavam — confirmou Fudge, cansado. — Não mais. Desertaram e se juntaram a
Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado. Não vou fingir que não foi um sério revés.
— Mas — contrapôs o Primeiro-Ministro, com uma crescente sensação de horror — o
senhor não me contou que eles são criaturas que roubam a esperança e a felicidade das pessoas?
— Certo. E estão se reproduzindo. E isto que está provocando a névoa.
O Primeiro-Ministro, sentindo os joelhos amolecerem, largou-se na cadeira mais próxima. A
idéia de criaturas invisíveis voando pelas cidades e os campos, espalhando o desespero e a
desolação entre seus eleitores, fez com que se sentisse muito fraco.
— Escute aqui, Fudge: você tem de tomar uma providência! É sua responsabilidade como
ministro da Magia!
— Meu caro Primeiro-Ministro, o senhor não pode realmente pensar que ainda sou ministro
da Magia depois de tudo que aconteceu! Fui exonerado há três dias. Toda a comunidade bruxa
vinha exigindo a minha renúncia nas últimas duas semanas. Nunca a vi tão unida durante todo o
meu mandato! — disse Fudge, fazendo uma corajosa tentativa de sorrir.
O Primeiro-Ministro ficou mudo por uns instantes. Apesar de sua revolta pela posição em
que fora colocado, ainda simpatizava com o homem envelhecido que estava à sua frente.
— Lamento muito — disse por fim. — Tem alguma coisa que eu possa fazer?
— É muita gentileza sua, Primeiro-Ministro, mas não há. Fui mandado aqui hoje à noite
para colocá-lo a par dos acontecimentos recentes e lhe apresentar o meu sucessor. Pensei até que
já estivesse aqui, mas naturalmente anda muito ocupado no momento com tantos problemas.
Fudge se virou para o retrato do homenzinho feio, com sua longa peruca de cachos
prateados, e naquele momento cutucando o ouvido com a ponta de uma pena.
Ao encontrar o olhar de Fudge, o quadro falou:
— Ele não tardará a chegar, está só terminando uma carta para Dumbledore.
— Desejo-lhe boa sorte — disse Fudge, pela primeira vez em tom amargurado. — Tenho
escrito a Dumbledore duas vezes por dia nos últimos quinze dias, mas ele não quer se mexer. Se
ao menos quisesse persuadir o garoto, eu talvez ainda fosse... bem, talvez Scrimgeour tenha mais
sucesso. — Fudge deixou-se cair em um silêncio visivelmente ofendido, que foi quebrado quase
em seguida pela voz seca e formal do retrato.
— Ao Primeiro-Ministro dos trouxas. Solicito uma entrevista. Urgente. Favor responder
imediatamente. Rufo Scrimgeour, ministro da Magia.
— Sim, sim, ótimo — respondeu o Primeiro-Ministro, desatento, e, mal piscou, as chamas
na lareira tornaram a se esverdear e cresceram, revelando um segundo bruxo aos rodopios e
projetando-o instantes depois no tapete antigo. Fudge se ergueu e, após breve hesitação, o
Primeiro-Ministro acompanhou-o, observando o recém-chegado se endireitar, sacudir a poeira de
suas longas vestes negras e olhar ao redor.
O primeiro pensamento do Primeiro-Ministro, uma tolice, foi que Rufo Scrimgeour parecia
um leão velho. Havia fios grisalhos em sua juba alourada e nas sobrancelhas espessas; tinha olhos
amarelados e argutos por trás de óculos de arame e uma certa graça em sua magreza, embora
mancasse um pouco ao andar. Transmitiu uma imediata impressão de sagacidade e firmeza; o
Primeiro-Ministro julgou compreender por que a comunidade bruxa preferia a liderança de
Scrimgeour nestes tempos perigosos.
— Como está? — cumprimentou o Primeiro-Ministro, educadamente, estendendo a mão.
Scrimgeour apertou-a brevemente, os olhos esquadrinhando o aposento, e em seguida puxou
a varinha de dentro das vestes.
— Fudge contou-lhe tudo? — perguntou, indo até a porta e tocando-a com a varinha. O
Primeiro-Ministro ouviu a fechadura trancar.
— Eh... sim — respondeu o Primeiro-Ministro. — Mas, se o senhor não se importar, eu
preferia que a porta continuasse destrancada.
— E eu preferia não ser interrompido — retorquiu secamente Scrimgeour — nem observado
— acrescentou, apontando a varinha para as janelas e fechando as cortinas. — Muito bem. Sou
um homem ocupado, então vamos direto ao nosso assunto. Em primeiro lugar, precisamos
discutir a sua segurança.
O Primeiro-Ministro empertigou-se todo e respondeu:
— Estou perfeitamente satisfeito com a segurança que tenho, muito obr...
— Mas nós não estamos — interrompeu-o Scrimgeour. — Será uma péssima perspectiva
para os trouxas se o seu Primeiro-Ministro for dominado por uma Maldição Imperius. O novo
secretário em sua ante-sala...
— Não vou despedir Kingsley Shacklebolt, se é o que está sugerindo! — disse o Primeiro-
Ministro indignado. — Ele é muitíssimo eficiente, trabalha duas vezes mais que os outros...
— Porque é um bruxo — disse Scrimgeour, sem sequer sorrir. — Um auror de grande
experiência que destacamos para protegê-lo.
— Espere aí! — exclamou o Primeiro-Ministro. — O senhor não pode simplesmente
colocar gente sua no meu gabinete. Eu decido quem trabalha para mim...
— Pensei que o senhor estivesse satisfeito com Shacklebolt — contrapôs Scrimgeour
friamente.
— Estou... quero dizer, estava...
— Então, não há problema, há?
— Eu... bem, enquanto o trabalho de Shacklebolt continuar... eh... excelente — disse o
Primeiro-Ministro sem argumento, mas o bruxo mal pareceu ouvi-lo.
— Agora, quanto a Herberto Chorley, seu ministro de segundo escalão. Esse que tem
divertido o público imitando um pato.
— Que tem ele? — perguntou o Primeiro-Ministro.
— É claro que está reagindo a uma Maldição Imperius mal executada — afirmou
Scrimgeour. — Baralhou o seu cérebro, mas ele ainda oferece perigo.
— Ele só faz grasnar! — disse o Primeiro-Ministro, sem convicção. — Com certeza uns
dias de descanso... talvez menos bebida...
— Uma equipe do Hospital St. Mungus para Doenças e Acidentes Mágicos está
examinando-o neste exato momento. E ele já tentou estrangular três bruxos. Acho melhor retirálo
da sociedade dos trouxas por uns tempos.
— Eu... bem... ele vai ficar bom, não vai? — perguntou o Primeiro-Ministro ansioso.
Scrimgeour simplesmente encolheu os ombros, já recuando em direção à lareira.
— Bem, era realmente o que eu tinha a dizer. Manterei o senhor informado dos
desdobramentos, Primeiro-Ministro... ou, caso eu esteja demasiado ocupado para vir, mandarei o
Fudge. Ele concordou em continuar trabalhando como meu assessor.
Fudge tentou sorrir, mas não conseguiu; sua expressão era a de alguém com dor de dente.
Scrimgeour começou a procurar no bolso o misterioso pó que esverdeava as chamas. O Primeiro-
Ministro observou desalentado os dois bruxos por um momento, então as palavras que lutara para
reprimir a noite toda finalmente saíram de sua boca.
— Mas pelo amor de Deus... vocês são bruxos! Podem fazer bruxarias! Com certeza são
capazes de resolver... bem... qualquer coisa!
Scrimgeour girou nos calcanhares lentamente e trocou um olhar incrédulo com Fudge, que
desta vez conseguiu sorrir ao dizer com bondade:
— O problema é que o outro lado também sabe fazer bruxarias, Primeiro-Ministro.
E, dizendo isso, os dois entraram, um após outro, nas chamas muito verdes e desapareceram.
CAPÍTULO DOIS
A RUA DA FIAÇÃO
A MUITOS QUILÔMETROS DE DISTÂNCIA, a névoa gelada que comprimia as vidraças do
Primeiro-Ministro flutuava sobre um rio sujo que serpeava entre barrancos cobertos de mato e
lixo. Uma enorme chaminé, relíquia de uma fábrica fechada, erguia-se sombria e agourenta. O
silêncio total era quebrado apenas pelo rumorejo da água escura, e não havia vestígio de vida
exceto por uma raposa esquelética que descera até o barranco na esperança de farejar um saco de
peixe com fritas descartado no capim alto.
Então, com um leve estalo, uma figura magra e encapuzada se materializou na margem do
rio. A raposa congelou, fixando os olhos assustados no estranho fenômeno. A figura pareceu se
orientar por alguns instantes, então saiu andando com passos leves e ligeiros, sua longa capa
farfalhando no capim.
Com um segundo estalo mais forte, outra figura encapuzada materializou-se.
— Espere!
O grito rouco alarmou a raposa, agora quase achatada no mato. Saltou do seu esconderijo e
subiu o barranco. Houve um lampejo verde, um ganido, e o animal caiu ao chão, morto.
A segunda figura virou o corpo do animal com a ponta do pé.
— É só uma raposa — disse sumariamente uma voz feminina por baixo do capuz. — Pensei
que fosse um auror... Ciça, espere!
Mas a outra, que parará para olhar para trás ao perceber o lampejo, já estava subindo pelo
barranco em que a raposa acabara de tombar.
— Ciça... Narcisa... escute...
A segunda mulher alcançou a primeira e agarrou-a pelo braço, mas esta se desvencilhou.
— Volte, Bela!
— Você precisa me escutar!
— Já escutei. Já me decidi. Me deixe em paz!
A mulher chamada Narcisa chegou ao alto do barranco, onde um gradil velho separava o rio
de uma rua estreita calçada com pedras. A outra, Bela, continuou seguindo-a. Lado a lado, elas
pararam, examinando na escuridão as fileiras de casas de tijolos aparentes, em ruínas, as janelas
opacas e sem luz.
— Ele mora aqui? — perguntou Bela com desprezo na voz. — Aqui? Neste monturo dos
trouxas? Devemos ser os primeiros da nossa raça a pisar...
Mas Narcisa não estava escutando; passara por uma abertura no gradil enferrujado e já
atravessava a rua, apressada.
— Ciça, espere!
Bela acompanhou-a, sua capa enfunando às costas, e viu Narcisa embarafustar por um beco
em meio ao casario e sair em outra rua quase idêntica. Alguns dos lampiões estavam quebrados, e
as duas mulheres percorriam alternadamente trechos de luz e sombra profunda. Bela alcançou
Narcisa quando virava mais uma esquina, conseguindo desta vez segurá-la e vira-la de modo a
ficarem frente a frente.
— Ciça, você não deve fazer isso, não pode confiar nele...
— O Lorde das Trevas confia nele, não é?
— O Lorde das Trevas está... acho... enganado — ofegou Bela, e seus olhos brilharam
momentaneamente sob o capuz quando correu um olhar a toda volta para verificar se estavam de
fato sozinhas. — Seja como for, recebemos ordens para não discutir o plano com ninguém. Isto é
uma traição à diretriz...
— Me largue, Bela! — bradou Narcisa, puxando uma varinha de dentro da capa e
apontando-a ameaçadoramente para o rosto da outra. Bela apenas sorriu.
— Ciça, sua própria irmã? Você não faria...
— Não há mais nada que eu não faça! — sussurrou Narcisa, com uma nota de histeria na
voz, e, quando baixou a varinha como se fosse uma faca, houve mais um lampejo. Bela soltou o
braço da irmã como se houvesse recebido uma queimadura.
— Narcisa!
Narcisa, contudo, prosseguira seu caminho, apressada. Esfregando a mão, a irmã perseguiua,
mantendo distância enquanto se aprofundavam no labirinto deserto de casas de tijolos
aparentes. Por fim, Narcisa precipitou-se pela rua da Fiação, sobre a qual pairava a alta chaminé
fabril como um gigantesco dedo em riste. Seus passos ecoaram nas pedras do calçamento ao
passar por janelas partidas e fechadas com tábuas, até chegar à última casa, onde uma luz fraca se
filtrava pelas cortinas de um aposento térreo.
Ela batera na porta antes que Bela, xingando baixinho, a alcançasse. Juntas, esperaram
ligeiramente ofegantes, respirando o mau cheiro do rio sujo que a brisa noturna trazia às suas
narinas. Passados alguns segundos, ouviram um movimento do lado de dentro da porta que se
entreabriu. Viram um homem mirrado espiando-as, um homem com longos cabelos pretos
repartidos ao meio que formavam cortinas emoldurando-lhe o rosto emaciado e os olhos pretos.
Narcisa baixou o capuz. Era tão pálida que parecia refulgir na escuridão; a cabeleira loura
descia pelas costas, dando-lhe a aparência de uma mulher afogada.
— Narcisa! — exclamou o homem, abrindo um pouco mais a porta, de modo que a luz
incidisse sobre ela e a irmã. — Que surpresa agradável!
— Severo — ela sussurrou tensa. — Posso falar com você? É urgente.
— Mas é claro.
Ele recuou para deixá-la entrar. A irmã, ainda encapuzada, acompanhou-a mesmo sem
convite.
— Snape — cumprimentou secamente ao passar.
— Belatriz — respondeu ele, os lábios finos encrespando-se em um sorriso ligeiramente
zombeteiro, ao fechar a porta, depois que as mulheres passaram.
Tinham entrado diretamente em uma pequena sala de visitas, que dava a impressão de uma
cela acolchoada e escura. As paredes eram inteiramente cobertas de livros, a maioria encadernada
em couro preto ou castanho; um sofá puído, uma poltrona velha e uma mesa bamba estavam
agrupados no círculo de luz projetado por um candeeiro preso no teto. O lugar tinha um ar de
abandono, como se não fosse normalmente habitado.
Snape indicou o sofá a Narcisa. Ela despiu a capa, atirou-a para um lado e se sentou,
olhando para as mãos brancas e trêmulas que cruzara ao colo. Belatriz baixou o capuz mais
lentamente. Tão morena quanto a irmã era clara, as pálpebras pesadas e o maxilar pronunciado,
ela não desviou os olhos de Snape quando foi se postar atrás de Narcisa.
— Então, em que posso lhe ser útil? — perguntou Snape, acomodando-se na poltrona
defronte às duas irmãs.
— Nós... nós estamos sozinhos? — perguntou Narcisa em voz baixa.
— Claro que sim. Bem, Rabicho está aqui, mas não estamos contando os vermes, não é
mesmo?
Ele apontou a varinha para a parede revestida de livros às suas costas e, com um estampido, uma
porta oculta se escancarou, revelando uma escada estreita onde estava parado um homem
pequeno.
— Como você já percebeu claramente, Rabicho, temos visitas — disse Snape sem pressa.
O homem desceu encurvado os últimos degraus e entrou na sala. Tinha olhos miúdos e
lacrimosos, um nariz arrebitado e um sorrisinho incômodo. Sua mão esquerda acariciava a direita,
que parecia estar calçada com uma reluzente luva prateada.
— Narcisa! — cumprimentou com uma vozinha aguda. — E Belatriz! Que prazer...
— Rabicho vai nos servir uma bebida, se aceitarem — disse Snape. — Depois voltará para
o quarto.
Rabicho fez uma careta, como se Snape tivesse atirado alguma coisa nele.
— Não sou seu empregado! — guinchou, evitando olhar para o outro.
— Sério? Tive a impressão de que o Lorde das Trevas colocou-o aqui para me ajudar.
— Ajudar, sim, mas não preparar bebidas nem limpar sua casa!
— Eu não fazia idéia, Rabicho, que você sonhasse com tarefas mais arriscadas — respondeu
Snape melosamente. — Podemos providenciar isso sem demora: falarei com o Lorde das
Trevas...
— Posso falar com ele eu mesmo, se quiser!
— Claro que pode — debochou Snape. — Mas enquanto não faz isso, traga as bebidas.
Bastará um pouco de vinho dos elfos.
Rabicho hesitou um momento, como se fosse protestar, mas, então, virou-se e entrou por
outra porta oculta. Ouviram-se algumas batidas e o tilintar de copos. Segundos depois ele
retornava, trazendo em uma bandeja uma garrafa empoeirada e três copos. Depositou-os na mesa
bamba e se retirou depressa, batendo a porta recoberta de livros ao passar.
Snape serviu o vinho vermelho-sangue nos três copos e entregou dois às irmãs. Narcisa
murmurou um agradecimento e Belatriz nada disse, mas continuou a encarar Snape malhumorada.
Isto não pareceu perturbá-lo; muito ao contrário, dava a impressão de diverti-lo.
— Ao Lorde das Trevas — brindou ele, erguendo o copo e esvaziando-o de um gole.
As irmãs o imitaram. Snape tornou a encher os copos. Quando Narcisa recebeu o dela, falou
ansiosa:
— Severo, me desculpe vir aqui dessa maneira, mas precisava ver você. Acho que é o único
que pode me ajudar...
Snape ergueu a mão para interrompê-la, então tornou a apontar a varinha para a porta oculta
que abria para a escada. Ouviu-se um estampido forte e um guincho, seguido do ruído dos passos
apressados de Rabicho subindo a escada.
— Peço desculpas — disse Snape. — Ultimamente ele deu para ficar escutando às portas.
Não sei o que pretende... mas o que era que você ia dizendo, Narcisa?
— Severo, sei que não devia estar aqui, recebi ordens para não comentar nada com
ninguém, mas...
— Então deveria segurar sua língua! — vociferou Belatriz. — Principalmente diante de
quem estamos!
— De quem estamos? — repetiu Snape em tom de zombaria. — E que devo entender por
essa ressalva, Belatriz?
— Que eu não confio em você, Snape, e você sabe muito bem disso!
Narcisa deixou escapar um som que poderia ser um soluço seco e cobriu o rosto com as
mãos. Snape descansou seu copo na mesa e tornou a se acomodar, as mãos nos braços da
poltrona, sorrindo para o rosto zangado de Belatriz.
— Narcisa, acho que devíamos escutar o que Belatriz está doida para dizer; assim
pouparemos monótonas interrupções. Bem, continue, Belatriz — incentivou Snape. — Por que
não confia em mim?
— Por centenas de razões! — respondeu a mulher em voz alta, saindo de trás do sofá e
batendo o copo na mesa. — Por onde devo começar? Onde é que você estava quando o Lorde das
Trevas caiu? Por que não fez o menor esforço para encontrá-lo quando desapareceu? Que esteve
fazendo todos esses anos em que viveu no bolso de Dumbledore? Por que impediu o Lorde das
Trevas de obter a Pedra
Filosofal? Por que não voltou imediatamente quando ele ressuscitou? Onde estava há umas
semanas, quando travamos uma batalha para recuperar a profecia para o Lorde das Trevas? E,
Snape, por que Harry Potter continua vivo, quando você o tem nas mãos há cinco anos?
A mulher fez uma pausa, o rosto muito vermelho, o peito arfando em movimentos rápidos.
Atrás dela, Narcisa sentava-se imóvel, o rosto ainda escondido nas mãos.
Snape sorriu.
— Antes de lhe responder... ah, sim, vou lhe responder, Belatriz! E você pode repetir
minhas palavras para os outros que cochicham às minhas costas e levam ao Lorde das Trevas
histórias mentirosas sobre a minha traição! Mas, antes de responder, me permita uma pergunta.
Você realmente acredita que o Lorde das Trevas já não me fez cada uma dessas perguntas? E
realmente acredita que, se eu não as tivesse respondido satisfatoriamente, estaria aqui falando
com você?
A mulher hesitou.
— Eu sei que ele acredita em você, mas...
— Você acha que ele está enganado? Ou que consegui cegá-lo de alguma maneira? Que
iludi o Lorde das Trevas, o maior bruxo do mundo, o Legilimens mais talentoso que o mundo já
viu?
Belatriz não respondeu, mas pareceu, pela primeira vez, um pouco desconcertada. Snape
não insistiu. Tornou a apanhar sua bebida, tomou um golinho e continuou:
— Você me pergunta onde eu estava quando o Lorde das Trevas caiu. Eu estava onde ele
tinha me mandado ficar, na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, porque queria que eu
espionasse Alvo Dumbledore. Sabe, eu suponho que tenha sido por ordem do Lorde das Trevas
que eu assumi esse posto, não?
Belatriz fez um aceno quase imperceptível com a cabeça e abriu a boca para falar, mas
Snape antecipou-se.
— Você pergunta por que não tentei encontrá-lo quando ele desapareceu. Pela mesma razão
que Avery, Yaxley, os Carrow, Greyback, Lúcio — ele indicou Narcisa com um curto aceno de
cabeça — e muitos outros não tentaram encontrá-lo. Acreditamos que tivesse sido liquidado. Não
me orgulho disso, errei, mas veja como são as coisas... se ele não tivesse perdoado aos que
perderam a fé nele, teriam lhe restado muito poucos seguidores.
— Ele teria a mim! — exclamou Belatriz apaixonadamente. — Eu, que passei tantos anos
em Azkaban por causa dele!
— De fato, é admirável — disse Snape entediado. — Naturalmente você não teve muita
utilidade para ele na prisão, mas foi sem dúvida um belo gesto...
— Gesto! — guinchou ela, que parecia enlouquecida de fúria. — Enquanto eu suportava os
dementadores, você continuava em Hogwarts confortavelmente, brincando de bichinho de
estimação de Dumbledore.
— Não foi bem assim — retorquiu Snape calmamente. — Ele não quis me dar o cargo de
professor de Defesa contra as Artes das Trevas, sabe. Deve ter pensado que isso pudesse provocar
em mim uma, ah, recaída... me seduzisse a retomar minhas crenças anteriores.
— Foi esse o seu sacrifício pelo Lorde das Trevas, ser privado de ensinar a sua disciplina
favorita? — zombou Belatriz. — E por que você permaneceu em Hogwarts todo esse tempo?
Continuou espionando Dumbledore para um senhor que você acreditava morto?
— É pouco provável, mas o Lorde das Trevas se mostrou satisfeito que eu nunca tenha
desertado o meu posto: acumulei dezesseis anos de informação sobre Dumbledore para lhe passar
quando voltou, um presente de boas-vindas bem mais útil do que as infindáveis lembranças sobre
Azkaban e tudo que tinha de desagradável...
— Mas você ficou...
— Sim, Belatriz, fiquei — confirmou Snape, pela primeira vez traindo um quê de
impaciência. — Recebi uma tarefa confortável que achei preferível a uma temporada em
Azkaban. Estavam capturando os Comensais da Morte, sabe. A proteção de Dumbledore me
manteve fora da prisão, foi muito conveniente e me aproveitei disso. Repito: o Lorde das Trevas
não reclama de eu ter ficado, portanto não vejo por que você há de se queixar.
"E acho que você também queria saber", continuou ele, alteando a voz porque Belatriz fazia
menção de interrompê-lo, "por que me interpus ao Lorde das Trevas e à Pedra Filosofal. É fácil
responder. Ele não sabia se podia confiar em mim. Achou, como você, que de fiel Comensal da
Morte eu me transformara em espião de Dumbledore. Ele estava em condição deplorável, muito
fraco, compartilhava o corpo de um bruxo medíocre. Não ousou se mostrar a um antigo aliado,
temendo que esse aliado pudesse entregá-lo a Dumbledore ou ao Ministério. Lamento
profundamente que não confiasse em mim. Ele teria recuperado o poder três anos antes. Do jeito
que foi, vi apenas o ambicioso e indigno Quirrell tentando roubar a Pedra e, admito, fiz tudo que
pude para impedir."
Belatriz entortou a boca como se tivesse tomado um remédio de gosto ruim.
— Mas você não foi ao encontro dele quando ele voltou, não se reuniu a ele imediatamente
quando sentiu a Marca Negra arder...
— Verdade. Fui duas horas depois. E por ordem de Dumbledore.
— Por ordem de Dum...? — começou ela em tom indignado.
— Pense! — disse Snape, impacientando-se de novo. — Pense! Esperando duas horas,
apenas duas horas, garanti minha permanência em Hogwarts como espião! Deixando Dumbledore
pensar que eu só estava retornando para o lado do Lorde das Trevas por ordem dele, pude passar
informações sobre Dumbledore e a Ordem da Fênix desde então! Reflita Belatriz: a Marca Negra
foi se acentuando durante meses, eu sabia que a volta do Lorde era iminente, todos os Comensais
da Morte sabiam disso! Tive muito tempo para pensar no que queria fazer, planejar o meu lance
seguinte, me safar como fez Karkaroff, não?
"Posso lhe garantir que o desagrado inicial do Lorde das Trevas com o meu atraso
desapareceu completamente, quando lhe expliquei que eu ainda era fiel, e Dumbledore continuou
achando que eu era o seu homem de confiança. O Lorde das Trevas de fato pensou que eu o
tivesse abandonado para sempre, mas viu que estava errado."
— Mas no que é que você tem sido útil? — desdenhou Belatriz. — Que informações úteis
você tem nos passado?
— Minhas informações têm sido transmitidas diretamente ao Lorde das Trevas. Se ele
prefere não dividi-las com você...
— Ele divide tudo comigo! — disse Belatriz, inflamando-se. — Diz que sou a mais leal,
mais fiel...
— Diz? — perguntou Snape, a voz subindo levemente para insinuar sua descrença. — E
ainda divide, depois do fiasco no Ministério da Magia?
— Aquilo não foi minha culpa! — protestou Belatriz corando. — No passado, o Lorde das
Trevas me confiou seu mais precioso... se Lúcio não tivesse...
— Não se atreva... não se atreva a culpar meu marido! — disse Narcisa em tom baixo e
letal, erguendo os olhos para a irmã.
— Não vale a pena atribuir culpas — disse Snape com suavidade. — O que foi feito está
feito.
— Mas não por você! — bradou Belatriz furiosa. — Não, você esteve mais uma vez ausente
enquanto nós corríamos riscos, não é mesmo, Snape?
— Recebi ordens para permanecer na retaguarda. Quem sabe você discorda do Lorde das
Trevas, quem sabe você acha que Dumbledore não teria reparado se eu fosse me reunir aos
Comensais da Morte para combater a Ordem da Fênix? E... me desculpe... mas você fala de riscos...
você esteve enfrentando seis adolescentes, não?
—Aos quais foi se juntar, logo em seguida, e não finja que não sabe, metade da Ordem! —
rosnou Belatriz. — E, por falar nisso, você continua a insistir que não pode revelar onde é o
quartel-general da Ordem, não é mesmo?
— Não sou o fiel do segredo, não posso dizer o nome do lugar. Acho que você sabe como
funcionam os feitiços, não? O Lorde das Trevas está satisfeito com as informações que lhe passei
sobre a Ordem. Permitiram, como você talvez tenha imaginado, a captura recente de Emelina
Vance, e, sem sombra de dúvida, a eliminação de Sirius Black, embora eu dê a você todo o
crédito pela execução dele.
Snape inclinou a cabeça e fez um brinde à Belatriz. A expressão da mulher não se abrandou.
— Você está evitando a minha última pergunta, Snape. Harry Potter. Você poderia ter
matado o garoto em qualquer momento nos últimos cinco anos. Mas não matou. Por quê?
— Você já discutiu este assunto com o Lorde das Trevas?
— Ele... ultimamente... estou perguntando a você, Snape.
— Se eu tivesse matado Harry Potter, o Lorde das Trevas não poderia ter usado o sangue
dele para se regenerar e se tornar invencível...
— Você está afirmando que previu o uso que ele faria do garoto? — caçoou Belatriz.
— Não estou afirmando; eu não tinha a menor idéia dos planos dele; já confessei que
julgava o Lorde das Trevas morto. Estou meramente tentando explicar por que o Lorde das
Trevas não lamentou que Potter tenha sobrevivido, pelo menos até um ano atrás...
— Mas por que você o deixou vivo?
— Você ainda não me entendeu? Foi a proteção de Dumbledore que me manteve fora de
Azkaban. Você discorda que se eu tivesse matado seu aluno favorito ele teria se voltado contra
mim? Mas havia outras razões. Devo lembrar-lhe que quando Potter chegou a Hogwarts ainda
circulavam muitas histórias a respeito dele, boatos de que era um grande bruxo das trevas, e por
isso tinha sobrevivido ao ataque do Lorde das Trevas. De fato, muitos dos antigos seguidores do
Lorde das Trevas pensavam que talvez fosse uma bandeira em torno da qual poderíamos nos
reagrupar. Admito que fiquei curioso e nada inclinado a matá-lo quando desembarcou no castelo.
"É claro que rapidamente percebi que ele não possuía nenhum talento extraordinário.
Conseguiu sair de muitos apertos graças a uma simples combinação de pura sorte e a ajuda de
amigos mais talentosos. Ele é medíocre ao extremo, e detestável e presunçoso como foi o pai. Fiz
tudo para que fosse expulso de Hogwarts, onde acredito não ser o seu lugar, mas matá-lo ou
permitir que o matassem na minha frente? Eu teria sido idiota de me arriscar com o Dumbledore
por perto."
— E dizendo isso você quer nos fazer acreditar que Dumbledore nunca suspeitou de você?
Não faz a menor idéia de sua verdadeira lealdade; continua a confiar irrestritamente em você?
— Representei bem o meu papel — afirmou Snape. — E você está se esquecendo da maior
fraqueza de Dumbledore: acreditar no melhor das pessoas. Contei-lhe uma história de profundo
remorso quando entrei para o seu quadro docente, recém-saído dos meus dias de Comensal da
Morte, e ele me recebeu de braços abertos... embora, como disse, sem deixar que eu me
aproximasse das artes das trevas até onde pôde impedir. Dumbledore foi um grande bruxo, ah,
sim, foi (porque Belatriz deixara escapar um ruído sarcástico), e o próprio Lorde das Trevas
reconhece isso. Mas fico feliz de poder afirmar que está envelhecendo. O duelo com o Lorde das
Trevas no mês passado abalou-o. Deve ter sofrido um grave ferimento porque suas reações estão
mais lentas do que no passado. Mas, durante todos esses anos, ele nunca deixou de confiar em
Severo Snape e nisto reside o meu grande valor para o Lorde das Trevas.
Belatriz continuava insatisfeita, embora insegura quanto à melhor maneira de continuar
atacando Snape. Aproveitando-se do seu silêncio, o bruxo se dirigiu à irmã.
— Agora... você veio me pedir ajuda, Narcisa?
A bruxa ergueu os olhos para ele, seu rosto eloqüente de desespero.
— Vim, Severo. Acho... acho que você é o único que pode me ajudar. Não tenho mais
ninguém a quem recorrer. Lúcio está preso e...
Ela fechou os olhos e duas grandes lágrimas escorreram por baixo de suas pálpebras.
— O Lorde das Trevas me proibiu de falar nisso — continuou, com os olhos ainda
fechados. — Não quer que ninguém saiba do plano. É... muito secreto. Mas...
— Se ele proibiu, você não deve falar — disse Snape imediatamente. — A palavra do Lorde
das Trevas é lei.
Narcisa ofegou como se tivesse recebido um esguicho de água fria. Belatriz pareceu
satisfeita pela primeira vez desde que entrara na casa.
— Ouviu? — disse triunfante à irmã. — Até Snape diz isso: você recebeu ordem de não
falar, então fique calada!
Snape, porém, tinha se levantado e ido até a pequena janela. Espiou a rua deserta entre as
cortinas e tornou a fechá-las com um puxão. Virou-se, então, para encarar Narcisa muito sério.
— Por acaso, eu conheço o plano — disse em voz baixa. — Sou um dos poucos a quem o
Lorde das Trevas o contou. Mas, se eu não estivesse a par do segredo, Narcisa, você teria
cometido uma grande traição.
— Achei que você devia conhecer! — exclamou Narcisa, respirando mais aliviada. — Ele
confia tanto em você, Severo...
— Você conhece o plano? — admirou-se Belatriz, sua momentânea expressão de prazer
substituída pela mais pura indignação. — Você conhece?
— Com certeza — afirmou Snape. — Mas qual é a ajuda de que você precisa, Narcisa? Se
está imaginando que posso persuadir o Lorde das Trevas a mudar de idéia, receio que não haja a
menor esperança.
— Severo — sussurrou ela, as lágrimas deslizando pelo rosto pálido. — Meu filho... meu
único filho...
— Draco devia se orgulhar — disse Belatriz com indiferença. — O Lorde das Trevas está
lhe concedendo uma grande honra. E direi uma coisa em favor do seu filho: ele não está fugindo
ao dever, parece contente com a oportunidade de ser posto à prova, excitado com a perspectiva...
Narcisa começou a chorar com vontade, sem tirar os olhos suplicantes de Snape.
— E porque ele tem apenas dezesseis anos e não faz idéia do que o espera! Por que, Severo?
Por que o meu filho? É perigoso demais! É vingança pelo erro de Lúcio, eu sei que é!
Snape não respondeu. Desviou o olhar das lágrimas da mulher como se fossem indecentes,
mas não pôde fingir que não a ouvia.
— Foi por isso que ele escolheu o Draco, não foi? — insistiu. — Para punir Lúcio?
— Se Draco for bem-sucedido — respondeu Snape, ainda sem olhar para Narcisa —, será
mais prestigiado que todos os outros.
— Mas ele não será bem-sucedido! — soluçou Narcisa. — Como pode ser quando o próprio
Lorde das Trevas...?
Belatriz soltou uma exclamação; Narcisa pareceu perder a coragem.
— Só quis dizer... que ninguém teve êxito até agora... Severo... por favor... você é, e sempre
foi, o professor favorito de Draco... você é um velho amigo de Lúcio... eu lhe suplico... você é o
favorito do Lorde, o conselheiro em quem ele mais confia... quer falar com ele, persuadi-lo...?
— O Lorde das Trevas não se deixa persuadir, e não sou bastante tolo para tentar — disse
Snape sem emoção. — Não posso fingir que ele não esteja aborrecido com Lúcio. Seu marido
controlava a operação. Ele se deixou capturar juntamente com os demais e, ainda por cima, não
conseguiu recuperar a profecia. Com certeza o Lorde das Trevas está irritado, Narcisa, muito
irritado mesmo.
— Então tenho razão, ele escolheu Draco para se vingar! — disse Narcisa com a voz
sufocada. — Não quer que ele seja bem-sucedido, quer que ele morra tentando.
Não ouvindo resposta de Snape, Narcisa pareceu perder o pouco controle que lhe restava.
Levantando-se, cambaleou até Snape e agarrou-o pelas vestes. Com o rosto muito próximo ao
dele, as lágrimas caindo no peito do bruxo, ela exclamou:
— Você poderia fazer isso. Você em vez de Draco, Severo. Você teria sucesso, e ele o
recompensaria mais do que a qualquer um...
Snape segurou-a pelos pulsos e afastou as mãos que agarravam suas vestes. Baixando os
olhos para o rosto manchado de lágrimas, disse lentamente:
— Acho que a intenção dele é me mandar tentar depois. Mas decidiu que Draco deve tentar
primeiro. Sabe, no improvável acaso de Draco se sair bem, eu poderei permanecer em Hogwarts
por mais algum tempo, desempenhando o meu proveitoso papel de espião.
— Em outras palavras, não faz diferença para ele se Draco morrer!
— O Lorde das Trevas está muito irritado — repetiu Snape em voz baixa. — Não conseguiu
ouvir a profecia. Você sabe tão bem quanto eu que ele não perdoa facilmente.
Ela desmoronou aos pés dele, soluçando e gemendo.
— Meu único filho... meu único filho...
— Você devia se orgulhar! — exclamou Bela triz sem se apiedar. — Se eu tivesse filhos, eu
os daria para servir o Lorde das Trevas!
Narcisa soltou um grito de desespero e agarrou os próprios cabelos com força. Snape se
curvou, segurou a mulher pelos braços, levantou-a e sentou-a no sofá. Serviu mais um pouco de
vinho e empurrou o copo na mão dela.
— Narcisa, chega. Beba isso. E me escute.
Ela se acalmou um pouco; deixando cair vinho nas vestes, tomou um golinho, trêmula.
— Talvez seja possível... ajudar o Draco.
Ela se empertigou, o rosto branco como uma folha de papel, os olhos arregalados.
— Severo... ah, Severo... você o ajudaria? Você o protegeria, cuidaria para que não sofresse
nenhum mal?
— Posso tentar.
Ela largou o copo, que deslizou pelo tampo da mesa, ao mesmo tempo que, escorregando do
sofá e se ajoelhando aos pés de Snape, segurou suas mãos e levou-as aos lábios.
— Se você estiver lá para protegê-lo... Severo, você jura? Você fará o Voto Perpétuo?
— O Voto Perpétuo? — O rosto de Snape se tornou impassível, impenetrável. Belatriz,
porém, soltou uma gargalhada vitoriosa.
— Você ouviu bem, Narcisa? Ah, ele tentará, com certeza... as palavras vazias de sempre de
quem tira o corpo fora... ah, e por ordem do Lorde das Trevas, é claro!
Snape não olhou para Belatriz. Seus olhos negros estavam fixos nos olhos azuis marejados
de lágrimas de Narcisa, que ainda lhe apertava as mãos.
— Certamente, Narcisa, farei o Voto Perpétuo — disse baixinho. — Talvez, sua irmã aceite
ser a nossa Avalista.
O queixo de Belatriz caiu. Snape se ajoelhou à frente de Narcisa. Diante do olhar
assombrado de Belatriz, eles uniram as mãos direitas.
— Você vai precisar de sua varinha, Belatriz — disse Snape friamente. A bruxa, ainda
espantada, puxou a varinha.
— E vai precisar chegar um pouco mais perto — acrescentou ele. Belatriz se aproximou dos
dois, e colocou a ponta da varinha
sobre as mãos unidas. Narcisa falou:
— Você, Severo, cuidará do meu filho Draco quando ele estiver tentando realizar o desejo
do Lorde das Trevas?
— Cuidarei.
Uma fina língua de fogo-vivo saiu da varinha e envolveu as mãos como um arame em brasa.
— E fará todo o possível para protegê-lo do mal?
— Farei.
Uma segunda língua de fogo saiu da varinha e se entrelaçou com a primeira, formando uma
fina corrente luminosa.
— E se necessário for... se parecer que Draco falhará — sussurrou Narcisa (a mão de Snape
estremeceu, mas ele não a soltou) —, você terminará a tarefa que o Lorde das Trevas incumbiu
Draco de realizar?
Houve um momento de silêncio. Com a varinha sobre as mãos unidas dos dois, Belatriz
observava de olhos arregalados.
— Terminarei — jurou Snape.
O rosto estarrecido de Belatriz se avermelhou, refletindo o clarão da terceira língua de fogo
que saiu da varinha, enrolou-se nas outras e se fechou em torno das mãos, grossa como uma
corda, como uma serpente de fogo.
CAPÍTULO TRÊS
QUERER É PODER
HARRY POTTER RONCAVA SONORAMENTE. Estivera sentado em uma poltrona à janela do
seu quarto durante quase quatro horas, contemplando a rua que escurecia, e acabara adormecendo
com um lado do rosto encostado na vidraça fria, os óculos tortos e a boca aberta. O bafo que ele
exalava refulgia à claridade alaranjada do lampião da rua, e a luz artificial absorvia todo o
colorido do seu rosto, fazendo-o parecer fantasmagórico sob seus cabelos pretos e rebeldes.
O quarto estava juncado com seus pertences e uma boa quantidade de lixo. Penas de coruja,
miolos de maçãs e papéis de bala amontoavam-se pelo soalho, vários livros de feitiços estavam
embolados com. as vestes sobre sua cama, e havia uma confusão de jornais no círculo iluminado
sobre sua escrivaninha. A manchete de um deles indagava:
HARRY POTTER: SERÁ ELE O ELEITO?
Continua a boataria sobre acontecimentos recentes e misteriosos no Ministério da Magia,
durante os quais Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado foi mais uma vez avistado.
"Não podemos comentar, não me pergunte nada", disse um agitado obliviador que se
recusou a informar o seu nome quando saía ontem à noite do Ministério.
Ainda assim, fontes ministeriais confirmam que o foco do distúrbio foi a famosa Sala da
Profecia.
Embora os porta-vozes oficiais continuem a se recusar sequer a confirmar a existência de tal
sala, um número cada vez maior de pessoas na comunidade bruxa acredita que os Comensais da
Morte, ora cumprindo pena em Azkaban por invasão e tentativa de roubo, tentaram se apoderar
da profecia, cujo teor é desconhecido. Especula-se abertamente, no entanto, que deve dizer
respeito a Harry Potter, a única pessoa que sabidamente sobreviveu a Maldição da Morte, e dizem
ter estado no Ministério na noite em questão. Há quem se aventure a chamar Potter de "o Eleito",
acreditando que a profecia o nomeie como o único que poderá nos livrar de Aquele-Que-Não-
Deve-Ser-Nomeado.
Não se conhece o atual paradeiro da profecia, se é que de fato existe, embora (cont. p. 2,
coluna 5)
Havia um segundo jornal ao lado do primeiro. A manchete era:
SCRIMGEOUR SUBSTITUI FUDGE
A maior parte da primeira página estava tomada por uma grande foto em preto e branco de
um homem com uma juba leonina e um rosto maltratado. A foto era comovente — ele estava
acenando para o teto.
Rufo Scrimgeour, ex-chefe da Seção de Aurores, no Departamento de Execução das Leis da
Magia, substitui Cornélio Fudge no Ministério da Magia. A nomeação foi recebida com
entusiasmo pela maioria na comunidade bruxa, embora corram boatos de um sério
desentendimento entre o novo ministro e Alvo Dumbledore — reconduzido ao cargo de bruxopresidente
da Suprema Corte dos Bruxos — ocorrido algumas horas depois de Scrimgeour ter
assumido o Ministério.
Os representantes de Scrimgeour admitem que o ministro se encontrou com Dumbledore logo
depois de sua posse no mais alto cargo da comunidade, mas recusaram-se a comentar a pauta da
reunião. Sabe-se que Alvo Dumbledore (cont. p. 3, coluna 2)
Mais à esquerda deste jornal, havia outro, dobrado de modo a deixar visível o título da
notícia:
MINISTRO GARANTE A SEGURANÇA DOS ESTUDANTES.
O recém-nomeado ministro da Magia, Rufo Scrimgeour, falou hoje sobre as rigorosas
medidas tomadas pelo seu Ministério para garantir a segurança dos estudantes que retornam
agora, no outono, à Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.
"Por razões óbvias, o Ministério não poderá entrar em detalhes sobre seu rigoroso projeto de
segurança", disse o ministro, embora um funcionário bem informado confirme que as medidas
incluem feitiços e encantamentos defensivos, um complexo conjunto de contrafeitiços e uma
pequena força-tarefa de aurores, dedicados unicamente à proteção da Escola de Hogwarts.
A maioria dos cidadãos parece tranqüilizada pela firme atitude do ministro com relação à
segurança estudantil. Comentou a Sra. Augusta Longbottom: "Meu neto Neville, por sinal um
grande amigo de Harry Potter, que lutou ao lado dele em junho no Ministério contra os
Comensais da Morte e..."
Mas o resto desta história ficou sombreada por uma enorme gaiola deixada em cima do
jornal, dentro da qual havia uma magnífica coruja de penas muito brancas. Seus olhos cor de
âmbar examinavam o quarto autoritariamente, a cabeça virando de vez em quando para olhar o
dono que roncava. Uma ou duas vezes, ela abriu e fechou o bico com estalos, impaciente, mas
Harry estava dormindo profundamente demais para ouvi-la.
Havia, ainda, um malão bem no meio do quarto, com a tampa aberta, parecendo aguardar
alguma coisa. Estava quase vazio, exceto por umas cuecas velhas, balas, tinteiros vazios e penas
quebradas que forravam o seu fundo. No chão, à pequena distância, via-se caído um folheto roxo
com um brasão em que se lia:
Por ordem do Ministério da Magia
PARA PROTEGER SUA CASA E SUA FAMÍLIA DAS FORÇAS DAS TREVAS
Atualmente a comunidade bruxa está sendo ameaçada por uma organização que se
autodenomina Comensais da Morte. Observando simples diretrizes de segurança, você poderá
proteger a si mesmo, a sua família e a sua casa de qualquer ataque.
1. Recomendamos que você não saia de casa sozinho.
2. Tome especial cuidado durante a noite. Sempre que possível, programe suas viagens para
começarem e terminarem antes do anoitecer.
3. Repasse as medidas de segurança que cercam a sua casa, cuidando para que todos os
membros de sua família conheçam os procedimentos de emergência, tais como os feitiços Escudo
e da Desilusão e, em caso de familiares de menor idade, a Aparatação Acompanhada.
4. Combine senhas com seus familiares e amigos íntimos para detectar Comensais da Morte
que se façam passar por outras pessoas após a ingestão da Poção Polissuco (veja p. 2).
5. Se você sentir que um familiar, colega, amigo ou vizinho está agindo de modo estranho,
entre imediatamente em contato com o Esquadrão de Execução das Leis da Magia. Ele ou ela
talvez esteja dominado/a pela Maldição Imperius (veja p. 4).
6. Se a Marca Negra aparecer pairando sobre qualquer prédio, NÃO ENTRE. Contate
imediatamente a Seção dos Aurores.
7. A visão de objetos não identificados sugere que os Comensais da Morte talvez estejam
usando Inferi (veja p. 10). Se avistar ou encontrar algum, reporte ao Ministério
IMEDIATAMENTE.
Harry resmungou enquanto dormia, e seu rosto escorregou uns centímetros pela vidraça,
deixando os óculos ainda mais tortos, mas nem assim ele acordou. Um despertador, consertado
por ele mesmo, há tempos, tiquetaqueava sonoramente no parapeito da janela, indicando que
faltava um minuto para as onze horas. Ao lado do despertador, segura na mão frouxa de Harry,
havia uma folha de pergaminho escrita com uma caligrafia fina e inclinada. Harry lera esta carta
tantas vezes desde que chegara havia três dias que, embora fosse um pergaminho bem enrolado,
ficara completamente esticado.
Caro Harry,
Se for conveniente para você, farei uma visita à rua dos Alfeneiros, número 4, na próxima
sexta-feira, as onze horas da noite, para acompanhá-lo à Toca, onde você está convidado a passar
o resto de suas férias escolares.
Se concordar, eu gostaria também de poder contar com sua ajuda em um assunto que espero
tratar a caminho d'A Toca. Explicarei melhor quando nos virmos.
Por favor, mande sua resposta pela mesma coruja. Espero vê-lo na sexta-feira.
Muito atenciosamente,
Alvo Dumbledore
Embora já a soubesse de cor, Harry não parava de relancear a carta desde as sete horas
daquela noite, quando se instalara junto à janela do quarto, porque esta lhe oferecia uma visão
razoável dos dois lados da rua dos Alfeneiros. Ele sabia que não adiantava ficar relendo as
palavras de Dumbledore; mandara o seu "sim" pela coruja, conforme pedido, e agora só lhe
restava esperar: ou ele viria ou não.
Mas Harry ainda não aprontara as malas. Parecia-lhe bom demais para ser verdade que
fossem tirá-lo da casa dos Dursley após quinze dias em companhia da família. Não conseguia se
livrar da sensação de que alguma coisa ia desandar — a resposta à carta de Dumbledore poderia
ter se extraviado; o bruxo poderia ser impedido de vir buscá-lo; a carta poderia não ser de
Dumbledore e não passar de um truque, uma piada ou uma arapuca. Harry não teve coragem de
aprontar as malas e depois ficar na mão e precisar desfazer tudo. A única concessão que fizera à
possibilidade de viajar fora fechar Edwiges na gaiola.
O ponteiro menor do relógio chegou ao número doze e, neste exato momento, o lampião da
rua apagou.
Harry acordou como se a repentina escuridão fosse um despertador. Endireitou, apressado,
os óculos e, descolando a bochecha da vidraça para, em seu lugar, encostar o nariz, apertou os
olhos para enxergar a calçada. Um vulto alto com uma longa capa esvoaçante estava entrando
pelo jardim.
Harry levantou-se de um pulo como se tivesse levado um choque elétrico, derrubou a
cadeira e começou a pegar todas as coisas ao seu alcance e jogá-las no malão. Na hora em que
arremessava as vestes, dois livros de feitiços e uma embalagem de salgadinhos para o outro lado
do quarto, a campainha tocou.
Lá embaixo, na sala de estar, seu tio Válter exclamou com impaciência:
— Quem será que está tocando a uma hora dessas?
Harry congelou, com um telescópio de latão em uma das mãos e um par de tênis na outra.
Esquecera-se completamente de avisar os Dursley de que Dumbledore talvez viesse. Sentindo ao
mesmo tempo pânico e vontade de rir, saltou por cima do malão e escancarou a porta do quarto,
em tempo de ouvir uma voz grave cumprimentar:
— Boa-noite. O senhor deve ser o Sr. Dursley. Será que Harry não o preveniu que eu viria
buscá-lo?
Harry desceu a escada de dois em dois degraus e parou abruptamente a alguns passos do
hall, pois a longa experiência o ensinara a ficar longe do alcance do tio sempre que possível.
Parado à porta, estava um homem alto e magro, com barbas e cabelos prateados até a cintura.
Usava oclinhos de meia-lua encarrapitados no nariz torto, uma longa capa de viagem e um
chapéu cônico. Vestido com um roupão cor de vinho, Válter Dursley, cujo bigode era preto mas
tão farto quanto o de Dumbledore, encarava o visitante como se não pudesse acreditar nos seus
olhinhos miúdos.
— A julgar pelo seu ar aturdido e descrente, Harry não o avisou da minha vinda — disse
Dumbledore em tom amável. — Mas vamos presumir que o senhor tenha me convidado,
cordialmente, a entrar. Não é sensato demorar demais à soleira das portas nestes tempos
perturbados.
O bruxo cruzou o portal com elegância e fechou a porta ao passar.
— Faz muito tempo desde a minha última visita — falou Dumbledore, olhando por cima
dos óculos para o tio Válter. — Devo dizer que os seus agapantos estão bem floridos.
Válter continuou calado. Harry não duvidou que o tio logo recuperasse a fala — a veia que
latejava em sua têmpora estava quase explodindo. Mas alguma coisa em Dumbledore parecia terlhe
roubado temporariamente o fôlego. Talvez fosse a sua inegável aparência bruxa ou o fato de
que mesmo o tio Válter podia perceber que ali estava um homem muito difícil de intimidar.
— Ah, boa-noite, Harry — cumprimentou Dumbledore, erguendo a cabeça para olhá-lo
através dos óculos com ar de satisfação. —Ótimo, ótimo.
Tais palavras pareceram despertar o tio Válter. Em sua opinião, era óbvio que qualquer
homem que pudesse olhar para Harry e dizer "ótimo" era alguém com quem ele jamais
concordaria.
— Não quero ser grosseiro... — começou ele, em um tom que ameaçava se tornar grosseiro
a cada sílaba.
— ... contudo, a grosseria acidental ocorre com alarmante freqüência — Dumbledore
terminou a frase sério. — É melhor não dizer nada, meu caro. Ah, e esta deve ser Petúnia.
A porta da cozinha se abrira, revelando a tia de Harry, de luvas de borracha e um robe por
cima da camisola, visivelmente interrompendo sua costumeira limpeza das superfícies da cozinha
antes de ir se deitar. Seu rosto cavalar expressava apenas choque.
— Alvo Dumbledore — informou o bruxo, já que o tio Válter não o apresentara. — Temos
nos correspondido, é claro. — Harry achou que era um modo esquisito do diretor lembrar à tia
Petúnia que certa vez lhe enviara uma carta explosiva, mas ela não protestou. — E esse deve ser o
seu filho Duda, não?
Naquele instante, Duda espiara à porta da sala de estar. Sua cabeça grande e loura,
emergindo da gola listrada do pijama, parecia estranhamente separada do corpo, a boca aberta de
espanto e medo. Dumbledore esperou um momento, aparentemente para ver se os Dursley iam
dizer alguma coisa, mas, como o silêncio se prolongasse, ele sorriu.
— Posso presumir que os senhores tenham me convidado a sentar em sua sala de estar?
Duda afastou-se depressa do caminho quando Dumbledore passou. Harry, ainda segurando
o telescópio e os tênis, saltou os últimos degraus e acompanhou Dumbledore, que se acomodou
na poltrona mais próxima da lareira e se deteve a reconhecer o ambiente com uma expressão de
educado interesse. Parecia extraordinariamente deslocado.
— Não vamos embora, professor? — perguntou Harry ansioso.
— Certamente, mas primeiro há umas questões que precisamos discutir. E preferia não fazer
isto ao ar livre. Por isso, vamos abusar da hospitalidade do seus tios por mais uns minutinhos.
— E como vão!
Válter Dursley entrara na sala, Petúnia ao seu lado e Duda, mal-humorado, atrás deles.
— É — disse Dumbledore com simplicidade. — Abusaremos.
E sacou a varinha com tanta rapidez que Harry mal chegou a vê-la; a um gesto displicente, o
sofá arremessou-se para a frente, atingiu os joelhos dos Dursley e os fez perder o equilíbrio e
desmontar nele. A um segundo gesto com a varinha, o sofá voltou rapidamente à posição inicial.
— E é melhor fazermos isso com conforto — disse o bruxo cordialmente.
Quando Dumbledore guardou a varinha no bolso, Harry notou que sua mão estava escura e
enrugada; a pele parecia ter sido destruída por uma queimadura.
— Professor... que aconteceu com sua...?
— Mais tarde, Harry. Sente-se, por favor.
O garoto ocupou a poltrona que sobrara, fazendo questão de não olhar para os Dursley,
todos mudos de espanto.
— Presumi que fossem me oferecer uma bebida — disse Dumbledore ao tio Válter —, mas,
pelo visto, tanto otimismo seria tolice.
Um terceiro gesto com a varinha fez aparecer no ar uma garrafa empoeirada e cinco copos.
A garrafa se inclinou e serviu uma generosa dose de um líquido cor de mel em cada copo, que,
então, flutuou até cada uma das pessoas na sala.
— É o melhor hidromel envelhecido em barris de carvalho por Madame Rosmerta —
explicou Dumbledore, fazendo um brinde a Harry, que apanhou o copo e bebeu. Nunca provara
nada parecido antes, mas gostou imensamente. Os Dursley, depois de trocarem olhares rápidos e
apavorados, tentaram fingir que não viam seus copos, o que era difícil porque eles davam
pancadinhas em suas cabeças. Harry não conseguiu afastar a suspeita de que Dumbledore estava
se divertindo.
— Bom, Harry — disse o bruxo dirigindo-se a ele —, surgiu uma dificuldade que espero que
você possa resolver para nós. Por nós, eu me refiro à Ordem da Fênix. Antes de mais nada,
porém, preciso lhe dizer que encontraram o testamento de Sirius há uma semana, e ele deixou
todos os seus bens para você.
No sofá, tio Válter se virará, mas Harry não olhou para ele nem conseguiu pensar em nada
para dizer, exceto:
— Certo.
— No geral, é um testamento bem simples. Você acrescenta uma boa quantidade de ouro à
sua conta no Gringotes e herda todos os bens pessoais de Sirius. A parte ligeiramente
problemática do documento...
— O padrinho dele morreu? — perguntou tio Válter, em voz alta, lá do sofá. Dumbledore e
Harry se viraram para olhá-lo. O copo de hidromel agora batia insistentemente em sua cabeça; ele
tentava afastá-lo. — Morreu? O padrinho dele?
— Morreu — confirmou Dumbledore, sem perguntar a Harry por que não contara aos tios.
— Nosso problema — continuou falando com Harry, como se não tivesse havido interrupção —
é que Sirius também deixou para você a casa número doze do largo Grimmauld.
— Deixou uma casa para ele? — perguntou tio Válter, ganancioso, apertando os olhos
miúdos, mas ninguém lhe respondeu.
— Podem continuar a usar a casa como quartel-general — disse Harry. — Não me importo.
Podem ficar com ela. Não a quero. — Se dependesse dele, não queria nunca mais pisar na casa do
largo Grimmauld. Achava que a lembrança de Sirius, vagando solitário pelos aposentos escuros e
mofados, prisioneiro de um lugar que tinha tentado desesperadamente abandonar, o atormentaria
para sempre.
— É um gesto generoso. Mas desocupamos o imóvel temporariamente.
— Por quê?
— Bem — respondeu Dumbledore, não dando atenção aos resmungos do tio Válter, que
agora levava na cabeça batidas dolorosas do insistente copo de hidromel —, segundo a tradição
da família Black, a casa passa ao descendente masculino mais próximo, em linha direta que tenha
o nome Black. Sirius foi o último da linhagem, porque seu irmão mais novo, Regulo, faleceu
antes, e nenhum dos dois teve filhos. Embora o testamento deixe perfeitamente claro que Sirius
desejava que a casa fosse sua, é possível que tenham lançado nela algum encantamento ou feitiço
para garantir que não pertença a alguém de sangue impuro.
A imagem nítida do quadro da mãe de Sirius berrando e cuspindo, no corredor da casa
número doze no largo Grimmauld, passou pela cabeça de Harry.
— Aposto que lançaram.
— Sem dúvida — disse Dumbledore. — E, se tal encantamento existir, é muito provável
que a propriedade da casa passe ao parente vivo mais velho de Sirius, ou seja, sua prima Belatriz
Lestrange.
Sem perceber o que fazia, Harry levantou-se de um pulo; o telescópio e os tênis em seu colo
rolaram pelo chão. Belatriz Lestrange, a assassina de Sirius, herdar a casa dele?
— Não — protestou ele.
— Bem, é óbvio que também preferimos que ela não herde — respondeu Dumbledore
calmamente. — A situação é bem complicada. Por exemplo, não sabemos se os encantamentos
que nós mesmos lançamos sobre a casa, para impossibilitar sua localização, persistirão, agora que
deixou de pertencer a Sirius. Belatriz pode aparecer à porta a qualquer momento. É claro que
fomos obrigados a nos mudar até termos esclarecido a nossa posição.
— Mas como é que vamos descobrir se tenho direito a casa?
— Felizmente há um teste bem simples. — Dumbledore depositou o copo em cima de uma
mesinha ao lado de sua poltrona, mas, antes que pudesse fazer qualquer outra coisa, o tio Válter
berrou:
— Quer tirar essas porcarias de cima da gente?
Harry se virou; os três Dursley estavam encolhidos com os braços para o alto enquanto os
copos batiam em suas cabeças, fazendo voar hidromel para todo lado.
— Ah, sinto muito — disse Dumbledore, atencioso, e tornou a erguer sua varinha. Os três
copos desapareceram. — Mas, sabem, teria sido mais educado aceitarem a bebida.
Pelo jeito, tio Válter estava explodindo de vontade de dar várias respostas malcriadas, mas
apenas voltou a se afundar nas almofadas com tia Petúnia e Duda, sem dizer nada, nem tirar seus
olhinhos de porco da varinha de Dumbledore.
— Entende — continuou Dumbledore, voltando sua atenção para Harry, como se o tio
Válter não tivesse se manifestado —, se você tiver de fato herdado a casa, também terá herdado...
Ele acenou com a varinha pela quinta vez. Ouviu-se um forte estalo e apareceu, agachado no
tapete peludo dos Dursley, um elfo doméstico, com um nariz focinhudo, grandes orelhas de
morcego e enormes olhos avermelhados, vestido de trapos encardidos. Tia Petúnia soltou um urro
de arrepiar os cabelos: não havia lembrança de nada imundo assim ter algum dia entrado em sua
casa; Duda tirou do chão os enormes pés rosados e descalços e levantou-os quase acima da
cabeça, como se imaginasse que a criatura pudesse subir pelas calças do seu pijama, e tio Válter
berrou:
— Que diabo é isso?
— ... o Monstro — apresentou Dumbledore.
— Monstro não quer, Monstro não quer. Monstro não quer — grasnou o elfo doméstico,
berrando quase tão alto quanto o tio Válter, batendo no chão os pés nodosos e puxando as orelhas.
— Monstro é da senhorita Belatriz, ah, sim, Monstro é dos Black. Monstro quer sua nova dona,
Monstro não quer o pirralho Potter, Monstro não quer, não quer, não quer...
— Como você está vendo, Harry — disse Dumbledore alteando a voz acima dos grasnidos
ininterruptos do Monstro de "não quer, não quer, não quer" —, Monstro está demonstrando uma
certa relutância em passar às suas mãos.
— Eu não me importo — repetiu Harry, olhando enojado para o elfo, que se contorcia e
batia os pés. — Eu não o quero.
— Não quer, não quer, não quer...
— Você prefere que passe às mãos de Belatriz Lestrange? Mesmo lembrando que ele morou
todo o último ano no quartel-general da Ordem da Fênix?
— Não quer, não quer, não quer...
Harry encarou Dumbledore. Sabia que não poderia deixar o Monstro ir morar com Belatriz
Lestrange, mas a idéia de ser dono dele, de assumir responsabilidade pela criatura que traíra
Sirius, era repugnante.
— Dê-lhe uma ordem — disse Dumbledore. — Se ele for seu, terá de obedecer. Se não,
teremos de pensar em outros meios de mantê-lo longe de sua legítima dona.
— Não quer, não quer, não quer, NÃO QUER!
Monstro agora urrava. Harry não conseguiu pensar no que dizer, exceto:
— Monstro, cala a boca!
Por um instante pareceu que o Monstro fosse engasgar. Levou as mãos à garganta, a boca
ainda mexendo furiosamente, os olhos saltando das órbitas. Passados alguns segundos de
engolidas em seco, ele se atirou de cara no tapete (tia Petúnia gemeu) e bateu no chão com as
mãos e os pés, entregando-se a um violento, mas silencioso, acesso de raiva.
— Bem, isto simplifica a questão — disse Dumbledore animado. — Parece que Sirius sabia
o que estava fazendo. Você é o legítimo proprietário da casa número doze no largo Grimmauld e
de Monstro.
— Será que tenho de... de ficar com ele? — perguntou Harry, horrorizado, enquanto
Monstro continuava a se debater a seus pés.
— Não, se não quiser — disse Dumbledore. — Se aceita uma sugestão, você poderia
mandá-lo trabalhar na cozinha de Hogwarts. Desta maneira, os outros elfos domésticos poderiam
vigiá-lo.
— É — exclamou Harry aliviado —, é o que vou fazer. Ãa... Monstro... quero que vá para
as cozinhas de Hogwarts trabalhar com os outros elfos.
Monstro, que agora estava com as costas achatadas contra o chão, e os pés e as pernas no ar,
lançou a Harry, de baixo para cima, um olhar do mais profundo desprezo e, com outro forte
estalo, desapareceu.
— Bom — disse Dumbledore. — Temos também o problema do hipogrifo. Hagrid tem
cuidado dele desde que Sirius morreu, mas o Bicuço agora é seu, por isso, se preferir tomar outras
providências...
— Não — respondeu Harry imediatamente —, ele pode continuar com Hagrid. Bicuço
gostaria mais assim.
— Hagrid vai adorar — disse Dumbledore sorrindo. — Ficou contente de rever Bicuço. Por
falar nisso, para garantir a segurança dele, decidimos, por ora, rebatizá-lo de Asafugaz, embora eu
duvide que o Ministério possa concluir que é o mesmo hipogrifo condenado à morte. Agora,
Harry, suas malas estão prontas?
—Ããã...
— Duvidou que eu apareceria? — insinuou Dumbledore astutamente.
— Num minuto... eh... eu termino — apressou-se Harry a dizer, catando o telescópio e os
tênis que tinham caído.
Ele gastou pouco mais de dez minutos para encontrar tudo de que precisava; por fim,
conseguiu tirar a Capa da Invisibilidade de baixo da cama, vedou o frasco de Tinta Muda-Cor e
forçou a tampa do malão a fechar sobre seu caldeirão. Depois, arrastando o malão com uma das
mãos e segurando a gaiola de Edwiges com a outra, desceu.
Harry ficou desapontado ao descobrir que Dumbledore não o esperava no hall, o que
significava que teria de voltar à sala de estar.
Ninguém conversava. Dumbledore cantarolava de boca fechada, aparentemente muito à
vontade, mas a atmosfera estava densa e gelada, e Harry não se atreveu a olhar para os Dursley
quando anunciou:
— Professor... estou pronto.
— Bom — disse Dumbledore. — Uma última coisa, então. — E se virou para falar com os
Dursley. — Como os senhores sem dúvida sabem, dentro de um ano Harry atinge a maioridade...
— Não — interrompeu-o a tia Petúnia, falando pela primeira vez desde a chegada de
Dumbledore.
— Perdão? — disse o bruxo, educadamente.
— Não. Ele é um mês mais novo que o Duda, e meu filho só vai fazer dezoito anos daqui a
dois anos.
— Ah — exclamou Dumbledore cordialmente —, mas, no mundo dos bruxos, atingimos a
maioridade aos dezessete.
Tio Válter resmungou "que absurdo", mas Dumbledore não lhe deu atenção.
— Então, como os senhores sabem, o bruxo chamado Lord Voldemort voltou ao país.
Atualmente a nossa comunidade está em guerra declarada. Harry, a quem Lord Voldemort já
tentou matar em várias ocasiões, está passando por um perigo muito maior do que no dia em que
o deixei à sua porta, há quinze anos, com uma carta explicando que seus pais tinham sido
assassinados e manifestando a esperança de que os senhores cuidassem dele como se fosse um
filho.
Dumbledore fez uma pausa, e, embora sua voz continuasse leve e calma, e não deixasse
transparecer sua raiva, Harry sentiu que emanava uma certa frieza. Notou também que os Dursley
se aconchegaram uns aos outros quase imperceptivelmente.
— Os senhores não fizeram o que pedi. Nunca trataram Harry como um filho. Nas suas
mãos, ele só conheceu o descaso e muitas vezes a crueldade. O máximo que se pode dizer a seu
favor é que ele escapou do enorme dano que os senhores causaram a esse pobre menino sentado
entre os dois.
Tio Válter e tia Petúnia se viraram instintivamente, como se esperassem ver mais alguém
além de Duda espremido entre eles.
— Nós... tratamos mal o Dudoca? Que conversa...? — começou tio Válter furioso, mas
Dumbledore ergueu um dedo mandando~o silenciar, e o silêncio sobreveio como se o bruxo o
tivesse emudecido.
— A mágica que invoquei há quinze anos significa que Harry contará com uma forte
proteção enquanto puder considerar esta casa dele. Por mais infeliz que tenha sido aqui, por mais
mal recebido, por mais destratado, os senhores lhe concederam pelo menos abrigo, ainda que de
má vontade. A mágica cessará no momento em que Harry fizer dezessete anos; em outras
palavras, no momento em que se tornar homem. Então só peço uma coisa: que os senhores
deixem Harry voltar mais uma vez a esta casa, antes do seu aniversário de dezessete anos, o que
garantirá que a proteção se manterá em vigor até aquela data.
Nenhum dos Dursley disse coisa alguma. Duda tinha a testa ligeiramente enrugada, como se
ainda tentasse entender quando fora maltratado.
Tio Válter parecia ter alguma coisa entalada na garganta. Tia Petúnia, no entanto,
parecia estranhamente corada.
— Bem, Harry... está na hora de irmos andando — disse, por fim, Dumbledore, levantandose
e acertando a longa capa preta. — Até a próxima — disse aos Dursley, que, pelo jeito,
pareciam desejar que a próxima não chegasse nunca. E, cumprimentando-os com um aceno do
chapéu, saiu teatralmente da sala.
— Tchau — despediu-se Harry, apressado, e acompanhou Dumbledore, que parou junto ao
malão com a gaiola em cima.
— Não queremos nos sobrecarregar com isso agora — disse, puxando mais uma vez a
varinha. — Vou despachar esta bagagem para A Toca. Mas gostaria que você levasse sua Capa
da Invisibilidade... caso precise.
A muito custo, Harry tirou a capa do malão, tentando esconder do diretor a bagunça que
havia lá dentro. Depois que a enfiou de qualquer jeito em um bolso interno do blusão,
Dumbledore acenou com a varinha, e o malão, a gaiola e Edwiges desapareceram. Fez um novo
aceno, e a porta da casa se abriu para a escuridão fresca e enevoada.
— E agora, Harry, vamos sair para a noite em busca dessa sedutora volúvel, a aventura.
CAPÍTULO QUATRO
HORÁCIO SLUGHORN
AINDA QUE, NOS ÚLTIMOS DIAS, tivesse passado todos os momentos de vigília desejando
desesperadamente que Dumbledore viesse buscá-lo, Harry se sentiu pouco à vontade quando
partiram juntos da rua dos Alfeneiros. Nunca tivera uma conversa para valer com o diretor, fora
de Hogwarts; lá havia sempre uma escrivaninha entre os dois. Além disso, a lembrança do seu
último encontro não parava de lhe ocorrer, e aumentava o seu constrangimento; gritara muito naquela
ocasião, isto sem falar em seus esforços para destruir vários objetos de estimação de
Dumbledore.
O diretor, porém, parecia completamente descontraído.
— Mantenha sua varinha à mão, Harry — disse, animado.
— Mas pensei que não tinha licença para usar a magia fora da escola, professor.
— Se houver um ataque, eu lhe darei permissão para usar qualquer contrafeitiço ou
contramaldição que lhe ocorra. Mas acho que hoje à noite não vai precisar se preocupar com
ataques.
— Por que não, professor?
— Porque você está comigo — respondeu Dumbledore com simplicidade. — Aqui já está
bom, Harry.
O bruxo parou bruscamente ao fim da rua dos Alfeneiros.
— Naturalmente, você ainda não passou no teste de Aparatação, não é?
— Não. Pensei que precisava ter dezessete anos.
— Precisa. Então, segure com força no meu braço. No esquerdo, se não se importar... você
deve ter reparado que o braço com que seguro a varinha está um pouco sensível no momento.
Harry agarrou o braço oferecido por Dumbledore.
— Bem, então vamos.
Harry sentiu o braço do bruxo torcer e fugir-lhe, e redobrou o seu aperto; no momento
seguinte tudo escureceu; teve a impressão de estar sendo fortemente puxado em todas as direções;
não conseguia respirar, tiras de ferro envolviam seu peito, comprimindo-o; suas órbitas estavam
sendo empurradas para o fundo da cabeça; seus tímpanos entravam crânio adentro; então...
Ele aspirou grandes golfadas do ar frio da noite e abriu os olhos lacrimejantes. Teve a
sensação de que o enfiavam por uma mangueira de borracha apertada. Passaram-se alguns
segundos até ele entender que a rua dos Alfeneiros desaparecera. Viu que ele e Dumbledore
estavam, agora, parados na praça deserta de algum povoado, no centro da qual havia um
memorial de guerra e alguns bancos. O entendimento finalmente alcançou os seus sentidos, e
Harry percebeu que acabara de aparatar pela primeira vez na vida.
— Você está bem? — perguntou Dumbledore, olhando-o, solícito.
— Leva algum tempo para acostumar com a sensação.
— Estou ótimo — respondeu Harry, esfregando as orelhas, que pareciam ter deixado a rua
dos Alfeneiros com uma certa relutância.
— Mas acho que prefiro as vassouras.
Dumbledore sorriu, aconchegou melhor a capa em torno do pescoço e disse:
— Vamos por aqui.
E, andando rapidamente, passou por uma estalagem vazia e algumas casas. Segundo o
relógio de uma igreja vizinha, era quase meia-noite.
— Agora me diga, Harry, a sua cicatriz... tem doído?
Harry levou a mão à testa inconscientemente e esfregou a marca em forma de raio.
— Não, e tenho me perguntado o porquê. Pensei que iria arder o tempo todo, agora que
Voldemort está recuperando o poder.
Ele olhou para Dumbledore e notou que tinha uma expressão satisfeita.
— Já eu pensei o contrário — disse Dumbledore. — Lord Voldemort finalmente percebeu
como é perigoso o acesso que você tem tido aos pensamentos e emoções dele. Imagino que agora
esteja usando a Oclumência contra você.
— Por mim, tudo bem — comentou Harry, que não sentia falta dos sonhos perturbadores
nem dos vislumbres intuitivos da mente de Voldemort.
Eles viraram uma esquina, passaram por uma cabine telefônica e uma parada de ônibus.
Harry tornou a olhar Dumbledore pelo canto dos olhos.
— Professor?
— Harry?
— Ãã... onde é que nós estamos exatamente?
— No encantador povoado de Budleigh Babberton.
— E que estamos fazendo aqui?
— Ah sim, claro. Não lhe contei. Já perdi a conta do número de vezes que repeti isso nos
últimos anos, mas estamos novamente desfalcados de um funcionário nos nossos quadros.
Estamos aqui para convencer um velho colega meu a suspender a aposentadoria e voltar a
Hogwarts.
— E como vou ajudar o senhor?
— Ah, acho que encontraremos uma maneira — respondeu o diretor vagamente. — À
esquerda aqui, Harry.
Eles tomaram uma rua íngreme e estreita ladeada de casas. Todas as janelas estavam
escuras. A friagem estranha que pairara sobre a rua dos Alfeneiros nessas duas semanas persistia
ali. Lembrando-se dos dementadores, Harry deu uma espiada por cima do ombro e segurou a
varinha em seu bolso com firmeza.
— Professor, por que não aparatamos diretamente na casa do seu ex-colega?
— Porque seria tão grosseiro quanto derrubar a porta da casa a pontapés. A cortesia exige
que demos aos colegas bruxos a oportunidade de nos negar entrada. Em todo caso, a maioria das
casas bruxas são magicamente protegidas de pessoas indesejáveis que aparatem. Em Hogwarts,
por exemplo...
— ... não se pode aparatar nos prédios nem nos terrenos — completou Harry depressa. —
Foi a Hermione Granger quem me disse.
— E está certa. Viramos à esquerda outra vez.
Às suas costas, o relógio da igreja bateu meia-noite. Harry se perguntou se Dumbledore não
considerava falta de educação visitar um colega tão tarde, mas, agora que a conversa começara a
fluir, ele tinha perguntas mais urgentes a fazer.
— Professor, li no Profeta Diário que Fudge foi demitido...
— É verdade — confirmou Dumbledore, agora virando para uma ladeira secundária. — Foi
substituído, e tenho certeza que você também leu isso, por Rufo Scrimgeour, que costumava
chefiar a Seção de Aurores.
— Ele é... o senhor acha que ele é bom? — perguntou Harry.
— Uma pergunta interessante. Sem dúvida, ele é competente. Mais decidido e enérgico do
que Cornélio.
— Sei, mas eu quis dizer...
— Entendi o que você quis dizer. Rufo é um homem de ação e, tendo combatido bruxos das
trevas a maior parte da sua vida profissional, não subestima Lord Voldemort.
Harry esperou, mas Dumbledore não mencionou o desentendimento que o Profeta Diário
noticiara, e, como não teve coragem de insistir, mudou de assunto.
— E... senhor... e Madame Bonés?
— É — disse Dumbledore baixinho. — Uma perda funesta. Era uma grande bruxa. É logo
aqui, acho... aí!
Apontara com a mão machucada.
— Professor, que aconteceu com a sua... ?
— Não tenho tempo para explicar agora. É uma história eletrizante, e quero contá-la como
merece ser contada.
Ele sorriu para Harry, que compreendeu que aquilo não era uma negativa e que tinha
permissão para continuar com as perguntas.
— Senhor... recebi um folheto do ministro da Magia por correio-coruja, sobre as medidas de
segurança que devemos tomar para nos proteger dos Comensais da Morte...
— Eu também recebi — continuou Dumbledore, ainda sorrindo. —Você achou o folheto
útil?
— Não muito.
— Não, eu achei que não. Você não me perguntou, por exemplo, qual é o sabor de geléia
que prefiro, para verificar se sou realmente o professor Dumbledore, e não um impostor.
— Não perguntei... — começou Harry, um pouco inseguro quanto a estar ou não sendo
repreendido.
— Para sua referência futura, é amora... embora, é claro, se eu fosse um Comensal da
Morte, teria tido o cuidado de pesquisar minhas geléias preferidas antes de me fazer passar por
mim mesmo.
— Ãa... certo. Bem, o folheto dizia alguma coisa sobre Inferi. Que vem a ser isso? Não
ficou muito claro.
— São defuntos — respondeu Dumbledore calmamente. — Defuntos enfeitiçados para
cumprir ordens de um bruxo das trevas. Mas não vemos Inferi há muito tempo, pelo menos desde
a última vez que Voldemort teve o poder... ele matou gente suficiente para formar um exército
deles, é claro. É aqui, Harry, bem aqui...
Aproximavam-se de uma casinha de pedra, bem cuidada, no meio do jardim. Harry estava
ocupado demais, digerindo a pavorosa idéia de mortos-vivos, para dar atenção a qualquer outra
coisa, mas, quando alcançaram o portão da casa, Dumbledore estacou e Harry colidiu com ele.
— Que lástima! Que lástima!
O garoto acompanhou o olhar do diretor pela entrada bem conservada e sentiu um aperto no
coração. A porta da casa fora arrancada das dobradiças.
Dumbledore olhou para cima e para baixo da rua. Parecia deserta.
— Pegue a varinha e me siga, Harry — disse em voz baixa. Abriu o portão e entrou pelo
jardim, rápida e silenciosamente, o garoto em seus calcanhares, então empurrou a porta da casa
bem devagar, com a varinha erguida e pronta.
— Lumus.
A ponta da varinha do diretor acendeu, iluminando um corredor estreito. A esquerda, havia
outra porta aberta. Empunhando a varinha acesa, Dumbledore entrou na sala de estar com Harry
logo atrás.
Depararam com uma cena de total devastação. Um relógio de carrilhão jazia aos seus pés, o
mostrador estilhaçado, o pêndulo, mais adiante, como uma espada abandonada. O piano estava
virado de lado, as teclas espalhadas pelo chão. Os destroços de um lustre caído brilhavam à
pequena distância. Almofadas murchas, as penas do enchimento saindo pelos rasgos laterais;
cacos de vidro e louça cobriam tudo como se fossem pó. Dumbledore ergueu a varinha mais alto,
para a luz clarear as paredes, cujo papel tinha manchas vermelho-escuras e gelatinosas. O ruído
da inspiração de Harry fez Dumbledore virar a cabeça.
— Nada bonito, não é — disse oprimido. — Alguma coisa terrível aconteceu aqui.
O diretor avançou cuidadosamente até o meio da sala, examinando os destroços pelo chão.
Harry acompanhou-o, olhando para os lados, meio apavorado com o que poderia ver escondido
sob o piano ou o sofá virados e destruídos, mas não viu sinal de cadáver.
— Talvez tenha havido uma luta... e o levaram embora, professor? — sugeriu Harry,
tentando não imaginar a gravidade dos ferimentos de um homem que pudesse deixar aquelas
manchas espalhadas até a metade das paredes.
— Acho que não — respondeu Dumbledore em voz baixa, espiando atrás de uma poltrona
excessivamente estofada e tombada de lado.
— O senhor quer dizer que ele...
— Ainda está por aqui? Isto mesmo.
E, inesperadamente, Dumbledore se curvou, e enfiou a ponta da varinha no assento da
poltrona, que gritou: —Ai!
— Boa-noite, Horácio — cumprimentou Dumbledore, tornando a se erguer.
O queixo de Harry caiu. Onde, uma fração de segundo antes, havia uma poltrona, agora viase
encolhido um velho imensamente gordo e careca que massageava o baixo-ventre e apertava os
olhos para enxergar Dumbledore com um olhar lacrimejante e ofendido.
— Não precisava enfiar a varinha com tanta força — reclamou mal-humorado, pondo-se de
pé. — Doeu.
A luz da varinha cintilou em sua careca, seus olhos protuberantes, sua bigodeira prateada
que lembrava a de um leão-marinho e os botões muito polidos do roupão cor de vinho que usava
sobre o pijama de seda lilás. Sua cabeça mal alcançava o queixo de Dumbledore.
— Que foi que me denunciou? — resmungou, erguendo-se com dificuldade e ainda
esfregando o baixo-ventre. Parecia excepcionalmente descarado para um homem que acabara de
ser descoberto fingindo-se de poltrona.
— Meu caro Horácio — respondeu Dumbledore, parecendo divertir-se —, se realmente os
Comensais da Morte lhe tivessem feito uma visita, a Marca Negra teria sido deixada sobre sua
casa.
O bruxo deu um tapinha na enorme testa.
— A Marca Negra — murmurou. — Eu sabia que havia uma coisa... ah, bem. Seja como
for, eu não teria tido tempo. Tinha acabado de dar os últimos retoques no estofamento quando
você entrou na sala.
E deu um profundo suspiro que fez as pontas dos seus bigodes esvoaçarem.
— Quer minha ajuda para arrumar a sala? — perguntou Dumbledore educadamente.
— Por favor — disse o outro.
Eles se postaram de costas um para o outro, o bruxo alto e magro e o baixo e gordo, e
acenaram com as varinhas, num gesto amplo e idêntico.
Os móveis voltaram instantaneamente aos seus lugares; os enfeites se recompuseram no ar;
as penas flutuaram para dentro das almofadas; os livros rasgados se emendaram e tomaram seus
.lugares nas prateleiras; os candeeiros a óleo voaram para as mesinhas e reacenderam; uma vasta
coleção de molduras de prata quebradas deslocara-se, refulgindo pela sala, e pousara, intacta e
polida, com seus respectivos retratos, sobre uma escrivaninha; rasgos, rachaduras e buracos se
consertaram por toda parte e as paredes se limparam.
— A propósito, que tipo de sangue era aquele? — perguntou Dumbledore em voz alta, para
abafar o carrilhão do relógio recém-consertado.
— Nas paredes? Dragão — gritou o bruxo chamado Horácio enquanto o lustre tornava a se
prender ao teto, com ensurdecedores ruídos metálicos.
O piano tocou uma nota final, e tudo silenciou.
— É, de dragão — repetiu o bruxo, dando seguimento à conversa. — Meu último vidro, e
os preços andam na estratosfera. Mas quem sabe ainda consiga usá-lo?
Ele se dirigiu aborrecido ao móvel em que estava uma garrafinha de cristal e ergueu-a à luz,
examinando o líquido espesso que continha.
— Hum. Um pouco de borra.
Repôs a garrafa sobre o móvel e suspirou. Foi então que seu olhar recaiu sobre Harry.
— Oho — exclamou, os grandes olhos redondos fixando a testa de Harry e a cicatriz em
forma de raio. — Oho!
— Este — disse Dumbledore, adiantando-se para fazer as apresentações — é Harry Potter.
Harry, este é um velho amigo e colega, Horácio Slughorn.
O bruxo virou-se para Dumbledore, com uma expressão astuta no olhar.
— Então foi assim que você pensou que ia me convencer? Pois bem, a resposta é não, Alvo.
Ele passou por Harry, com o rosto resolutamente virado e o ar de um homem que tenta
resistir à tentação.
— Suponho que pelo menos possamos tomar uma bebida? — perguntou Dumbledore. —
Para lembrar os velhos tempos?
Slughorn hesitou.
— Tudo bem, então, um drinque — concedeu de má vontade. Dumbledore sorriu para Harry
e conduziu-o a uma poltrona parecida com a que Slughorn tão recentemente encarnara, que ficava
ao lado da lareira recém-acesa e da luz forte de um candeeiro a óleo. Harry sentou com a nítida
impressão de que o diretor, por alguma razão, queria que ele ficasse bem visível. E acertou.
Quando Slughorn, que estivera ocupado com garrafas e copos, se virou de frente para a sala, seus
olhos bateram imediatamente em Harry.
— Hum — resmungou, desviando os olhos como se tivesse medo de feri-los. — Tome... —
Entregou a bebida a Dumbledore, que sentara sem convite, empurrou a bandeja para o garoto e,
em seguida, afundou nas almofadas do sofá restaurado, em um silêncio contrariado. Suas pernas
eram tão curtas que não tocavam o chão.
— Bem, e como tem andado, Horácio? — perguntou Dumbledore.
— Não muito bem — respondeu Slughorn imediatamente. —Fraqueza no peito. Asma. E
reumatismo também. Não consigo me mexer como antigamente. Bem, é o normal. Velhice.
Cansaço.
— Contudo, você deve ter se mexido bem rápido para improvisar aquela recepção para nós.
Não deve ter tido mais de três minutos de aviso, não é?
Slughorn respondeu, entre irritado e orgulhoso:
— Dois. Não ouvi o meu Feitiço contra Intrusos disparar, estava tomando banho. Ainda
assim — acrescentou circunspecto, parecendo se controlar —, o fato é que estou velho, Alvo. Um
velho cansado que conquistou o direito a uma vida tranqüila e a alguns confortos materiais.
E esses não faltavam, pensou Harry, percorrendo a sala com o olhar. Era abafada e
excessivamente atravancada. Ninguém, porém, poderia dizer que fosse desconfortável; havia
poltronas macias e descansos para os pés, bebidas e livros, caixas de bombons e almofadas fofas.
Se Harry não soubesse quem morava ali, teria pensado que era uma velhota rica e exigente.
— Você ainda não tem a minha idade, Horácio — replicou Dumbledore.
— Bem, então você também deveria pensar em se aposentar — disse Slughorn sem
rodeios. Seus olhos verde-claros tinham registrado a mão machucada de Dumbledore. — Estou
vendo que as reações já não são o que eram.
— Você tem toda a razão — respondeu o diretor tranqüilamente, jogando a manga para trás
e revelando as pontas dos dedos queimados e enegrecidos; a visão fez os pêlos da nuca de Harry
se eriçarem desagradavelmente. — Sem dúvida, estou mais lento. Mas por outro lado...
Ele sacudiu os ombros e espalmou as mãos, como se dissesse que a idade trazia
compensações, e Harry notou um anel, na mão machucada, que nunca vira Dumbledore usar: era
grande e incômodo, aparentemente de ouro, engastado com uma pesada pedra negra que parecia
rachada ao meio. O olhar de Slughorn se demorou um momento na pedra também, e Harry
percebeu uma pequena ruga marcar momentaneamente a larga testa.
— Então, todas essas precauções contra intrusos, Horácio... são para segurar os Comensais
da Morte ou a mim? — perguntou Dumbledore.
— Que é que os Comensais da Morte iriam querer com um velhote incompetente e
alquebrado como eu?
— Imagino que iriam querer que você empregasse o seu considerável talento para coagir, torturar
e matar. Você está realmente me dizendo que eles ainda não vieram recrutá-lo?
Por um momento Slughorn encarou Dumbledore com hostilidade, então murmurou:
— Não lhes dei chance. Não parei de viajar nesse último ano. Nunca me demoro mais de
uma semana no mesmo lugar. Mudo de uma casa de trouxa para outra, os donos desta casa estão
de férias nas ilhas Canárias. Tem sido muito agradável, terei pena de partir. É bem fácil uma vez
que se aprende, um simples Feitiço Paralisante nesses absurdos alarmes que usam em vez de
bisbilhoscópios garante que os vizinhos não vejam ninguém entrar carregando um piano.
— Engenhoso. Mas está me parecendo muito cansativo para um velhote incompetente e
alquebrado que procura uma vida calma. Agora, se você retornasse a Hogwarts...
— Se você vai me dizer que eu teria mais paz naquela escola pestilenta, pode poupar o seu
fôlego, Alvo! Eu posso estar me escondendo, mas chegaram aos meus ouvidos uns boatos
engraçados desde que a Dolores Umbridge saiu! Se é assim que você agora está tratando os
professores...
— A professora Umbridge se meteu em confusões com o nosso rebanho de centauros —
disse Dumbledore. — Acho que você, Horácio, teria tido o bom senso de não entrar na Floresta e
chamar uma horda de centauros de "mestiços nojentos".
— Então foi isso que ela fez? Que mulher idiota! Jamais gostei dela.
Harry riu baixinho, e os dois bruxos se viraram para ele.
— Desculpem — apressou-se o garoto a dizer. — É que... eu também não gostava dela.
Dumbledore levantou-se de repente.
— Você já está indo? — perguntou Slughorn depressa, esperançoso.
— Não, será que eu poderia usar o seu banheiro?
— Ah — respondeu Slughorn, visivelmente desapontado. — Segunda porta à esquerda,
seguindo pelo corredor.
Dumbledore atravessou a sala. Depois que fechou a porta ao passar, fez-se silêncio. Logo
em seguida, Slughorn se levantou, mas pareceu não saber muito bem o que fazer. Lançou um
olhar furtivo a Harry, foi até a lareira e virou-se de costas para aquecer seu grande traseiro.
— Não pense que não sei por que ele o trouxe até aqui — disse bruscamente.
Harry apenas olhou para Slughorn. Os olhos lacrimosos do bruxo deslizaram pela cicatriz
do garoto, desta vez examinando-lhe todo o rosto.
— Você se parece muito com o seu pai.
— É o que dizem.
— Exceto nos olhos. Você tem...
— Os olhos de minha mãe, eu sei. — Harry já ouvira esse comentário tantas vezes que o
achava aborrecido.
— Hum-hum. Bem. Um professor não devia ter alunos favoritos, mas ela era um dos meus.
Sua mãe — acrescentou Slughorn em resposta ao olhar de indagação de Harry. — Lílian Evans.
Uma das mais inteligentes a quem lecionei. Viva, sabe. Uma menina encantadora. Eu costumava
dizer a ela que deveria ter ido para a minha Casa. E, sabe, costumava me dar respostas petulantes.
— Qual era a sua Casa?
— Eu era diretor da Sonserina. Ah, vamos — apressou-se a dizer, vendo a expressão no
rosto de Harry, apontando o dedo em riste para o garoto —, não deixe que isto o influencie contra
mim! Você deve ser da Grifinória como ela, não? É, em geral, está no sangue. Mas nem sempre.
Já ouviu falar de Sirius Black? Deve ter ouvido... tem sido notícia de jornal nos últimos dois
anos... morreu faz umas semanas...
Foi como se uma garra invisível tivesse torcido e apertado os intestinos de Harry.
— Bem, em todo caso, foi um grande companheiro do seu pai na escola. Toda a família
Black pertenceu à minha casa, mas Sirius acabou na Grifinória! Uma vergonha... era um garoto
talentoso. Fiquei com o irmão dele, Regulo, quando apareceu, mas eu teria preferido a família
toda.
Ele falava como se fosse um colecionador entusiasmado que tivesse perdido um lance em
um leilão. Olhava para a parede oposta, parecendo absorto em lembranças, girando o corpo
lentamente, sem sair do lugar, para permitir um aquecimento uniforme do traseiro.
— Sua mãe, naturalmente, nasceu trouxa. Não consegui acreditar quando soube. Eu achava
que devia ser puro-sangue, era tão inteligente!
— Uma das minhas melhores amigas é trouxa — comentou Harry —, e é a melhor aluna da
nossa série.
— Engraçado como isso às vezes acontece, não é?
— Não acho — retrucou Harry friamente. Slughorn olhou para ele surpreso.
— Você não deve pensar que sou preconceituoso! Não, não e não! Não acabei de dizer que sua
mãe foi uma das minhas alunas favoritas? E tive também Dirk Cresswell, uma série acima, agora
chefe da Seção de Ligação com os Duendes, naturalmente, outro trouxa, um estudante muito bom
que ainda hoje me passa excelentes informações sobre o que acontece internamente no Gringotes!
O bruxo mexeu-se um pouco para cima e para baixo, sorrindo satisfeito consigo mesmo, e
apontou para as muitas fotografias em molduras reluzentes sobre o aparador, cada qual com
pequeninos ocupantes agitados.
— São todas de ex-alunos, todas com dedicatórias. Você pode ver Barnabás Cuffe, editor do
Profeta Diário, sempre interessado em conhecer a minha leitura das notícias do dia. E Ambrósio
Flume, da Dedosdemel, um cestão todo aniversário, e tudo porque o apresentei a Cícero Harkiss,
que lhe deu o primeiro emprego! E mais atrás... pode vê-la, se esticar o pescoço... Gwenog Jones,
que é a capita do Harpias de Holyhead... as pessoas sempre se surpreendem quando me ouvem
chamando os jogadores do Harpias pelo primeiro nome, e ganho entradas grátis sempre que
quero!
Este pensamento pareceu animá-lo enormemente.
— E todas essas pessoas sabem onde encontrar o senhor para lhe mandar presentes? —
perguntou Harry, que não pôde deixar de se perguntar por que os Comensais da Morte ainda não
tinham rastreado Slughorn se cestas de doces, bilhetes de quadribol e visitantes desejosos de
ouvir seus conselhos e opiniões conseguiam encontrá-lo.
O sorriso desapareceu do rosto de Slughorn com a mesma rapidez que o sangue das paredes
da sala.
— Claro que não — protestou, olhando para Harry. — Há um ano que não tenho contato
com ninguém.
Harry teve a impressão de que Slughorn se chocara com o que tinha acabado de dizer; por
um momento pareceu bastante perturbado. Depois sacudiu os ombros.
— Entretanto... o bruxo prudente procura não deixar a cabeça de fora em tempos como
esses. Dumbledore pode dizer o que quiser, mas aceitar um cargo em Hogwarts agora seria o
mesmo que declarar publicamente a minha lealdade à Ordem da Fênix! E, embora eu acredite que
eles sejam admiráveis e corajosos e tudo o mais, não me agrada muito o seu índice de
mortalidade.
— O senhor não precisa pertencer à Ordem para ensinar em Hogwarts — respondeu Harry,
que não conseguiu esconder um tom de desdém na voz; era difícil simpatizar com a vida cheia de
confortos de Slughorn quando se lembrava de Sirius, escondido em uma gruta, se alimentando de
ratos. — A maioria dos professores não pertence, e nenhum deles foi morto... bem, a não ser que
o senhor esteja contando Quirrell, mas ele recebeu o que merecia, considerando que trabalhava
para o Voldemort.
Harry tinha certeza de que Slughorn era um daqueles bruxos que não suportavam ouvir o
nome de Voldemort em alto e bom som, e não se desapontou: Slughorn estremeceu e soltou um
grasnido de protesto, a que o garoto não deu atenção.
— Imagino que os funcionários estarão mais seguros que a maioria das pessoas enquanto
Dumbledore for diretor; acredita-se que ele seja o único de quem Voldemort tem medo, não é? —
continuou Harry.
Por uns momentos o olhar de Slughorn pareceu distante: provavelmente refletia sobre as
palavras do garoto.
— Bem, é verdade que Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado nunca procurou lutar com
Dumbledore — murmurou contrafeito. — E imagino que alguém possa argumentar que se não
me uni aos Comensais da Morte, tampouco Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado pode me
incluir entre seus amigos... caso em que eu talvez estivesse mais seguro perto de Alvo... não
posso fingir que a morte de Amélia Bonés não tenha me abalado... se ela, com todos os seus contatos
e proteção no Ministério...
Dumbledore voltou à sala, sobressaltando Slughorn, que parecia ter esquecido que o amigo
estava na casa.
— Ah, aí está, Alvo. Ausentou-se por um bom tempo. Ruim do estômago?
— Não, estava apenas lendo revistas trouxas. Adoro as receitas de tricô. Bem, Harry, já
abusamos demais da hospitalidade do Horácio; acho que está na hora de partir.
Não demonstrando a menor relutância em obedecer, Harry pulou da poltrona. Slughorn
ficou surpreso.
— Vocês já estão indo?
— Estamos. Acho que sei reconhecer uma causa perdida quando a vejo.
— Perdida...?
Slughorn pareceu nervoso. Girou os polegares gordos e agitou-se enquanto observava
Dumbledore abotoar a capa de viagem e Harry fechar o blusão.
— Bem, lamento que não queira o emprego, Horácio — disse Dumbledore, erguendo a
mão perfeita em um gesto de adeus. —Hogwarts teria se alegrado com o seu retorno. Apesar das
medidas mais rigorosas de segurança que tomamos, você será sempre bem-vindo se quiser nos
visitar.
— Ah... bem... muito gentil... como digo...
— Adeus, então.
— Tchau — disse Harry.
Estavam à porta da casa quando ouviram um grito às suas costas.
— Muito bem, muito bem, eu vou!
Dumbledore virou-se e viu Slughorn ofegante à porta da sala de estar.
— Vai interromper a aposentadoria?
— Vou, vou — respondeu Slughorn impaciente. — Devo estar louco, mas vou.
— Maravilhoso — disse um sorridente Dumbledore. — Então, Horácio, veremos você no
primeiro dia de setembro.
— Com certeza verão — resmungou Slughorn.
Quando os visitantes já atravessavam o jardim, a voz de Slughorn acompanhou-os.
— Vou querer um aumento no salário, Dumbledore!
O diretor riu baixinho. O portão do jardim se fechou, e eles começaram a descer a ladeira
em meio ao torvelinho de névoa escura.
— Muito bom, Harry — elogiou Dumbledore.
— Eu não fiz nada — respondeu Harry, surpreso.
— Ah, fez, sim. Mostrou ao Horácio exatamente o que ele tem a ganhar se retornar a
Hogwarts. Você gostou dele?
— Ããh...
Harry não tinha certeza se tinha gostado ou não de Slughorn. Supunha que o bruxo fora
agradável a seu jeito, mas também lhe parecera vaidoso e, apesar dos seus protestos, demasiado
surpreso que alguém nascido trouxa pudesse dar um bom bruxo.
— Horácio — disse Dumbledore, aliviando Harry da responsabilidade de opinar — gosta de
conforto. E também gosta da companhia dos famosos, bem-sucedidos e poderosos. Gosta de
sentir que influencia essas pessoas. Nunca quis ocupar o trono; preferiu ficar em segundo plano,
onde tem mais espaço para se espalhar, entende. Costumava escolher a dedo os seus favoritos em
Hogwarts, às vezes por suas ambições ou inteligência, outras por seu encanto ou talento, e tinha
uma habilidade incrível de eleger os que futuramente se tornariam excepcionais em seus campos.
Horácio formou uma espécie de clube de favoritos em torno dele, fazendo apresentações, promovendo
contatos úteis entre os membros e sempre colhendo algum tipo de benefício, fosse uma
caixa de seu abacaxi cristalizado preferido ou uma oportunidade de recomendar o próximo
funcionário júnior para a Seção de Ligação com os Duendes.
Ocorreu a Harry a nítida imagem de uma grande aranha inchada, tecendo a teia em torno
dele, torcendo um fio aqui e outro ali para trazer mais perto suas moscas gordas e sumarentas.
— Digo tudo isso — continuou Dumbledore — não para indispor você contra Horácio, ou
como o chamaremos de hoje em diante, professor Slughorn, mas para alertá-lo. Ele certamente
tentará aliciá-lo, Harry. Você seria o diamante da coleção dele: O-Menino-Que-Sobreviveu... ou
como o chamam ultimamente, o Eleito.
Ao ouvir isso, Harry sentiu um arrepio que não tinha relação com a névoa que os cercava.
Lembrou-se das palavras que ouvira havia algumas semanas, palavras que para ele tinham um
significado terrível e particular.
Nenhum dos dois pode viver enquanto o outro sobreviver...
Dumbledore parará em frente à igreja pela qual tinham passado mais cedo.
— Aqui está bom, Harry. Se você puder segurar o meu braço. Experiente, desta vez, Harry
não se esquivou da Aparatação, embora continuasse a achá-la desagradável. Quando a pressão
cessou, e ele sentiu que conseguia respirar de novo, estava parado em uma estrada rural ao lado
de Dumbledore, diante da silhueta torta do segundo prédio de que mais gostava no mundo: A
Toca. Apesar do medo que acabara de experimentar, não podia deixar de se animar à vista da
casa. Rony estava ali dentro... e também a Sra. Weasley que cozinhava melhor do que qualquer
outra pessoa que ele conhecia...
— Se não se importar, Harry — disse Dumbledore, ao cruzarem o portão —, gostaria de dar
umas palavrinhas com você antes de nos despedirmos. Em particular. Talvez ali?
O diretor apontou para uma casinha de pedra desmantelada onde os Weasley guardavam as
vassouras. Um pouco intrigado, Harry acompanhou o bruxo e entraram por uma porta rangedora
em um espaço menor do que um guarda-roupa normal. Dumbledore acendeu a ponta da varinha,
fazendo-a brilhar como um archote, e sorriu para Harry.
— Espero que me perdoe por dizer isto, Harry, mas estou contente e até orgulhoso com o
seu comportamento depois de tudo que aconteceu no Ministério. Permita-me dizer que Sirius
teria sentido admiração por você.
Harry engoliu em seco; sua voz parecia tê-lo abandonado. Achava que não suportaria
discutir Sirius. Já fora bastante doloroso ouvir o tio Válter se admirar, "O padrinho dele morreu?",
e mais doloroso ainda ouvir o nome de Sirius dito displicentemente por Slughorn.
— Foi cruel — disse Dumbledore baixinho — que você e Sirius tivessem convivido tão
pouco tempo. Um fim brutal para o que poderia ter sido uma amizade feliz e duradoura.
Harry concordou com a cabeça, seus olhos resolutamente fixos na aranha que agora subia
pelo chapéu do diretor. Sentia que Dumbledore compreendia, e mesmo suspeitava que, até a
chegada de sua carta, ele tivesse passado quase todo o tempo deitado na cama, em casa dos
Dursley, se recusando a comer, com os olhos fixos na janela
enevoada, tomado pelo vazio gélido que passara a associar com os dementadores.
— É duro — disse Harry finalmente, em voz baixa — saber que ele não escreverá mais para
mim.
Seus olhos arderam de repente, e ele piscou. Sentiu-se idiota admitindo isso, mas o fato de
ter alguém fora de Hogwarts que se importava com o que lhe acontecia, quase como um parente,
tinha sido uma das melhores coisas de ter aquele padrinho... e agora a chegada do correio-coruja
nunca mais o confortaria...
— Sirius representou muita coisa que você não tinha conhecido antes — disse Dumbledore
com suavidade. — Naturalmente, a perda é devastadora.
— Mas enquanto estava na casa dos Dursley — interrompeu Harry, sua voz tornando-se
mais firme — percebi que não posso me isolar de tudo, senão vou ficar maluco. Sirius não teria
gostado disso, não é? De qualquer jeito, a vida é curta demais... vê a Madame Bonés, vê a
Emelina Vance... eu poderia ser o próximo, não é? Mas, se eu for —disse com ferocidade, agora
encarando os olhos azuis de Dumbledore, brilhando à luz da varinha —, vou fazer questão de
levar comigo o maior número de Comensais da Morte que puder, e Voldemort também, se tiver
forças.
— Você falou como filho de Lílian e Tiago e um legítimo afilhado de Sirius! — disse
Dumbledore dando uma palmadinha de aprovação em suas costas. — Tiro o chapéu para você, ou
tiraria se não fosse o receio de provocar uma chuva de aranhas em sua cabeça. E agora, Harry,
falando de outro assunto muito próximo... imagino que você tenha recebido O Profeta Diário
nessas duas últimas semanas?
— Recebi. — Seu coração acelerou um pouquinho.
— Então deve ter visto que houve não só vazamentos mas verdadeiras inundações sobre a
sua aventura na Sala da Profecia?
Harry confirmou.
— E agora todo o mundo sabe que eu sou o...
— Não, não sabe — interrompeu Dumbledore. — Só há duas pessoas no mundo inteiro que
conhecem toda a profecia sobre você e Lord Voldemort, e as duas estão aqui neste barraco de
vassouras, malcheiroso e cheio de aranhas. É verdade, porém, que muita gente adivinhou
corretamente que Voldemort mandou os seus Comensais da Morte roubarem a profecia, e que ela
se referia a você.
"Agora, acho que estou certo em pensar que você não contou a nenhum conhecido seu o que
dizia a profecia?"
— Está — respondeu Harry.
— Uma decisão sensata em termos gerais. Embora eu ache que pode abrandá-la em favor
dos seus amigos, o sr. Ronald Weasley e a srta. Hermione Granger. Sim — continuou o diretor,
ao ver Harry se espantar —, acho que eles devem saber. Seria um desserviço aos seus amigos se
não contasse a eles uma coisa tão importante.
— Eu não queria...
— Preocupar ou assustar os dois? — disse Dumbledore, estudando Harry por cima dos
oclinhos de meia-lua. — Ou talvez admitir que está preocupado e assustado? Você precisa dos
seus amigos, Harry. E, como disse com tanto acerto, Sirius não teria querido que você se isolasse.
Harry não respondeu, mas Dumbledore não precisava, de fato, de uma resposta. Prosseguiu:
— Sobre um assunto diferente, mas correlato, este ano quero que tenha aulas particulares
comigo.
— Particulares... com o senhor? — repetiu Harry, surpreso, quebrando o seu silêncio tenso.
— É. Acho que está na hora de participar mais da sua educação.
— Que é que o senhor vai me ensinar?
— Uma coisa aqui e outra ali — respondeu Dumbledore vagamente. Harry aguardou,
esperançoso, mas o diretor não explicou; então aproveitou para perguntar uma coisa que o
preocupava havia algum tempo.
— Se vou ter aulas com o senhor, não terei de freqüentar aulas de Oclumência com Snape,
terei?
— Professor Snape, Harry... e não, não terá.
— Que bom — exclamou Harry aliviado —, porque elas foram um... E parou, cuidando
para não dizer o que realmente pensava.
— Acho que a palavra "fiasco" caberia bem — sugeriu Dumbledore, assentindo com a
cabeça.
Harry riu.
— Bem, isto quer dizer que de agora em diante não verei o professor Snape muitas vezes,
porque ele não vai me deixar continuar em Poções a não ser que eu tire um "Ótimo" nos meus
N.O.M.s, e sei que não tirei.
— Não conte com os ovos que as corujas ainda não botaram — disse Dumbledore
sentencioso. — O que, se não me engano, deve acontecer ainda hoje. Agora, mais duas coisas
antes de nos separarmos.
"Primeiro, quero que, a partir deste momento, carregue sempre a Capa da Invisibilidade com
você. Até mesmo em Hogwarts. Só para se precaver, está me entendendo?"
Harry confirmou com a cabeça.
— E, por último, enquanto estiver aqui, A Toca estará recebendo a maior segurança que o
Ministério da Magia pode oferecer. Isto causou uma certa inconveniência a Arthur e Molly; toda
a correspondência deles, por exemplo, é verificada pelo Ministério antes de ser entregue. Eles não
se incomodam, porque a única preocupação que têm é a sua segurança. Mas seria uma péssima
retribuição se você arriscasse seu pescoço enquanto estiver aqui.
— Entendo — apressou-se Harry a dizer.
— Muito bem, então — disse Dumbledore, abrindo a porta do barraco de vassouras e
saindo. — Vejo luz na cozinha. Não vamos privar Molly, nem mais um instante, da oportunidade
de lamentar como você está magro.
CAPITULO CINCO
FLEUMA DEMAIS
HARRY E DUMBLEDORE SE APROXIMARAM da porta dos fundos d'A Toca, cercada pela
tralha habitual de botas velhas e caldeirões enferrujados; Harry ouviu o cacarejo abafado de
galinhas sonolentas vindo de um telheiro distante. Dumbledore bateu três vezes, e Harry percebeu
um movimento repentino por trás da janela da cozinha.
— Quem é? — perguntou uma voz nervosa, que ele reconheceu ser a da Sra. Weasley. —
Identifique-se!
— Dumbledore trazendo Harry.
A porta se abriu imediatamente. E apareceu a dona da casa, baixa e gorducha, usando um
velho robe verde.
— Harry, querido! Nossa, Alvo, você me assustou, não disse para não esperar vocês antes
de amanhecer?
— Tivemos sorte — disse o diretor, fazendo Harry entrar. —Slugborn foi mais fácil de
persuadir do que imaginei. Um feito de Harry, é claro. Ah, olá, Ninfadora!
Harry se virou e viu que a Sra. Weasley não estava sozinha, apesar da hora tardia. Uma
jovem bruxa de rosto pálido, em forma de coração, e cabelos castanhos sem vida, estava sentada à
mesa segurando uma caneca entre as mãos.
— Olá, professor. E aí, beleza, Harry?
— Oi, Tonks.
Harry achou que ela parecia muito cansada, e até doente, e que havia algo forçado em seu
sorriso. Sem dúvida, sua aparência estava mais desbotada do que de costume, sem os cabelos
rosa-chiclete.
— É melhor eu ir andando — disse depressa, levantando-se e cobrindo os ombros com a
capa. — Obrigada pelo chá e a simpatia, Molly.
— Por favor, não vá embora por minha causa — disse Dumbledore gentilmente. — Não
posso ficar, tenho assuntos urgentes a tratar com Rufo Scrimgeour.
— Não, não, preciso ir mesmo — respondeu Tonks, sem retribuir o olhar de Dumbledore.
— Noite...
— Querida, por que não vem jantar no fim de semana, Remo e Olho-Tonto virão...?
— Sério, Molly, não... mas, obrigada assim mesmo... boa-noite para todos.
Tonks passou ligeira por Dumbledore e Harry, e saiu para o quintal; a alguns passos da
porta, rodopiou e desapareceu no ar. Harry reparou que a Sra. Weasley parecia preocupada.
— Bem, verei você em Hogwarts, Harry — despediu-se Dumbledore.
— Cuide-se bem. Molly, às suas ordens.
Ele fez uma reverência à Sra. Weasley e saiu atrás de Tonks, desaparecendo exatamente no
mesmo lugar. A Sra. Weasley fechou a porta para o quintal vazio, segurou Harry pelos ombros e
o conduziu até a luz do candeeiro sobre a mesa para vê-lo melhor.
— Você é igual ao Rony — suspirou ela olhando-o de cima a baixo.
— Parece que alguém lançou em vocês um Feitiço Esticador. Juro que Rony cresceu dez
centímetros desde a última vez que comprei uniformes para ele. Está com fome, Harry?
— Estou — confirmou o garoto, percebendo de repente que estava faminto.
— Sente-se, querido, vou preparar alguma coisa.
Quando Harry sentou, um gato peludo e ruço, de cara amassada, pulou para os seus joelhos
e se acomodou ali, ronronando.
— Então a Hermione está aqui? — perguntou Harry contente, fazendo cócegas atrás da
orelha do Bichento.
— Ah, está, chegou anteontem — respondeu a Sra. Weasley, batendo com a varinha em um
panelão de ferro, que aterrissou no fogão com um baque sonoro e começou imediatamente a
borbulhar. — É claro que todos já foram dormir, só esperávamos vocês amanhã. Pronto...
Ela deu outra batida na panela que se ergueu no ar, voou até Harry e se inclinou; a Sra.
Weasley encaixou sob a panela uma tigela bem em tempo de aparar o caldo grosso e fumegante
da sopa de cebola.
— Pão, querido?
— Obrigado, Sra. Weasley.
Ela acenou a varinha por cima do ombro: um pão e uma faca voaram graciosamente até a
mesa. Quando o pão se fatiou e a panela de sopa voltou ao fogão, a bruxa sentou diante do garoto.
— Então foi você que convenceu Horácio Slughorn a aceitar o emprego?
Harry confirmou com a cabeça, a boca tão cheia de sopa quente que não conseguia falar.
— Ele foi nosso professor, meu e de Arthur. Esteve um tempão em Hogwarts, começou
mais ou menos na mesma época que Dumbledore, acho. Você gostou dele?
Agora com a boca cheia de pão, Harry encolheu os ombros e acenou a cabeça com
indiferença.
— Sei o que quer dizer — tornou a Sra. Weasley, confirmando, séria. — É claro que ele
sabe ser charmoso quando quer, mas Arthur jamais gostou muito dele. O Ministério está cheio de
antigos favoritos de Slughorn, sempre os ajudou a subir na vida, mas nunca teve muito tempo
para Arthur, talvez não achasse que ele chegaria tão longe. Bom, o que mostra que até Slughorn
se engana. Não sei se Rony lhe contou em alguma carta, acabou de acontecer, mas Arthur foi
promovido!
Não poderia ser mais evidente que a Sra. Weasley estava doida para contar a novidade.
Harry engoliu uma grande bocada de sopa escaldante e teve a sensação de que sua garganta
estava empolando.
— Que máximo! — ofegou.
— Você é muito gentil — disse sorrindo a sra. Weasley, possivelmente tomando as lágrimas
nos olhos de Harry por emoção com a notícia. — Sim, Rufo Scrimgeour criou várias seções
novas para enfrentar a situação atual, e Arthur está chefiando a Seção para Detecção e Confisco
de Feitiços Defensivos e Objetos de Proteção Forjados. É um trabalho de grande peso, e ele agora
tem dez subordinados!
— Que é exatamente... ?
— Bem, sabe, com todo esse pânico gerado por Você-Sabe-Quem, estão aparecendo objetos
estranhos à venda, coisas que dizem proteger a pessoa contra Você-Sabe-Quem e os Comensais
da Morte. Você pode imaginar que tipo de coisa: poções protetoras, que na realidade são molho
com um pouco de pus de bubotúberas, ou instruções para feitiços defensivos que fazem as orelhas
caírem... bem, os responsáveis principais são gente como Mundungo Fletcher, que nunca trabalhou
honestamente um só dia na vida, e que se aproveita do pavor das pessoas; mas de vez em
quando aparece alguma coisa realmente perigosa. Ainda outro dia, Arthur confiscou uma caixa de
bisbilhoscópios enfeitiçados, muito provavelmente plantados por um Comensal da Morte. Então,
como você vê, é um trabalho muito importante, e vivo dizendo a ele que é uma bobagem sentir
falta das velas para motores e torradeiras e toda aquela quinquilharia dos trouxas com que se
ocupava. — A Sra. Weasley encerrou seu discurso com um olhar severo, como se Harry é quem
tivesse sugerido que era natural sentir falta de velas.
— O Sr. Weasley ainda está no trabalho? — indagou Harry.
— Está. Aliás está um pouquinho atrasado... me disse que estaria em casa por volta da meianoite...
Molly se virou para olhar um grande relógio mal equilibrado em cima de uma pilha de
lençóis no cesto de roupas deixado na ponta da mesa. Harry reconheceu-o imediatamente: tinha
nove ponteiros, cada um deles com o nome de um membro da família, e costumava ficar
pendurado em uma parede na sala de estar dos Weasley. Sua posição atual, porém, indicava que a
Sra. Weasley passara a carregá-lo com ela por toda a casa. No momento, os nove ponteiros
apontavam para perigo mortal.
— Ele tem estado assim — explicou a sra. Weasley em um tom descontraído, muito pouco
convincente — desde que Você-Sabe-Quem saiu da clandestinidade. Suponho que todo o mundo
esteja correndo perigo mortal... acho que não pode ser só a nossa família... mas não conheço
ninguém que tenha um relógio igual, por isso não posso verificar. Ah!
Com uma exclamação repentina, ela apontou para o mostrador do relógio. O ponteiro do Sr.
Weasley se movera para "em trânsito".
— Ele está a caminho!
E, confirmando, um instante depois ouviu-se uma batida na porta dos fundos. A Sra.
Weasley levantou-se depressa e correu a atendê-la. Com uma das mãos na maçaneta e o rosto
encostado na madeira, perguntou baixinho:
— Arthur, é você?
— Sou — tornou a voz cansada do Sr. Weasley. — Mas eu diria isto, querida, mesmo que
fosse um Comensal da Morte. Faça a pergunta correta!
— Ah, francamente...
— Molly!
— Está bem, está bem... qual é a maior ambição de sua vida?
— Descobrir como os aviões se sustentam no ar.
A Sra. Weasley assentiu e girou a maçaneta, mas pelo visto o sr. Weasley estava segurandoa
com firmeza pelo outro lado, porque a porta continuou fechada.
— Molly! Sou em quem pergunta primeiro!
— Arthur, realmente, que tolice...
— Como é que você gosta que eu a chame quando estamos sozinhos? Mesmo à luz fraca do
candeeiro, deu para Harry ver que a Sra.
Weasley ficara muito vermelha; ele próprio sentiu um calor em torno das orelhas e do
pescoço, e engoliu a sopa depressa, batendo com a colher na tigela o mais alto que pôde.
— Moliuóli — sussurrou a mortificada Sra. Weasley pela fresta da porta.
— Correto — disse o Sr. Weasley. — Agora pode me deixar entrar.
A Sra. Weasley abriu a porta revelando o marido, um bruxo magro, os cabelos ruivos já
rareando, óculos de aros de tartaruga e uma longa capa de viagem empoeirada.
— Continuo sem entender por que temos de fazer isso todas as vezes que você chega em.
casa — protestou a Sra. Weasley, com o rosto ainda corado, ajudando o marido a tirar a capa. —
Quero dizer, um Comensal da Morte poderia ter obrigado você a dar a resposta antes de se
disfarçar!
— Eu sei, querida, mas são as regras do Ministério, e tenho de dar o exemplo. Estou
sentindo um cheiro bom: sopa de cebola?
O Sr. Weasley virou-se esperançoso na direção da mesa.
— Harry! Só esperávamos você amanhã!
Os dois se apertaram as mãos, e o Sr. Weasley se largou em uma cadeira ao lado de Harry
enquanto sua mulher punha uma tigela de sopa para ele também.
— Obrigado, Molly. Foi uma noite pesada. Um idiota começou a vender Medalhas-
Metamórficas. A pessoa pendura uma no pescoço e pode mudar de aparência à vontade. Cem mil
disfarces por dez galeões!
— E o que realmente acontece quando se pendura a medalha?
— A maioria das pessoas fica com uma feia cor alaranjada, mas em outras surgem verrugas
em forma de tentáculos no corpo inteiro. Como se o St. Mungus já não tivesse muito o que fazer.
— Está me parecendo o tipo de coisa que Fred e Jorge achariam engraçado — comentou a
Sra. Weasley hesitante. — Você tem certeza...
— Claro que tenho! Os meninos não fariam uma coisa dessas justamente agora que as
pessoas estão desesperadas para se proteger!
— Então foi por isso que você se atrasou, Medalhas-Metamórficas?
— Não, soubemos de um Feitiço às Avessas, em Elephant and Castle, mas, felizmente,
quando chegamos lá, o Esquadrão de Execução das Leis da Magia já tinha resolvido o caso...
Harry ergueu a mão para abafar um bocejo.
— Cama — disse uma Sra. Weasley sem se deixar enganar. — Já arrumei o quarto de Fred
e Jorge para você, será todo seu.
— Por que, aonde eles foram?
— Ah, estão no beco Diagonal, dormindo no apartamentinho em cima da loja de logros,
porque estão muito ocupados — disse a Sra. Weasley. — Confesso que a princípio não aprovei,
mas realmente parecem ter jeito para o negócio! Vamos, querido, o seu malão já está lá em cima.
— Noite, Sr. Weasley — disse Harry, recuando a cadeira. Bichento saltou com leveza de
seu colo e desapareceu da cozinha.
— B'noite, Harry.
O garoto viu a Sra. Weasley olhar para o relógio no cesto de roupas quando saíram da
cozinha. Todos os ponteiros estavam mais uma vez marcando perigo mortal.
O quarto de Fred e Jorge era no segundo andar. A Sra. Weasley apontou a varinha para uma
lâmpada na mesinha-de-cabeceira e imediatamente ela acendeu, inundando o quarto com uma
agradável claridade dourada. Embora houvesse um grande vaso de flores sobre uma escrivaninha
diante de uma pequena janela, seu perfume não conseguia disfarçar o cheiro que impregnava o
quarto e que, para Harry, era de pólvora. Uma grande parte do chão estava ocupada por várias
caixas de papelão lacradas, mas sem identificação, entre as quais se encontrava o malão de Harry.
Aparentemente o quarto estava sendo usado como um depósito provisório.
Edwiges piou alegremente em seu poleiro em cima de um grande guarda-roupa, e em
seguida saiu voando pela janela; Harry sabia que a coruja estava esperando para vê-lo antes de
sair à caça. Harry desejou boa noite à Sra. Weasley, vestiu o pijama e se meteu entre as cobertas
de uma das camas. Havia um objeto duro na fronha. Ele apalpou-a por dentro e puxou um doce
pegajoso, roxo e laranja, que reconheceu como Vomitilha. Sorrindo, virou-se para o outro lado e
adormeceu instantaneamente.
Segundos depois, ou assim pareceu a Harry, ele acordou com tiros que imaginou serem de
canhão, ao mesmo tempo que a porta se escancarava. Ao sentar-se na cama, ouviu alguém
abrindo as cortinas: era como se a claridade ofuscante do sol lhe golpeasse os olhos com força.
Protegendo-os com uma das mãos, ele tateou inutilmente com a outra, à procura dos óculos.
— Que é isso?
— Nós não sabíamos que você já estava aqui! — disse urna voz alta e excitada, e Harry
sentiu um soco no cocuruto da cabeça.
— Rony, não bata nele! — ralhou uma voz de garota.
Harry encontrou os óculos e colocou-os, embora o excesso de claridade não lhe permitisse
enxergar quase nada. Um vulto longo agigantou-se à sua frente por um momento; ele piscou e
Rony Weasley entrou em foco, sorrindo.
— Tudo bem?
— Nunca estive melhor — respondeu Harry, esfregando o cocuruto e se largando em cima
dos travesseiros. — Você?
— Nada mal — replicou o amigo, puxando uma caixa e sentando-se nela. — Quando foi
que você chegou? Mamãe acabou de nos contar!
— Mais ou menos à uma hora da manhã.
— Foi tudo bem com os trouxas? Trataram você direito?
— Do jeito de sempre — respondeu Harry, enquanto Hermione se empoleirava na beira da
cama. — Não falaram muito comigo, mas gosto mais assim. E você como vai, Mione?
— Ah, estou ótima — respondeu a garota, que o examinava atentamente, como se ele
estivesse doente.
Harry achava que sabia o porquê e, como não tinha o menor desejo de discutir a morte de
Sirius ou qualquer outro assunto triste naquele momento, perguntou:
— Que horas são? Perdi o café da manhã?
— Não se preocupe, mamãe está trazendo uma bandeja para você; ela acha que está
desnutrido — tranqüilizou-o Rony, revirando os olhos para o teto. — Então, quais são as
novidades?
— Muito poucas, até agora estive encalhado na casa dos meus tios, não é?
— Fala sério, cara! — exclamou Rony. — Você esteve viajando com Dumbledore!
— Não foi tão excitante assim. Ele só queria que eu convencesse um antigo professor a
interromper a aposentadoria. Um tal Horácio Slughorn.
— Ah. — Rony pareceu desapontado. — Pensamos que... Hermione lançou-lhe um olhar de
advertência, e na mesma hora
Rony mudou de assunto.
— ... pensamos que poderia ser uma coisa dessas.
— Pensaram? — Harry achou graça.
— É... é, já que a Umbridge foi embora, é óbvio que precisaremos de um novo professor de
Defesa contra as Artes das Trevas, não acha? Então, hum, como é que ele é?
— Lembra um pouco um leão-marinho e foi diretor da Sonserina — informou Harry. —
Alguma coisa errada, Hermione?
A garota observava o amigo como se esperasse que ele manifestasse sintomas estranhos a
qualquer instante. Mas se recompôs depressa e deu um sorriso nada convincente.
— Não, claro que não! E aí, você acha que o Slughorn vai dar um bom professor?
— Não sei. Não pode ser pior do que a Umbridge, pode?
— Eu conheço alguém, que é pior do que a Umbridge. — A irmã mais nova de Rony
adentrou o quarto, irritada. — Oi, Harry.
— Qual é o problema? — perguntou Rony.
— Ela. — Gina se largou na cama de Harry. — Está me deixando pirada.
— Que foi que ela fez agora? — perguntou Hermione, solidária.
— É o modo como fala comigo, como se eu tivesse três anos de idade!
— Eu sei — concordou Hermione baixando a voz. — Ela é tão sebosa! Harry ficou
espantado de ouvir Hermione se referir à Sra. Weasley daquele jeito, e não pôde culpar Rony por
retrucar com raiva:
— Será que vocês duas não podem parar de implicar com ela por cinco minutos?
— Ah, vai, defende — retrucou Gina. — A gente sabe que você não se cansa dela.
Era um comentário estranho sobre a mãe de Rony; começando a achar que perdera alguma
coisa, Harry perguntou:
— De quem vocês...?
A pergunta foi respondida antes que ele a terminasse. A porta do quarto tornou a se
escancarar, e o garoto instintivamente puxou as cobertas até o queixo com tanta força que
Hermione e Gina foram parar no chão.
Havia uma jovem parada no portal, e sua beleza era tão sufocante que o quarto pareceu ficar
estranhamente abafado.
Era alta e esguia, e tinha cabelos compridos e louros que davam a impressão de refletir um
leve fulgor prateado. Para completar a visão, a jovem trazia uma pesada bandeja com o café da
manhã de Harry.
— Arry — disse com uma voz gutural. — Faz tante tempe! — Quando cruzou o portal e foi em
direção a Harry, a Sra. Weasley surgiu logo atrás, parecendo muito aborrecida.
— Não precisava trazer a bandeja. Eu mesma já vinha trazer!
— Nam foi trrabalhe nenhum — disse Fleur Delacour, apoiando a bandeja nos joelhos de
Harry e curvando-se num movimento ágil para lhe dar um beijo em cada bochecha: ele sentiu
uma queimação onde a moça encostara os lábios. — Estave doide parra verr ele. Lembrra minhe
irman, Gabrielle? Não parra de falarr em Arry Potter. Vai ficarr encantade de reverr você.
— Ah... ela também está aqui? — grasnou Harry.
— Nam, nam, bobin — retrucou Fleur com um sorriso tilintante. — Querr dizerr ne
prróxime verrão, quande nós... mas você ainde nam sabe?
Seus grandes olhos se arregalaram e, com ar de censura, fixaram a Sra. Weasley, que disse:
— Ainda não tivemos tempo de contar.
Fleur voltou sua atenção para Harry, sacudindo a cabeleira prateada contra o rosto da Sra.
Weasley.
— Gui e eu vamos nos casar!
— Ah — exclamou Harry sem entender. Não pôde deixar de notar que a Sra. Weasley,
Hermione e Gina evitavam deliberadamente se olhar. — Uau. Ah... felicidades!
Fleur deu outro mergulho para beijá-lo outra vez.
— Gui stá muite ocupade ne momente, trrabalhande muite, eu só trrabalho parrte de dia ne
Grringotes parra melhorrar meu inglês, entam ele me trrouxe prra passarr uns dies e conhecerr a
família dele dirreite. Fique tam feliz que você vinhe... nam tem muite que fazerr aqui se a gente
nam goste de cozinha e galinhes! Beim: bom apetite, Arry!
E, dizendo isso, ela se virou graciosamente, como se flutuasse, e saiu do quarto, fechando a
porta sem fazer ruído.
A Sra. Weasley soltou uma exclamação que soou como um tcha .
— Mamãe detesta ela — comentou Gina baixinho.
— Eu não detesto a moça! — protestou a Sra. Weasley num sussurro irritado. — Acho que
se apressaram demais para noivar, só isso.
— Eles já se conhecem há um ano — justificou Rony, que parecia estranhamente tonto com
os olhos pregados na porta fechada.
— Ora, não é tanto tempo assim! Obviamente eu sei por que foi. Com toda essa incerteza
por causa da volta de Você-Sabe-Quem, as pessoas acham que podem estar mortas amanhã, então
tomam decisões precipitadas que normalmente demorariam a tomar. Foi o mesmo que aconteceu
da última vez que ele se tornou poderoso, gente fugindo para casar a torto e a direito...
— Inclusive você e papai — concluiu Gina astutamente.
— Verdade, mas seu pai e eu fomos feitos um para o outro, por que iríamos esperar? —
justificou-se a Sra. Weasley. — Enquanto no caso de Gui e Fleur... bem... que é que eles têm
realmente em comum? Ele é um rapaz trabalhador, uma pessoa que tem os pés no chão, enquanto
ela é...
— Uma vaca — emendou Gina, confirmando o que dizia com a cabeça. — Mas Gui não
tem os pés no chão. É um desfazedor de feitiços, não é?, gosta de um pouco de aventura, um
pouco de glamour... imagino que tenha sido por isso que se apaixonou pela Fleuma.
— Pare de chamar a moça assim, Gina — falou com rispidez a Sra. Weasley, enquanto
Harry e Hermione riam. — Bem, é melhor eu continuar... coma os ovos enquanto estão quentes,
Harry.
Com um ar apreensivo, ela saiu do quarto. Rony continuava com cara de quem levara um
soco; sacudia a cabeça como um cachorro que quisesse sacudir a água dos ouvidos.
— Você não se acostuma com ela nem morando na mesma casa? —perguntou Harry.
— Bem, me acostumo — explicou Rony —, mas se ela aparece de repente, como agora há
pouco...
— É patético — explodiu Hermione, tomando distância de Rony e virando-se de frente para
enfrentá-lo, de braços cruzados, ao deparar com a parede.
— "Você não quer realmente que ela fique aqui para sempre, não é? — perguntou Gina ao
irmão, incrédula. Ao notar que ele apenas encolhia os ombros, continuou: — A mamãe vai dar
um basta nessa história, se puder, aposto o que você quiser.
— E como ela vai conseguir isso? — perguntou Harry.
— Ela não pára de convidar a Tonks para almoçar. Acho que tem esperança de que Gui se
apaixone por ela. Torço para que isso aconteça, prefiro muito mais a Tonks em nossa família.
— Estou mesmo vendo isso acontecer — comentou Rony com sarcasmo. — Escute aqui,
nenhum cara com o juízo perfeito vai preferir a Tonks se a Fleur estiver por perto. Quero dizer, a
Tonks é legal quando não faz bobagens com o cabelo e o nariz, mas...
— Ela é muito mais bonita do que a Fleuma — teimou Gina.
— E é mais inteligente, é uma auror! — falou Hermione lá do seu canto.
— A Fleur não é burra, teve mérito suficiente para participar do Torneio Tribruxo — disse
Harry.
— Ah, você também, Harry? — exclamou Hermione desapontada.
— Suponho que você goste do jeito com que a Fleuma diz "Arry", é isso? — perguntou
Gina com desprezo.
— Não — respondeu Harry, desejando não ter aberto a boca. — Eu só estava dizendo que a
Fleuma, quero dizer, a Fleur...
— Pois eu prefiro ter a Tonks na nossa família. Pelo menos ela é divertida.
— Ela não tem sido muito divertida ultimamente — retrucou Rony.
— Todas as vezes que a vi, estava parecendo mais a Murta-Que-Geme.
— Isto não é justo — protestou Hermione rispidamente. — Ela ainda não superou o que
aconteceu... sabe... quero dizer, ele era primo dela!
Harry sentiu um aperto no coração. Tinham chegado a Sirius. Ele apanhou um garfo e
começou a encher a boca de ovos mexidos, esperando evitar convites para participar daquela
conversa.
— Tonks e Sirius mal se conheciam! — lembrou Rony. — Sirius esteve preso em Azkaban
metade da vida dela e antes disso as famílias dos dois nem se encontravam...
— A questão não é essa — disse Hermione. — Ela acha que foi a responsável pela morte de
Sirius!
— E como é que ela chegou a essa conclusão? — perguntou Harry, mesmo sem querer.
— Bem, ela estava enfrentando Belatriz Lestrange, concorda? A minha impressão é que
Tonks sente que, se a tivesse liquidado, Belatriz não poderia ter matado Sirius.
— Que idiotice — comentou Rony.
— É o sentimento de culpa de quem sobrevive. Sei que Lupin tentou argumentar, mas ela
continua deprimida. Está tendo até problemas para se metamorfosear!
— Para o quê...?
— Não consegue mais mudar a aparência como costumava fazer — explicou Hermione. —
Acho que os poderes dela devem ter sido afetados pelo choque ou coisa do gênero.
— Eu não sabia que isso era possível — admirou-se Harry.
— Nem eu — falou Hermione —, mas suponho que se a pessoa ficar realmente deprimida...
A porta tornou a abrir e a Sra. Weasley meteu a cabeça no quarto.
— Gina — sussurrou —, desce e vem me ajudar a preparar o almoço.
— Estou conversando com a galera! — reclamou Gina indignada.
— Agora! — mandou a Sra. Weasley, e se retirou.
— Ela só quer a minha companhia para não ter de ficar sozinha com a Fleuma! —
continuou Gina enfurecida. E agitou os longos cabelos ruivos para os lados, em uma boa imitação
de Fleur, andando pelo quarto com os braços erguidos como se fosse uma bailarina.
— E galera, é melhor vocês descerem logo também — disse ao sair. Harry aproveitou o
silêncio momentâneo para comer mais.
Hermione espiava dentro das caixas de Fred e Jorge, embora, de tempos em tempos,
lançasse um olhar de esguelha para Harry. Rony agora estava se servindo da torrada de Harry,
ainda contemplando sonhadoramente a porta.
— Que é isso? — perguntou por fim Hermione, erguendo um objeto que parecia um
pequeno telescópio.
— Sei lá — respondeu Rony. — Fred e Jorge deixaram isso aí, provavelmente ainda não
está pronto para ser vendido na loja, cuidado.
— Sua mãe diz que a loja está indo bem — comentou Harry. — Que Fred e Jorge realmente
têm jeito para o negócio.
— Isto é dizer pouco — comentou Rony. — Eles estão se enchendo de galeões! Nem posso
esperar para ver a loja. Ainda não fomos ao beco Diagonal, porque mamãe diz que papai tem de
ir também por medida de segurança, e ele tem andado muito ocupado no trabalho. Parece que a
loja vai bem demais.
— E o Percy? — quis saber Harry. Ele tinha se afastado do resto da família. — Já voltou a
falar com seu pai e sua mãe?
— Não.
— Mas ele sabe que o seu pai tinha razão sobre o retorno de Voldemort...
— Dumbledore diz que as pessoas acham mais fácil perdoar os outros quando estão errados
do que quando estão certos — lembrou Hermione. — Eu o ouvi dizendo isso à sua mãe, Rony.
— Parece o tipo de frase "cabeça" que Dumbledore diria — sentenciou ele.
— Este ano ele vai me dar aulas particulares — informou Harry em tom descontraído.
Rony engasgou com a torrada e Hermione ofegou.
— E você ficou na moita! — exclamou Rony.
— Só me lembrei agora — respondeu Harry com sinceridade. — Ele me disse ontem à noite
no barracão das vassouras.
— Caramba... aulas particulares com Dumbledore! — Rony ficou impressionado. — Por
que será que ele...
Sua voz foi sumindo. Harry viu os dois amigos se entreolharem. O garoto descansou a faca
e o garfo, o coração acelerado, considerando que estava apenas sentado numa cama. Dumbledore
o aconselhara a contar... por que não agora? Ele fixou o olhar no garfo que refletia os raios de sol
sobre o seu colo e disse:
— Não sei exatamente por que ele vai me dar aulas, mas acho que deve ser por causa da
profecia.
Nem Rony nem Hermione falaram. Harry teve a impressão de que os dois tinham
congelado. Ele continuou, ainda se dirigindo ao garfo:
— Aquela que estavam tentando roubar do Ministério.
— Mas ninguém sabe o que dizia — argumentou Hermione. — Quebrou-se.
— Embora o Profeta diga que... — começou Rony, mas Hermione pediu silêncio.
— O Profeta acertou — confirmou Harry, fazendo um grande esforço para encarar os
amigos; Hermione parecia assustada e Rony admirado. — O globo de vidro que quebrou não era
o único registro da profecia. Eu a ouvi completa no gabinete de Dumbledore, foi para ele que
fizeram a profecia, daí ele pôde me contar. Pelo que dizia — Harry tomou fôlego —, sou eu que
tenho de liquidar o Voldemort... pelo menos ela dizia que nenhum dos dois poderia viver
enquanto o outro sobrevivesse.
Os três se fitaram em silêncio por um momento. Ouviram, então, um estampido forte e
Hermione desapareceu em uma baforada de fumaça negra.
— Hermione! — gritaram Harry e Rony; a bandeja com o café da manhã escorregou e bateu
no chão com estrondo.
Hermione reapareceu, tossindo, envolta em fumaça, ainda segurando o telescópio e exibindo
um olho roxo berrante.
— Eu apertei isso e... e recebi um soco! — arquejou a garota.
E sem a menor dúvida, eles viam agora um punho minúsculo preso a uma comprida mola
que saía da ponta do telescópio.
— Não se preocupe — tranqüilizou-a Rony, tentando visivelmente não cair na gargalhada.
— Mamãe dará um jeito no seu olho, ela é ótima para curar pequenos machucados...
— Ah, esqueçam isso agora! — apressou-se Hermione a dizer. —Harry, ah, Harry...
Ela tornou a sentar na beira da cama.
— Ficamos imaginando, quando voltamos do Ministério... é óbvio que não quisemos lhe
dizer nada, mas, pelo que Lúcio Malfoy disse sobre a profecia, que era sobre você e o Voldemort,
bem, achamos que devia ser uma coisa assim... ah, Harry... — Ela encarou-o e sussurrou: —
Você está apavorado?
— Não tanto quanto já estive. Quando ouvi a profecia pela primeira vez, sim... mas agora
tenho a sensação de que já sabia que no fim eu teria de enfrentar Voldemort...
— Quando ouvimos dizer que Dumbledore ia apanhar você pessoalmente, achamos que
talvez fosse lhe dizer alguma coisa, ou mostrar alguma coisa com relação à profecia — disse
Rony ansioso. — E tínhamos uma certa razão, não é? Ele não iria lhe dar aulas se achasse que
você já era, não iria perder tempo: então deve achar que você tem uma chance!
— É verdade — disse Hermione. — Que será que ele vai lhe ensinar, Harry? Magia
defensiva muito avançada, provavelmente... contramaldições poderosas... contrafeitiços...
Harry não estava realmente ouvindo. Sentia-se invadir por um calor que não vinha do sol;
um bloqueio em seu peito parecia estar se dissolvendo. Sabia que Rony e Hermione estavam mais
chocados do que demonstravam, mas o fato de continuarem a seu lado, consolando-o com
palavras animadoras, sem fugir dele como se pudesse contagiá-los ou oferecer perigo, valia mais
do que jamais poderia dizer a eles.
— ... e encantamentos evasivos de maneira geral — concluiu Hermione. — Bem, pelo
menos você já sabe uma das matérias que vai estudar este ano, o que é mais do que o Rony e eu
sabemos. Quando será que vão chegar os resultados dos nossos N.O.M.s?
— Devem estar chegando, já faz um mês — disse Rony.
— Calma aí — atalhou Harry, lembrando-se de mais uma parte da conversa da noite
anterior. — Acho que Dumbledore falou que os resultados iriam chegar hoje!
— Hoje! — esganiçou-se Hermione. — Hoje? Mas por que você não... ah, meu Deus... você
devia ter dito...
Ela se levantou depressa.
— Vou ver se chegou alguma coruja...
Mas quando Harry chegou ao térreo, dez minutos depois, todo vestido e carregando a
bandeja vazia do café, encontrou Hermione sentada à mesa da cozinha muito agitada, enquanto a
Sra. Weasley tentava dar um jeito em sua cara de urso panda de um olho só.
— Não quer sair — dizia ansiosa a Sra. Weasley, ao lado de Hermione, com a varinha na
mão e um exemplar de O curandeiro aprendiz aberto no capítulo "Hematomas, cortes e
escoriações". — Isto sempre funcionou antes, não consigo entender.
— Deve ser a idéia de brincadeira engraçada de Fred e Jorge, garantir que não saia —
comentou Gina.
— Mas tem de sair! — guinchou Hermione. — Não posso andar por aí com uma cara dessa
para sempre.
— Você não vai, querida, vamos encontrar um antídoto, não se preocupe — tranqüilizou-a a
Sra. Weasley.
— Gui me contu que Frred e Jorrge son mui te engrraçades! — disse Fleur, sorrindo
calmamente.
— São, sim, nem consigo respirar de tanto rir — retrucou Hermione. Ela se pôs de pé de
repente e começou a dar voltas e mais voltas pela cozinha, girando os dedos.
— Sra. Weasley, a senhora tem absoluta certeza de que não chegou nenhuma coruja hoje de
manhã?
— Claro, querida, eu teria visto — respondeu a bruxa pacientemente. — Mas mal acabou de
dar nove horas, tem muito tempo ainda...
— Eu sei que fiz besteira em Runas Antigas — murmurou Hermione febril. —
Decididamente fiz no mínimo um erro grave de tradução. E o exame prático de Defesa contra as
Artes das Trevas foi péssimo. No dia, achei que tinha me dado bem em Transfiguração, mas
pensando melhor...
— Hermione, quer fazer o favor de calar a boca, você não é a única que está nervosa! —
falou Rony com rispidez. — E quando receber os seus onze "ótimos" nos N.O.M.s...
— Não, não, não! — exclamou Hermione, agitando as mãos histericamente. — Sei que não
passei em nada!
— E o que acontece se a gente não passar? — perguntou Harry, sem se dirigir a ninguém
em particular, mas Hermione respondeu outra vez.
— Discutimos as opções com a diretora da Casa, perguntei à professora McGonagall no fim
do trimestre passado.
Harry sentiu o estômago revirar. Gostaria de ter comido menos ao café da manhã.
— An Beaubattons — disse Fleur com superioridade —, fazems tude diferrante. Ache qu
erra melhorr. Prrestávams exams depôs de sês ans de estude e non cinque come aqui, e depôs...
As palavras de Fleur foram abafadas por um grito. Hermione estava apontando para a janela
da cozinha. Viam-se três pontos negros no céu, cada vez maiores.
— Positivamente são corujas — falou Rony rouco, pulando da mesa para se juntar à amiga
na janela.
— E são três — acrescentou Harry, correndo para o outro lado da amiga.
— Uma para cada um de nós — disse Hermione num sussurro aterrorizado. — Ah, não...
ah, não... ah, não...
Ela agarrou os cotovelos de Harry e Rony.
As aves estavam voando diretamente para A Toca, três belas corujas pardas, cada uma —
tornou-se visível quando sobrevoaram a entrada da casa — trazia um grande envelope quadrado.
— Ah, não! — guinchou Hermione.
A Sra. Weasley tomou a frente dos garotos e abriu a janela da cozinha. Uma, duas, três
corujas entraram voando e pousaram na mesa em fila. As três estenderam a perna direita.
Harry se adiantou. A carta endereçada a ele estava presa à perna da coruja do meio. Ele
desamarrou-a, atrapalhado. À sua esquerda, Rony tentava soltar as próprias notas; à direita, as
mãos de Hermione tremiam tanto que ela fazia a coruja inteira tremer.
Ninguém na cozinha falou. Por fim, Harry conseguiu desprender o envelope. Abriu-o ligeiro
e desdobrou o pergaminho que havia dentro.
RESULTADOS NOS NÍVEIS ORDINÁRIOS EM MAGIA
Notas de aprovação: Notas de reprovação:
Ótimo (O) Péssimo (P)
Excede Expectativas (E) Deplorável (D)
Aceitável (A) Trasgo (T)
RESULTADOS OBTIDOS POR HARRY POTTER
Adivinhação P
Astronomia A
Defesa contra as Artes das Trevas O
Feitiços E
Herbologia E
História da Magia D
Poções E
Transfiguração E
Trato das Criaturas Mágicas E
Harry leu o pergaminho todo várias vezes, começando a respirar aliviado a cada leitura.
Tudo bem: sempre soube que não iria passar em Adivinhação, e não tivera chance de passar em
História da Magia, uma vez que desmaiara no meio do exame, mas passara em todo o resto!
Correu o dedo pelas notas... fora bem em Transfiguração e Herbologia, e até excedera a
expectativa em Poções! E o melhor de tudo, recebera "Ótimo" em Defesa contra as Artes das
Trevas!
Olhou para os lados. Hermione estava de costas e cabeça baixa, mas Rony parecia muito
feliz.
— Só não passei em Adivinhação e História da Magia, mas quem se importa — comentou
alegremente com Harry. — Aqui... vamos trocar...
Harry passou os olhos pelas notas de Rony: não havia nenhum "Ótimo"...
— Eu sabia que você ia tirar a nota máxima em Defesa contra as Artes das Trevas — disse
ele, dando um soco no ombro de Harry. — Nos saímos bem, não?
— Parabéns! — exclamou a Sra. Weasley orgulhosa, arrepiando os cabelos de Rony. —
Sete N.O.M.s, é mais do que Fred e Jorge tiraram juntos!
— Hermione? — perguntou Gina hesitante, porque a amiga ainda não se virará. — E você,
como foi?
— Eu... nada mal — respondeu Hermione muito baixinho.
— Ah, corta essa — rebateu Rony se aproximando e puxando os resultados da mão dela. —
É: nove "Ótimo" e um "Excede Expectativas" em Defesa contra as Artes das Trevas. — E,
encarando-a meio risonho, meio exasperado. — Você está realmente desapontada, não é?
Hermione sacudiu negativamente a cabeça, mas Harry riu.
— Bem, agora somos alunos do N.I.E.M.! — exclamou Rony sorridente. — Mamãe, ainda
tem salsichas?
Harry tornou a ler os seus resultados. Eram tão bons quanto poderia ter esperado. Só sentia
uma pontadinha de arrependimento... era o fim de sua ambição de ser auror. Não obtivera a nota
exigida em Poções. Soubera o tempo todo que não conseguiria, mas sentiu o estômago afundar ao
olhar mais uma vez para o pequeno "E" preto.
Era bem estranho, visto que tinha sido um Comensal da Morte disfarçado quem dissera pela
primeira vez que Harry daria um bom auror, que a idéia o tivesse conquistado e ele não
conseguisse realmente pensar em outra profissão futura. Além disso, tinha lhe parecido o destino
certo para ele desde que ouvira a profecia há um mês... nenhum poderá viver enquanto o outro
sobreviver... não estaria assim cumprindo a profecia e dando a si mesmo a melhor chance de
sobreviver, se entrasse para o grupo de bruxos altamente treinados cuja função era encontrar e
matar Voldemort?

6/10

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