segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Harry Potter e o Enigma do Príncipe 6/10



CAPÍTULO SEIS
A FUGIDA DE DRACO
HARRY PERMANECEU DENTRO DOS LIMITES do jardim d'A Toca nas semanas seguintes.
Passava a maior parte dos dias jogando quadribol em duplas no pomar dos Weasley (ele e
Hermione contra Rony e Gina; Hermione era péssima e Gina boa, portanto estavam razoavelmente
equilibrados) e, as noites, repetindo três vezes tudo que a Sra. Weasley punha à sua frente
para comer.
Teriam sido umas férias felizes e tranqüilas se não fossem os casos de desaparecimentos,
acidentes estranhos e até mortes que agora eram noticiados quase diariamente no Profeta. Por
vezes Gui e o Sr. Weasley traziam para casa notícias que ainda não tinham chegado ao jornal.
Para desgosto da Sra. Weasley, a festa do décimo sexto aniversário de Harry foi perturbada pelos
espantosos relatos feitos por Remo Lupin, que parecia magro e deprimido, os cabelos castanhos
fartamente embranquecidos, suas roupas mais rotas e remendadas que nunca.
— Tinha havido mais dois ataques de dementadores — anunciou ele, quando a Sra.
Weasley lhe ofereceu uma grossa fatia de bolo de aniversário. — E encontraram o corpo de Igor
Karkaroff em um barraco no norte do país. Sobre o local pairava a Marca Negra, aliás, para ser
franco, fico surpreso que ele tenha sobrevivido quase um ano depois de desertar os Comensais da
Morte; lembro que o irmão de Sirius, Regulo, durou poucos dias.
— Foi — disse a Sra. Weasley —, mas quem sabe devíamos mudar o rumo dessa...
— Você soube o que aconteceu com o Florean Fortescue, Remo? —perguntou Gui, a quem
Fleur não parava de servir vinho. — O cara que dirigia...
— ... a sorveteria no beco Diagonal? — interrompeu Harry, sentindo um vazio desagradável
no fundo do estômago. — Ele costumava me servir sorvetes de graça. Que aconteceu com ele?
— Foi levado à força, pelo estado em que ficou a sorveteria.
— Por quê? — indagou Rony; a Sra. Weasley olhou irritada para Gui.
— Quem vai saber? Deve ter aborrecido os caras. Era um bom sujeito, o Florean.
— Por falar em beco Diagonal — lembrou o Sr. Weasley —, parece que o Olivaras também
desapareceu.
— O fabricante de varinhas? — exclamou Gina surpresa.
— O próprio. A loja está vazia. Não há sinais de luta. Ninguém sabe se foi embora porque
quis ou se foi seqüestrado.
— Mas e as varinhas: onde é que as pessoas vão conseguir varinhas?
— Terão de se arranjar com os outros fabricantes — respondeu Lupin. — Mas o Olivaras
era o melhor, e se o outro lado o tiver levado não será bom para nós.
No dia seguinte a essa sombria festa de aniversário, chegaram cartas de Hogwarts e as listas
de material escolar. As de Harry incluíam uma surpresa: fora nomeado capitão de quadribol.
— Isto equipara você aos monitores! — exclamou Hermione alegre. — Agora vai poder
usar o nosso banheiro particular e todo o resto!
— Uau, eu me lembro de quando Carlinhos usava um desses —disse Rony examinando,
satisfeito, o crachá. — Harry, que legal, você vai ser o meu capitão, se me deixar voltar ao time,
imagino, ha ha...
— Bem, acho que não podemos adiar mais a ida ao beco Diagonal, agora que receberam as
cartas — suspirou a Sra. Weasley, passando os olhos pela lista de Rony. — Iremos no sábado se o
seu pai não precisar, outra vez, ir trabalhar. Não quero ir sem ele.
— Mamãe, a senhora acha sinceramente que Você-Sabe-Quem vai estar escondido atrás de
uma estante na Floreios e Borrões? — falou Rony rindo.
— Fortescue e Olivaras saíram de férias, não foi? — respondeu a Sra. Weasley se irritando
mais uma vez. — Se você acha que a segurança é motivo para risadas, pode ficar em casa que eu
mesma compro o seu material...
— Não, eu quero ir, quero ver a loja de Fred e Jorge! — Rony interrompeu-a rapidamente.
— Então guarde as suas opiniões para si mesmo, rapazinho, antes que eu decida que é
imaturo demais para ir conosco! — retrucou a mãe com raiva, agarrando o relógio com os nove
ponteiros, que continuavam a indicar perigo mortal, e equilibrando-o sobre a pilha de toalhas
lavadas. — E isso se aplica à volta a Hogwarts também!
Rony virou-se para Harry, incrédulo, enquanto sua mãe erguia nos braços o cesto de roupas
e o relógio mal equilibrado, e saía, brava, do aposento.
— Caracas... não se pode mais nem brincar nesta casa...
Mas, nos dias que se seguiram, Rony tomou cuidado para não falar levianamente de
Voldemort. O sábado amanheceu sem outros rompantes da Sra. Weasley, embora ela parecesse
muito tensa ao café da manhã. Gui, que ia ficar em casa com Fleur (para grande alegria de
Hermione e Gina), passou uma bolsa cheia de dinheiro para Harry.
— E cadê o meu? — perguntou Rony, na mesma hora, de olhos arregalados.
— Já está com o Harry, idiota — replicou Gui. — Saquei do cofre para você, Harry, porque
está levando cinco horas para o público acessar os depósitos em ouro, tão rigorosas estão as
medidas de segurança. Dois dias atrás, enfiaram, vocês sabem onde, um honestímetro no Arkie
Philpott... bem, confiem em mim, assim foi mais fácil.
— Obrigado, Gui — disse Harry, embolsando seu ouro.
— Ele é sempre tam atenciose — ronronou Fleur com ar de adoração, acariciando o nariz de
Gui. Gina fingiu que vomitava na tigela de cereal por trás de Fleur. Harry se engasgou com seu
cornflakes, e Rony deu-lhe tapas nas costas.
Fazia um dia nublado e escuro. Um dos carros especiais do Ministério da Magia, em que
Harry já andara, estava aguardando à frente da casa quando eles saíram ainda vestindo as capas.
— Que bom que papai pode requisitar carros outra vez — comentou Rony grato,
espreguiçando-se com prazer enquanto o carro saía suavemente d'A Toca; Gui e Fleur acenavam
da janela da cozinha. Rony, Harry, Hermione e Gina estavam confortavelmente acomodados no
largo banco traseiro.
— É melhor não se acostumarem, é só por causa do Harry — lembrou o Sr. Weasley por
cima do ombro do garoto. Ele e a mulher iam no banco dianteiro com o motorista do Ministério;
o banco se desdobrara obsequiosamente em uma espécie de sofá de dois lugares. — Ele é
considerado de máxima segurança. E vamos receber reforços no Caldeirão Furado.
Harry não fez comentário algum; não lhe agradava fazer compras cercado de um batalhão
de aurores. Guardara a Capa da Invisibilidade na mochila e achava que, se bastava para
Dumbledore, deveria bastar para o Ministério, embora, pensando melhor, ele não tivesse muita
certeza se o Ministério sabia da existência de sua capa.
— Chegamos — anunciou o motorista, após um tempo surpreendentemente rápido, falando
pela primeira vez ao reduzir a marcha em Charing Cross e parar à porta do Caldeirão Furado. —
Tenho ordens de esperar pelos senhores, têm idéia do quanto tempo vão demorar?
— Umas duas horas, espero — respondeu o Sr. Weasley. — Ah, que bom, ele está aqui!
Harry imitou o Sr. Weasley e espiou pela janela; seu coração deu um pulo. Não havia
aurores à porta da estalagem, e, no lugar deles, reconheceu a forma barbuda de Rúbeo Hagrid, o
guarda-caça de Hogwarts, vestindo um longo casaco de pele de castor e sorrindo ao ver o rosto de
Harry, indiferente aos olhares assustados dos trouxas que passavam.
— Harry! — trovejou ele, arrebatando o garoto num abraço de moer os ossos, no momento
em que Harry desceu do carro. — Bicuço, quero dizer, Asafugaz, você devia ver Harry, está tão
feliz de voltar ao ar livre...
— Que bom que está feliz — respondeu Harry, rindo e massageando as costelas. — Não
sabíamos que "reforços" queria dizer você!
— Eu sei, como nos velhos tempos, né? Sabe, o Ministério queria mandar um bando de
aurores, mas Dumbledore disse que bastava eu — explicou Hagrid orgulhoso, estufando o peito e
enfiando os polegares nos bolsos. — Então, vamos andando... vocês primeiro, Molly, Arthur...
Pela primeira vez na lembrança de Harry, o Caldeirão Furado estava completamente vazio.
Do pessoal antigo, só restava Tom, o estalajadeiro, enrugado e sem dentes. Ergueu a cabeça
esperançoso quando o grupo entrou, mas, antes que pudesse falar, Hagrid anunciou cheio de
importância:
— Só estamos de passagem, Tom, você compreende. Assuntos de Hogwarts, sabe como é.
Tom assentiu com tristeza e continuou a enxugar copos; Harry, Hermione, Hagrid e os
Weasley atravessaram o bar e saíram para o pequeno pátio frio nos fundos, onde ficavam as latas
de lixo. Hagrid ergueu seu guarda-chuva cor-de-rosa e deu uma pancadinha em um certo tijolo no
muro, que instantaneamente se abriu em arco, revelando uma tortuosa rua de pedras.
Eles atravessaram e pararam olhando para todos os lados.
O beco Diagonal mudara. Os arranjos coloridos e brilhantes nas vitrinas exibindo livros de
feitiços, ingredientes e caldeirões para poções estavam ocultos por grandes cartazes do Ministério
da Magia. A maioria, sombria e roxa, era uma versão ampliada dos panfletos sobre segurança que
tinham sido distribuídos pelo Ministério durante o verão, mas outros continham fotos animadas
em preto e branco dos Comensais da Morte que se sabiam estar foragidos. Belatriz Lestrange
sorria desdenhosamente na fachada do boticário mais próximo. Algumas vitrines estavam
fechadas com tábuas, inclusive a da Sorveteria Florean Fortescue. Em contraposição, tinham
surgido várias barracas de aspecto miserável ao longo da rua. A mais próxima, instalada à porta
da Floreios e Borrões sob um toldo de listras manchado, exibia um letreiro de papelão:
Amuletos: Contra Lobisomens, Dementadores e Inferi
Um bruxo miúdo e mal-encarado sacudia braçadas de correntes com símbolos prateados
para os transeuntes.
— Uma para sua garotinha, madame? — ofereceu à Sra. Weasley quando passaram,
sorrindo lascivamente para Gina. — Para proteger esse lindo pescocinho?
— Se eu estivesse de serviço... — disse o Sr. Weasley, olhando com raiva o vendedor de
amuletos.
— Sei, mas não vai sair prendendo ninguém agora, querido, estamos com pressa — replicou
a Sra. Weasley, nervosa,
consultando uma lista. — Acho que é melhor irmos à Madame Malkin primeiro, Hermione quer
vestes de festa novas e os uniformes de Rony não estão mais nem cobrindo os tornozelos dele, e
você também deve estar precisando de novos, Harry, cresceu tanto... vamos, todos...
— Molly, não faz sentido irmos todos à Madame Malkin — ponderou o Sr. Weasley. — Por
que os três não vão com Hagrid, e nós vamos comprar todos os livros escolares na Floreios e
Borrões?
— Não sei — respondeu a Sra. Weasley ansiosa, visivelmente dividida entre o desejo de
terminar as compras rápido e o de manter o grupo unido. — Hagrid, você acha...?
— Não se preocupe, eles vão ficar bem comigo, Molly — disse Hagrid, tranqüilizando-a e
fazendo um aceno vago com a mão enorme, do tamanho de uma tampa de latão. A Sra. Weasley
não pareceu inteiramente convencida, mas permitiu a separação, apressando-se em direção à
Floreios e Borrões, com o marido e Gina, enquanto Harry, Rony, Hermione e Hagrid seguiam
para a Madame Malkin.
Harry reparou que muitas pessoas que passavam por eles tinham a mesma expressão
mortificada da Sra. Weasley, e que ninguém mais parava para conversar; os compradores se
mantinham em grupos coesos, absortos em seus próprios afazeres. Aparentemente ninguém
estava fazendo compras sozinho.
— Acho que vai ficar meio apertado lá dentro com todos nós —falou Hagrid, parando à
porta da Madame Malkin e se abaixando para espiar pela vitrine. — Vou ficar de guarda aqui
fora, tá?
Então Harry, Rony e Hermione entraram juntos na lojinha. No primeiro momento parecia
vazia, mas, assim que a porta se fechou atrás deles, ouviram uma voz conhecida que vinha de trás
de uma arara de vestes formais verdes e azuis com brilhos.
— ... não sou criança, caso a senhora não tenha reparado, mãe. Sou perfeitamente capaz de
fazer minhas compras sozinho.
Ouviram, então, um muxoxo e uma voz que Harry reconheceu ser da Madame Malkin falou:
— Bem, querido, sua mãe tem razão, ninguém deve ficar andando por aí sozinho, não é uma
questão de ser ou não criança...
— Vê se olha onde está enfiando esse alfinete!
Um adolescente pálido, de rosto pontudo e cabelos louro-brancos apareceu por trás da arara
usando um belo conjunto de vestes verde-escuras, em que cintilavam alfinetes na barra da saia e
das mangas. Ele caminhou até o espelho e estudou o efeito; demorou um momento para notar
Harry, Rony e Hermione refletidos por cima do seu ombro. Seus olhos cinza-claro se estreitaram.
— Se você queria saber a razão do mau cheiro, mãe, uma Sangue-Ruim acabou de entrar —
disse Draco Malfoy.
— Acho que não há necessidade de falar assim! — disse Madame Malkin, saindo ligeira de
trás da arara, segurando uma fita métrica e uma varinha. — E também não quero ninguém
empunhando varinhas na minha loja! — apressou-se a acrescentar, porque, ao olhar em direção
da porta, viu Harry e Rony parados ali com as varinhas apontadas para Malfoy.
Hermione, que estava um pouco atrás, sussurrou:
— Não, não façam nada, sinceramente, não vale a pena...
— É, como se vocês se atrevessem a usar magia fora da escola —debochou Malfoy. —
Quem lhe deu o olho roxo, Granger? Quero mandar flores para eles.
— Agora basta! — disse Madame Malkin energicamente, olhando por cima do ombro era
busca de apoio. — Madame, por favor...
Narcisa Malfoy saiu de trás da arara de roupas.
— Guardem isso — disse friamente para Harry e Rony. — Se vocês atacarem o meu filho
outra vez, vou garantir que seja a última coisa que farão na vida.
— Verdade? — retrucou Harry dando um passo à frente e observando o rosto ligeiramente
arrogante que, mesmo pálido, ainda lembrava o da irmã. Ele estava da altura dela agora. — Vai
mandar uns coleguinhas Comensais nos matar, vai?
Madame Malkin soltou um guincho e levou as mãos ao coração.
— Francamente, você não devia fazer acusações... dizer uma coisa perigosa dessas...
Guardem as varinhas, por favor!
Mas Harry não baixou a varinha. Narcisa Malfoy deu um sorriso antipático.
— Estou vendo que o fato de ser o favorito de Dumbledore lhe deu uma falsa sensação de
segurança, Harry. Mas Dumbledore não estará sempre aqui para protegê-lo.
Harry correu os olhos por toda a loja com um ar zombeteiro.
— Uau... quem diria... ele não está aqui agora! Então, por que não experimentar? Talvez lhe
arranjem uma cela de casal em Azkaban para fazer companhia ao perdedor do seu marido!
Malfoy fez um movimento agressivo em direção a Harry, mas tropeçou nas vestes muito
longas. Rony soltou uma sonora gargalhada.
— Não se atreva a falar com a minha mãe assim, Potter! — vociferou Malfoy.
— Tudo bem, Draco — disse Narcisa segurando o ombro do filho com os dedos finos e
pálidos. — Prevejo que Potter irá se reunir ao querido Sirius antes de eu me reunir ao Lúcio.
Harry ergueu sua varinha mais alto.
— Harry, não! — gemeu Hermione, agarrando o braço do amigo e tentando baixá-lo. —
Pensa... você não deve... vai se meter em uma encrenca...
Madame Malkin agitou-se um momento sem sair do lugar, então resolveu agir como se nada
estivesse acontecendo, na esperança de que de fato não acontecesse. Curvou-se para Malfoy, que
ainda encarava Harry com ferocidade.
— Acho que essa manga esquerda devia ser um pouquinho mais curta, querido, me deixe...
— Ai! — berrou Malfoy, dando-lhe um tapa na mão. — Olhe onde enfia os alfinetes,
mulher! Mãe... acho que não quero mais essas vestes...
E, puxando as vestes pela cabeça, atirou-as no chão aos pés de Madame Malkin.
— Você tem razão, Draco — disse Narcisa, lançando um olhar de desprezo a Hermione —,
agora sei o tipo de ralé que compra aqui... será melhor comprarmos na Talhejusto e Janota.
Dito isto, os dois saíram da loja, Malfoy fazendo questão de esbarrar com toda a força em
Rony, a caminho da porta.
— Francamente! — exclamou Madame Malkin, apanhando as roupas e passando a ponta da
varinha por cima para remover o pó, como se fosse um aspirador.
A bruxa se mostrou aturdida durante toda a prova das vestes de Rony e Harry, e tentou
vender modelos masculinos para Hermione em lugar de femininos, e, quando finalmente
acompanhou-os à porta da loja, exibia o ar de quem estava contente de vê-los pelas costas.
— Compraram tudo? — perguntou Hagrid animado quando os garotos reapareceram ao seu
lado.
— Quase tudo — respondeu Harry. — Você viu os Malfoy?
— Vi — confirmou Hagrid indiferente. — Mas eles não iam se atrever a provocar
confusões no meio do beco Diagonal, Harry, não se preocupe.
Harry, Rony e Hermione se entreolharam, mas, antes que pudessem desiludir Hagrid de
idéia tão reconfortante, o casal Weasley e Gina chegou, carregando pesados pacotes de livros.
— Vocês estão bem? — indagou a Sra. Weasley. — Compraram as vestes? Ótimo, então,
podemos dar uma passada no boticário e no Empório das Corujas, a caminho da loja do Fred e
Jorge... fiquem juntos...
Nem Harry nem Rony compraram ingredientes no boticário, porque não iam mais estudar
Poções, mas, no empório, compraram grandes caixas de nozes para Edwiges e Píchi. Então, com
a Sra. Weasley consultando o relógio a cada minuto, desceram a rua à procura da Gemialidades
Weasley, a loja de logros de Fred e Jorge.
— Não temos realmente muito tempo — alertou a Sra. Weasley. — Então vamos dar uma
olhada rápida e voltar logo para o carro. Devemos estar bem perto, estamos no noventa e dois...
noventa e quatro...
— Eh! — exclamou Rony parando de chofre.
Encaixada entre fachadas sem graça, cobertas de cartazes, as vitrines de Fred e Jorge
chamavam a atenção como uma queima de fogos. Transeuntes distraídos olhavam por cima do
ombro para as vitrines, e alguns muito espantados chegavam a parar, petrificados. A vitrine da
esquerda ofuscava a vista tal a variedade de artigos que giravam, espocavam, piscavam,
quicavam e gritavam; os olhos de Harry começaram a lacrimejar só de olhar. A vitrine da direita
estava tomada por um gigantesco cartaz, roxo como os do Ministério, mas enfeitado com letras
amarelas pulsantes.
Para que se preocupar com Você-Sabe-Quem?
DEVIA mais era se preocupar com
O-APERTO-VOCÊ-SABE-ONDE
a prisão de ventre que acometeu a nação!
Harry caiu na gargalhada. Ouviu um gemido fraquinho ao seu lado e, ao se virar, deparou
com a Sra. Weasley olhando estarrecida para o cartaz. Seus lábios se moviam, silenciosamente,
enunciando as palavras "O-Aperto-Você-Sabe-Onde".
— Vão matar esses dois! — murmurou ela.
— Não, não vão! — contestou Rony, que, como Harry, estava às gargalhadas! — É genial!
E ele e Harry entraram na loja. Estava apinhada de fregueses: Harry não conseguia chegar às
prateleiras. Ficou examinando tudo, olhando as caixas empilhadas até o teto: ali estavam o kit
Mata-Aula que os gêmeos tinham aperfeiçoado no ano em que abandonaram Hogwarts, sem
concluir o curso; Harry reparou que o Nugá Sangra-Nariz era o que saía mais, e restava apenas
uma caixa arrebentada na prateleira. Havia latões cheios de varinhas de brinquedo. As mais
baratas faziam aparecer galinhas de borracha ou calças compridas quando agitadas; as mais caras
batiam no pescoço ou na cabeça do usuário desavisado; caixas de penas de escrever, nas opções
Caneta-Tinteiro, Auto-Revisora e Resposta-Esperta. Abriu-se um espaço na multidão e Harry
pôde chegar ao balcão, onde um bando de crianças de dez anos observavam felizes um
homenzinho de madeira subir lentamente os degraus de um patíbulo com duas forcas de verdade
em cima de um caixote, onde se lia: Forca Reciclável — Soletre certo ou se enforque!
"Feitiços Patenteados para Devanear..."
Hermione conseguira se apertar até um grande mostruário junto ao balcão, e estava lendo a
informação no verso de uma caixa com a foto muito colorida de um belo rapaz e uma moça
desmaiando no tombadilho de um navio pirata.
"Um simples encantamento e você mergulhará em um devaneio de trinta minutos
excepcionalmente realista. Fácil de usar em uma aula normal e virtualmente imperceptível
(efeitos colaterais: olhar vago e ligeira baba). Venda proibida a menores de dezesseis anos."
— Sabe — comentou Hermione, erguendo os olhos para Harry —, esta mágica é realmente
extraordinária!
— Só por causa disso, Hermione — disse uma voz atrás deles —, você pode levar uma de
graça.
Um Fred sorridente estava diante deles, usando um conjunto de vestes magenta que
contrastavam magnificamente com seus cabelos muito ruivos.
— Como vai, Harry? — Eles se apertaram as mãos. — E que aconteceu com o seu olho,
Hermione?
— Foi o seu telescópio esmurrador — respondeu a garota pesarosa.
— Ah, caramba, esqueci os telescópios — disse Fred. — Tome...
E entregou a Hermione uma bisnaga que puxou do bolso; quando ela tirou a tampa,
desajeitada, apareceu uma pasta amarela.
— É só passar que o roxo desaparecerá em uma hora — disse Fred. — Temos de achar um
removedor decente para hematomas, estamos testando a maioria dos produtos em nós mesmos.
Hermione pareceu apreensiva.
— É seguro?
— Claro que é — respondeu Fred tranqüilizando-a. — Vamos, Harry, quero lhe mostrar a
loja.
Harry deixou Hermione passando a pasta no olho roxo e acompanhou Fred em direção aos
fundos do salão, onde viu um mostruário com cartas e truques com cordas.
— Truques de magia dos trouxas — explicou contente, apontando os artigos. — Para
excêntricos feito papai, sabe, que adoram coisas dos trouxas. Não são campeões de vendas, mas
têm saída constante, são grandes novidades... Ah, aí vem o Jorge...
O gêmeo de Fred apertou a mão de Harry com energia.
— Fazendo o tour pela loja? Venha até os fundos, Harry, é onde está o nosso lucro, você aí,
se meter alguma coisa no bolso, vai pagar mais do que dez galeões! — ele advertiu um garotinho
que largou depressa um tubinho rotulado: Marcas Negras Comestíveis: Deixam qualquer um
doente!
Jorge afastou uma cortina ao lado das mágicas dos trouxas e Harry viu uma sala mais escura
e mais vazia. As embalagens dos produtos nas prateleiras eram mais discretas.
— Acabamos de desenvolver esta linha mais séria — disse Fred. — Foi engraçado como
aconteceu...
— Você não acreditaria quantas pessoas, até mesmo funcionários do Ministério não
conseguem fazer um Feitiço-Escudo decente —explicou Jorge. — É claro que não tiveram você
como professor, Harry.
— Sério... bem, achamos que os chapéus-escudo eram uma piada. Sabe, você põe o chapéu
e desafia o colega a lançar um feitiço e fica olhando a cara dele quando o feitiço simplesmente
não funciona. Mas o Ministério comprou quinhentos para todo o pessoal de apoio! E continuamos
recebendo pedidos enormes!
— Então ampliamos a linha para incluir capas-escudo, luvas-escudo...
— ... quer dizer, não serviriam para proteger o cara das Maldições Imperdoáveis, mas para
feitiços e encantamentos de leves a moderados...
— E pensamos em cobrir toda a área de Defesa contra as Artes das Trevas, porque é uma
mina de ouro — continuou Jorge entusiasmado. — Este aqui é legal. Veja, Pó Escurecedor
Instantâneo, estamos importando do Peru. Maneiro para quem quer desaparecer rápido.
— E os Detonadores-Chamariz estão praticamente fugindo das nossas prateleiras, olhe. —
Fred apontou para uma quantidade de objetos pretos esquisitos, dotados de apito que de fato
tentavam sumir de vista. — A pessoa deixa cair um, sem ninguém ver, e ele sai correndo e
apitando até sumir, e com isso desvia as atenções se precisar.
— Maneiro — comentou Harry impressionado.
— Leve alguns — ofereceu Jorge, apanhando uns dois e atirando-os para Harry.
Uma jovem bruxa de cabelos louros e curtos enfiou a cabeça por um lado da cortina; Harry
notou que ela também usava o uniforme magenta da loja.
— Tem um freguês lá fora querendo um caldeirão de mentira, senhores Weasley — avisou a
moça.
Harry achou muito estranho ouvir alguém chamar Fred e Jorge de senhores Weasley, mas
eles aceitavam o tratamento com naturalidade.
— Certo, Vera, já estou indo — disse Jorge prontamente. — Harry, apanhe o que quiser,
está bem? Oferta da casa.
— Não posso fazer isso! — protestou Harry, que já puxara a bolsa para pagar pelos
Detonadores-Chamariz.
— Aqui você não paga — disse Fred com firmeza, dispensando o ouro de Harry.
— Mas...
— Você nos doou o capital inicial, não esquecemos — lembrou Jorge, sério. — Leve o que
quiser e basta dizer às pessoas onde encontrou, caso perguntem.
Jorge passou rápido pela cortina e foi ajudar a atender a freguesia, e Fred voltou com Harry
para o salão principal, onde encontraram Hermione e Gina ainda examinando a caixa dos Feitiços
para Devanear.
— Vocês ainda não descobriram os nossos produtos Bruxa Maravilha? — perguntou Fred.
— Sigam-me, senhoras...
Próximo à vitrine, havia um arranjo de produtos rosa berrante em torno do qual jovens
excitadas davam risadinhas entusiásticas. Hermione e Gina se detiveram mais atrás, cautelosas.
— Aí estão — anunciou Fred orgulhoso. — Melhor linha de poções de amor que vocês
podem encontrar no mundo.
Gina ergueu a sobrancelha descrente.
— E funcionam?
— Claro que funcionam, por um período de até vinte e quatro horas de cada vez,
dependendo do peso corporal do rapaz em questão...
— ... e a atração exercida pela moça — completou Jorge, reaparecendo de repente ao lado
deles. — Mas não vamos vendê-las à nossa irmã — acrescentou, ficando inesperadamente sério.
— Não quando já existem cinco rapazes no circuito.
— Se foi o Rony que lhe informou isso é uma baita mentira —retrucou Gina calmamente,
curvando-se para tirar um potinho rosa da prateleira. — E isso o que é?
— O Infalível Removedor de Espinhas em Dez Segundos — disse Fred. — Excelente para
tudo, de furúnculos a cravos, mas não mude de assunto. No momento você está ou não está
saindo com um rapaz chamado Dino Thomas?
— Estou. E da última vez que o vi, ele era um rapaz e não cinco. E aquilo ali?
Gina apontou para umas bolas redondas e felpudas em tons de rosa e roxo que giravam no
fundo de uma gaiola emitindo guinchos agudos.
— Mini-Pufes — informou Jorge. — Pufosos miniatura, não conseguimos reproduzi-los
com a velocidade necessária. E o Miguel Corner?
— Acabei com ele, era mau perdedor — respondeu Gina, enfiando um dedo pela grade da
gaiola e observando os Mini-Pufes se aglomerarem em volta. — São muito fofinhos!
— É, dão vontade de apertar — admitiu Fred. — Mas você está trocando de namorado meio
rápido, não?
Gina virou-se para encarar o irmão, com as mãos nos quadris. Em seu rosto, havia uma
expressão, "Sra. Weasley", que surpreendeu Harry. Fred não se intimidou.
— Não é da sua conta. E ficarei muito agradecida a você — acrescentou com raiva para
Rony, que acabara de aparecer ao lado de Jorge, carregado de mercadorias —, se parar de contar
a esses dois mentiras a meu respeito!
— São três galeões, nove sicles e um nuque — somou Fred, examinando as muitas caixas
que Rony trazia nos braços. — Pode se coçar.
— Sou seu irmão!
— E o que você está levando é nosso. Três galeões, nove sicles, não precisa pagar o nuque.
— Mas eu não tenho três galeões e nove sicles!
— Então é melhor devolver tudo, e para as prateleiras certas. Rony deixou cair várias caixas
e fez um gesto obsceno para Fred; por azar, foi visto pela Sra. Weasley, que escolhera aquele
momento para reaparecer.
— Se eu vir você fazendo isso outra vez, colo os seus dedos com um feitiço — avisou ela
com rispidez.
— Mamãe, posso comprar um Mini-Pufe? — perguntou Gina sem perder tempo.
— Um o quê? — perguntou a mãe desconfiada.
— Olha, são tão bonitinhos...
A Sra. Weasley deu um passo para examinar os Mini-Pufes, e Harry, Rony e Hermione
momentaneamente puderam ver a rua através da vitrine. Draco Malfoy ia subindo a rua depressa
e sozinho. Ao passar pela Gemialidades Weasley, olhou por cima do ombro. Segundos depois,
saiu do campo de visão dos três.
— E cadê a mãe dele? — indagou Harry, enrugando a testa.
— Pelo jeito, Malfoy a despistou — respondeu Rony.
— Mas por quê? — admirou-se Hermione.
Harry não respondeu; ficou muito pensativo. Voluntariamente, Narcisa Malfoy não deixaria
seu precioso filho fora de suas vistas; ele devia ter se empenhado para fugir de suas garras. Harry,
conhecendo e desprezando Malfoy, tinha certeza de que havia segundas intenções naquilo.
Ele olhou ao redor. A Sra. Weasley e Gina estavam curvadas para os Mini-Pufes. O Sr.
Weasley examinava encantado um baralho trouxa com as cartas marcadas. Fred e Jorge estavam
atendendo a fregueses. Do outro lado da vitrine, Hagrid estava parado de costas para a loja,
vigiando os dois lados da rua.
— Entrem depressa aqui embaixo — disse Harry tirando a Capa da Invisibilidade da
mochila.
— Ah... não sei, Harry. — Hermione olhou insegura para a Sra. Weasley.
— Anda logo! — insistiu Rony.
Ela hesitou mais um segundo, e entrou embaixo da capa com Harry e Rony. Ninguém
reparou no desaparecimento deles; estavam muito interessados nos produtos de Fred e Jorge.
Harry, Rony e Hermione se apertaram entre os fregueses para sair da loja o mais ligeiro possível,
mas, quando finalmente alcançaram a rua, Malfoy também conseguira desaparecer.
— Ele estava indo naquela direção — murmurou Harry baixinho, para evitar que Hagrid,
que cantarolava, os ouvisse.
— Vamos.
Os três saíram apressados, olhando para a direita e a esquerda, passaram por vitrines e
portas, e por fim Hermione apontou em frente.
— Não é ele ali? — cochichou ela. — Virando à esquerda?
— Grande surpresa — respondeu Rony também cochichando. Porque Malfoy olhara para os
lados e entrara na travessa do Tranco.
— Depressa senão o perdemos — disse Harry, acelerando o passo.
— Vão ver os nossos pés — comentou Hermione ansiosa, sentindo a capa esvoaçar e bater
nos tornozelos deles; hoje em dia era muito mais difícil esconder os três.
— Não faz mal — impacientou-se Harry —, se apressem!
Mas a travessa do Tranco, a rua lateral dedicada às Artes das Trevas, parecia completamente
vazia. Eles espiaram pelas vitrines ao passar, mas não havia fregueses nas lojas. Harry supunha
que nesses tempos perigosos e suspeitos seria bandeiroso comprar artigos das trevas ou, pelo
menos, ser visto comprando algum.
Hermione beliscou o braço do amigo com força.
— Ai!
— Shh! Olha ele ali! — sussurrou a garota no ouvido de Harry. Tinham chegado à única
loja da travessa do Tranco que Harry já visitara: a Borgin e Burkes, que homenageava um ladrão
e um envenenador famosos, e era especializada em uma grande variedade de objetos sinistros.
Ali, no meio de caixotes cheios de crânios e garrafas velhas, encontrava-se Draco Malfoy, de
costas para eles, mal discernível além do mesmíssimo armário grande e escuro em que Harry se
escondera para evitar os Malfoy, pai e filho. A julgar pelo movimento das mãos, Malfoy falava
animadamente. O dono da loja, o Sr. Borgin, um homem untuoso e encurvado, estava diante dele.
O bruxo tinha uma curiosa expressão em que se misturavam o rancor e o medo.
— Se ao menos a gente pudesse ouvir o que estão dizendo! — lamentou Hermione.
— Podemos! — exclamou Rony excitado. — Calma aí... pô...
Ele deixou cair umas caixas, que ainda estava carregando, enquanto remexia na maior delas.
— Orelhas Extensíveis, veja!
— Fantástico! — admirou-se Hermione, enquanto Rony desenrolava os compridos fios cor
de carne e começava a apontá-los em direção à parte inferior da porta. — Ah, espero que a porta
não esteja Imperturbável...
— Não está! — respondeu Rony com alegria. — Escute!
Eles juntaram as cabeças para escutar atentamente as pontas dos fios, pelos quais ouviam a
voz de Malfoy em alto e bom som, como se tivessem ligado um rádio.
— ... o senhor sabe como consertar?
— É possível — respondeu Borgin, indicando, pelo seu tom, que não queria se
comprometer. — Mas primeiro preciso vê-la. Por que não traz aqui à loja?
— Não posso — argumentou Malfoy. — Tem de ficar onde está. Só preciso que me diga
como consertar.
Harry viu Borgin umedecer nervosamente os lábios.
— Bem, sem ver, devo dizer que é uma tarefa muito difícil, talvez impossível. Não posso
garantir nada.
— Não? — retrucou o rapaz, e, só pelo seu tom, Harry percebeu que sorria com desdém. —
Talvez isto lhe dê mais segurança.
Malfoy aproximou-se de Borgin e desapareceu atrás do armário. Harry, Rony e Hermione
chegaram para o lado tentando mantê-lo em seu campo visual, mas só conseguiram ver Borgin,
que parecia muito amedrontado.
— Comente isto com alguém — disse Malfoy — e sofrerá o castigo merecido. O senhor
conhece Fenrir Greyback? É um amigo de família, e virá visitá-lo de vez em quando para
verificar se o senhor está dedicando total atenção ao problema.
— Não há necessidade de...
— Eu é que decido isso — respondeu Malfoy. — Bem, é melhor eu ir andando. E não se
esqueça de guardar isso em lugar seguro. Vou precisar dela.
— Talvez queira levá-la agora?
— Não, claro que não, seu homenzinho burro, como é que eu ficaria carregando isso pela
rua? Mas não a venda.
— Claro que não... senhor.
Borgin fez uma reverência tão profunda quanto Harry o vira fazer para Lúcio Malfoy.
— E nem uma palavra para ninguém, Borgin, nem mesmo minha mãe, entendeu?
— Naturalmente, naturalmente — murmurou Borgin, curvando-se mais uma vez.
No momento seguinte, a sineta da porta tilintou sonoramente, indicando a saída de Malfoy
da loja, demonstrando grande satisfação consigo mesmo. Passou tão perto de Harry, Rony e
Herrnione que eles sentiram a capa esvoaçar em torno dos seus joelhos. Dentro da loja, Borgin
permaneceu paralisado; seu sorriso untuoso desaparecera; parecia preocupado.
— Do que é que eles estavam falando? — sussurrou Rony, recolhendo as Orelhas
Extensíveis.
— Não sei — respondeu Harry pensativo. — Ele quer que consertem alguma coisa... e quer
que reservem outra aí dentro... você viu o que foi que ele apontou quando disse "isso"?
— Não, ele estava escondido por aquele armário...
— Vocês dois fiquem aqui — cochichou Hermione.
— Que é que você vai...?
Mas a garota já tinha saído de baixo da capa. Verificou o penteado na imagem refletida na
vitrine e entrou decidida na loja, fazendo a sineta tocar. Ligeiro, Rony fez as Orelhas Extensíveis
passarem novamente por baixo da porta e deu um fio a Harry.
— Olá, que manhã horrível, não é? — disse Hermione, animada, a Borgin, mas o homem,
sem responder, lançou-lhe um olhar desconfiado. Cantarolando alegre, a garota saiu caminhando
entre a confusão de objetos à mostra.
— Esse colar está à venda? — perguntou, parando ao lado de um balcão-vitrine.
— Se a senhorita tiver mil e quinhentos galeões — respondeu o bruxo com frieza.
— Ah... eh... não, não tenho tanto — disse a garota prosseguindo. — E... esse lindo... hum...
crânio?
— Dezesseis galeões.
— Então está à venda? Não está reservado para ninguém?
Borgin examinou-a apertando os olhos. Harry teve a desagradável impressão de que o bruxo
percebeu exatamente aonde Hermione queria chegar. Pelo jeito, a garota também percebeu que
tinha sido descoberta, porque de repente abandonou a cautela.
— O caso é o seguinte... eh... o rapaz que esteve agora há pouco aqui, Draco Malfoy, bem,
ele é meu amigo, e quero lhe comprar um presente de aniversário, mas, se ele já deixou alguma
coisa reservada, obviamente não quero lhe dar a mesma coisa, então, ãh...
— Fora — disse o bruxo com rispidez. — Vá embora! Hermione não esperou ser convidada
pela segunda vez, correu para a porta com o bruxo em seus calcanhares. Quando a sineta tornou a
soar e a garota saiu, ele bateu a porta e pendurou um aviso de "Fechada".
— Ah, bem — consolou-a Rony atirando a capa sobre a amiga. —Valeu a tentativa, mas
você foi um pouco óbvia...
— Bem, da próxima vez você pode me mostrar como se faz, Mestre dos Mistérios! —
retorquiu ela.
Os dois brigaram durante todo o percurso até a Gemialidades Weasley, onde foram forçados
a se calar para passar despercebidos por Hagrid e uma Sra. Weasley muito ansiosa, que
claramente notara a ausência deles. Uma vez na loja, Harry despiu a Capa da Invisibilidade,
escondeu-a na mochila e se reuniu aos dois quando insistiram, em resposta às acusações da Sra.
Weasley, que tinham estado o tempo todo na sala dos fundos, e que ela é que não tinha olhado
direito.
CAPÍTULO SETE
O CLUBE DO SLUGUE
HARRY PASSOU GRANDE PARTE DA ÚLTIMA semana de férias refletindo sobre o significado
do comportamento de Malfoy na travessa do Tranco. O que mais o intrigava era o ar de satisfação
que ele exibia ao sair da loja. Nada que o fizesse parecer tão feliz podia ser boa notícia. Para seu
aborrecimento, porém, nem Rony nem Hermione pareciam sentir a mesma curiosidade pelas
atividades de Malfoy; ou, pelo menos, pareciam achar chato discutir o assunto ao fim de alguns
dias.
— Eu já concordei que foi suspeito, Harry — impacientou-se Hermione. Ela estava sentada
no parapeito da janela do quarto de Fred e Jorge, com os pés apoiados em uma das caixas de
papelão, e foi contrariada que ergueu os olhos do seu novo livro Tradução avançada das runas. —
E não acabamos concordando, também, que poderia haver muitas explicações?
— Talvez ele tenha quebrado a Mão da Glória dele — disse Rony distraidamente,
consertando as cerdas tortas da cauda de sua vassoura. — Lembra aquele braço murcho que
Malfoy tinha?
— Mas e quando ele disse "E não se esqueça de guardar isso em lugar seguro"? —
perguntou Harry pela enésima vez. — Tive a impressão de que Borgin tinha o par do objeto
quebrado e Malfoy queria os dois.
— É o que você acha? — quis saber Rony, agora tentando raspar uma sujeira do punho da
vassoura.
— É — confirmou Harry. Mas não recebendo resposta nem de Rony nem de Hermione,
acrescentou: — O pai de Malfoy está em Azkaban. Vocês não acham que ele gostaria de se
vingar?
Rony ergueu a cabeça, piscando.
— Malfoy, se vingar? Que é que ele pode fazer?
— Esse é o problema, eu não sei! — respondeu Harry frustrado. — Mas ele está armando
alguma, e acho que devíamos levar isso a sério. O pai dele é um Comensal da Morte e...
Harry parou de falar, seu olhar se fixou na janela atrás de Hermione, sua boca abriu.
Acabara de lhe ocorrer uma idéia espantosa.
— Harry? — chamou Hermione ansiosa. — Que aconteceu?
— Sua cicatriz está doendo outra vez? — perguntou Rony nervoso.
— Ele é um Comensal da Morte — disse Harry lentamente. —Substituiu o pai como
Comensal da Morte!
Fez-se um silêncio, e então Rony explodiu em uma gargalhada.
— Malfoy? Ele tem dezesseis anos, Harry! Você acha que Você-Sabe-Quem deixaria
Malfoy se alistar?
— Acho muito improvável, Harry — comentou Hermione em um tom meio repressor. —
Que é que faz você pensar...?
— Na loja da Madame Malkin. Ela nem chegou a tocar nele, Malfoy gritou e puxou o braço
quando ela quis enrolar a manga da roupa dele. Era o braço esquerdo. Tatuaram a fogo a Marca
Negra.
Rony e Hermione se entreolharam.
— Bem... — disse Rony, ainda sem convicção.
— Acho que ele só queria sair da loja, Harry — argumentou Hermione.
— Ele mostrou a Borgin uma coisa que não pudemos ver — contrapôs Harry com teimosia.
— Uma coisa que deixou Borgin apavorado. Foi a Marca, sei que foi... ele mostrou ao bruxo com
quem ele estava falando, e vocês viram que Borgin o levou muito a sério!
Rony e Hermione tornaram a se entreolhar.
— Não tenho certeza, Harry...
— E, continuo achando que Você-Sabe-Quem não deixaria Malfoy se alistar...
Contrariado, mas absolutamente convencido de que tinha razão, Harry passou a mão em
uma pilha de uniformes de quadribol sujos e saiu do quarto. Fazia dias que a Sra. Weasley estava
pedindo que não deixassem a roupa suja e a arrumação das malas para o último instante. No
patamar da escada, Harry colidiu com Gina, que subia para o próprio quarto levando uma pilha de
roupa lavada.
— Eu não entraria na cozinha neste momento — alertou-o a garota. — Tem muita Fleuma
no pedaço...
— Vou tomar cuidado para não escorregar — brincou Harry. Realmente, quando entrou na
cozinha, Harry viu Fleur sentada à mesa, falando animada sobre seus planos para o casamento
com Gui, enquanto a Sra. Weasley vigiava de cara feia uma pilha de brotos que se descascavam.
— ... Gui e eu prraticamente decidimes que querremos só duas damas de honra, Gina e
Gabrrielle vam ficarr uma grraças juntes. Stou pensande em vestirr as duas de ourro clarre...
naturralmente rrose ficarrie horrívell com os cabeles da Gina.
— Ah, Harry! — exclamou em voz alta a Sra. Weasley, interrompendo o monólogo de Fleur. —
Que bom, eu queria lhe explicar as medidas de segurança para a viagem a Hogwarts amanhã.
Teremos carros do Ministério e aurores aguardando na estação...
— Tonks vai estar lá? — perguntou Harry, entregando-lhe as roupas de quadribol.
— Não, acho que não, ela foi designada para outro posto, pelo que me disse o Arthur.
— Ela se entrregou à depresson, aquele Tonks — admirou-se Fleur, examinando sua
imagem estonteante nas costas de uma colher. — Um grrande erre, se querrem saber...
— Queremos, muito obrigada — disse a Sra. Weasley acidamente, atalhando Fleur outra
vez. — É melhor você se apressar Harry, quero os malões prontos hoje à noite, se possível, para
não termos a correria de última hora de sempre.
E, de fato, a partida na manhã seguinte transcorreu mais tranqüila do que o normal. Quando
os carros do Ministério pararam suavemente à frente d'A Toca, encontraram tudo à espera: os
malões, o gato de Hermione, Bichento — bem acomodado em seu cesto de viagem —, Edwiges,
a coruja de Rony, Pichitinho e Arnaldo, o recente Mini-Pufe roxo de Gina, nas gaiolas.
— Au revoir, Arry — disse Fleur com sua voz gutural, dando-lhe um beijo de despedida.
Rony adiantou-se rápido, esperançoso, mas Gina esticou a perna e o irmão caiu esparramado no
chão aos pés de Fleur. Furioso, com a cara vermelha e suja de terra, ele entrou ligeiro no carro,
sem se despedir.
Não encontraram o bem-humorado Hagrid aguardando na estação de King's Cross. Dois
aurores barbudos, muito sérios e vestindo ternos de trouxas, se aproximaram no instante em que
os carros pararam e flanquearam o grupo, sem dizer uma palavra, para conduzi-lo à estação.
— Andem, andem, atravessem a barreira — apressou-os a Sra. Weasley, que parecia um
pouco nervosa com aquela eficiência formal. — É melhor Harry ir primeiro, com...
E lançou um olhar de indagação a um dos aurores, que fez um breve aceno de cabeça,
agarrou Harry pelo braço e tentou guiá-lo em direção à barreira entre as plataformas nove e dez.
— Sei andar, obrigado — falou Harry irritado, desvencilhando o braço do aperto do auror.
Empurrou, então, o carrinho de bagagem diretamente para a barreira, ignorando seu companheiro
silencioso, e viu-se, um segundo depois, na plataforma nove e meia, onde já se encontrava o
Expresso vermelho de Hogwarts, lançando fumaça sobre a multidão.
Segundos depois, Hermione e os Weasley se reuniram a ele. Sem consultar o auror
carrancudo, Harry fez sinal a Rony e Hermione para acompanhá-lo, à procura de um
compartimento vazio.
— Não podemos, Harry — disse Hermione, desculpando-se. — Rony e eu temos de ir ao
carro dos monitores primeiro e depois patrulhar os corredores por um tempo.
— Ah, é, me esqueci.
— É melhor vocês irem direto para o trem, só faltam alguns minutos — avisou a Sra.
Weasley, consultando o relógio. — Bem, um bom trimestre, Rony...
— Sr. Weasley, posso dar uma palavrinha com o senhor? — perguntou Harry, tomando uma
repentina decisão.
— Claro — respondeu o bruxo, ligeiramente surpreso, mas acompanhou Harry até um
ponto da plataforma em que não podiam ser ouvidos.
Harry refletira longamente e chegara à conclusão de que, se ia contar a alguém, o Sr.
Weasley seria a pessoa certa; primeiro porque ele trabalhava no Ministério e, portanto, estava em
melhor posição de aprofundar as investigações; e, segundo, porque achava que o risco do Sr.
Weasley ter uma explosão de raiva era pequeno.
Quando se afastaram, ele viu a Sra. Weasley e o auror sério lançarem aos dois olhares
desconfiados.
— Quando estávamos no beco Diagonal... — começou Harry, mas o Sr. Weasley antecipouse
a ele com uma careta.
— Será que estou prestes a descobrir aonde você, Rony e Hermione foram enquanto
pensávamos que estivessem na sala dos fundos da loja de Fred e Jorge?
— Como foi que o senhor...?
— Por favor, Harry. Você está falando com o homem que criou Fred e Jorge.
— Ãh... sim, tudo bem, não estávamos na sala dos fundos.
— Muito bem, então, vamos ouvir o pior.
— Bem, seguimos o Draco Malfoy. Usamos a minha Capa da Invisibilidade.
— Vocês tiveram alguma razão para fazer isso ou foi só um capricho?
— Achei que o Malfoy estava armando alguma coisa — respondeu Harry, fingindo não ver
a cara do Sr. Weasley em que se misturavam a irritação e o divertimento. — Ele tinha despistado
a mãe, e eu queria saber por quê.
— E naturalmente ficou sabendo — disse o bruxo resignado. —Então? Descobriu por quê?
— Ele foi a Borgin & Burkes e começou a intimidar o cara lá, o Borgin, para ajudá-lo a consertar
alguma coisa. E disse que queria que reservasse uma coisa para ele. Falou de um jeito que
pareceu que era o mesmo tipo de coisa que precisava de conserto. Como se formassem um par.
E...
Harry tomou fôlego.
— E tem mais uma coisa. Vimos o Malfoy subir nas paredes quando a Madame Malkin
tentou tocar seu braço esquerdo. Acho que ele foi tatuado com a Marca Negra. Acho que
substituiu o pai como Comensal da Morte.
O Sr. Weasley pareceu confuso. Passado um momento, disse:
— Harry, duvido que Você-Sabe-Quem permitisse que um garoto de dezesseis anos...
— Será que alguém sabe realmente o que Você-Sabe-Quem faria ou não faria? —
perguntou Harry zangado. — Sr. Weasley, me desculpe, mas será que não vale a pena investigar?
Se Malfoy quer mandar consertar alguma coisa e precisa ameaçar Borgin para conseguir, provavelmente
é alguma coisa das trevas ou perigoso, não é?
— Para ser sincero, eu duvido, Harry — respondeu o Sr. Weasley lentamente. — Sabe,
quando Lúcio Malfoy foi preso, revistamos a casa dele. Removemos tudo que pudesse ser
perigoso.
— Acho que deixaram escapar alguma coisa na revista — teimou Harry.
— Bem, talvez — disse o Sr. Weasley, mas Harry percebeu que o bruxo estava apenas
tentando não contrariá-lo.
Um apito soou às suas costas; quase todos já tinham embarcado e as portas do trem estavam
fechando.
— É melhor se apressar — disse o Sr. Weasley, quando a Sra. Weasley gritou:
— Harry, se apresse!
Ele correu para o trem, e o casal Weasley ajudou-o a embarcar o malão.
— Lembre-se querido, vem passar o Natal conosco, já combinamos com o Dumbledore,
então logo o veremos — disse a Sra. Weasley pela janela, enquanto Harry batia a porta e o trem
começava a se mover. — Não se esqueça de se cuidar e...
O trem ganhou velocidade.
— ... comporte-se e...
Ela agora corria para acompanhar o trem.
— ... não se exponha!
Harry acenou até o trem fazer a primeira curva, e o Sr. Weasley e a Sra. Weasley
desaparecerem de vista. Então, se virou para localizar os amigos. Supunha que Rony e Hermione
estivessem enclausurados no carro dos monitores, mas Gina estava mais adiante no corredor, conversando
com alguns amigos. Encaminhou-se para ela, arrastando o malão.
As pessoas o encararam abertamente quando ele se aproximou. Chegavam a colar os rostos
nas janelas dos compartimentos para espiar melhor. Imaginara que haveria um crescimento no
número de bocas abertas e olhares de curiosidade que teria de suportar neste trimestre depois da
boataria sobre "o Eleito", publicada no Profeta Diário, mas não gostava da sensação de estar
parado sob holofotes. Bateu de leve no ombro de Gina.
— Quer procurar outro compartimento?
— Não posso, Harry, prometi me encontrar com o Dino — respondeu a garota animada. —
Vejo você depois.
— Certo. — Harry sentiu uma estranha fisgada de contrariedade quando ela se afastou, os
longos cabelos ruivos dançando nas suas costas. Ele se acostumara de tal maneira à sua presença
no verão que quase se esquecera de que Gina não andava com ele, Rony e Hermione quando
estavam na escola. Piscou e olhou ao seu redor: estava cercado de garotas hipnotizadas.
— Oi, Harry! — disse uma voz conhecida atrás dele.
— Neville! — exclamou Harry aliviado, virando-se para olhar o garoto de rosto redondo
que tentava se aproximar.
— Olá, Harry — cumprimentou uma garota de cabelos longos e olhos sonhadores, que
vinha logo atrás de Neville.
— Luna, oi, como vai?
— Ótima, obrigada. — Apertava uma revista contra o peito; letras garrafais anunciavam que
dentro dela havia um par de Espectrocs.
— O Pasquim continua firme e forte? — perguntou Harry, que sentia um certo carinho pela
revista, à qual dera uma entrevista exclusiva no ano anterior.
— Ah, sim, a circulação aumentou muito — respondeu Luna, feliz.
— Vamos procurar um lugar para sentar? — convidou Harry, e os três atravessaram o trem
em meio à curiosidade silenciosa de hordas de alunos. Por fim, encontraram um compartimento
vazio em que, agradecido, Harry entrou rapidamente.
— Estão olhando até para nós — comentou Neville, incluindo Luna em seu gesto. — Só
porque estamos com você!
— Estão olhando para você porque também esteve no Ministério — lembrou Harry, enquanto
erguia o malão para guardá-lo no bagageiro. — A nossa pequena aventura por lá esteve nas
páginas do Profeta Diário, você deve ter visto.
— Vi, achei que vovó ficaria danada com aquela publicidade toda — contou Neville —,
mas ela ficou realmente satisfeita. Diz que demorei, mas que, enfim, estou começando a honrar o
meu pai. E até me comprou uma varinha nova, veja!
E tirou a varinha para mostrá-la a Harry.
— Cerejeira e pêlo de unicórnio — anunciou orgulhoso. — Achamos que foi uma das
últimas que Olivaras vendeu, ele desapareceu no dia seguinte... ei, volta aqui, Trevo!
Neville mergulhou embaixo do banco para recuperar o sapo que fazia mais uma tentativa de
ganhar a liberdade.
— Vamos continuar com as reuniões da AD este ano, Harry? — perguntou Luna,
destacando um par de óculos psicodélicos das páginas do Pasquim.
— Não faz muito sentido agora que nos livramos da Umbridge, não é? — indagou Harry,
sentando-se. Neville bateu com a cabeça ao sair de baixo do banco. Parecia muito desapontado.
— Eu gostava da AD! Aprendi um montão de coisas com você!
— Eu gostei das reuniões também — concordou Luna, serenamente. — Era como se eu
tivesse amigos.
Foi um daqueles comentários inconvenientes que Luna fazia com freqüência e que
produziam em Harry uma sensação de pena e constrangimento, ao mesmo tempo. Antes que
pudesse responder, porém, houve uma agitação à porta do compartimento; um grupo de garotas
do quarto ano estava cochichando e rindo bobamente junto à janela.
— Você pergunta!
— Eu não, você!
— Eu pergunto!
Uma delas, então, com ar decidido, queixo saliente, grandes olhos e cabelos negros, abriu a
porta e entrou.
— Oi, Harry, eu sou Romilda, Romilda Vane — apresentou-se em voz alta e confiante. —
Por que não vem se reunir a nós em nosso compartimento? Não precisa se sentar com eles —
acrescentou com um sussurro teatral, apontando para o traseiro que Neville deixara de fora ao
tatear embaixo do banco, à procura do Trevo, e para Luna, agora usando seus Espectrocs
promocionais, que lhe davam a aparência de uma coruja demente e multicolorida.
— Eles são meus amigos — respondeu Harry com frieza.
— Ah — exclamou a garota, fazendo ar de grande surpresa. — Ah. O.k.
E retirou-se, fechando a porta ao sair.
— As pessoas esperam que você tenha amigos mais legais que nós — comentou Luna,
demonstrando mais uma vez o seu talento para a rude franqueza.
— Vocês são legais — disse Harry resumindo. — Nenhuma delas esteve no Ministério. Não
combateram comigo.
— Que coisa gostosa de se ouvir — comentou uma sorridente Luna, que ajeitou os
Espectrocs na ponte do nariz e se acomodou para ler O Pasquim.
— Mas não enfrentamos ele — disse Neville, levantando-se com os cabelos cheios de cotão
e poeira e um Trevo com ar resignado na mão. — Você sim. Devia ouvir minha avó falando de
você. "Aquele Harry tem mais coragem do que todo o Ministério da Magia junto!" Ela daria tudo
para ter você como neto...
Harry riu, sem graça, e mudou de assunto assim que pôde, comentando os resultados dos
N.O.M.s. Enquanto Neville recitava suas notas e se perguntava em voz alta se poderia fazer o
curso avançado de Transfiguração tendo tirado apenas um "Aceitável", Harry o observava sem
realmente escutar.
A infância de Neville fora arruinada por Voldemort tal como a de Harry, mas o amigo não
fazia a menor idéia de como chegara perto de ter o destino dele. A profecia poderia ter se referido
a qualquer um dos dois, contudo, por razões próprias e insondáveis, Voldemort preferira acreditar
que se referia a Harry.
Se Voldemort tivesse escolhido Neville, ele é quem estaria sentado diante de Harry com a
cicatriz em forma de raio e o peso da profecia... ou será que não? Será que a mãe de Neville teria
morrido para salvá-lo, como Lílian morrera por Harry? Com certeza que sim... mas e se não
tivesse conseguido se interpor entre Voldemort e o filho? Então, será que não haveria "Eleito"
algum? Só um banco vazio onde Neville se sentava agora e um Harry sem cicatriz que teria
recebido um beijo de despedida de sua mãe e não da de Rony?
— Você está bem, Harry? Está com uma cara estranha — comentou Neville.
Harry se assustou.
— Desculpe... eu...
— Foi atacado por um zonzóbulo? — perguntou Luna gentilmente, observando Harry
através de seus enormes Espectrocs multicoloridos.
— Eu... fui o quê?
— Um zonzóbulo... são invisíveis, entram pelos ouvidos e baralham o cérebro da gente —
explicou ela. — Pensei ter pressentido um voando por aqui.
Ela agitou as mãos no ar, como se espantasse enormes mariposas invisíveis. Harry e Neville
se entreolharam e começaram depressa a discutir quadribol.
Das janelas do trem, entrevia-se o tempo enevoado aqui e claro mais adiante, como estiver a
o verão inteiro; eles passavam por trechos de névoa enregelante seguidos por outros em que o sol
brilhava fracamente. Foi em um desses em que aparecia o sol, quase a pino, que Rony e
Hermione finalmente entraram no compartimento.
— Gostaria que o carrinho do lanche viesse logo, estou faminto —anunciou Rony ansioso,
largando-se no banco ao lado de Harry esfregando a barriga. — Oi, Neville, oi, Luna. Querem
saber da novidade? — acrescentou ele, virando-se para Harry. — Malfoy não está cumprindo as
tarefas de monitor. Está sentado no compartimento dele com colegas da Sonserina, vimos quando
passamos.
Harry sentou-se direito, interessado. Não era do feitio de Malfoy perder uma oportunidade
de exercer o seu poder de monitor, função de que usara e abusara durante todo o ano anterior.
— Que foi que ele fez quando viu vocês?
— O de sempre — respondeu Rony com indiferença, ilustrando com um gesto obsceno. —
Mas não é do feitio dele, não é? Bem, isto aqui é — e repetiu o gesto —, mas por que não está
nos corredores intimidando os alunos do primeiro ano?
— Sei lá — retrucou Harry, mas sua cabeça estava a mil por hora. Será que isto não
indicaria que Malfoy tinha coisas mais importantes em que pensar do que implicar com alunos
mais novos?
— Vai ver ele preferia a Brigada Inquisitorial — sugeriu Hermione.
— Vai ver que, depois da brigada, não tem mais graça ser monitor.
— Acho que não — falou Harry —, acho que ele...
Mas, antes que pudesse expor sua teoria, a porta do compartimento tornou a se abrir e
entrou uma garota do terceiro ano.
— Mandaram entregar isto a Neville Longbottom e Harry P-Potter — gaguejou ela corando,
quando seus olhos encontraram os de Harry. Estendeu a mão em que segurava dois rolos de
pergaminho presos por uma fita violeta. Perplexos, Harry e Neville apanharam cada um o seu e a
garota saiu aos tropeços do compartimento.
— Que é isso? — perguntou Rony, enquanto Harry desenrolava o pergaminho.
— Um convite.
Harry,
Eu teria grande prazer se você me fizesse companhia ao almoço no compartimento C.
Sinceramente, professor H.E.E Slughorn
— Quem é o professor Slughorn? — perguntou Neville, olhando o convite com ar de
espanto.
— Novo professor — respondeu Harry. — Bem, acho que teremos de ir, não é?
— Mas por que ele me convidou? — indagou Neville nervoso, como se esperasse uma
detenção.
— Não faço a menor idéia. — O que não era bem verdade, embora não tivesse provas de
que o seu palpite estivesse certo. — Escute aqui —acrescentou, tomado por repentina intuição —,
vamos usar a Capa da Invisibilidade, e a caminho a gente talvez possa dar uma boa olhada no
Malfoy, ver o que ele anda tramando.
A idéia, porém, não foi adiante: era impossível atravessar os corredores, cheios de gente à
espera do carrinho do lanche, usando a Capa da Invisibilidade. Frustrado, Harry guardou-a na
mochila, refletindo que teria sido uma boa idéia usá-la ao menos para evitar os olhares curiosos,
que pareciam ter se multiplicado desde a última vez que percorrera o trem. De vez em quando,
estudantes se atiravam no corredor para dar uma boa olhada nele. A exceção foi Cho Chang, que
se enfurnou depressa no compartimento ao ver Harry se aproximando. Quando passou pela
janela, ele a viu muito entretida conversando com a amiga Marieta, que, embora usasse uma
grossa camada de maquiagem, não conseguia disfarçar completamente a estranha formação de
espinhas no rosto. Com um leve sorriso, Harry seguiu em frente.
Quando chegaram ao compartimento C, viram que não eram os únicos convidados de
Slughorn, embora, a julgar pela recepção entusiástica do professor, Harry fosse o mais esperado.
— Harry, meu rapaz! — exclamou Slughorn, erguendo-se rápido e de tal jeito que sua
enorme barriga coberta de veludo pareceu ocupar o espaço que restava no compartimento. Sua
careca lisa e a bigodeira prateada refulgiam tão intensamente à luz do sol quanto os botões
dourados do seu colete. — Que bom vê-lo, que bom vê-lo! E o senhor deve ser o Sr. Longbottom!
Neville assentiu, com ar amedrontado. A um gesto de Slughorn, eles se sentaram um defronte ao
outro nos dois únicos lugares vazios, e mais próximos da porta. Harry correu o olhar pelos
convidados. Reconheceu um aluno da Sonserina da mesma série que ele, um negro alto com os
malares salientes e olhos muito puxados; havia ainda dois rapazes da sétima série que Harry não
conhecia e, espremida a um canto junto a Slughorn, Gina, parecendo não saber muito bem como
chegara ali.
— Bem, vocês conhecem todo o mundo? — perguntou Slughorn aos recém-chegados. —
Blásio Zabini, da mesma série que você, é claro...
Zabini não fez sinal algum de reconhecimento nem de cumprimento, no que foi imitado por
Harry e Neville: por princípio, alunos da Grifinória e da Sonserina se detestavam.
— Este é Córmaco McLaggen, talvez já tenham se visto? Não? McLaggen, um jovem
corpulento de cabelos crespos e armados, ergueu a mão, e Harry e Neville retribuíram com um
aceno de cabeça.
— ... e este é Marcos Belby, não sei se... Belby, que era magro e nervoso, sorriu tenso.
— ... e esta encantadora jovem me diz que já os conhece! — terminou Slughorn.
Gina fez uma careta para Harry e Neville por trás do professor.
— Bem, isto é muito agradável — comentou Slughorn acolhedoramente. — Uma
oportunidade de conhecê-los um pouco melhor. Aqui, apanhem um guardanapo. Trouxe o meu
próprio almoço; o carrinho, segundo me lembro, tem muita Varinha de Alcaçuz, e o aparelho
digestivo de um pobre velho não dá mais conta dessas coisas... faisão, Belby?
Belby se sobressaltou e aceitou algo que parecia a metade de um faisão.
— Eu estava contando ao jovem Marcos aqui que tive o prazer de ser professor do seu tio
Dâmocles — disse Slughorn a Harry e Neville, passando agora uma cesta de pães. — Um bruxo
excepcional que mereceu de fato a Ordem de Merlim. Você vê o seu tio com freqüência, Marcos?
Infelizmente, Belby acabara de encher a boca de faisão; na pressa de responder a Slughorn,
engoliu rápido demais, arroxeou e começou a sufocar.
— Anapneo — ordenou Slughorn calmamente, apontando a varinha para o rapaz, cujas vias
respiratórias desobstruíram na mesma hora.
— Não... não muita, não — arquejou Belby, as lágrimas escorrendo.
— Bem, naturalmente, imagino que esteja ocupado — replicou Slughorn, lançando um
olhar indagador a Belby. — Duvido que tenha inventado a Poção de Acônito sem considerável
esforço!
— Suponho que sim... — concordou Belby, que pareceu receoso de comer outra garfada de
faisão até ter certeza de que o professor terminara a conversa. — Ãh... ele e o meu pai não se dão
muito bem, entende, então realmente não sei muita coisa sobre...
Sua voz foi sumindo quando Slughorn lhe deu um sorriso frio e se virou para McLaggen.
— Agora, você, Córmaco — disse o professor —, por acaso sei que sempre vê o seu tio
Tibério, porque ele tem uma esplêndida foto de vocês dois caçando rabicurtos em Norfolk,
presumo.
— Ah, sim, foi divertida, aquela caçada — comentou McLaggen. — Fomos com Berto
Higgs e Rufo Scrimgeour, antes que se tornasse ministro, obviamente...
— Ah, você também conhece Berto e Rufo? — disse o sorridente Slughorn, agora
oferecendo aos convidados uma pequena travessa de tortinhas; mas pulando Belby. — Agora me
diga...
Era o que Harry suspeitava. Todos ali pareciam ter sido convidados porque estavam ligados
a alguém famoso ou influente — todos exceto Gina. Zabini, interrogado depois de McLaggen, era
filho de uma bruxa famosa por sua beleza (pelo que Harry pôde entender, ela casara sete vezes e
cada marido morrera misteriosamente, deixando-lhe montanhas de ouro). A seguir foi a vez de
Neville: foram dez minutos muito desconfortáveis, porque os pais de Neville, aurores muito
conhecidos, tinham sido torturados até enlouquecer por Belatriz Lestrange e seus companheiros
Comensais da Morte. Quando terminou a entrevista de Neville, Harry teve a impressão de que
Slughorn ainda não formara uma opinião sobre ele, e isso dependia de Neville possuir algum dos
talentos dos pais.
— E agora — disse Slughorn, virando o corpo no banco com a pose de um apresentador de
TV anunciando sua principal atração. — Harry Potter! Por onde começar? Sinto que mal cheguei
a conhecê-lo quando nos encontramos no verão!
Ele contemplou Harry Potter por um momento, como se ele fosse um pedaço
particularmente grande e suculento de faisão, então disse:
— "O Eleito", é como estão chamando-o agora!
Harry ficou calado. Belby, McLaggen e Zabini, todos o encaravam.
— Naturalmente — continuou Slughorn, observando Harry com atenção —, correm boatos
há muitos anos... lembro-me quando, bem, depois daquela noite terrível, Lílian, Tiago, mas você
sobreviveu e diziam que devia ter poderes extraordinários...
Zabini deu uma tossidinha, nitidamente indicando sua debochada incredulidade. Uma voz
zangada interveio inesperadamente às costas de Slughorn.
— É, Zabini, porque você tem tanto talento... para fazer pose...
— Minha nossa! — brincou Slughorn rindo, e virou a cabeça para Gina, que encarava
Zabini do outro lado da enorme pança do bruxo. — É melhor ter cuidado, Blásio! Vi esta
mocinha executar uma maravilhosa azaração para rebater bicho-papão quando estava passando
pelo compartimento dela! Eu não a irritaria!
Zabini simplesmente fez um ar de desprezo.
— Seja como for — continuou Slughorn, dirigindo-se novamente a Harry —, os boatos que
correram neste verão! Naturalmente, não se sabe em que acreditar, o Profeta Diário já publicou
muitas inverdades, cometeu enganos, mas parece não haver muita dúvida, dado o número de
testemunhas, que houve no Ministério um grande tumulto, e que você esteve no meio dele!
Harry, que não viu como sair desse aperto sem pregar uma deslavada mentira, concordou
com um aceno de cabeça, mas continuou calado. Slughorn sorriu para ele.
— Tão modesto, tão modesto, não admira que Dumbledore goste tanto... você esteve lá,
então? Mas as outras histórias... tão sensacionais, é claro, a pessoa não sabe bem em que
acreditar... a famosa profecia, por exemplo...
— Não ouvimos nenhuma profecia. — Neville ficou rosado como um gerânio ao dizer isso.
— Verdade — confirmou Gina, lealmente. — Neville e eu também estivemos lá, e essa
baboseira de "o Eleito" é invenção do Profeta como sempre.
— Vocês dois também estiveram lá? — perguntou Slughorn muito interessado, seu olhar
indo de Gina para Neville. Os dois, no entanto, ficaram calados frente ao seu sorriso encorajador.
— É... é bem verdade que o Profeta muitas vezes exagera, sem dúvida — continuou Slughorn,
um pouco desapontado. — Eu me lembro de Gwenog Jones, quero dizer, claro, a capita do
Harpias de Holyhead...
E o professor se perdeu em uma longa reminiscência, mas Harry teve a nítida impressão de
que Slughorn ainda não dera por encerrada a conversa com ele e que não se deixara convencer
por Neville e Gina.
A tarde foi passando com um desfile de histórias sobre bruxos ilustres dos quais Slughorn
fora professor, todos encantados em participar do "Clube do Slugue", em Hogwarts. Harry mal
conseguia esperar para ir embora, mas não via como fazer isso educadamente. Por fim, o trem
passou de mais um longo trecho de névoa para um rubro pôr-de-sol, e Slughorn se virou para os
lados piscando na penumbra.
— Santo Deus, já está escurecendo! Não notei que já tinham acendido as luzes! É melhor
vocês irem trocar de roupa, todos vocês. McLaggen, passe na minha sala para eu lhe emprestar o
livro sobre os rabicurtos. Harry, Blásio, a qualquer hora que estiverem nas redondezas. O mesmo
vale para a senhorita. — Ele piscou para Gina. — Muito bem, vão andando, vão andando!
Quando passou por Harry para alcançar o corredor sombrio, Zabini lançou-lhe um olhar feio
que Harry retribuiu com interesse. Ele, Gina e Neville acompanharam o rapaz ao longo do trem.
— Que bom que terminou — murmurou Neville. — Cara estranho, não é?
— É, um pouco — respondeu Harry com os olhos em Zabini. — Como foi que você acabou
convidada, Gina?
— Ele me viu azarando Zacarias Smith, lembra aquele idiota da Lufa-Lufa que estava na
AD? Ele não parava de me perguntar o que aconteceu no Ministério, e no fim me aborreceu tanto
que o azarei; quando Slughorn entrou, pensei que ia ganhar uma detenção, mas ele achou que
tinha sido uma ótima azaração e me convidou para almoçar. Piração, né?
— E uma razão melhor para se convidar alguém do que ter mãe famosa — respondeu Harry,
lançando um olhar mal-humorado para a nuca de Zabini — ou ter um tio que...
Ele interrompeu o que ia dizendo. Acabara de lhe ocorrer uma idéia, imprudente mas
potencialmente maravilhosa... em um minuto, Zabini ia tornar a entrar no compartimento do sexto
ano da Sonserina, onde Malfoy estaria sentado, achando que ninguém mais o ouvia exceto os
colegas da Casa... se Harry pudesse entrar sem ser visto, atrás de Zabini, que poderia ver ou
ouvir? É verdade que faltava pouco para terminar a viagem — a estação de Hogsmeade devia
estar a menos de meia hora, a julgar pela rusticidade do cenário que passava pelas janelas —, mas
ninguém mais parecia disposto a levar a sério suas suspeitas. Portanto, cabia a ele comprová-las.
— Vejo vocês depois — murmurou, puxando a Capa da Invisibilidade e atirando-a sobre o
corpo.
— Mas que é que você...? — perguntou Neville.
— Depois! — sussurrou Harry, disparando atrás de Zabini o mais silenciosamente que
pôde, embora o barulho do trem tornasse tal cautela quase sem sentido.
Os corredores estavam praticamente vazios agora. A maioria dos estudantes voltara aos seus
carros para vestir os uniformes escolares e juntar seus pertences. Embora estivesse o mais
próximo que podia de Zabini, sem tocá-lo, Harry não foi ágil o suficiente para entrar no
compartimento quando o rapaz abriu a porta. Zabini já ia fechando-a quando ele esticou depressa
o pé para travá-la.
— Que aconteceu com essa coisa? — exclamou Zabini, zangado, batendo a porta várias
vezes no obstáculo.
Harry agarrou a porta e abriu-a com força; Zabini, que ainda segurava a maçaneta, caiu de
lado no colo de Gregório Goyle e, na confusão que se seguiu, Harry invadiu o compartimento,
pulou para o lugar de Zabini, naquele momento vazio, e dali se guindou para o bagageiro. Foi
uma sorte que Goyle e Zabini estivessem rosnando um para o outro, atraindo os olhares dos
presentes, porque Harry tinha certeza de que deixara os pés e os tornozelos de fora quando a capa
esvoaçou; de fato, por um terrível instante, ele pensou ter visto o olhar de Malfoy acompanhar
seu tênis quando subiu e desapareceu de vista; mas Goyle bateu a porta e empurrou Zabini. Este
caiu no lugar que era seu, irritado, Vicente Crabbe voltou a ler sua revistinha e Malfoy, rindo,
tornou a esticar-se em dois bancos e a descansar a cabeça no colo de Pansy Parkinson. Harry se
encolheu, desconfortável, sob a capa, preocupado em cobrir cada centímetro do seu corpo, e ficou
observando Pansy alisar para longe da testa os cabelos louros e sedosos de Draco, sorrindo
satisfeita como se qualquer um no mundo adorasse estar em seu lugar. Os lampiões pendurados
no teto do trem lançavam uma luz forte sobre a cena: Harry podia ler cada palavra da revistinha
de Crabbe diretamente abaixo dele.
— Então, Zabini — perguntou Malfoy —, que é que o Slughorn queria?
— Puxar o saco de gente bem relacionada — respondeu o rapaz ainda olhando feio para
Goyle. — Não que tivesse encontrado muita gente.
A informação aparentemente não agradou a Malfoy.
— Quem mais ele convidou?
— McLaggen, da Grifinória.
— Ah, sei, ele tem um tio importante no Ministério — disse Malfoy.
— ... outro chamado Belby, da Corvinal...
— Não, esse é um retardado! — exclamou Pansy.
— ... e Longbottom, Potter e aquela garota Weasley — concluiu Zabini.
Malfoy sentou-se de repente, empurrando a mão de Pansy para o lado.
— Ele convidou Longbottom?
— Suponho que sim, porque o Longbottom estava lá — respondeu Zabini, indiferente.
— Que é que o Longbottom tem que possa interessar o Slughorn? Zabini sacudiu os
ombros.
— Potter, o precioso Potter, obviamente ele queria dar uma olhada no "Eleito" —
desdenhou Malfoy. — Mas e a garota Weasley? Que é que ela tem de especial?
— Tem muito rapaz que gosta dela — comentou Pansy, observando Malfoy de esguelha
para ver sua reação. —, Até você acha que ela é atraente, não é, Blásio, e todos sabemos como
você é difícil de agradar!
— Eu não tocaria numa traidora do sangue nojenta como ela, por mais atraente que fosse —
retrucou Zabini com frieza, o que satisfez Pansy. Malfoy tornou a se deitar no colo dela e deixoua
retomar as carícias em seus cabelos.
— Bem, lamento o mau gosto de Slughorn. Quem sabe ele está ficando senil. Que pena,
meu pai sempre disse que no seu tempo ele era um bom bruxo. Meu pai era uma espécie de
favorito dele. Slughorn provavelmente não soube que eu estava no trem, ou...
— Eu não esperaria um convite — disse Zabini. — Ele me pediu notícias do pai de Nott
quando embarquei. Pelo visto, os dois eram bons amigos, mas quando soube que o velho Nott foi
apanhado pelo Ministério não ficou nada feliz, e não convidou Nott, não é? Acho que Slughorn
não está interessado em Comensais da Morte.
Malfoy pareceu se zangar, mas forçou uma risada particularmente amarela.
— Bem, quem se importa com os seus interesses? Quem é ele na ordem das coisas? Apenas
um professor idiota. — Malfoy deu um bocejo exagerado. — Quero dizer, talvez eu nem esteja
em Hogwarts no ano que vem, que diferença me faz se um velho gordo e decadente gosta ou não
de mim?
— Como assim, você talvez não esteja em Hogwarts no ano que vem? — perguntou Pansy
indignada, parando de ajeitar os cabelos de Malfoy na mesma hora.
— Ora, nunca se sabe — respondeu ele com um ar de riso. — Eu talvez venha... ãh... a me
dedicar a coisas maiores e melhores.
Encolhido no bagageiro embaixo da capa, o coração de Harry disparou. Que é que Rony e
Hermione diriam disso? Crabbe e Goyle olhavam boquiabertos para Malfoy; pelo jeito não
tinham conhecimento de nenhum plano de dedicação a coisas maiores e melhores. Até Zabini
deixou uma expressão de curiosidade anuviar suas feições arrogantes. Pansy voltou a alisar os
cabelos de Malfoy, pasma.
— Você está se referindo a... ele? Malfoy sacudiu os ombros.
— Mamãe quer que eu complete a minha educação, mas, pessoalmente, acho que nos dias de hoje
isso não seja tão importante. Quero dizer, pensem um instante... quando o Lorde das Trevas
tomar o poder, será que vai se importar com quantos N.O.M.s e quantos N.I.E.M.s a pessoa
obteve? Claro que não... tudo vai girar em torno dos serviços que prestou, a dedicação que
demonstrou a ele.
— E você acha que será realmente capaz de fazer alguma coisa por ele? — perguntou
Zabini, sarcástico. — Com dezesseis anos e sem ter completado sua qualificação?
— Foi o que acabei de dizer, não foi? Quem sabe ele não se importa se tenho qualificações.
Talvez eu não precise ter qualificações para o trabalho que ele quer que eu faça — replicou
Malfoy em voz baixa.
Crabbe e Goyle estavam sentados de bocas escancaradas como gárgulas. Pansy olhava
Malfoy como se nunca tivesse visto nada tão digno de assombro.
— Já estou vendo Hogwarts — disse Malfoy, deliciando-se abertamente com o efeito que
causara, apontando para a janela escura. — É melhor trocarmos de roupa.
Harry estava tão ocupado em observar Malfoy que não reparou que Goyle se esticara para
alcançar seu malão; ao puxá-lo, o objeto bateu com força na cabeça de Harry. Ele deixou escapar
um gemido de dor e Malfoy olhou para o bagageiro, enrugando a testa.
Harry não tinha medo dele, mas não gostava muito da idéia de ser descoberto escondido sob
a Capa da Invisibilidade, por um grupo de colegas hostis da Sonserina. Com os olhos ainda
lacrimejando e a cabeça doendo, ele empunhou a varinha, tomando cuidado para não desarrumar
a capa, e aguardou, prendendo a respiração. Para seu alívio, Malfoy pareceu concluir que
imaginara o ruído; trocou de roupa como os colegas, trancou o malão e, quando o trem reduziu a
velocidade para um sacolejo lento, ele prendeu a capa nova e grossa ao pescoço.
Harry viu os corredores se encherem mais uma vez e teve esperança de que Hermione e
Rony levassem seus pertences para a plataforma; estaria preso ali até o compartimento esvaziar.
Por fim, com um solavanco final, o trem parou. Goyle abriu a porta com violência e saiu
empurrando um grupo de alunos do segundo ano; Crabbe e Zabini o acompanharam.
— Você pode ir andando — disse Malfoy a Pansy, que o aguardava com a mão estendida
como se esperasse que ele a segurasse. — Quero verificar uma coisa.
Pansy saiu. Agora Harry e Malfoy estavam sozinhos no compartimento. As pessoas
passavam, desembarcavam na plataforma escura. Malfoy foi até a porta e desceu a cortina, para
que as pessoas no corredor não pudessem espiar para dentro. Então curvou-se para o seu malão e
abriu-o.
Harry espiou pela borda do bagageiro com o coração batendo mais rápido. Que é que
Malfoy queria esconder de Pansy? Estaria prestes a ver o misterioso objeto partido que era tão
importante consertar?
— Petrificus Totulus!
De repente Malfoy apontou a varinha para Harry, que ficou instantaneamente paralisado.
Em câmera lenta, ele rolou do bagageiro e caiu, com um baque extremamente doloroso, de fazer
o chão estremecer, aos pés de Malfoy, a Capa da Invisibilidade presa por baixo dele, todo o seu
corpo exposto, as pernas ainda absurdamente dobradas nos joelhos e cheias de cãibras. Não
conseguia mover um músculo; só conseguia olhar para Malfoy, que exibia um grande sorriso.
— Foi o que pensei — disse eufórico. — Ouvi o malão de Goyle bater em você. E pensei
ter visto uma coisa branca riscar o ar quando Zabini voltou... — Seu olhar se demorou nos tênis
de Harry. —Suponho que tenha sido você quem travou a porta quando Zabini entrou, não?
Ele estudou Harry por alguns instantes.
— Você não ouviu nada que me preocupe, Potter. Mas aproveitando que está aqui...
E pisou com força o rosto de Harry, que sentiu o nariz quebrar e o sangue espirrar para
todos os lados.
— Isto foi pelo meu pai. Agora, vamos ver...
Malfoy puxou a Capa da Invisibilidade de baixo do corpo imóvel de Harry e atirou-a por
cima dele.
— Calculo que só vão encontrar você quando o trem tiver chegado a Londres — comentou
baixinho. — Até mais, Potter... ou não.
E, fazendo questão de pisar nos dedos de Harry, Malfoy deixou o compartimento.
CAPITULO OITO
O TRIUNFO DE SNAPE
ELE NÃO CONSEGUIA MOVER UM MÚSCULO. Ficou ali no chão, coberto pela Capa da
Invisibilidade, sentindo o sangue, quente e líquido, escorrer do nariz para o rosto, ouvindo as
vozes e os passos no corredor. Seu primeiro pensamento foi que alguém, com certeza, verificaria
os compartimentos antes do trem tornar a partir. Mas logo lembrou desanimado que, mesmo que
alguém desse uma espiada no compartimento, ele não seria visto nem ouvido. O máximo que
poderia esperar era que alguém entrasse e pisasse nele.
Harry nunca detestara tanto Malfoy quanto naquele momento, deitado ali como uma ridícula
tartaruga de pernas para o ar, o sangue nauseante pingando em sua boca aberta. Em que situação
estúpida ele se metera... e agora ouvia os últimos passos se distanciarem; todos estavam se
arrastando pela plataforma escura; ouvia os malões raspando o chão e o vozerio das conversas.
Rony e Hermione pensariam que desembarcara do trem sem esperar por eles. Uma vez que
chegassem a Hogwarts e ocupassem seus lugares no Salão Principal, olhassem algumas vezes
para um lado e outro da mesa da Grifinória e finalmente percebessem que Harry não estava ali,
ele, sem dúvida, estaria a meio caminho de Londres.
Harry tentou fazer algum ruído, mesmo que fosse um grunhido, mas era impossível. Então
lembrou que alguns bruxos, como Dumbledore, conseguiam realizar feitiços sem falar, e tentou
convocar a varinha, que lhe caíra da mão, dizendo mentalmente: Accio varinha!, várias vezes,
mas nada aconteceu.
Imaginou ouvir a agitação das árvores que rodeavam o lago, e o pio distante de uma coruja,
mas nem sinal de que estivessem fazendo uma busca, e nem mesmo (e se desprezou por sentir tal
esperança) vozes muito assustadas, indagando aonde fora Harry Potter. Invadiu-o um sentimento
de desesperança ao fantasiar o comboio de carruagens puxadas por testrálios subindo lenta e
pesadamente em direção à escola, e os gritos e risadas abafadas que saíam daquela em que ia
Malfoy, narrando para os colegas da Sonserina o seu ataque a Harry.
O trem deu um solavanco, fazendo Harry rolar para um lado. Agora, em vez do teto, via a
parte de baixo dos bancos, cheia de poeira. O chão começou a vibrar e a máquina, com um ronco,
entrou em funcionamento. O Expresso estava partindo, e ninguém sabia que ele continuava a
bordo...
Sentiu, então, que lhe arrancavam a capa e ouviu uma voz exclamar:
— E aí, Harry, beleza?
Uma luz vermelha brilhou um instante e seu corpo descongelou; conseguiu sentar-se em
uma posição mais digna, limpar depressa o sangue no rosto pisado com as costas da mão e erguer
a cabeça para ver Tonks, segurando a Capa da Invisibilidade que acabara de puxar.
— É melhor sairmos rápido daqui — disse, ao ver a fumaça escurecer as janelas e o trem
começar a abandonar a estação. — Anda, vamos pular.
Harry seguiu-a correndo para fora do compartimento. Tonks abriu a porta do trem e saltou
para a plataforma, que parecia estar deslizando embaixo deles à medida que o trem ganhava
impulso. Harry imitou-a, cambaleou ligeiramente ao aterrissar e recuperou-se em tempo de ver a
reluzente maria-fumaça acelerar, fazer a curva e desaparecer de vista.
O ar frio da noite aliviou o latejamento no nariz. Tonks parara observando-o; ele se sentia
furioso e constrangido por ter sido encontrado em posição tão ridícula. Em silêncio, ela lhe
devolveu a Capa da Invisibilidade.
— Quem fez isso?
— Draco Malfoy — respondeu Harry amargurado. — Obrigado por... bem...
— Tudo bem — disse Tonks, séria. Pelo que conseguia enxergar no escuro, a bruxa
continuava com os cabelos sem vida e a fisionomia infeliz da última vez em que tinham se
encontrado n'A Toca. — Posso endireitar o seu nariz, se você ficar parado.
Harry não gostou muito da idéia; pretendia fazer uma visita a Madame Pomfrey, a
enfermeira-chefe, em quem tinha mais confiança em termos de feitiços curativos, mas pareceulhe
grosseiro dizer isso, então ficou imóvel e fechou os olhos.
— Episkey — ordenou Tonks.
O nariz de Harry ficou muito quente e, em seguida, muito frio. Ele ergueu a mão e apalpouo
desajeitado. Parecia inteiro.
— Muito obrigado!
— É melhor usar a Capa da Invisibilidade para podermos andar até a escola — disse Tonks
ainda séria. Quando Harry se cobriu com a capa, ela agitou a varinha fazendo surgir um enorme
quadrúpede, que voou célere pela escuridão.
— Aquilo era um Patrono? — perguntou Harry, que já vira Dumbledore enviar mensagens
assim.
— Era, mandei avisar no castelo que você está comigo, para não se preocuparem. Anda, é
melhor não perdermos tempo.
Eles saíram em direção à estrada que levava à escola.
— Como foi que você me encontrou?
— Notei que você não tinha desembarcado do trem e sabia que levava a Capa da
Invisibilidade. Achei que podia estar se escondendo por alguma razão. Quando vi a cortina
baixada naquele compartimento, resolvi investigar.
— Mas que você está fazendo aqui? — perguntou Harry.
— Estou baseada em Hogsmeade, para reforçar a proteção à escola.
— É só você que está lá ou...?
— Não, Proudfoot, Savage e Dawlish também.
— Dawlish, aquele auror que Dumbledore atacou no ano passado?
— Esse mesmo.
Eles caminharam pesadamente pela estrada deserta, seguindo os sulcos frescos deixados
pelas carruagens. De baixo da capa, Harry olhava de esguelha para Tonks. No ano anterior, ela
demonstrava muita curiosidade (a ponto de ser, às vezes, inconveniente), ria sem esforço e fazia
brincadeiras. Agora, parecia mais velha e muito mais séria e decidida. Será que tudo isso era
conseqüência do que acontecera no Ministério? Refletiu, constrangido, que Hermione iria sugerir
que dissesse uma palavrinha de consolo sobre Sirius, que não fora sua culpa, mas Harry não
conseguiu fazer isso. Em hipótese alguma responsabilizava a auror pela morte do seu padrinho;
não tinha sido culpa de Tonks nem de qualquer outro (e muito menos dele), mas, podendo evitar,
não gostava de falar de Sirius. E assim continuaram a avançar pela noite fria em silêncio, a longa
capa de Tonks farfalhando no chão, a cada passo.
Como sempre fizera esse percurso de carruagem, Harry nunca avaliara como Hogwarts era
longe da estação de Hogsmeade. Com grande alívio, avistou finalmente os dois altos pilares que
ladeavam os portões da escola, encimados por javalis alados. Sentia frio, sentia fome, e bem
gostaria de abandonar essa nova Tonks tristonha. Mas, quando esticou a mão para abrir os
portões, viu que estavam fechados com uma corrente.
— Alohomora! — ordenou confiante, apontando a varinha para o cadeado, mas nada
aconteceu.
— Não faz efeito nesses portões — disse Tonks. — Dumbledore enfeitiçou-os
pessoalmente.
Harry olhou para os lados.
— Eu poderia pular o muro — sugeriu.
— Não, não poderia — respondeu a bruxa, categoricamente. — Feitiços antiintrusos em
todos os muros. A segurança está cem vezes mais rigorosa este verão.
— Bem, então — concluiu Harry, começando a se sentir incomodado com a má vontade de
Tonks —, suponho que eu vá ter de dormir aqui fora e esperar amanhecer.
— Está vindo alguém buscar você. Olhe.
Um lampião balançava à entrada do distante castelo. Harry ficou tão feliz ao vê-lo que
sentiu que seria capaz até de suportar os comentários asmáticos de Filch sobre o seu atraso e as
reclamações sobre a sua falta de pontualidade, que melhoraria bastante com o uso de anéis de
ferro para apertar os seus polegares. Somente quando a luz amarela estava a três metros deles, e
Harry despira a Capa da Invisibilidade para ser visto, foi que reconheceu, com uma onda de pura
aversão, o nariz curvo e comprido e os cabelos pretos e oleosos de Severo Snape.
— Ora, ora, ora — debochou o professor, e, puxando a varinha, deu um toque no cadeado,
fazendo as correntes soltarem e os portões abrirem, rangendo. — Que prazer você ter aparecido,
Potter, embora seja evidente que, em sua opinião, o uso do uniforme da escola desmerece a sua
aparência.
— Não pude me trocar, não tinha o meu... — começou Harry, mas Snape interrompeu-o.
— Não precisa esperar, Ninfadora, Potter está bem... ah... seguro em minhas mãos.
— Enviei minha mensagem a Hagrid — replicou Tonks, enrugando a testa.
— Hagrid se atrasou para o banquete inaugural, como o Potter aqui, então eu a recebi. E a
propósito — disse Snape, afastando-se para deixar Harry passar —, achei interessante conhecer o
seu novo Patrono.
Ele bateu os portões com estrépito na cara de Tonks e deu um novo toque de varinha nas
correntes, que deslizaram, retinindo, à posição inicial.
— Acho que você estava mais bem servida com o antigo — comentou Snape, com
inconfundível malícia na voz. — O novo parece fraco.
Quando Snape se virou com o lampião, Harry viu, por um breve instante, uma expressão de
choque e raiva no rosto de Tonks. Depois, a escuridão tornou a envolvê-la.
— Boa-noite — gritou Harry, por cima do ombro, quando começou a andar com Snape em
direção à escola. — Obrigado por... tudo.
— A gente se vê, Harry.
Snape ficou calado por um momento. Harry sentiu que seu corpo estava gerando ondas de
ódio tão poderosas que parecia inacreditável que o professor não as sentisse queimando-o. Sentira
aversão a Snape desde a primeira vez em que se encontraram, mas o professor inviabilizara para
sempre a possibilidade de ser perdoado por sua atitude com relação a Sirius. Apesar da conversa
com Dumbledore, Harry tivera tempo de refletir durante o verão, e concluíra que os comentários
ferinos de Snape, de que Sirius ficava escondido e seguro enquanto os outros membros da Ordem
da Fênix lutavam contra Voldemort, provavelmente tinham contribuído de modo decisivo para o
padrinho correr para o Ministério na noite em que morrera. Harry se aferrava a essa idéia, porque
lhe permitia culpar Snape, o que lhe dava satisfação e também a consciência de que se havia
alguém que não lamentava a morte de Sirius era o homem que agora caminhava a seu lado na
escuridão.
— Cinqüenta pontos a menos para a Grifinória pelo atraso — disse o professor. — E,
vejamos, mais vinte por sua roupa de trouxa. Sabe, creio que nunca houve uma Casa com pontos
negativos no início do trimestre, e ainda nem chegamos à sobremesa. Você talvez tenha estabelecido
um recorde, Potter.
A fúria e o ódio dentro de Harry chamejavam intensamente, mas ele preferia ter continuado
hirto até Londres a contar ao professor por que se atrasara.
— Imagino que quisesse causar sensação, certo? — continuou Snape. — E, não dispondo de
um carro voador, decidiu que adentrar o Salão Principal no meio do banquete teria um impacto
dramático.
Ainda assim, Harry permanecia em silêncio, embora achasse que seu peito ia explodir.
Sabia que Snape fora buscá-lo para isso, para ter uns poucos minutos em que alfinetar e
atormentar Harry sem ninguém ouvir.
Por fim, chegaram à entrada do castelo e, quando as grandes portas de carvalho se abriram
para o amplo saguão lajeado, foram saudados pela zoada de conversas e risos, e tinidos de pratos
e copos que ecoavam através das portas abertas do Salão Principal. Harry se perguntou se poderia
usar a Capa da Invisibilidade e, assim, chegar à comprida mesa da Grifinória (que, para seu azar,
era a mais distante do saguão) sem ser notado.
Como se tivesse lido os pensamentos de Harry, Snape o advertiu:
— Nada de capa. Pode entrar à vista de todos que, tenho certeza, era o que você queria.
Harry virou-se e, sem hesitar, cruzou o portal do salão: qualquer coisa para se ver livre de
Snape. O Salão Principal, com as quatro longas mesas das Casas e a dos professores ao fundo,
estava decorado, como sempre, com velas no ar que faziam os pratos refletir e faiscar. Harry,
porém, enxergou apenas um borrão tremeluzente. Caminhava tão depressa que passou pela mesa
da Lufa-Lufa antes que as pessoas tivessem tempo de olhá-lo, e, quando por fim elas se
levantaram para satisfazer sua curiosidade, Harry já localizara Rony e Hermione, e, seguindo em
sua direção, passou rápido pelos bancos e se apertou entre os dois.
— Onde é que você... caramba, que foi que fez no rosto? — indagou Rony, arregalando os
olhos, como todos que estavam por perto.
— Por que, tem alguma coisa errada? — admirou-se Harry, apanhando uma colher e
espiando sua imagem distorcida.
— Você está coberto de sangue! — disse Hermione. — Vem cá... Ela ergueu a varinha e
ordenou:
— Tergeo! — E a varinha aspirou todo o sangue seco.
— Obrigado — agradeceu ele, apalpando o rosto agora limpo. — Como é que está o meu
nariz?
— Normal — respondeu Hermione ansiosa. — Por que não estaria? Que aconteceu, Harry,
ficamos apavorados!
— Conto depois — respondeu Harry, lacônico. Sabia que Gina, Neville, Dino e Simas
estavam prestando atenção; até Nick Quase Sem Cabeça, o fantasma da Grifinória, se aproximara
flutuando ao longo dos bancos para escutar.
— Mas... — protestou Hermione.
— Agora, não, Hermione — replicou, em um tom sombrio cheio de subentendidos.
Desejava muito que todos imaginassem que participara de algum feito heróico, de preferência
envolvendo Comensais da Morte e um dementador. Naturalmente Malfoy espalharia a história
aos quatro ventos, mas havia sempre uma chance de que não chegasse aos ouvidos de muitos
colegas da Grifinória.
Ele se esticou por cima de Rony para apanhar umas coxas de galinha e um punhado de
batatas fritas, mas, antes que pudesse corne-las, elas desapareceram e foram substituídas pelas
sobremesas.
— Pelo menos você perdeu a seleção — comentou Hermione, enquanto Rony mergulhava
para se servir de uma torta de chocolate.
— O Chapéu disse alguma coisa interessante? — perguntou Harry, servindo-se de um
pedaço de torta de caramelo.
— Nada que ainda não tenha dito... aconselhou a nos unirmos frente aos nossos inimigos,
você sabe.
— Dumbledore mencionou Voldemort?
— Ainda não, mas ele sempre guarda o discurso sério para depois do banquete, não é? Não
deve demorar muito agora.
— Snape disse que Hagrid se atrasou para o banquete...
— Você viu Snape? Como assim? — perguntou Rony entre garfadas frenéticas de torta.
— Topei com ele — respondeu Harry evasivamente.
— Hagrid só se atrasou uns minutinhos — comentou Hermione. — Olhe, ele está acenando
para você.
Harry olhou para a mesa dos professores e sorriu para Hagrid que de fato acenava. O amigo
jamais conseguira se comportar com a mesma dignidade da professora McGonagall, diretora da
Casa da Grifinória, cuja cabeça batia mais ou menos entre o cotovelo e o ombro de Hagrid —
estavam sentados lado a lado —, e que manifestava desaprovação a esse cumprimento
entusiástico. Harry se surpreendeu ao ver a professora de Adivinhação, Trelawney, sentada do
outro lado de Hagrid; ela raramente saía de sua torre, e Harry nunca a vira em um banquete
inaugural. Tinha a aparência esquisita de sempre, faiscando com seus colares e longos xales, os
olhos ampliados pelos enormes óculos. Harry, que sempre a considerara uma charlatã, ficara
chocado ao descobrir, no fim do trimestre anterior, que ela fora a autora da profecia que fizera
Lord Voldemort matar os seus pais e atacá-lo. Saber disso deixou-o ainda menos desejoso de
ficar em sua companhia, mas, por sorte, este ano ele não estudaria Adivinhação. Os enormes
olhos da professora, que lembravam faróis, viraram em sua direção; ele desviou os seus depressa
para a mesa da Sonserina. Draco Malfoy estava encenando como partir um nariz provocando
risos e aplausos estridentes. Harry baixou os olhos para a torta, sentindo outra vez suas entranhas
escaldarem. O que não daria para enfrentar Malfoy de homem para homem...
— Então, que é que o professor Slughorn queria? — perguntou Hermione.
— Saber o que realmente aconteceu no Ministério.
— Ele e o mundo inteiro — fungou Hermione. — O pessoal não parou de interrogar a gente
no trem, não foi, Rony?
— Foi. Todos queriam saber se você é realmente o Eleito...
— Tem havido muita discussão sobre o assunto até entre os fantasmas — interrompeu-os
Nick Quase Sem Cabeça, inclinando para Harry a cabeça mal presa, fazendo-a balançar
perigosamente, sobre a gola de tufos engomados. — Sou considerado uma espécie de autoridade
em Potter; todos sabem que somos amigos. Mas afirmei à comunidade dos espíritos que não o
incomodaria com perguntas. "Harry Potter sabe que pode confiar inteiramente em mim", falei.
"Prefiro morrer a trair sua confiança."
— O que não me parece grande coisa, porque você já morreu — observou Rony.
— Mais uma vez, você demonstra ter a agudeza de um machado cego — retrucou Nick
Quase Sem Cabeça em tom ofendido e, deixando o chão, retornou voando à extremidade oposta
da mesa da Grifinória, no momento exato em que Dumbledore se levantava à mesa dos
professores. As conversas e risos que ecoavam pelo salão cessaram quase imediatamente.
— Uma grande noite para todos! — começou ele sorridente, abrindo os braços como se
quisesse abarcar o salão.
— Que aconteceu à mão dele? — ofegou Hermione.
Ela não foi a única a notar. A mão direita de Dumbledore continuava escura e sem vida
como na noite em que ele fora apanhar Harry na casa dos Dursley.
Os sussurros percorreram a sala; Dumbledore, interpretando-os corretamente, apenas sorriu
e ocultou a lesão, sacudindo a manga roxa e dourada.
— Não há motivo para preocupação — disse em tom suave. — Agora... as boas-vindas aos
alunos novos; bom retorno aos alunos antigos! Mais um ano de muita educação mágica aguarda a
todos...
— A mão dele já estava assim quando o vi no verão — cochichou Harry para Hermione. —
Mas pensei que por esta altura ele já a tivesse curado... ele ou Madame Pomfrey.
— Parece morta — comentou Hermione, com uma expressão de repugnância no rosto. —
Mas há lesões que não têm cura... feitiços antigos... e há venenos sem antídotos...
— ... e o Sr. Filch, nosso zelador, me pediu para avisar que estão banidos todos os artigos
de logros e brincadeiras comprados na loja chamada Gemialidades Weasley.
"Os que quiserem jogar nas equipes de quadribol das Casas devem se inscrever com os
diretores das Casas, como sempre. Estamos também procurando novos locutores de quadribol,
que são convidados a fazer a mesma coisa."
"Este ano temos o prazer de dar as boas-vindas a um novo membro do corpo docente. O
professor Slughorn", o bruxo ficou em pé, a careca brilhando à luz das velas, a grande pança sob
o colete sombreando a mesa, "é um antigo colega meu que aceitou retomar o cargo de mestre das
Poções."
— Poções?
— Poções?
A palavra ressoou por todo o salão enquanto as pessoas se perguntavam se teriam ouvido
direito.
— Poções? — repetiram juntos Rony e Hermione, virando-se para Harry. — Mas você
disse...
— Por sua vez, o professor Snape — continuou Dumbledore, alteando a voz para abafar os
murmúrios — assumirá o cargo de professor de Defesa contra as Artes das Trevas.
— Não! — exclamou Harry tão alto que muitas cabeças se viraram em sua direção. Ele não
se importou; olhava fixamente para a mesa dos professores, indignado. Como é que Snape podia
ser nomeado professor de Defesa contra as Artes das Trevas depois de tanto tempo? Será que
todos não sabiam que Dumbledore não confiava nele para assumir essa função?
— Mas, Harry, você disse que Slughorn ia ensinar Defesa contra as Artes das Trevas! —
questionou Hermione.
— Pensei que fosse! — respondeu Harry, vasculhando o cérebro para lembrar quando
Dumbledore dissera isso, mas, agora que voltava a pensar no assunto, não conseguia recordar que
Dumbledore tivesse mencionado o que Slughorn iria ensinar.
Snape, que estava sentado à direita de Dumbledore, não se ergueu ao ouvir seu nome,
apenas elevou a mão displicentemente para agradecer os aplausos da mesa da Sonserina; Harry,
contudo, teve certeza de identificar uma expressão de triunfo nas feições que tanto detestava.
— Bem, tem uma coisa boa — disse com selvageria. — Snape irá embora até o fim do ano.
— Como assim? — perguntou Rony.
— O cargo é azarado. Ninguém agüentou mais de um ano... Quirrell até morreu.
Pessoalmente, vou torcer para que haja outra morte...
— Harry! — exclamou Hermione, demonstrando surpresa e desaprovação.
— Mas talvez ele simplesmente volte a ensinar Poções no fim do ano — argumentou Rony.
— O tal Slughorn pode não querer ficar muito tempo. O Moody não quis.
Dumbledore pigarreou. Harry, Rony e Hermione não eram os únicos que conversavam; o
salão todo explodira em murmúrios à notícia de que Snape, enfim, realizara o seu mais acalentado
desejo. Dumbledore, parecendo indiferente à natureza sensacional da notícia que acabara de dar,
nada falou sobre outras designações e esperou alguns segundos até obter absoluto silêncio antes
de prosseguir.
— Nem todos os presentes neste salão sabem que Lord Voldemort e seus seguidores estão
mais uma vez em liberdade e cada vez mais fortes.
O silêncio pareceu se expandir e retrair enquanto Dumbledore discursava. Harry olhou para
Malfoy. Mas o rapaz, em vez de olhar para o diretor, fazia o seu garfo pairar no ar com a varinha,
como se achasse as palavras de Dumbledore indignas de atenção.
— Não posso enfatizar suficientemente o perigo da presente situação, e o cuidado que cada
um de nós, em Hogwarts, precisa tomar para garantir que continuemos seguros. As fortificações
mágicas do castelo foram reforçadas durante o verão, estamos protegidos de maneiras novas e
mais poderosas, mas ainda assim precisamos nos defender escrupulosamente dos descuidos de
estudantes e funcionários. Peço, portanto, que respeitem as restrições de segurança que os
professores possam impor a vocês, por mais incômodas que lhes pareçam, particularmente a
norma de não sair da cama depois do toque de recolher. Imploro que, ao notarem alguma coisa
estranha ou suspeita dentro ou fora do castelo, comuniquem imediatamente a um funcionário.
Confio que agirão sempre com o maior respeito pela segurança dos outros e pela sua própria.
Os olhos azuis de Dumbledore percorreram os rostos dos estudantes e, por fim, ele tornou a
sorrir.
— Mas no momento suas camas estão à sua espera, quentes e confortáveis como poderiam
desejar, e sei que a sua maior prioridade é descansar para as aulas de amanhã. Vamos, portanto,
dizer boa-noite. Pip pip!
Com o atrito ensurdecedor habitual, os bancos foram afastados e centenas de estudantes
começaram a sair do Salão Principal em direção aos dormitórios. Harry, que não estava com a
menor pressa de acompanhar a multidão curiosa nem de se aproximar de Malfoy para lhe dar a
chance de repetir a história da pisada no nariz, retardou sua saída, fingindo amarrar o cordão do
tênis, deixando a maioria dos colegas da Grifinória seguirem à frente. Hermione saíra correndo
um pouco antes para, cumprindo a tarefa de monitora, arrebanhar os alunos do primeiro ano, mas
Rony ficou com Harry.
— Que aconteceu realmente com o seu nariz? — perguntou, quando chegaram ao final do
ajuntamento que procurava sair do salão, e ninguém mais podia ouvi-los.
Harry contou-lhe. Rony não riu, demonstrando a força de sua amizade.
— Vi Malfoy imitando alguma coisa com relação a nariz — comentou sombriamente.
— É, bem, deixa isso para lá — disse Harry amargurado. — Escuta só o que ele estava
dizendo antes de me descobrir lá...
Harry calculara que Rony ficasse chocado com as bravatas de Malfoy. Mas, com o que
Harry considerava uma demonstração de puro cabeçadurismo, o amigo não se deixou
impressionar.
— Ora, Harry, ele estava só se exibindo para a Parkinson... que tipo de missão Você-Sabe-
Quem daria a ele?
— Como é que você sabe que Voldemort não precisa de uma pessoa em Hogwarts? Não
seria a primeira...
— Eu gostaria que você parasse de falar esse nome, Harry — repreendeu-o uma voz às suas
costas. Ele espiou por cima do ombro e viu Hagrid balançando a cabeça.
— É o nome que Dumbledore usa — insistiu Harry.
— É, mas isso é o Dumbledore! — disse Hagrid com ar misterioso. — Então, por que foi
que se atrasou, Harry? Fiquei preocupado.
— Tive um imprevisto no trem. E por que você se atrasou?
— Estive com o Grope — respondeu Hagrid satisfeito. — Não vi o tempo passar. Ele agora
tem uma casa nas montanhas, foi Dumbledore que arranjou, uma bela caverna. Ele está muito
mais feliz do que na Floresta. Estivemos batendo um bom papo.
— Sério? — exclamou Harry, tomando o cuidado de não olhar para Rony; a última vez que
encontrara o meio-irmão de Hagrid, um gigante selvagem com talento para arrancar árvores pela
raiz, seu vocabulário tinha apenas cinco palavras, duas das quais ele não conseguia pronunciar
direito.
— Ah, ele melhorou muito — explicou Hagrid orgulhoso. — Você ficaria espantado. Estou
pensando em treinar Grope para ser meu assistente.
Rony abafou uma gargalhada pelo nariz, fazendo parecer que era um violento espirro. Os
três estavam agora diante das portas do castelo.
— Então, vejo você amanhã, a primeira aula logo depois do almoço. — Se chegar mais
cedo, vai poder dar um alô ao Bic... quero dizer ao Asafugaz!
E, erguendo o braço em alegre despedida, o gigante saiu em direção à escuridão.
Harry e Rony se entreolharam. Harry sabia que o amigo estava sentindo o mesmo desânimo
que ele.
— Você não se matriculou em Trato das Criaturas Mágicas, não é? Rony sacudiu a cabeça.
— Nem você, né?
Harry sacudiu a cabeça, também.
— E a Hermione — disse Rony —, não, né?
Harry tornou a sacudir a cabeça. Nem queria pensar no que diria Hagrid quando percebesse
que seus três alunos favoritos tinham desistido da sua matéria.
CAPÍTULO NOVE
O PRÍNCIPE MESTIÇO
NO DIA SEGUINTE, HARRY E RONY se encontraram com Hermione no salão comunal, antes
do café da manhã. Na esperança de obter algum apoio para sua teoria, Harry não perdeu tempo e
contou à amiga o que ouvira Malfoy dizer no Expresso de Hogwarts.
— Mas é óbvio que ele estava se exibindo para a Parkinson, não é? — aparteou Rony,
rápido, antes que Hermione pudesse responder.
— Bem — hesitou ela —, não sei... é bem coisa do Malfoy querer parecer mais importante
do que é... mas assim é exagero...
— Exatamente — disse Harry, mas não pôde argumentar porque havia muita gente
querendo ouvir a conversa, sem falar naqueles que o encaravam e cochichavam cobrindo a boca
com a mão.
— E falta de educação apontar — Rony ralhou com um aluno do primeiro ano
particularmente pequeno quando entraram na fila para passar pelo buraco do retrato. O garoto,
que, disfarçadamente, estivera murmurando alguma coisa para o amigo, ficou escarlate e, assustado,
caiu pelo buraco no corredor. Rony deu uma risadinha.
— Adoro estar no sexto ano. E o melhor é que vamos ter tempo livre este ano. Períodos
inteiros para sentar e relaxar.
— Vamos precisar desse tempo para estudar, Rony! — lembrou Hermione, quando
caminhavam pelo corredor.
— É, mas não hoje — respondeu Rony. — Hoje vai ser moleza pura.
— Espere aí! — exclamou Hermione, esticando o braço e fazendo parar um aluno do quarto
ano, que tentava passar por ela segurando com firmeza um disco verde-limão. — Os Frisbeesdentados
são proibidos, me dê isso aqui — pediu com severidade. O garoto, amarrando a cara,
entregou o disco que rosnava, passou por baixo do braço de Hermione e saiu no encalço dos
amigos. Rony esperou que ele desaparecesse e roubou o Frisbee da mão de Hermione.
— Ótimo, sempre quis ter um.
O protesto de Hermione foi abafado por uma risadinha alta. Pelo visto, Lilá Brown achara o
comentário de Rony engraçadíssimo. E passou por ele ainda rindo, olhando-o por cima do ombro.
Rony pareceu muito satisfeito.
O teto do Salão Principal estava serenamente azul, raiado de leves farrapos de nuvens, como
nos quadrados de céu que se viam pelas janelas de caixilhos. Enquanto comiam mingau de aveia
e ovos com bacon, Harry e Rony contaram a Hermione a conversa constrangedora que tinham
tido com Hagrid, na véspera.
— Mas ele não pode realmente pensar que continuaríamos a cursar Trato das Criaturas
Mágicas! — comentou ela perturbada. — Quero dizer, quando foi que algum de nós manifestou...
sabe... algum entusiasmo?
— É isso aí, né? — disse Rony, engolindo um ovo frito inteiro. —Nós fazíamos o maior
esforço nas aulas porque gostamos do Hagrid. Mas ele achou que gostávamos daquela matéria
idiota. Será que alguém vai continuar até o N.I.E.M.?
Nem Harry nem Hermione responderam; não carecia. Sabiam perfeitamente que ninguém
de sua turma iria querer continuar em Trato das Criaturas Mágicas. Evitaram olhar para Hagrid e
retribuíram seu aceno cordial sem animação quando o amigo deixou a mesa dos professores dez
minutos depois.
Terminada a refeição, eles continuaram sentados aguardando a professora McGonagall
descer da mesa dos professores. Este ano a distribuição dos horários estava mais complicada do
que o normal, porque ela precisava primeiro confirmar que cada aluno tivesse obtido as notas
mínimas nos N.O.M.s para continuar as matérias escolhidas nos N.I.E.M.s.
Hermione foi prontamente liberada para continuar Feitiços, Defesa contra as Artes das
Trevas, Transfiguração, Herbologia, Aritmancia, Runas Antigas e Poções e, sem demora, partiu
correndo para assistir ao primeiro período de Runas Antigas. Os horários de Neville exigiram
mais tempo para destrinchar; seu rosto redondo expressava ansiedade enquanto a professora
examinava o seu pedido e consultava os resultados dos N.O.M.s.
— Herbologia pode — disse ela. — A professora Sprout ficará encantada de ver você
retomar a matéria com um "Ótimo" no N.O.M. E qualificou-se para Defesa contra as Artes das
Trevas com um "Excede
Expectativas". O problema está em Transfiguração. Sinto muito, Longbottom, mas um
"Aceitável" não é suficiente para continuar no nível de N.I.E.M. Acho que você não conseguiria
dar conta dos deveres do curso.
Neville baixou a cabeça. A professora fitou-o através dos óculos quadrados.
— Mas por que quer continuar em Transfiguração? Você nunca me deu a impressão de
gostar tanto assim da matéria.
Neville fez uma cara infeliz e murmurou alguma coisa como "minha avó quer".
— Hum — bufou a professora. — Já está mais do que na hora de sua avó aprender a ter orgulho
do neto que tem, em vez do neto que gostaria de ter, particularmente depois do que aconteceu no
Ministério.
Neville corou fortemente e piscou atordoado; a professora McGonagall nunca lhe fizera um
elogio antes.
— Lamento, Longbottom, não posso aceitá-lo na minha classe de N.I.E.M. Mas vejo que
você recebeu um "Excede Expectativas "em Feitiços; por que não tenta um N.I.E.M. em Feitiços?
— Minha avó acha que Feitiços é uma opção muito fácil — murmurou Neville.
— Matricule-se em Feitiços — disse a professora —, e vou mandar uma palavrinha a
Augusta lembrando que só porque ela não passou no N.O.M. de Feitiços... não significa que a
matéria seja inútil. — Com um leve sorriso ao ver a expressão de incrédula satisfação no rosto de
Neville, McGonagall bateu com a ponta da varinha em um formulário em branco e entregou-o ao
garoto, já impresso, com os detalhes de suas novas matérias.
Em seguida, ela se voltou para Parvati Patil, cuja primeira pergunta foi se Firenze, aquele
centauro bonitão, continuaria a ensinar Adivinhação.
— Ele e a professora Trelawney vão dividir as turmas este ano — respondeu a professora
McGonagall, com um quê de desaprovação na voz; todos sabiam que ela desprezava a matéria. —
O sexto ano ficará por conta da professora Trelawney.
Parvati saiu para a aula de Adivinhação cinco minutos depois, parecendo um pouco
desconcertada.
— Então, Potter, Potter... — disse a professora, consultando suas anotações ao se dirigir a
Harry. — Feitiços. Defesa contra as Artes das Trevas, Herbologia, Transfiguração... tudo bem. E
devo dizer que fiquei satisfeita com a sua nota na minha matéria, Potter, muito satisfeita. Mas por
que não pediu para continuar em Poções? Pensei que sua ambição fosse se tornar auror.
— Era, mas a senhora me disse que eu precisava de um "Ótimo" no meu N.O.M.
— E realmente precisava quando o professor Snape ensinava a matéria. O professor
Slughorn, porém, fica perfeitamente feliz em aceitar no N.I.E.M alunos que tenham obtido
"Excede Expectativas" no N.O.M. Você quer continuar em Poções?
— Quero — respondeu Harry —, mas não comprei os livros nem os ingredientes, nem
nada...
— Tenho certeza de que o professor Slughorn poderá lhe emprestar o material. Muito bem,
Potter, aqui estão os seus horários. Ah, sim, vinte aspirantes já se inscreveram para a equipe de
quadribol da Grifinória. Passarei a lista a você por esses dias, e poderá marcar os testes quando
quiser.
Alguns minutos mais tarde, Rony foi liberado para cursar as mesmas matérias que Harry, e
os dois deixaram a mesa juntos.
— Veja — exclamou Rony muito feliz, conferindo o seu horário —, temos um período livre
agora... e outro depois do recreio... e depois do almoço... excelente!
Os dois voltaram à sala comunal, que estava vazia exceto por meia dúzia de alunos do
sétimo ano, inclusive Cátia Bell, a única jogadora que restava da equipe original de quadribol da
Grifinória, para a qual Harry entrara no primeiro ano.
— Achei que você ganharia isso, parabéns — disse a garota, apontando para a insígnia de
capitão no peito de Harry. — Me avise quando começarem os testes!
— Não seja retardada — respondeu Harry —, você não precisa de testes, há cinco anos que
vejo você jogar...
— Você não pode começar assim — alertou a garota. — Pelo que sei, tem gente melhor que
eu fora do time. Boas equipes já acabaram mal porque os capitães simplesmente continuaram a
jogar com caras conhecidos, ou deixaram os amigos entrarem...
Rony pareceu meio constrangido, e começou a jogar com o Frisbee que Hermione
confiscara do aluno do quarto ano. O brinquedo voou pela sala comunal, rosnando e tentando
morder a tapeçaria.
Bichento acompanhou-o com seus olhos amarelos e bufou quando o Frisbee se aproximou
demais.
Uma hora depois eles deixaram, relutantes, a sala ensolarada para assistir à aula de Defesa
contra as Artes das Trevas, quatro andares abaixo. Hermione já estava na fila, carregando uma
braçada de pesados livros, e com um ar de quem fora usado.
— A professora de Runas nos passou tantos deveres! — exclamou ansiosa, quando Harry e
Rony se reuniram a ela. — Um trabalho de quase quatro metros, duas traduções, e preciso ler
tudo isto para quarta-feira.
— Que pena — bocejou Rony.
— Espere para ver — disse ela com raiva. — Aposto como o Snape também vai passar um
montão. — Quando ia dizendo isso, a porta da sala abriu e o professor saiu para o corredor, o
rosto macilento emoldurado pelas eternas cortinas de cabelos pretos oleosos. A fila silenciou
imediatamente.
— Para dentro — disse ele.
Harry olhou a toda volta quando entraram. Snape já impusera sua personalidade à sala; estava
mais sombria do que antes, pois ele fechara as cortinas e a iluminara com velas. Novos quadros
adornavam as paredes, vários deles mostravam pessoas sofrendo com pavorosos ferimentos ou
partes do corpo estranhamente torcidas. Ninguém falou enquanto os alunos se acomodavam,
admirando os sinistros quadros escuros.
— Não pedi a vocês para apanharem seus livros — começou Snape, fechando a porta e
virando-se para encarar a turma de sua escrivaninha. Hermione devolveu depressa à mochila o
seu exemplar de Frente ao irreconhecível e guardou-a embaixo da cadeira. — Quero conversar
com os senhores e exijo sua total e absoluta atenção.
Seus olhos negros percorreram os rostos voltados para ele, demorando-se uma fração de
segundo a mais no rosto de Harry.
— Creio que já tiveram cinco professores nesta matéria.
Você crê... como se não tivesse acompanhado todos virem e irem, Snape, na esperança de
ser o próximo, pensou Harry com desprezo.
— Naturalmente, cada um teve o seu método e suas prioridades. Diante dessa confusão, é
uma surpresa que tantos tenham obtido nota para passar nesta matéria. E surpresa maior será se
todos conseguirem dar conta dos deveres do N.I.E.M, que serão bem mais complexos.
Snape começou a andar em volta da sala, falando agora mais baixo; os alunos esticaram o
pescoço para conseguir vê-lo.
— As Artes das Trevas são muito variadas, inconstantes e eternas. Combatê-las é como
combater um monstro de muitas cabeças, no qual, cada vez que cortamos uma cabeça, surge outra
ainda mais feroz e inteligente do que a anterior. Vocês estão combatendo algo que é instável,
mutável e indestrutível.
Harry encarou Snape. Sem dúvida, uma coisa era respeitar as Artes das Trevas como um
inimigo perigoso, outra era se referir a elas como Snape estava fazendo, acariciando-as
amorosamente com a voz.
— Suas defesas — disse Snape alteando a voz —, portanto, têm de ser flexíveis e inventivas
como as Artes que vocês querem neutralizar. Esses quadros — ele apontou alguns à medida que
passava — são uma boa representação do que acontece com quem, por exemplo, sofre a Maldição
Cruciatus — (ele fez um gesto indicando uma bruxa que visivelmente urrava de dor) —, sente o
Beijo do Dementador — (um bruxo de olhos vidrados encolhido contra uma parede) — ou
provoca a agressão de um Inferius (uma massa sangrenta no chão).
— Então já foi avistado algum Inferius? — perguntou Parvati Patil com voz aguda. —
Então é oficial, ele está usando Inferi?
— O Lorde das Trevas usou Inferi no passado — respondeu Snape —, o que significa que
seria sensato presumir que pode tornar a usá-los. Agora...
Ele recomeçou a andar pelo outro lado da sala em direção à própria escrivaninha, suas
vestes escuras enfunando a cada passo e, mais uma vez, a classe acompanhou-o com os olhos.
— ... creio que os senhores são absolutamente novatos no uso de feitiços mudos. Qual é a
vantagem de um feitiço mudo?
A mão de Hermione se ergueu no ar. Snape aguardou calmamente olhando os outros alunos,
certificando-se de que não tinha outra escolha, antes de dizer secamente:
— Muito bem... srta. Granger?
— O adversário não pode prever que tipo de feitiço a pessoa vai realizar — respondeu
Hermione —, o que lhe dá uma fração de segundo de vantagem.
— Uma resposta decorada quase palavra por palavra do Livro padrão de feitiços, 6a série —
comentou Snape com menosprezo (no canto Malfoy riu) —, mas correta em sua essência. Sim,
aqueles que se aperfeiçoam e aprendem a usar a magia sem proferir os encantamentos, passam a
contar com o elemento surpresa em sua arte. Nem todos os bruxos conseguem fazer isso, é claro;
é uma questão de concentração e poder mental que alguns — seu olhar recaiu demoradamente em
Harry — não possuem.
Harry sabia que o professor estava pensando nas desastrosas aulas de Oclumência do ano
anterior. Recusou-se a baixar os olhos e encarou Snape até este desviar o olhar.
— Os senhores agora vão se dividir em pares. Um parceiro tentará enfeitiçar o outro sem
falar. O outro vai tentar repelir o feitiço em igual silêncio. Comecem.
Embora Snape não soubesse, no ano anterior, Harry ensinara pelo menos à metade dos alunos (os
que tinham participado da AD) como executar um Feitiço-Escudo. Nenhum deles, porém, jamais
realizara o feitiço sem falar. Seguiu-se uma boa dose de enrolação; muitos alunos simplesmente
murmuravam o encantamento em vez de dizê-lo em voz alta. Como era de esperar, aos dez
minutos de aula, Hermione conseguiu repelir o Feitiço das Pernas Bambas, murmurado por
Neville, sem enunciar uma única palavra, um feito que certamente teria rendido vinte pontos à
Grifinória na aula de qualquer professor justo, pensou Harry com amargura, mas Snape ignorouo.
Passeava imponente enquanto os alunos praticavam, parecendo mais do que nunca um
morcego exageradamente grande, detendo-se a observar Harry e Rony se esfalfarem para cumprir
a tarefa.
Rony, que devia enfeitiçar Harry, tinha o rosto púrpura, os lábios fortemente comprimidos
para não cair na tentação de murmurar o encantamento. Harry mantinha a varinha erguida,
aguardando, aflito, para repelir um feitiço que provavelmente jamais viria.
— Patético, Weasley — comentou Snape depois de algum tempo. — Deixe-me mostrar a
você...
Snape virou a varinha para Harry tão ligeiro que este reagiu instintivamente; esqueceu a
recomendação de não pronunciar o feitiço e gritou: "Protego!"
Seu Feitiço-Escudo foi tão forte que o professor se desequilibrou e bateu em uma carteira. A
classe inteira tinha virado a cabeça e agora observava Snape se levantar de cara amarrada.
— Você está lembrado que eu disse para praticar feitiços nõo-verbais, Potter?
— Sim — respondeu Harry, inflexivelmente.
— Sim, senhor.
— Não é preciso me chamar de "senhor", professor.
As palavras escaparam de sua boca antes que soubesse o que estava dizendo. Vários alunos
ofegaram, inclusive Hermione. Às costas de Snape, no entanto, Rony, Dino e Simas riram
aprovadoramente.
— Detenção, sábado à noite, meu escritório — disse Snape. — Não admito atrevimento de
ninguém, Potter... nem mesmo do Eleito.
— Foi genial, Harry! — disse Rony às gargalhadas, quando já estavam bem longe, a
caminho do recreio, pouco depois.
— Você realmente não devia ter dito aquilo — comentou Hermione, franzindo a testa para
Harry. — Por que disse?
— Ele tentou me lançar um feitiço, caso você não tenha reparado! — irritou-se Harry. —
Me enchi disso nas aulas de Oclumência! Por que ele não usa um porquinho-da-índia para variar?
Afinal, que é que o Dumbledore está querendo para deixar o Snape ensinar Defesa contra as Artes
das Trevas? Você ouviu bem o que ele disse? Ele adora essas artes! Todo aquele papo de instável,
indestrutível...
— Bem — contestou Hermione —, achei que lembrava um pouco você falando.
— Eu?
— É, quando estava nos contando como era enfrentar Voldemort. Você disse que não era
uma questão de decorar um monte de feitiços, disse que era apenas você e seu cérebro e sua
coragem... bem, não era isso que Snape estava dizendo? Que a arte se resumia em ter bravura e
agilidade mental?
Harry se sentiu tão desarmado ante a amiga que achava que suas palavras mereciam ser
memorizadas como as do Livro padrão de feitiços que não discutiu.
— Harry! Ei, Harry!
Harry olhou para os lados; Jucá Sloper, um dos batedores da equipe de quadribol da
Grifinória no ano anterior, vinha correndo em sua direção com um pergaminho na mão.
— Para você — ofegou Sloper. — Escute, soube que é o novo capitão. Quando vai fazer os
testes?
— Ainda não tenho certeza — respondeu Harry, pensando que Sloper teria muita sorte se
voltasse à equipe. — Aviso você.
— Ah, certo. Eu tinha esperança de que fosse neste fim de semana...
Mas Harry não estava escutando; acabara de reconhecer a caligrafia fina e inclinada no
pergaminho. Deixou Sloper no meio da frase e se afastou depressa com Rony e Hermione,
desenrolando o pergaminho enquanto andava.
Caro Harry,
Gostaria de começar as nossas aulas particulares no sábado. Por favor, venha ao meu
escritório às oito horas da noite. Espero que esteja apreciando o seu primeiro dia de escola.
.Atenciosamente.
Alvo Dumbledore
P.S. Gosto de Acidinhas.
— Ele gosta de Acidinhas? — estranhou Rony, que leu o bilhete por cima do ombro do
amigo, perplexo.
— É a senha para passar pela gárgula na porta da sala dele — respondeu Harry em voz
baixa. — Ah! Snape não vai gostar... Não vou poder cumprir a detenção!
Ele, Rony e Hermione passaram todo o recreio especulando o que Dumbledore iria ensinar. Rony
achou mais provável que fossem feitiços e azarações desconhecidos dos Comensais da Morte.
Hermione argumentou que isso era ilegal, e achou mais provável que Dumbledore quisesse
ensinar a Harry magia defensiva avançada. Terminado o recreio, ela seguiu para a aula de
Aritmancia enquanto Harry e Rony voltavam à sala comunal, onde, de má vontade, começaram a
fazer os deveres passados por Snape. Eram tão complexos que ainda não tinham terminado
quando Hermione foi encontrá-los para o período livre depois do almoço (embora ela tivesse
ajudado a acelerar bastante o processo). Mal concluíram os deveres, tocou a sineta para a aula
dupla de Poções e eles fizeram o já conhecido trajeto para a sala na masmorra que, durante tanto
tempo, pertencera a Snape.
Quando chegaram ao corredor, viram que apenas uns doze alunos haviam continuado no
nível de N.I.E.M. Crabbe e Goyle evidentemente não tinham obtido a nota exigida no N.O.M.,
mas quatro alunos da Sonserina tinham passado, inclusive Malfoy. Aguardavam também quatro
alunos da Corvinal e um da Lufa-Lufa, Ernesto Macmillan, de quem Harry gostava, apesar do seu
jeito pomposo.
— Harry — saudou Ernesto, auspiciosamente, estendendo a mão quando ele se aproximou
—, não tive chance de falar com você hoje de manhã na Defesa contra as Artes das Trevas. Achei
uma boa aula, mas Feitiços-Escudo é, obviamente, uma velharia para veteranos da AD como
nós... e vocês como vão, Rony... Hermione?
Mal os dois responderam "ótimo", a porta da masmorra se abriu e a pança de Slughorn o
precedeu no corredor. Quando entraram na sala, seus enormes bigodes de leão-marinho se
curvaram nos cantos da boca sorridente e ele cumprimentou Harry e Zabini com particular
entusiasmo.
A masmorra estava, como nunca antes, impregnada de vapores e odores estranhos. Harry,
Rony e Hermione aspiraram, interessados, ao passar por grandes caldeirões borbulhantes. Os
quatro alunos da Sonserina ocuparam juntos uma das mesas, o mesmo tendo feito os da Corvinal.
Sobraram, assim, Harry, Rony e Hermione para dividir a terceira mesa com Ernesto. Escolheram
a mais próxima a um caldeirão dourado que exalava um dos aromas mais fascinantes que Harry já
sentira na vida: lembrava ao mesmo tempo torta de caramelo, resina de madeira em cabo de
vassoura e algo floral que ele pensava ter sentido na Toca. Viu que respirava muito lenta e
profundamente e que a fumaça da poção o satisfazia como uma bebida. Ele foi arrebatado por um
grande contentamento; sorriu para Rony à sua frente, e o amigo retribuiu indolentemente o seu
sorriso.
— Ora muito bem, ora muito bem, ora muito bem — começou Slughorn, cuja silhueta
maciça parecia tremeluzir em meio aos variados vapores.
— Apanhem as balanças e os kits de poções e não esqueçam o manual de Estudos
avançados no preparo de poções...
— Senhor — disse Harry, erguendo a mão.
— Harry, meu rapaz?
— Não tenho livro, nem balança nem nada... o Rony também não... não sabíamos que
poderíamos fazer o N.I.E.M., o senhor entende...
— Ah, sim, de fato a professora McGonagall me falou... não se preocupe, meu caro rapaz,
não se preocupe. Use os ingredientes do armário hoje, e estou certo de que podemos lhe
emprestar uma balança, e temos um estoque de livros usados, eles servirão até que você possa
escrever para a Floreios e Borrões...
Slughorn foi até um armário de canto e instantes depois virou-se com dois exemplares muito
gastos de Estudos avançados no preparo de poções, de Libatius Borage, e entregou a Harry e
Rony, juntamente com duas balanças oxidadas.
— Ora, muito bem — disse voltando para a frente da turma e enchendo o peito, já bastante
volumoso, o que por um triz não fez os botões do seu colete saltarem. — Preparei algumas
poções para vocês verem, apenas pelo interesse que encerram, entendem? São o tipo de coisa que
deverão ser capazes de fazer ao fim dos N.I.E.M.s. Já devem ter ouvido falar de algumas, ainda
que não saibam prepará-las. Alguém pode me dizer qual é esta aqui?
O professor indicou o caldeirão mais próximo à mesa da Sonserina. Harry levantou
ligeiramente da cadeira e viu algo que lhe pareceu água pura em ebulição.
A mão bem treinada de Hermione subiu antes de qualquer outra; Slughorn apontou para ela.
— É Veritaserum, uma poção sem cor nem odor que força quem a bebe a dizer a verdade —
respondeu Hermione.
— Muito bem, muito bem! — elogiou o professor, feliz. — Agora — continuou, apontando
para o caldeirão mais próximo da mesa da Corvinal —, essa outra é bem conhecida... e também
apareceu em alguns folhetos do Ministério ultimamente... quem sabe...?
A mão de Hermione foi novamente a mais rápida.
— É a Poção Polissuco, senhor.
Harry também reconheceu a substância com aspecto de lama que fervia lentamente no
segundo caldeirão, mas não se aborreceu que Hermione recebesse o crédito por responder à
pergunta; afinal, fora ela quem conseguira preparar a poção, quando estavam no segundo ano.
— Excelente, excelente! Agora, esta outra aqui... sim, minha cara? — interrompeu-se
Slughorn, parecendo ligeiramente tonto ao ver a mão de Hermione perfurar mais uma vez o ar.
— É Amortentia!
— De fato. Parece quase tolice perguntar — comentou o professor muito impressionado —, mas
presumo que você saiba que efeito produz, não?
— É a poção de amor mais poderosa do mundo! — disse a garota.
— Certo! E você a reconheceu, presumo, pelo brilho perolado?
— E o vapor subindo em espirais características — respondeu Hermione animada —, e
dizem que tem um cheiro diferente para cada um de nós, de acordo com o que nos atrai, e eu
estou sentindo cheiro de grama recém-cortada e pergaminho e...
Mas ela corou ligeiramente e não completou a frase.
— Posso saber o seu nome, minha cara? — perguntou Slughorn, não dando atenção ao
constrangimento de Hermione.
— Hermione Granger, senhor.
— Granger? Granger? Será que você é parenta de Hector Dagworth-Granger, que fundou a
Mui Extraordinária Sociedade dos Preparadores de Poções?
— Não. Creio que não, senhor. Nasci trouxa, sabe.
Harry viu Malfoy se inclinar para perto de Nott e cochichar alguma coisa, os dois riram,
mas Slughorn não se mostrou desapontado, pelo contrário, abriu um largo sorriso e olhou de
Hermione para Harry, sentado ao seu lado.
— Oho! "Uma das minhas melhores amigas é trouxa e é a melhor da nossa série!" Presumo
que seja esta a amiga de quem me falou, Harry!
— É, sim, senhor.
— Ora muito bem, vinte pontos muito merecidos para a Grifinória, srta. Granger —
exclamou Slughorn cordialmente.
Malfoy tinha no rosto a mesma expressão do dia em que Hermione lhe dera um soco na
cara. A garota virou-se para Harry radiante e sussurrou:
— Você realmente disse a ele que sou a melhor da série? Ah, Harry!
— Ora, grande coisa! — cochichou Rony que, por alguma razão, parecia aborrecido. —
Você é a melhor da série: eu teria dito isso se ele tivesse me perguntado!
Hermione sorriu, mas pediu silêncio com um gesto para poderem ouvir o que Slughorn
estava dizendo. Rony pareceu um pouco desapontado.
— A Amortentia na realidade não gera o amor, é claro. É impossível produzir ou imitar o
amor. Não, a poção apenas causa uma forte paixonite ou obsessão. Provavelmente é a poção mais
poderosa e perigosa nesta sala. Ah, sim — confirmou solenemente com a cabeça para Malfoy e
Nott, que riam descrentes. — Quando vocês tiverem visto tanto da vida quanto eu, não
subestimarão o poder do amor obsessivo...
"E agora, está na hora de começarmos a trabalhar."
— Professor, o senhor não nos disse o que tem neste aqui — lembrou Ernesto Macmillan,
apontando para um pequeno caldeirão preto em cima da mesa de Slughorn. A poção espirrava
vivamente para todo o lado; era cor de ouro derretido, e dela saltavam enormes gotas como
peixinhos à superfície, embora nem uma só partícula extravasasse.
— Oho — exclamou novamente o professor. Harry tinha certeza de que o professor não
esquecera a poção, mas esperou que lhe perguntassem para produzir um efeito teatral. — Sim.
Aquela. Bem, aquela ali, senhoras e senhores, é uma poçãozinha curiosa chamada Felix Felicis.
Suponho — e ele se voltou sorridente para Hermione, que deixara escapar uma exclamação
audível — que a senhorita saiba o que faz a Felix Felicis, srta. Granger?
— É sorte líquida — respondeu Hermione excitada. — Faz a pessoa ter sorte!
A classe inteira pareceu sentar mais aprumada. Agora Harry só conseguia ver os cabelos
louros e sedosos de Malfoy, porque finalmente ele estava prestando total atenção ao professor.
— Correto, mais dez pontos para a Grifinória. É uma poçãozinha engraçada a Felix Felicis
— explicou Slughorn. — Dificílima de fazer e catastrófica se errarmos. Contudo, se a
prepararmos corretamente, como no caso, vocês irão descobrir que os seus esforços serão recompensados...
pelo menos até passar o efeito.
— Por que as pessoas não a bebem o tempo todo, senhor? — perguntou Terêncio Boot,
pressuroso.
— Porque ingerida em excesso causa tonteiras, irresponsabilidade e perigoso excesso de
confiança. Tudo que é bom demais, sabe... extremamente tóxica em quantidade. Mas tomada com
parcimônia e muito ocasionalmente...
— O senhor já a experimentou? — perguntou Miguel Corner muito interessado.
— Duas vezes na vida. Uma aos vinte e quatro anos e outra aos cinqüenta e sete. Duas
colheres de sopa ao café da manhã. Dois dias perfeitos.
Ele deixou o olhar se perder na distância sonhadoramente. Se estava representando ou não,
pensou Harry, o efeito era bom.
— E a poção — disse Slughorn aparentemente voltando à terra — é o que vou oferecer de
prêmio nesta aula.
Houve um grande silêncio em que cada borbulha e gargarejo das poções na sala pareceram
se multiplicar dez vezes.
— Um frasquinho de Felix Felicis — explicou Slughorn, tirando do bolso um minúsculo
vidro com rolha e mostrando-o a todos. — Suficiente para doze horas de sorte. Do amanhecer ao
anoitecer, vocês terão sorte em tudo que tentarem.
"Agora, preciso avisar que a Felix Felicis é uma substância proibida nas competições
oficiais, eventos esportivos, por exemplo, exames e eleições. Por isso quem a ganhar deve usá-la
somente em um dia comum... e observar como esse dia comum se torna um dia extraordinário!
"Então", disse o professor repentinamente enérgico, "como irão ganhar esse prêmio
fabuloso? Bem, abrindo a página dez de Estudos avançados no preparo de poções. Ainda nos
resta pouco mais de uma hora, que deve ser suficiente para vocês fazerem uma tentativa válida de
preparar a Poção do Morto-Vivo. Sei que é mais complexa do que qualquer outra que tenham
tentado antes e não espero que ninguém faça uma poção perfeita. Mas aquele que a fizer melhor
ganhará a pequena Felix aqui. Podem começar!"
Houve muito barulho quando os alunos arrastaram objetos e puxaram seus caldeirões para
perto, e batidas estridentes à medida que acrescentavam pesos aos pratos das balanças, mas
ninguém falou. A concentração na sala era quase tangível. Harry viu Malfoy folheando
febrilmente seu exemplar de Estudos avançados no preparo de poções. Não podia ficar mais
evidente que ele realmente desejava ganhar aquele dia de sorte. Harry debruçou-se ligeiro para o
exemplar esfrangalhado do livro que Slughorn lhe emprestara.
Para seu aborrecimento, viu que o antigo dono escrevera em todas as páginas, de tal modo
que as margens estavam tão pretas quanto as partes impressas. Ele se curvou mais para decifrar os
ingredientes (até mesmo ali o antigo dono fizera anotações e riscara palavras) e correu em
seguida ao armário para procurar o que precisava. Ao voltar depressa ao seu caldeirão, viu que
Malfoy estava picando raízes de valeriana o mais rápido que podia.
Todos olhavam para os lados a ver o que o resto da turma fazia; essa era ao mesmo tempo a
vantagem e a desvantagem na aula de Poções: a dificuldade de trabalhar sozinho. Em dez
minutos, a sala toda se encheu de fumaça azulada. Hermione, naturalmente, parecia ter ido mais
longe. Sua poção apresentava-se lisa e cor de groselha como o livro dizia ser o ideal ao chegar à
metade do processo.
Ao terminar de picar as raízes, Harry debruçou-se outra vez sobre o livro. Era realmente
muito irritante tentar decifrar todos os rabiscos bobos do antigo dono, que, por alguma razão,
implicara com a instrução para cortar a Vagem Soporífera e anotara uma alternativa:
Amassai com o lado plano da adaga de prata faz escorrer mais seiva do que cortar.
— Professor, acho que o senhor conheceu o meu avô, Abraxas Malfoy.
Harry levantou a cabeça; Slughorn ia passando pela mesa da Sonserina.
— Conheci — confirmou o professor, sem olhar para Malfoy. — Lamentei quando soube
do seu falecimento, embora não tenha sido inesperado; Varíola de Dragão na idade dele...
Quando Slughorn se afastou, Harry voltou a atenção para o seu caldeirão, rindo.
Compreendeu que Malfoy esperara ser tratado como ele ou Zabini; talvez até receber um
tratamento privilegiado do tipo que Snape normalmente lhe dispensara. Pelo visto, Malfoy teria
de depender apenas do seu talento para ganhar o frasco de Felix Felicis.
A Vagem Soporífera mostrava-se difícil de cortar. Harry virou-se para Hermione.
— Pode me emprestar a sua faca de prata?
Ela concordou impaciente, sem tirar os olhos de sua poção, que continuava muito púrpura,
embora o livro dissesse que já deveria estar lilás-clara.
Harry amassou sua vagem com o lado plano da adaga. Para sua surpresa, a planta
imediatamente exsudou tanta seiva que ele se admirou que uma vagem seca pudesse conter tanta
umidade. Ele a raspou depressa para dentro do caldeirão e constatou, espantado, que a poção
imediatamente adquiriu o exato tom lilás descrito no livro.
O seu aborrecimento com o antigo dono desapareceu na hora, Harry agora fazia força para
ler a linha seguinte das instruções. Segundo o livro, ele precisava mexer o caldeirão no sentido
anti-horário até que a poção ficasse clara como água. Mas, segundo a anotação do antigo dono,
ele deveria dar uma mexida no sentido horário para cada sete no sentido anti-horário. Será que o
dono anterior estaria mais uma vez certo?
Harry mexeu a poção no sentido anti-horário, prendeu a respiração e deu a mexida no
sentido horário. O efeito foi imediato. A porção tornou-se rosa muito claro.
— Como é que você está conseguindo isso? — quis saber Hermione, o rosto muito corado e
os cabelos cada vez mais volumosos com o vapor que subia do caldeirão; sua poção continuava
decididamente púrpura.
— Dê uma mexida no sentido horário...
— Não, não, o livro diz anti-horário! — retorquiu ela.
Harry encolheu os ombros e continuou o que estava fazendo. Sete mexidas no sentido antihorário,
uma no sentido horário, pausa... sete mexidas no sentido anti-horário, uma no sentido
horário...
Do lado oposto da mesa, Rony xingava baixinho sem parar; a poção dele parecia alcaçuz
líquido. Harry olhou para os lados. Aparentemente, nenhuma outra poção ficara clara como a
dele. Sentiu-se eufórico, coisa que jamais lhe acontecera naquela masmorra.
— E acabou-se... o tempo! — anunciou Slughorn. — Por favor, parem de mexer!
O professor caminhou lentamente entre as mesas, examinando o conteúdo dos caldeirões.
Não fez comentários, mas ocasionalmente mexia ou cheirava uma das poções. Por fim, chegou à
mesa onde estavam Harry, Rony, Hermione e Ernesto. Sorriu ao ver a substância densa e escura
no caldeirão de Rony. Passou rapidamente pela preparação de Ernesto. Deu um aceno de
aprovação à de Hermione. Então viu a de Harry, e uma expressão de prazer e incredulidade
espalhou-se pelo seu rosto.
— Sem dúvida, o vencedor! — exclamou para a masmorra. — Excelente, Harry! Deus do
céu, é inegável que você herdou o talento de sua mãe que tinha uma mão ótima para Poções, a
Lílian. Tome aqui, então, tome aqui: um frasco de Felix Felicis, conforme prometi, e use-o bem!
Harry guardou o frasquinho de líquido dourado no bolso interno das vestes, sentindo uma
estranha mescla de prazer ao ver os olhares furiosos dos alunos da Sonserina e remorso frente à
expressão de desapontamento de Hermione. Rony estava simplesmente estarrecido.
— Como foi que você fez aquilo? — sussurrou para o amigo, ao deixarem a masmorra.
— Tive sorte, presumo — respondeu Harry preocupado que Malfoy os ouvisse.
Uma vez, porém, refestelados à mesa da Grifmória para jantar, ele se sentiu seguro para
contar aos amigos. O rosto de Hermione foi endurecendo a cada palavra que ele dizia.
— Suponho que você esteja achando que colei? — concluiu ele, incomodado com sua
expressão.
— Bem, não foi exatamente trabalho seu, não é? — disse tensa.
— Ele apenas seguiu instruções diferentes das nossas — defendeu-o Rony. — Poderia ter
sido uma catástrofe, não é? Mas ele arriscou e se deu bem. — Ele suspirou. — Slughorn bem
podia ter dado aquele livro para mim, mas não, me deu um em que ninguém escreveu nada.
Vomitou, pela aparência da página cinqüenta e dois, mas...
— Calma aí — disse uma voz ao ouvido esquerdo de Harry, que sentiu a repentina presença
do aroma floral que reconhecera na masmorra de Slughorn. Ele se virou e viu Gina ao lado deles.
— Será que ouvi direito? Você andou seguindo ordens que alguém escreveu em um livro, Harry?
Ela estava assustada e zangada. Harry entendeu imediatamente o que passava pela cabeça da
amiga.
— Não foi nada importante — tranqüilizou-a, baixando a voz. — Sabe, não foi como no
caso do diário de Riddle. Era só um livro-texto velho em que alguém fez anotações.
— Mas você seguiu o que estava escrito?
— Só experimentei umas dicas escritas à margem, verdade, Gina, não tem nada suspeito...
— Gina tem razão — disse Hermione, empertigando-se instantaneamente. — Temos de
verificar se não há nada esquisito com o livro. Quero dizer, todas aquelas instruções engraçadas,
quem sabe?
— Ei! — exclamou Harry indignado, ao ver Hermione tirar o exemplar de Estudos
avançados no preparo de poções da mochila dele e erguer a varinha.
— Specialis revelio! — ordenou ela, dando uma pancadinha rápida na capa do livro.
Nada aconteceu. O livro continuou imóvel, apenas velho, sujo e cheio de orelhas.
— Terminou? — perguntou Harry irritado. — Ou quer esperar para ver se o livro dá umas
cambalhotas?
— Parece normal — concluiu Hermione, ainda mirando o livro desconfiada. — Quero
dizer, parece que é realmente... um simples livro.
— Que bom. Então posso guardá-lo — concluiu Harry, apanhando na mesa o livro, que
escorregou de sua mão e caiu aberto no chão.
Ninguém mais estava olhando. Harry se abaixou para recolher o livro e, ao fazer isto, viu
uma coisa escrita ao pé da quarta capa, na mesma caligrafia pequena e apertada que as instruções
que tinham obtido para ele o frasco de Felix Felicis, agora guardado no malão em seu quarto,
muito bem escondido dentro de um par de meias.
Este livro pertence ao Príncipe Mestiço.
CAPITULO DEZ
A CASA DE GAUNT
NAS DEMAIS AULAS DE POÇÕES da semana, Harry continuou a seguir as instruções do
Príncipe Mestiço sempre que divergiam das de Libatius Borage, e, em conseqüência, por volta da
quarta aula, Slughorn estava delirante com a capacidade de Harry, e comentava que raramente
ensinara a alguém tão talentoso. Nem Rony nem Hermione ficaram muito satisfeitos com isso.
Embora Harry oferecesse compartilhar o livro com ambos, Rony teve mais dificuldade em
decifrar a caligrafia do que ele, e não poderia ficar pedindo ao amigo que lesse o texto em voz
alta sem levantar suspeitas. Nesse meio tempo, Hermione enfrentava resolutamente o que ela
chamava de instruções "oficiais", mas tornava-se cada vez mais mal-humorada, pois obtinha
resultados mais medíocres do que os do Príncipe. Harry se perguntava sem grande interesse quem
teria sido o tal Príncipe Mestiço. Embora a quantidade de deveres de casa que tinham recebido o
impedisse de ler todo o exemplar de Estudos avançados no preparo de poções, ele o folheara o
suficiente para ver que não havia praticamente página alguma em que o Príncipe não tivesse feito
anotações, que nem sempre se referiam ao preparo de poções. Aqui e ali havia instruções para
feitiços que pareciam inventados por ele mesmo.
— Ou ela mesma — rebateu Hermione irritada, escutando Harry mostrar alguns para Rony
na sala comunal, sábado à noite. — Pode ter sido uma garota, acho que a letra parece mais
feminina do que masculina.
— Chamava-se o Príncipe Mestiço — disse Harry. — Quantas meninas são príncipes?
Hermione não soube responder. Apenas amarrou a cara e puxou o trabalho que estava
fazendo sobre "Os princípios da rematerialização", para longe de Rony, que tentava lê-lo de
cabeça para baixo.
Harry consultou seu relógio e guardou depressa na mochila o velho exemplar de Estudos
avançados no preparo de poções.
— São cinco para as oito, é melhor eu ir andando ou vou chegar atrasado no Dumbledore.
— Ooooh! — exclamou Hermione, erguendo imediatamente a cabeça. — Boa sorte! Vamos
esperar acordados, queremos saber o que ele vai lhe ensinar!
— Espero que tudo corra bem — disse Rony, e os dois ficaram observando Harry passar
pelo buraco do retrato.
Harry atravessou os corredores desertos, embora tenha precisado se esconder ligeiro atrás de
uma estátua quando a professora Trelawney surgiu, de repente, numa curva do corredor,
murmurando e misturando as cartas de um baralho ensebado que lia enquanto andava.
— Dois de espadas: conflito — murmurou ao passar pelo lugar em que Harry se escondera
agachado. — Sete de espadas: mau augúrio. Dez de espadas: violência. Valete de espadas: um
rapaz moreno, possivelmente perturbado, que não gosta da consulente.
Ela parou de repente, do lado oposto da estátua de Harry.
— Bem, não pode estar certo — disse contrariada, e Harry ouviu-a embaralhar
energicamente ao recomeçar a caminhada, deixando atrás de si apenas um aroma de xerez barato
para uso culinário. Harry esperou até se certificar de que ela se fora, então recomeçou a correr até
chegar ao ponto do corredor do sétimo andar em que havia apenas uma gárgula na parede.
— Acidinhas — disse Harry. A gárgula saltou para o lado; a parede oculta se abriu, e surgiu
uma escada circular de pedra, na qual Harry pôs os pés para ser levado até a porta com a aldrava
de latão que dava acesso ao escritório de Dumbledore.
Harry bateu.
— Entre — ouviu-se a voz do diretor.
— Boa-noite, senhor — cumprimentou Harry, entrando no escritório.
— Ah, boa-noite, Harry. Sente-se — disse Dumbledore, sorrindo. — Espero que sua
primeira semana na escola tenha sido prazerosa.
— Foi, obrigado, senhor.
— Deve ter andado muito ocupado, já recebeu uma detenção!
— Ãa... — começou Harry sem jeito, mas Dumbledore não parecia muito severo.
— Combinei com o professor Snape que você cumprirá sua detenção no próximo sábado.
— Certo — respondeu Harry, que tinha assuntos mais urgentes em sua cabeça do que a
detenção de Snape, e agora procurava disfarçadamente alguma indicação do que Dumbledore
pretendia fazer com ele naquela noite. O escritório circular tinha a aparência de sempre: os
delicados instrumentos de prata sobre mesinhas de pernas finas soltavam fumaça e zumbiam; os
antigos diretores e diretoras cochilavam em seus quadros; e a magnífica fênix do diretor, Fawkes,
no poleiro atrás da porta, observava Harry com vivo interesse. Pelo visto, Dumbledore nem
sequer abrira um espaço para duelar.
— Então, Harry — disse o diretor em tom objetivo. — Você certamente tem se perguntado o que
planejei para as suas... por falta de uma palavra melhor... aulas.
— Tenho, senhor.
— Bem, agora que você sabe o que induziu Lord Voldemort a tentar matá-lo há quinze
anos, concluí que já é tempo de lhe passar certas informações.
Houve uma pausa.
— O senhor disse, no fim do último trimestre, que ia me contar tudo — lembrou Harry. Era
difícil eliminar um quê de acusação em sua voz. — Senhor — acrescentou.
— E de fato contei — concordou Dumbledore placidamente. — Contei-lhe tudo que sei.
Daqui para frente, estaremos deixando o terreno firme dos fatos para viajar juntos pelos turvos
alagados da memória e nos embrenhar pelo matagal das suposições mais absurdas. Deste ponto
em diante, Harry, posso estar lamentavelmente tão enganado como Humphrey Belcher, que
acreditou que havia aceitação para caldeirões de queijo.
— Mas o senhor acha que está certo?
— Naturalmente que sim, mas como já provei a você também, erro como qualquer outro
homem. De fato, sendo, perdoe-me, bem mais inteligente do que a maioria, os meus erros tendem
a ser proporcionalmente maiores.
— Senhor — perguntou Harry hesitante —, o que vai me contar tem a ver com a profecia?
Vai me ajudar a... sobreviver?
— Muita relação com a profecia — respondeu Dumbledore, displicentemente, como se
Harry tivesse lhe perguntado que tempo faria no dia seguinte —, e tenho esperanças de que o
ajude a sobreviver.
O diretor ergueu-se, contornou a escrivaninha e passou por Harry; este se virou pressuroso e
viu Dumbledore curvar-se para o armário ao lado da porta. Quando o diretor se endireitou,
segurava uma conhecida bacia de pedra, com estranhas marcas na borda. O bruxo colocou a
Penseira na escrivaninha, diante de Harry.
— Você parece preocupado.
Realmente Harry observava a bacia com apreensão. Suas experiências anteriores com o
estranho objeto que guardava e revelava pensamentos e lembranças, embora extremamente
instrutivas, tinham sido bastante desconfortáveis. A última vez em que ele agitara o seu conteúdo,
vira muito mais do que teria desejado. Mas Dumbledore estava sorrindo.
— Desta vez, você vai entrar na Penseira comigo... e, o que é ainda mais incomum, tem
permissão para isso.
— Aonde vamos, senhor?
— Fazer uma viagem pelos caminhos da memória de Beto Ogden — respondeu
Dumbledore, tirando do bolso um frasco de cristal contendo uma substância branco-prata que
rodopiava.
— Quem foi Beto Ogden?
— Foi funcionário do Departamento de Execução das Leis da Magia. Morreu há algum
tempo, mas não antes que eu o tivesse localizado e convencido a me confidenciar essas
lembranças. Vamos acompanhá-lo em uma visita que fez no desempenho de suas funções. Se
puder se levantar, Harry...
Mas Dumbledore estava tendo dificuldade para destampar o frasco de cristal: sua mão
machucada parecia rígida e dolorida.
— Me dá... me dá licença, senhor?
— Não se incomode, Harry.
Dumbledore apontou a varinha para o frasco e a rolha saltou fora.
— Senhor... como foi que machucou a mão? — Harry perguntou mais uma vez, olhando os
dedos escurecidos com uma sensação de horror e dó.
— Agora não é hora de contar essa história, Harry. Ainda não. Temos um encontro com
Beto Ogden.
Dumbledore despejou na Penseira o conteúdo do frasco, que girou e refulgiu, nem líquido
nem gasoso.
— Primeiro você — disse ele, indicando a bacia.
Harry se inclinou, inspirou profundamente e mergulhou de cara na substância prateada.
Sentiu seus pés deixarem o piso do escritório; foi caindo, caindo, por um torvelinho escuro, e
então, inesperadamente, se viu piscando sob um sol ofuscante. Antes que seus olhos se
acostumassem, Dumbledore aterrissou ao seu lado.
Estavam de pé em uma estradinha rural ladeada por cercas vivas emaranhadas, sob um céu
de verão vivo e azul como miosótis. A uns três metros deles, achava-se um homem baixo e
gorducho que usava óculos com lentes tão grossas que reduziam seus olhos a sinaizinhos de
nascença. Estava lendo um letreiro de madeira que se projetava da cerca selvática do lado
esquerdo da estrada. Harry sabia que aquele devia ser o Ogden; era a única pessoa à vista, e usava
a estranha variedade de roupas que muitas vezes os bruxos inexperientes escolhem para se
disfarçar de trouxas; no caso, casaca e polainas por cima de uma roupa de banho listrada e
inteiriça. Antes, porém, que Harry tivesse tempo para outra coisa que não registrar sua bizarra
aparência, Ogden saiu andando com rapidez pela estrada.
Dumbledore e Harry seguiram-no. Ao passarem pelo letreiro de madeira, Harry olhou para
as duas setas. Na que apontava para o lado de onde tinham vindo leu: Great Hangleton, 8 km. Na
que apontava para Ogden leu: Little Hangleton, 1,6 km.
Caminharam uma pequena distância sem nada ver exceto as cercas, a vastidão do céu azul e
a figura de casaca à frente; então, a estrada fez uma curva para a esquerda e despencou, íngreme,
descendo a encosta do morro, permitindo que, inesperadamente, descortinassem o panorama de
um vale inteiro. Harry viu uma aldeia, sem dúvida Little Hangleton, aninhada entre dois morros
escarpados, a igreja e o cemitério bem aparentes. Do outro lado do vale, engastada na falda do
morro oposto, havia uma bela casa senhorial rodeada por um vasto e veludoso gramado.
Ogden diminuiu a marcha diante do acentuado declive da ladeira. Dumbledore aumentou
seus passos e Harry tentou acompanhá-lo. Imaginou que Little Hangleton fosse o destino final e
se perguntou, como fizera na noite em que localizaram Slughorn, por que tinham de começar de
tão longe. Logo, porém, descobriu que se enganara em pensar que se dirigiam à aldeia. A estrada
fazia uma curva para a direita e, quando a contornaram, viram a ponta da aba da casaca de Ogden
desaparecendo por uma abertura na cerca.
Dumbledore e Harry continuaram a segui-lo por uma trilha estreita, ladeada de cercas vivas
ainda mais altas e mais desordenadas do que as que tinham deixado para trás. O caminho era
torto, rochoso e esburacado, descia o morro como o anterior e parecia conduzir a um arvoredo,
sombrio um pouco mais abaixo. De fato, o caminho logo desembocou no arvoredo, e Dumbledore
e Harry pararam atrás de Ogden, que se detivera para puxar a varinha.
Apesar do céu desanuviado, as velhas árvores projetavam sombras profundas, escuras e
frescas, e Harry levou alguns segundos para enxergar a casa semi-oculta entre seus troncos.
Pareceu-lhe um lugar estranho para se construir uma casa, ou então uma decisão curiosa a de
deixar as árvores crescerem próximas, bloqueando toda a luz e a visão do vale. Ele se perguntou
se seria habitada; as paredes estavam cobertas de musgo e havia caído tantas telhas que em alguns
pontos as traves estavam visíveis. Cresciam urtigas a toda volta e suas hastes alcançavam as
janelas pequenas e grossas de sujeira. Quando acabara de concluir que era impossível que fosse
habitada, uma das janelas se abriu com estrépito e deixou sair um fio de vapor ou de fumaça,
como se alguém estivesse cozinhando.
Ogden se adiantou em silêncio e, pareceu a Harry, com cautela. Quando as sombras escuras
das árvores o encobriram, ele tornou a parar com os olhos fixos na porta de entrada, à qual tinham
pregado uma cobra morta.
Ouviu-se, então, um farfalhar e um estalo, e um homem andrajoso despencou da árvore mais
próxima, caindo de pé diante de Ogden; este pulou para trás tão rápido que pisou nas abas da
casaca e se desequilibrou.
— Você não é bem-vindo.
O homem à frente deles tinha cabelos espessos tão entremeados de sujeira que não dava
para distinguir a cor. Faltavam-lhe vários dentes na boca; e os olhos, pequenos e escuros,
olhavam em direções opostas. Sua aparência poderia ter sido cômica, mas não era; produzia um
efeito assustador, e Harry não podia censurar Ogden por recuar mais alguns passos antes de falar.
— Ãh... bom-dia. Sou do Ministério da Magia...
— Você não é bem-vindo.
— Ãh... desculpe... não estou entendendo — respondeu Ogden nervoso.
Harry achou que Ogden estava sendo extremamente obtuso; em sua opinião, o estranho fora
muito claro, principalmente porque brandia uma varinha em uma das mãos e uma faca de lâmina
curta, ensangüentada, na outra.
— Você com certeza está entendendo, não, Harry? — indagou Dumbledore em voz baixa.
— Claro que estou — respondeu ele um pouco confuso. — Por que Ogden não...?
Mas quando tornou a olhar a cobra na porta, repentinamente compreendeu.
— Ele está falando a linguagem das cobras?
— Muito bom — assentiu Dumbledore, sorrindo.
O homem andrajoso agora avançava para Ogden, a faca em uma das mãos e a varinha na
outra.
— Escute aqui — começou Ogden, mas tarde demais: ouviu-se um estampido e ele foi parar
no chão, apertando o nariz, que espirrava entre os seus dedos uma gosma amarelada e feia.
— Morfino! — gritou uma voz.
Um homem mais velho saiu depressa da casa batendo a porta ao passar e fazendo a cobra
balançar pateticamente. Este homem era mais baixo do que o primeiro e tinha estranhas
proporções; os ombros eram muito largos e os braços compridos demais, o que, juntamente com
os olhos vivos e castanhos, os cabelos espessos e curtos e o rosto enrugado, dava-lhe a aparência
de um macaco idoso e forte. Parou ao lado do homem com a faca, que agora soltava gargalhadas
ao ver Ogden no chão.
— Ministério é? — perguntou o homem mais velho, olhando Ogden com arrogância.
— Correto! — confirmou ele com raiva, limpando o rosto. — E o senhor, presumo, é o Sr.
Gaunt?
— Isso. Ele acertou seu rosto, foi?
— Foi! — retorquiu Ogden.
— O senhor não deveria ter anunciado sua presença? — perguntou Gaunt agressivamente.
— Isto é uma propriedade privada. Ninguém pode ir entrando e esperar que o meu filho não se
defenda.
— Defenda de quê, homem? — contestou Ogden, se levantando.
— Bisbilhoteiros. Invasores. Trouxas e ralé.
Ogden apontou a varinha para o próprio nariz, de onde continuava a escorrer uma abundante
secreção semelhante a pus, e estancou o corrimento. O Sr. Gaunt disse a Morfmo, pelo canto da
boca.
— Entre. Não discuta.
Desta vez, alertado, Harry reconheceu a língua que o homem falava; ao mesmo tempo que
entendia o que era dito, distinguia o estranho sibilado que era só o que Ogden podia ouvir.
Morfmo deu a impressão de que ia discordar, mas, quando o pai ameaçou-o com um olhar, ele
mudou de idéia; saiu em direção à casa com uma estranha ginga e bateu a porta, fazendo a cobra
balançar tristemente.
— Foi o seu filho que vim ver, Sr. Gaunt — explicou Ogden, enxugando o resto de pus da
frente da casaca. — Aquele era o Morfino, não?
— Ah, era o Morfino — confirmou o velho, indiferente. — O senhor tem sangue puro? —
perguntou repentinamente agressivo.
— Isto não vem ao caso — respondeu Ogden com frieza, e Harry sentiu o seu respeito pelo
bruxo crescer.
Aparentemente isto fazia diferença para Gaunt. Ele estudou o rosto de Ogden e resmungou
em um tom decididamente ofensivo.
— Pensando bem, já vi narizes iguais ao seu na aldeia.
— Não duvido nada, se o senhor costuma soltar seu filho contra eles. Que tal continuarmos
essa discussão dentro de casa?
— Dentro?
— É, Sr. Ogden. Já disse que estou aqui por causa de Morfino. Enviamos uma coruja...
— Não estou interessado em corujas. Não abro cartas.
— Então o senhor não tem razão para reclamar que as visitas apareçam sem avisar —
retrucou Ogden, mordaz. — Estou aqui porque ocorreu uma séria violação das leis bruxas nas
primeiras horas desta manhã...
— Está bem, está bem, está bem! — berrou Gaunt. — Entre na maldita casa, então, mas não
vai lhe adiantar muito!
A casa parecia conter três cômodos minúsculos. Havia duas portas no cômodo principal, que
servia de sala e cozinha. Morfino estava sentado em uma poltrona imunda ao lado do fogão
enfumaçado, enrolando uma cobra entre os dedos grossos enquanto cantava baixinho em sua
linguagem.
Silva, silva, serpinha, Serpeia pelo soalho Seja sempre boazinha ou Morfino crava você.
Ouviu-se um arrastar de pés no canto ao lado da janela aberta, e Harry notou que havia mais
alguém na sala, uma garota cujo vestido cinzento e rasgado era exatamente da cor da parede de
pedra encardida às suas costas. Estava em pé ao lado de uma panela que fumegava em um fogão
negro, e mexia na prateleira com panelas e caçarolas de aspecto miserável mais acima. Seus
cabelos eram escorridos e sem vida e o rosto comum, pálido e feioso. Seus olhos, como os do
irmão, eram divergentes. Parecia um pouco mais limpa do que os dois homens, mas Harry
avaliou que nunca vira ninguém tão arrasado.
— Minha filha Mérope — Gaunt apresentou-a de má vontade, quando Ogden lançou à
garota um olhar indagador.
— Bom-dia — cumprimentou-a Ogden.
Ela não respondeu; lançando um olhar assustado ao pai, deu as costas à sala e continuou a
trocar as panelas de lugar na prateleira.
— Bem, Sr. Gaunt, para ir direto ao assunto, temos razões para acreditar que seu filho
Morfino executou um feitiço diante de um trouxa no final da noite de ontem.
Ouviu-se um estrondo metálico. Mérope deixara cair uma panela.
— Apanhe isso! — berrou Gaunt para a filha. — Isso, fuce o chão como uma trouxa porca,
para que serve a sua varinha, seu saco de estrume?
— Sr. Gaunt, por favor! — pediu Ogden em tom chocado, enquanto Mérope, que já
apanhara a panela, com o rosto malhado de rubor, tornou a soltá-la e puxou a varinha do bolso;
apontou-a para o objeto e murmurou um feitiço apressado e inaudível que fez a panela voar para
longe dela, bater na parede oposta e rachar ao meio.
Morfino soltou sua gargalhada demente. Gaunt gritou:
— Conserte isso, sua imprestável, conserte isso!
Mérope saiu tropeçando pela sala, mas, antes que tivesse tempo de erguer a varinha, Ogden
empunhou a dele e ordenou com firmeza:
— Reparo. — E a panela se consertou instantaneamente.
Por um momento, pareceu que Gaunt ia gritar com Ogden, mas deve ter pensado melhor;
em vez disso, caçoou da filha:
— Que sorte o homem bonzinho do Ministério está aqui, não é? Quem sabe ele tira você das
minhas mãos, quem sabe ele não se incomoda com Abortos nojentos...
Sem olhar para ninguém ou agradecer a Ogden, Mérope apanhou a panela e devolveu-a,
com as mãos trêmulas, à prateleira. Postou-se, então, muito quieta, as costas apoiadas na parede
entre a janela muito suja e o fogão, como se o seu único desejo fosse afundar na pedra e sumir.
— Sr. Gaunt — recomeçou Ogden —, como eu ia dizendo, a razão da minha visita...
— Ouvi da primeira vez! — retrucou Gaunt. — E daí? Morfino deu a um trouxa o que
estava merecendo; o que é que o senhor vai fazer?
— Morfino violou a lei bruxa — disse Ogden com severidade.
— Morfino violou a lei bruxa. — Gaunt imitou a voz de Ogden, num tom pomposo e
cantado. Morfmo gargalhou outra vez. — Deu uma lição a um trouxa nojento, isso agora é ilegal,
é?
— É. Receio que seja.
Ogden tirou do bolso interno um pequeno rolo de pergaminho e abriu-o.
— E isso aí, é o quê, a sentença dele? — perguntou Gaunt, alteando a voz inflamado.
— É uma intimação para comparecer a uma audiência no Ministério...
— Intimação! Intimação? Quem o senhor pensa que é para intimar meu filho a comparecer a
algum lugar?
— Sou o chefe do Esquadrão de Execução das Leis da Magia.
— E o senhor acha que somos ralé, é isso? — gritou Gaunt, e avançou para Ogden, com o
dedo de unha suja e amarela apontando para o seu peito. — Ralé que se apresenta correndo
quando o Ministério manda? Sabe com quem está falando, seu Sangue-Ruim nojento?
— Eu tinha a impressão de que estava falando com o Sr. Gaunt — respondeu ele cauteloso,
mas irredutível.
— Exatamente! — urrou Gaunt. Por um instante, Harry pensou que ele fazia um gesto
obsceno, mas percebeu que apenas mostrava o feio anel de pedra negra que usava no dedo médio,
e que agitava na cara de Ogden. — Está vendo isso aqui? Está vendo isso aqui? Sabe de onde
veio? Está há séculos na nossa família, tão antiga ela é, e de sangue sempre puro! Sabe quanto já
me ofereceram por isso, com o brasão dos Peverell gravado na pedra?
— Não faço a menor idéia — replicou Ogden, piscando para o anel a centímetros do seu
nariz —, e não é pertinente, Sr. Gaunt. O seu filho cometeu...
Com um uivo de fúria, Gaunt correu para a filha. Por uma fração de segundo, Harry pensou
que ia esganá-la, quando o viu agarrá-la pelo pescoço; mas ele apenas arrastou-a até Ogden pela
corrente de ouro que usava.
— Está vendo isso aqui? — berrou, sacudindo o pesado medalhão para Ogden, enquanto
Mérope engasgava e procurava respirar.
— Eu estou vendo, eu estou vendo! — apressou-se ele a dizer.
— Vem de Slytherin! — gritou Gaunt. — De Salazar Slytherin! Somos os seus últimos
descendentes vivos. Que me diz disso, eh?
— Sr. Gaunt, sua filha! — avisou Ogden assustado, mas o bruxo já largara Mérope; ela se
afastou cambaleando de volta ao seu canto, massageando o pescoço e engolindo em seco para
respirar.
— É o que eu queria dizer! — exclamou Gaunt triunfante, como se tivesse acabado de
provar de modo irrefutável urna complicada questão. — Não venha falar conosco como se não
chegássemos aos seus pés! Gerações de sangue puro, todos bruxos, o que, tenho certeza, é mais
do que o senhor pode dizer!
E cuspiu no chão aos pés de Ogden. Morfino soltou mais gargalhadas. Mérope, encolhida ao
lado da janela, a cabeça oculta pelos cabelos escorridos, permaneceu calada.
— Sr. Gaunt — insistiu Ogden —, receio que nem os seus antepassados nem os meus
tenham a menor relação com o nosso caso. Estou aqui por causa do Morfino, Morfino e o trouxa
que ele abordou ontem à noite. A informação que temos é que Morfino lançou um feitiço ou uma
azaração no tal trouxa, causando-lhe uma urticária extremamente dolorosa.
Morfino riu.
— Quieto menino — rosnou Gaunt em linguagem de cobra, e Morfino tornou a se calar. —
E se lançou, qual é o problema? — retorquiu Gaunt em tom de desafio. — Espero que o senhor
tenha limpado a pele do trouxa e, de quebra, a memória dele...
— O problema é bem outro, não é, Sr. Gaunt? Foi um ataque gratuito a um indefeso...
— Ah, achei que o senhor tinha cara de amigo dos trouxas assim que o vi — desdenhou
Gaunt, tornando a cuspir no chão.
— Esta discussão não está nos levando a nada — disse Ogden com firmeza. — Pela atitude
do seu filho, está muito claro que não sente remorso algum pelo que fez. — E olhando para o rolo
de pergaminho. — Morfmo deverá comparecer a uma audiência no dia 14 de setembro, para
responder às acusações de usar magia diante de um trouxa e causar ao dito trou...
Ogden calou-se. Entravam pela janela ruídos de metal, cascos de cavalos e risos humanos.
Aparentemente, a estrada tortuosa para a aldeia passava muito próxima do arvoredo onde se
situava a casa. Gaunt congelou, escutando de olhos arregalados. Morfmo sibilou e virou o rosto
para o lado dos ruídos, a expressão voraz. Mérope ergueu a cabeça. Seu rosto, Harry viu, estava
absolutamente branco.
— Meu Deus, que monstruosidade! — ouviu-se uma voz de garota, claramente audível pela
janela aberta como se estivesse na sala. —Será que seu pai não podia mandar remover esse
casebre, Tom?
— Não é nosso — respondeu uma voz jovem. — Tudo do outro lado do vale nos pertence,
mas essa casa pertence a um velho pobretão chamado Gaunt e aos filhos dele. O rapaz é bem
maluco, você devia ouvir as histórias que contam na aldeia...
A moça riu. Os sons de metal e cascos aumentaram. Morfmo fez menção de levantar da
poltrona.
— Fique sentado — disse o pai em tom de aviso, em linguagem de cobra.
— Tom — falou a moça, agora tão próximo que deviam estar ao lado da casa —, será que
me enganei ou alguém pregou uma cobra naquela porta?
— Santo Deus, você tem razão! — disse a voz masculina. — Deve ter sido o filho, eu não
disse que ele não era bom da cabeça? Não olhe, Cecília, querida.
Os sons de metal e cascos foram se distanciando.
— Querida — murmurou Morfino naquela linguagem, olhando para a irmã. — Chamou a
moça de querida. Então não ia mesmo querer você.
Mérope estava tão pálida que Harry teve certeza de que ela ia desmaiar.
— Que foi, Morfmo? — perguntou Gaunt rispidamente, na mesma linguagem, seus olhos
indo do filho para a filha. — Que foi que você disse, Morfino?
— Ela gosta de olhar o trouxa, — Com uma expressão cruel, Morfino encarou a irmã, que
agora parecia aterrorizada. — Sempre no jardim quando ele passa, espiando pela cerca, não é? E
a noite passada...
Mérope sacudiu a cabeça freneticamente, implorando, mas Morfino continuou sem se
condoer:
— ... Pendurada na janela esperando ele voltar para casa, não é?
— Pendurada na janela para olhar um trouxa? — disse Gaunt em voz baixa. Os três Gaunt
pareciam ter se esquecido de Ogden, que assistia ao mesmo tempo pasmo e irritado a essa nova
erupção de silvos e estridências.
— É verdade? — perguntou Gaunt implacável, dando uns passos em direção à filha
apavorada. — Minha filha, uma pura descendente de Salazar Slytherin, suspirando por um trouxa
nojento de veias imundas?
Mérope sacudiu a cabeça com veemência, comprimindo-se contra a parede, aparentemente
incapaz de falar.
— Mas eu peguei ele, pai! — disse Morfino às gargalhadas. — Peguei quando passou por
aqui e ele não ficou nada bonito coberto de urticária, ficou, Mérope?
— Sua bruxinha abortada nojenta, sua traidorazinha do sangue! — urrou Gaunt,
descontrolado, apertando o pescoço da filha.
Harry e Ogden berraram "Não!" ao mesmo tempo; Ogden ergueu a varinha e ordenou:
— Relaxo! — Gaunt foi lançado para longe da filha; tropeçou em uma cadeira e estatelou-se
de costas. Com um rugido de fúria, Morfino saltou da poltrona e avançou para Ogden, brandindo
a faca ensangüentada e disparando, indiscriminadamente, azarações com a varinha.
Ogden fugiu desabalado. Dumbledore fez sinal que deviam segui-lo, e Harry obedeceu, os
gritos de Mérope ecoando em seus ouvidos.
Ogden disparou pela trilha e irrompeu pela estrada principal, os braços protegendo a cabeça,
e colidindo com o lustroso cavalo de um rapaz muito bonito, de cabelos castanhos. Ele e a linda
moça que cavalgava ao seu lado caíram na risada ao verem Ogden bater na ilharga do cavalo,
quicar e retomar a corrida errante pela estrada, a casaca voando, coberto de pó da cabeça aos pés.
— Acho que já basta, Harry — disse Dumbledore, batendo em seu braço. No momento
seguinte, os dois estavam voando imponderáveis pela escuridão; por fim, aterrissaram de pé no
escritório de Dumbledore, agora iluminado pelo crepúsculo.
— Que aconteceu com a garota na casa? — foi a primeira pergunta de Harry quando
Dumbledore acendia mais lâmpadas com um toque de varinha. — Mérope, ou o nome que fosse.
— Ah, ela sobreviveu — respondeu o diretor, se acomodando à escrivaninha e fazendo sinal para
que Harry se sentasse também. — Ogden aparatou até o Ministério e voltou, quinze minutos
depois, com reforços. Morfino e o pai tentaram lutar, mas os dois foram subjugados, levados da
casa e, mais tarde, condenados pela Suprema Corte dos Bruxos. Morfino, já fichado por ataques a
trouxas, foi condenado a três anos em Azkaban. Servolo, que ferira vários funcionários do
Ministério além de Ogden, recebeu uma pena de seis meses de prisão.
— Servolo? — repetiu Harry em tom de indagação.
— Exato — respondeu Dumbledore, aprovando-o com um sorriso. — Fico satisfeito que
esteja acompanhando.
— O velho era...?
— O avô de Voldemort. Servolo, seu filho Morfino e sua filha Mérope foram os últimos
Gaunt, uma família bruxa muito antiga conhecida por sua índole instável e violenta que se
transmitiu através de gerações devido ao hábito de casarem entre primos. A falta de juízo
associada à mania de grandeza redundou na dissipação do ouro da família muitas gerações antes
de Servolo nascer. Ele viveu, como você bem viu, em condições sórdidas e miseráveis, dono de
um péssimo gênio e uma arrogância e um orgulho desmedidos, além de alguns objetos de família
que ele valorizava tanto quanto o filho e muito mais do que a filha.
— Então Mérope — perguntou Harry, curvando-se para a frente e encarando Dumbledore
—, então Mérope era... senhor, quer dizer que Mérope era... a mãe de Voldemort?
— Exato. E por acaso vimos de relance o pai de Voldemort. Você registrou?
— O trouxa que Morfino atacou? O homem a cavalo?
— Muito bem — elogiou Dumbledore com um largo sorriso. — Aquele era Tom Riddle,
pai, o trouxa bonitão que passava cavalgando pela casa dos Gaunt e por quem Mérope nutria uma
paixão ardente e secreta.
— E eles acabaram se casando? — perguntou Harry, incrédulo e incapaz de imaginar duas
pessoas com menos probabilidade de se apaixonarem.
— Acho que você está esquecendo — acrescentou Dumbledore — que Mérope era bruxa.
Acredito que os seus poderes mágicos não se manifestassem favoravelmente enquanto esteve
aterrorizada pelo pai. Mas uma vez que Servolo e Morfino foram trancafiados em Azkaban, uma
vez que ela se viu livre e sozinha pela primeira vez na vida, estou certo que pôde dar rédeas à sua
capacidade e planejar sua fuga da vida desesperada que levara durante dezoito anos.
"Você não consegue pensar em nada que Mérope pudesse ter feito para obrigar Tom Riddle
a esquecer a companheira trouxa e se apaixonar por ela?"
— A Maldição Imperius? — arriscou Harry. — Ou uma poção de amor?
— Muito bom. Pessoalmente, me inclino mais para a poção de amor. Estou certo de que
teria parecido a Mérope mais romântico e não teria sido muito difícil, em um dia de calor, quando
Riddle estivesse cavalgando sozinho, persuadi-lo a beber uma água. Em todo caso, alguns meses
depois da cena que acabamos de presenciar, a aldeia de Little Hangleton deliciou-se com um
espantoso escândalo. Você pode imaginar o falatório que houve quando o filho do senhor das
terras locais fugiu com Mérope, a filha do vagabundo.
"Mas o choque dos aldeões não se comparou ao de Servolo. Ele voltou de Azkaban,
imaginando que encontraria a filha aguardando obediente o seu retorno, com uma refeição quente
à mesa. Em vez disso, encontrou bem uns três centímetros de poeira e um bilhete de adeus, em
que ela explicava o que fizera.
"Pelo que pude descobrir, daquele dia em diante ele nunca mais mencionou o nome da filha
ou a sua existência. O choque de sua deserção talvez tenha contribuído para sua morte prematura
— ou talvez ele simplesmente nunca tivesse aprendido a preparar a própria comida. Azkaban o
enfraquecera muito, e Servolo não viveu o bastante para ver o regresso de Morfino a casa."
— E Mérope? Ela... ela morreu, não foi? Voldemort não foi criado em um orfanato?
— E verdade. Aqui, temos de usar um pouco a imaginação, embora não ache que seja difícil
deduzir o que aconteceu. Alguns meses depois de fugir para casar, Tom Riddle reapareceu na
casa senhorial de Little Hangleton sem a mulher. Correu pela vizinhança o boato de que alegava
ter sido "ludibriado" e "abusado em sua boa-fé". O que quis dizer, sem dúvida, é que estivera
enfeitiçado e finalmente se libertara, embora eu presuma que não se atrevesse a usar os termos
exatos com medo de que o julgassem louco. Quando souberam da sua história, os aldeões
imaginaram que Mérope tivesse mentido a Tom Riddle, fingindo que ia ter um filho dele, razão
pela qual o rapaz se casara.
— Mas ela teve realmente um filho dele.
— Teve, mas somente um ano depois de casarem. Tom Riddle deixou-a quando ainda
estava grávida.
— Qual foi o problema? — perguntou Harry. — Por que passou o efeito da poção de amor?
— Mais uma vez, estou imaginando — explicou Dumbledore —, mas acredito que Mérope, que
estava profundamente apaixonada pelo marido, não suportou a idéia de continuar a escravizá-lo
por artes mágicas. Acredito que tenha decidido parar de lhe dar a poção. Talvez estivesse
convencida de que, àquela altura, a paixão já fosse mútua. Talvez pensasse que ele não a deixaria
por causa do bebê. Se assim foi, enganou-se em ambos os casos. Ele a abandonou, nunca mais a
viu e nunca se preocupou em descobrir o que acontecera ao filho.
O céu lá fora estava nanquim, e as luzes no escritório de Dumbledore pareciam brilhar mais
fortemente do que antes.
— Acho que já é o suficiente, por hoje, Harry — disse Dumbledore instantes depois.
— Sim, senhor.
Harry se pôs de pé, mas não se retirou.
— Senhor... é importante conhecer tudo isso sobre o passado de Voldemort?
— Muito importante, acho.
— E... tem alguma coisa a ver com a profecia?
— Tem tudo a ver com a profecia.
— Certo — aceitou Harry um pouco confuso, mas ainda assim mais tranqüilo.
Virou-se para sair, então lhe ocorreu mais uma pergunta, e ele deu meia-volta.
— Senhor, tenho permissão para contar a Rony e Hermione tudo que o senhor me contou?
Dumbledore estudou-o por um momento e em seguida respondeu:
— Tem, acho que o Sr. Weasley e a srta. Granger se provaram dignos de confiança. Mas,
Harry, vou pedir que recomende a eles para não repetirem nada disso para mais ninguém. Não
seria uma boa idéia se vazasse o quanto sei ou suspeito dos segredos de Lord Voldemort.
— Não, senhor, vou garantir que apenas Rony e Hermione saibam. Boa-noite.
Ele deu as costas e estava quase na porta quando o viu. Em cima de uma das mesinhas de
pernas finas que suportavam tantos objetos de prata de aparência frágil havia um feio anel de
ouro com uma enorme pedra negra e rachada.
— Senhor — comentou Harry fixando o objeto. — Aquele anel...
— Sim?
— O senhor estava usando-o na noite em que visitamos o professor Slughorn.
— De fato estava — concordou o bruxo.
— Mas não é... senhor, não é o mesmo anel que Servolo Gaunt mostrou a Ogden?
Dumbledore assentiu.
— O mesmíssimo.
— Então como é...? O senhor sempre o teve?
— Não, eu o adquiri muito recentemente. Aliás, poucos dias antes de ir buscá-lo na casa de
seus tios.
— Teria sido mais ou menos na época em que o senhor feriu sua mão, senhor?
— Mais ou menos naquela época, sim, Harry. Harry hesitou. Dumbledore estava sorrindo.
— Senhor, como foi exatamente... ?
— É muito tarde, Harry. Você ouvirá a história outro dia. Boa-noite.
— Boa-noite, senhor.

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