terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Harry Potter e o Enigma do Príncipe 21/25




CAPÍTULO VINTE E UM
A SALA IMPENETRÁVEL
NA SEMANA SEGUINTE, Harry deu tratos à imaginação buscando um meio de convencer
Slughorn a entregar a lembrança verdadeira, mas não lhe ocorreu nada parecido com uma
tempestade cerebral, e ele foi compelido a fazer o que ultimamente fazia, e com crescente freqüência,
quando se sentia perdido: examinava com atenção o livro de Poções, na esperança de
que o Príncipe tivesse feito às margens alguma anotação útil, como tantas vezes antes.
— Você não vai achar nada aí — disse Hermione com firmeza, já tarde, no domingo à noite.
— Não começa, Hermione. Se não fosse o Príncipe, Rony não estaria sentado aqui agora.
— Estaria, se você tivesse prestado atenção ao Snape no primeiro ano — retrucou Hermione
conclusivamente.
Harry ignorou-a. Acabara de encontrar um encantamento (Sec-tumsempra!) escrito à
margem, acima da surpreendente frase "Para os inimigos", e ficou em cócegas para experimentálo,
mas achou melhor não fazê-lo na frente de Hermione. Então, dobrou discretamente o canto da
página.
Os três estavam sentados junto à lareira na sala comunal; além deles, as únicas pessoas
acordadas eram outros sextanistas. Mais cedo, ocorrera certo alvoroço quando voltavam do jantar
e encontraram um novo aviso no quadro, marcando a data para o teste de Aparatação. Os que
completassem dezessete anos até a data do primeiro teste, inclusive, vinte e um de abril, poderiam
se inscrever para aulas práticas suplementares, que teriam lugar (sob rigorosa supervisão) em
Hogsmeade.
Rony entrara em pânico ao ler o aviso: ainda não conseguira aparatar, e temia que não
estivesse pronto para o teste. Hermione, que até então já conseguira aparatar duas vezes, sentia-se
um pouco mais confiante, mas Harry, que só completaria dezessete anos em quatro meses, não
poderia fazer o teste, quer estivesse pronto ou não.
— Mas pelo menos você consegue aparatar! — exclamou Rony tenso. — Não terá problema
em julho!
— Só consegui uma vez — lembrou Harry; ele finalmente desaparecera e reaparecera
dentro do aro uma vez na aula anterior.
Depois de ter gasto um bom tempo comentando suas preocupações em voz alta, Rony agora
se empenhava em terminar um trabalho barbaramente difícil passado por Snape, que Harry e
Hermione já haviam concluído. Harry tinha plena certeza de que receberia uma nota baixa,
porque discordara de Snape quanto à melhor maneira de enfrentar dementadores, mas nem ligava:
no momento, a lembrança de Slughorn era o mais importante.
— Estou dizendo que esse Príncipe idiota não vai ajudar você Harry! — falou Hermione em
voz mais alta. — Só tem uma maneira de forçar alguém a fazer o que a gente quer, é a Maldição
Imperius, que é ilegal...
— É, eu sei, obrigado — disse Harry, sem tirar os olhos do livro. — É por isso que estou
procurando alguma coisa diferente. Dumbledore diz que o Veritaserum não resolve, mas talvez
haja outra coisa, uma poção ou um feitiço...
— Você está abordando o problema pelo ângulo errado — explicou Hermione. —
Dumbledore diz que somente você pode obter a lembrança. Isto deve significar que você pode
persuadir Slughorn enquanto as outras pessoas não. Não é uma questão de dar a ele uma poção,
pois qualquer um poderia fazer isso...
— Como é que se escreve "beligerante"? — perguntou Rony, sacudindo com força sua pena
sem tirar os olhos do seu pergaminho. —Não pode ser B-U-M.
— Não, não é — respondeu Hermione, puxando para perto o trabalho de Rony. — E
"augúrio" também não começa com O-R-G. Que tipo de pena você está usando?
— Uma das Penas Auto-Revisoras de Fred e Jorge... mas acho que o feitiço deve estar
enfraquecendo...
— Talvez — disse Hermione, apontando para o título do trabalho —, porque o trabalho era
descrever como enfrentaríamos dementadores e não "cava-charcos", e também não me lembro de
você ter mudado seu nome para "Roonil Wazlib".
— Ah, não! — exclamou Rony, olhando horrorizado para o pergaminho. — Não me diga
que vou ter de escrever tudo de novo!
— Não esquenta, a gente pode dar um jeito — disse Hermione, trazendo o trabalho para
mais perto e tirando a varinha.
— Adoro você, Hermione — disse Rony, recostando-se na poltrona e esfregando os olhos,
cansado.
Hermione ficou ligeiramente rosada, mas respondeu apenas:
— Não deixe a Lilá ouvir você dizendo isso.
— Não deixarei — falou ele, cobrindo a boca com as mãos. — Ou talvez deixe... aí ela me
dá o fora...
— Por que você não dá o fora nela, se quer terminar? — indagou Harry.
— Você nunca terminou com ninguém, não é? — replicou Rony. —Você e Cho
simplesmente...
— Meio que nos afastamos, sei — concordou Harry.
— Eu gostaria que isso acontecesse comigo e a Lilá — disse Rony sombriamente, enquanto
observava Hermione tocar com a ponta da varinha cada uma das palavras erradas, fazendo com
que se corrigissem. — Mas quanto mais insinuo que quero terminar, mais ela se agarra em mim.
É como se eu estivesse namorando a lula-gigante.
— Pronto — disse Hermione, uns vinte minutos depois, devolvendo o trabalho de Rony.
— Valeu. Me empresta a sua pena para eu escrever a conclusão? Harry, que até então não
encontrara nada que lhe servisse nas anotações do Príncipe Mestiço, correu os olhos pela sala;
agora só restavam os três ali, Simas tinha acabado de subir, xingando Snape e o trabalho. Os
únicos ruídos eram as chamas crepitando e Rony arranhando o último parágrafo sobre os
dementadores, com a pena de Hermione. Harry tinha acabado de fechar o livro do Príncipe
Mestiço com um bocejo quando...
Craque.
Hermione soltou um gritinho; Rony respingou tinta por todo o pergaminho e Harry
exclamou:
— Monstro!
O elfo doméstico fez uma profunda reverência e falou, encarando os próprios pés nodosos:
— O senhor disse que queria relatórios regulares sobre o que o garoto Malfoy está fazendo,
por isso Monstro veio apresentar...
Craque.
Dobby apareceu ao lado de Monstro, o abafador de chá enviesado na cabeça.
— Dobby esteve ajudando também, Harry Potter! — guinchou, lançando a Monstro um
olhar rancoroso. — E Monstro deve avisar a Dobby quando vem ver Harry Potter para podermos
fazer os relatórios juntos!
— Que é isso? — perguntou Hermione ainda assustada com as repentinas aparições. — Que
está acontecendo, Harry?
Ele hesitou antes de responder, porque não contara à amiga que mandara Monstro e Dobby
seguirem Malfoy; elfos domésticos eram sempre um assunto muito melindroso com Hermione.
— Bem... eles estão seguindo Malfoy para mim — respondeu ele.
— Dia e noite — crocitou Monstro.
— Dobby não dorme há uma semana, Harry Potter! — informou Dobby com orgulho,
balançando o corpo.
Hermione mostrou-se indignada.
— Você não tem dormido, Dobby? Mas, Harry, com certeza você não disse a ele para não...
— Não, é claro que não disse. Dobby, você pode dormir, certo? Mas algum de vocês
descobriu alguma coisa? — apressou-se a perguntar antes que Hermione pudesse intervir
novamente.
— O senhor Malfoy anda com uma nobreza que condiz com o seu sangue puro — crocitou
imediatamente Monstro. — As feições dele lembram a ossatura delicada da minha senhora, e suas
maneiras são as de...
— Draco Malfoy é um garoto mau! — esganiçou-se Dobby enraivecido. — Um garoto mau
que... que...
Ele estremeceu da borla do abafador de chá às pontas das meias e correu para a lareira,
como se quisesse mergulhar nela; Harry, pego de surpresa, agarrou-o pela cintura e segurou-o
firme. Durante alguns segundos Dobby se debateu e, em seguida, afrouxou o corpo.
— Obrigado, Harry Potter — ofegou o elfo. — Dobby ainda acha difícil falar mal dos seus
antigos senhores...
Harry soltou-o; Dobby endireitou o abafador de chá e desafiou Monstro:
— Mas o Monstro devia saber que Draco Malfoy não é um bom senhor para um elfo
doméstico!
— É, não precisamos ouvir você falar de sua paixão pelo Malfoy — disse Harry a Monstro.
— Vamos passar adiante e falar sobre o que ele anda realmente fazendo.
Monstro tornou a se curvar, furioso e relatou:
— O senhor Malfoy come no Salão Principal, dorme no dormitório nas masmorras, assiste
às aulas sobre vários...
— Dobby, me informe você — ordenou Harry, interrompendo o Monstro. — Ele tem ido a
algum lugar aonde não deveria ir?
— Harry Potter, senhor — guinchou Dobby, seus enormes olhos redondos refletindo a luz
das chamas —, o rapaz Malfoy não está desrespeitando nenhuma regra que Dobby conheça, mas
continua procurando evitar que o vejam. Tem feito visitas freqüentes ao sétimo andar com uma
variedade de estudantes que ficam vigiando enquanto ele entra...
— Na Sala Precisa! — exclamou Harry, dando uma forte pancada na testa com o Estudos
avançados no preparo de poções. Hermione e Rony olharam-no espantados. — É aonde ele tem
ido! É lá que está fazendo... seja lá o que for! E aposto que é por isso que vive desaparecendo do
mapa: pensando bem, nunca vi a Sala Precisa lá!
— Vai ver os Marotos nunca souberam que a sala existia — disse Rony.
— Acho que deve fazer parte da magia da Sala — comentou Hermione. — Se você quer
que não seja localizável, então não será.
— Dobby, você conseguiu entrar para ver o que Malfoy está fazendo? — perguntou Harry
ansioso.
— Não, Harry Potter, isto é impossível.
— Não, não é — respondeu Harry imediatamente. — Malfoy entrou na nossa sede no ano
passado, então posso entrar e espioná-lo também, sem problema.
— Mas acho que você não vai poder, Harry — disse Hermione lentamente. — Malfoy sabia
exatamente para que usávamos a Sala, não é, porque a burra da Marieta deu com a língua nos
dentes. Ele precisou que a Sala se transformasse na sede da AD, e isto aconteceu. Mas você não
sabe em que se transforma a Sala quando Malfoy entra lá, então não vai poder pedir que a Sala se
transforme.
— Encontrarei um jeito de contornar isso — respondeu Harry, sem fazer caso. — Você foi
genial, Dobby.
— O Monstro também se saiu bem — aparteou Hermione gentilmente; mas longe de
demonstrar gratidão, Monstro desviou seus enormes olhos injetados e crocitou para o teto:
— A Sangue-Ruim está falando com o Monstro, o Monstro vai fingir que é surdo...
— Cai fora — mandou Harry com rispidez, e Monstro fez uma última reverência profunda e
desaparatou. — É melhor você ir dormir um pouco também, Dobby.
— Obrigado, Harry Potter, senhor! — Dobby guinchou feliz e também sumiu.
— Que acham disso? — perguntou Harry entusiasmado, virando-se para Rony e Hermione
no instante em que se livraram dos elfos. —Sabemos aonde Malfoy está indo! Agora nós o
encurralamos!
— É, legal — respondeu Rony mal-humorado, tentando enxugar a papa de tinta em cima do
que fora, até alguns instantes, um dever de casa quase concluído. Hermione puxou o pergaminho
e começou a aspirar a tinta com a varinha.
— Mas que história é essa do Malfoy subir com uma "variedade de estudantes"? —
perguntou Hermione. — Quantas pessoas estão sabendo do que acontece? Ninguém imaginaria
que ele fosse confiar o que faz a tanta gente...
— É, é esquisito — concordou Harry, franzindo a testa. — Ouvi Malfoy dizendo ao Crabbe
que não era da conta dele o que estava fazendo... então o que está dizendo a todos esses... todos
esses...
A voz de Harry foi morrendo; ele olhava fixamente para as chamas.
— Deus, que burrice a minha — comentou baixinho. — E óbvio, não é? Tinha um grande
barril de poção lá embaixo na masmorra... ele pode ter afanado um pouco durante a aula...
— Afanado o quê? — perguntou Rony.
— Poção Polissuco. Ele roubou um pouco da Poção Polissuco que Slughorn nos mostrou na
primeira aula... não tem uma variedade de estudantes montando guarda para Malfoy... É só o
Crabbe e o Goyle, como sempre... é, agora tudo se encaixa! — exclamou Harry se levantando de
um salto e começando a caminhar de lá para cá diante da lareira. — Eles são suficientemente
burros para fazer o que são mandados fazer, mesmo que Malfoy não conte a eles do que se trata...
mas, como não quer que sejam vistos rondando a Sala Precisa, fez os dois tomarem a Poção
Polissuco para parecerem outras pessoas... aquelas duas garotas que vi com Malfoy quando ele
faltou à partida de quadribol: ah! Crabbe e Goyle!
— Você quer dizer — falou Hermione baixinho —, que aquela garotinha da balança que eu
consertei...?
— É, claro! — confirmou Harry em voz alta, olhando para a amiga. — Óbvio! Malfoy devia
estar dentro da Sala naquele momento, então ela... que foi que eu disse?... ele deixou cair a
balança avisando a Malfoy para não sair, porque tinha gente ali! E teve também a outra garota
que largou no chão as ovas de sapo. Passamos por eles o tempo todo sem perceber!
— Ele está obrigando Crabbe e Goyle a se transformarem em garotas? — perguntou Rony
às gargalhadas. — Caramba... não admira que eles não andem nada felizes ultimamente... Fico
surpreso que não mandem o Malfoy tomar...
— Bem, eles não mandariam, não é, se Malfoy tiver mostrado a Marca Negra que tem —
lembrou Harry.
— A Marca Negra que não sabemos se existe — contrapôs Hermione, descrente, enrolando
o trabalho de Rony antes que mais alguma coisa acontecesse, e devolvendo-o ao garoto.
— Veremos — disse Harry confiante.
— É, veremos — replicou Hermione levantando e se espreguiçando. — Mas, Harry, antes
que você fique todo animado, continuo achando que não vai conseguir entrar na Sala Precisa se
não souber primeiro o que tem lá dentro. E acho que você não devia esquecer —Hermione pôs a
mochila no ombro e olhou muito séria para Harry — que você devia estar se concentrando em
obter a lembrança do Slughorn. Boa-noite.
Harry observou Hermione se retirar, sentindo uma ligeira irritação. Quando a porta do
dormitório das garotas se fechou, ele se virou para Rony.
— Que é que você acha?
— Que eu gostaria de desaparatar como um elfo doméstico — respondeu, olhando para o
lugar em que Dobby sumira. — Aquele teste de Aparatação estaria no papo.
Harry não dormiu bem aquela noite. Teve a sensação de ficar acordado horas, imaginando
para que Malfoy estaria usando a Sala Precisa e o que ele, Harry, veria quando entrasse lá no dia
seguinte, porque, a despeito do que Hermione dissera, era certo que, se Malfoy pudera ver a sede
da AD, ele também poderia ver a sala de Malfoy... e seria o quê? Um local de encontro? Um
esconderijo? Um depósito? Uma oficina? A mente de Harry trabalhou febrilmente, e seus sonhos,
quando ele finalmente adormeceu, foram interrompidos e perturbados por imagens de Malfoy,
que se transformava em Slughorn, que se transformava em Snape...
Harry estava num estado de grande ansiedade no café da manhã seguinte; tinha um período
livre antes de Defesa contra as Artes das Trevas e estava decidido a usá-lo para tentar entrar na
Sala Precisa. Hermione mostrava ostensivo desinteresse por seus cochichos sobre os planos para
arrombar a Sala Precisa, o que o irritou, porque Harry achava que ela poderia ajudar muito, se
quisesse.
— Olhe — disse ele baixinho, inclinando-se para frente e pondo a mão no Profeta Diário
que ela acabara de tirar de uma coruja-correio, procurando impedir que Hermione o abrisse e
desaparecesse atrás dele. — Não esqueci o Slughorn, mas não faço idéia de como vou obter
aquela lembrança e, até que me ocorra uma tempestade cerebral, por que não posso descobrir o
que Malfoy está fazendo?
— Já lhe disse, você precisa persuadir Slughorn. Não é uma questão de induzir ou enfeitiçar
o professor, ou Dumbledore poderia ter feito isso em um segundo. Em vez de ficar rondando a
Sala Precisa — ela puxou o Profeta que Harry segurava e abriu-o para olhar a primeira página —,
você deveria procurar o Slughorn e começar a apelar para os bons instintos dele.
— Alguém que conhecemos...? — perguntou Rony, enquanto Hermione passava os olhos
pelas manchetes.
— Sim! — exclamou Hermione fazendo Harry e Rony se engasgarem com a comida —,
mas está tudo bem, ele não morreu: é sobre o Mundungo, ele foi preso e mandado para Azkaban!
Parece que andou fingindo ser morto-vivo em uma tentativa de arrombamento... e alguém
chamado Otávio Pepper desapareceu... ah, que coisa horrível, um garoto de nove anos foi preso
por tentar matar os avós, acham que ele estava dominado pela Maldição Imperius...
Eles terminaram o café da manhã em silêncio. Hermione seguiu imediatamente para a aula
de Runas Antigas, Rony, para a sala comunal, onde ainda precisava redigir a conclusão do
trabalho sobre dementadores para Snape, e, Harry, para o corredor do sétimo andar e o trecho de
parede defronte à tapeçaria de Barnabás, o Amalucado ensinando balé a trasgos.
Harry cobriu-se com a Capa da Invisibilidade quando encontrou um corredor vazio, mas não
precisava ter se preocupado. Quando chegou ao destino, não havia ninguém. Ficou em dúvida se
suas chances de entrar na Sala seriam melhores com Malfoy dentro ou fora dela, mas pelo menos
sua primeira tentativa não ia ser atrapalhada pela presença de Crabbe ou de Goyle travestidos de
garotas de onze anos.
Ele fechou os olhos ao se aproximar do local onde se ocultava a porta da Sala Precisa. Sabia
o que era necessário fazer; especializara-se nisso no ano anterior. Concentrando-se com todas as
suas forças, pensou: Preciso ver o que Malfoy está fazendo aí dentro... Preciso ver o que Malfoy
está fazendo aí dentro... Preciso ver o que Malfoy está fazendo aí dentro...
Três vezes ele passou pela porta, então, com o coração batendo forte de tanta excitação, ele
abriu os olhos e olhou... mas continuou vendo uma comuníssima parede lisa.
Ele se aproximou e experimentou empurrá-la.
— O.k. — disse Harry em voz alta. — O.k... pensei a coisa errada... Ele refletiu por um
momento e, então, recomeçou de olhos fechados, concentrando-se o máximo possível. Preciso
ver o lugar aonde Malfoy sempre vem secretamente... Depois de ir e vir três vezes, ele abriu os
olhos, ansioso. Não havia porta alguma.
— Ah, pode parar — disse ele à parede, irritado. — Dei uma ordem bem clara... ótimo...
Ele se concentrou durante vários minutos antes de sair andando mais uma vez.
Preciso que você se transforme no lugar que se transforma para Draco Malfoy...
Harry não abriu os olhos imediatamente ao terminar de ir e vir; apurou os ouvidos como se
fosse possível ouvir a porta se materializar com um estalo. Mas não ouviu nada, exceto os pios
distantes dos passarinhos lá fora. Abriu os olhos.
Continuava a não haver porta alguma.
Harry xingou. Alguém gritou. Ele se virou para olhar e viu um bando de calouros
barulhentos voltando depressa para o corredor de onde vinham, aparentemente acreditando ter
acabado de topar com um fantasma de boca muito suja.
Harry tentou todas as variações do "preciso ver o que Draco Malfoy está fazendo aí dentro"
que lhe ocorreram em uma hora, ao fim da qual foi forçado a concordar que Hermione talvez
estivesse certa: a Sala simplesmente não queria se abrir para ele. Frustrado e aborrecido, foi para
a aula de Defesa contra as Artes das Trevas, tirando a Capa da Invisibilidade e enfiando-a na
mochila durante o trajeto.
— Outra vez atrasado, Potter — disse Snape friamente, quando Harry entrou, apressado, na
sala iluminada por velas. — Menos dez pontos para a Grifinória.
Harry amarrou a cara para o professor ao se atirar no assento ao lado de Rony; metade da
turma ainda estava em pé, apanhando livros e se organizando; seu atraso não podia ser muito
maior do que o dos outros colegas.
— Antes de começarmos, quero ver os seus trabalhos sobre dementadores — ordenou o
professor, acenando displicentemente com a varinha e fazendo vinte e cinco pergaminhos
levantarem vôo e aterrissar em uma pilha ordeira sobre sua escrivaninha. — E espero, em seu
benefício, que estejam melhores do que o chorrilho que tive de ler sobre a resistência à Maldição
Imperius. Agora, queiram abrir seus livros na página... que foi, Sr. Finnigan?
— Senhor — disse Simas —, como é que se pode diferenciar um morto-vivo ou Inferius de
um fantasma? Por que saiu no Profeta uma notícia sobre um Inferius...
— Não, não saiu — respondeu Snape entediado.
— Mas, senhor, ouvi comentários...
— Se o senhor tivesse lido realmente a notícia em questão, Sr. Finnigan, saberia que o
assim chamado Inferius não passava de um ladrãozinho infecto chamado Mundungo Fletcher.
— Pensei que Snape e Mundungo estivessem do mesmo lado, não? — murmurou Harry
para Rony e Hermione. — Ele não deveria estar aborrecido com a prisão de Mundungo...?
— Mas Potter parece ter muito a dizer sobre o assunto — falou Snape, apontando
subitamente para o fundo da sala, seus olhos negros fixos em Harry. — Vamos perguntar a Potter
como ele descreveria a diferença entre um morto-vivo e um fantasma.
A turma inteira se virou para Harry, que tentou rapidamente lembrar o que Dumbledore lhe
dissera na noite em que tinham ido visitar Slughorn.
— Ah... bem... fantasmas são transparentes... — respondeu ele.
— Oh, muito bem — interrompeu-o Snape, encrespando desdenhosamente os lábios. —
Sim, é fácil verificar que não desperdiçamos quase seis anos de estudos de magia com você,
Potter. Fantasmas são transparentes.
Pansy Parkinson soltou uma risadinha aguda. Vários outros alunos sorriam debochados.
Harry inspirou fundo e continuou calmamente, embora fervesse por dentro:
— Sim, fantasmas são transparentes, mas Inferi são corpos sem vida, certo? Então seriam
sólidos...
— Uma criança de cinco anos poderia ter nos dito isso — zombou Snape. — Um Inferius é
um morto que foi reanimado por meio de um feitiço das Trevas. Não está vivo, é meramente
usado como uma marionete para cumprir as ordens do bruxo. Um fantasma, como espero que a
esta altura todos saibam, é uma impressão deixada por um morto na terra... e é claro, como diz
Potter tão sabiamente, é transparente.
— Bem, o que Harry disse é muito útil para diferenciarmos os dois! — comentou Rony. —
Quando nos defrontarmos com uma aparição em um beco escuro, vamos olhar depressa para ver
se é sólido, não é, não vamos perguntar: "Com licença, o senhor é uma impressão deixada por
uma alma que partiu?"
Uma onda de risos percorreu a sala, mas foi imediatamente paralisada pelo olhar que Snape
lançou à turma.
— Outros dez pontos a menos para a Grifinória — disse o professor. — Eu não esperaria
nada mais sofisticado do senhor, Ronald Weasley, um rapaz tão sólido que é incapaz de aparatar
dois centímetros em uma sala.
— Não! — sussurrou Hermione, agarrando Harry pelo braço, quando ele abriu a boca,
enfurecido. — Não vale a pena, você vai acabar cumprindo mais uma detenção, deixa para lá!
— Agora abram os livros na página duzentos e treze — disse o professor com um sorrisinho
— e leiam os primeiros dois parágrafos sobre a Maldição Cruciatus...
Rony ficou anormalmente quieto durante toda a aula. Quando por fim ouviram a sineta, Lilá
alcançou Rony e Harry (Hermione sumira misteriosamente de vista à sua aproximação), e xingou
Snape indignada por seu comentário maldoso sobre a Aparatação de Rony, mas, pelo visto,
conseguiu apenas irritar o garoto, que se livrou dela entrando pelo banheiro masculino com
Harry.
— Mas Snape tem razão, não é? — comentou Rony após se mirar em um espelho rachado
por uns dois minutos. — Não sei se vale a pena fazer o teste. Simplesmente não consigo pegar o
jeito da Aparatação.
— Seria bom você freqüentar as aulas suplementares em Hogsmeade e ver se faz algum
progresso — sugeriu Harry sensatamente. — Pelo menos, será mais interessante do que tentar
entrar em um arco ridículo. E, se mesmo assim você não estiver... sabe... tão bom quanto gostaria
de estar, pode adiar o teste, fazer comigo no ver... Murta, isso é um banheiro de garotos!
O fantasma de uma menina tinha se erguido de um boxe às costas deles e agora flutuava no
ar, encarando os dois através de seus óculos grossos, brancos e redondos.
— Ah — exclamou ela mal-humorada. — São vocês dois.
— Quem é que você estava esperando? — perguntou Rony, olhando-a pelo espelho.
— Ninguém — respondeu Murta, cutucando pensativa uma espinha no queixo. — Ele disse
que voltaria para me ver, mas você também disse que daria uma passadinha para me visitar... —
ela lançou a Harry um olhar de censura — ... e não vejo você há meses sem conta. Já aprendi a
não esperar muita coisa dos garotos.
— Pensei que você morava naquele banheiro das meninas — disse Harry, que havia anos
tomara o cuidado de dar bastante distância daquele lugar.
— Moro — respondeu Murta encolhendo os ombros, sentida —, mas isso não quer dizer
que não possa visitar outros lugares. Eu vim uma vez e vi você tomando banho, se lembra?
— Como se fosse hoje.
— Mas pensei que ele gostava de mim — continuou a fantasma queixosa. — Quem sabe se
vocês dois saíssem, ele voltaria... temos muito em comum... com certeza ele sentiu isso...
E ela olhou esperançosa para a porta.
— Quando diz que vocês têm muito em comum — perguntou Rony achando muita graça
—, você quer dizer que ele também freqüenta o hospício?
— Não — protestou Murta em tom de desafio, que ecoou sonoramente pelo velho banheiro
azulejado. — Quero dizer que ele é sensível, as pessoas implicam com ele também, e ele se sente
solitário e não tem com quem conversar, e ele não tem medo de mostrar seus sentimentos e
chorar!
— Esteve aqui um menino chorando? — perguntou Harry curioso. — Um garotinho?
— Não é da sua conta! — retrucou Murta, seus olhos miúdos e lacrimosos fixos em Rony,
que agora não escondia o riso. — Prometi que não contaria a ninguém e vou levar o segredo dele
para o...
— ... não para o túmulo, não é? — debochou ele, abafando uma risada. — Para a tubulação
talvez...
Murta soltou um uivo de dor e tornou a mergulhar no vaso, fazendo a água transbordar no
chão. Implicar com a fantasma pareceu ter dado a Rony um novo ânimo.
— Você tem razão — disse ele jogando a mochila sobre o ombro —, vou me inscrever nas
aulas práticas de Hogsmeade e depois decidir se vou fazer o teste.
Assim, no fim de semana seguinte, Rony se reuniu a Hermione e aos outros sextanistas que
completariam dezessete anos em tempo de fazer o teste dali a quinze dias. Harry sentiu certa
inveja de vê-los se aprontar para ir a Hogsmeade; sentia falta dos passeios até a aldeia, e fazia um
dia particularmente belo de primavera, um dos primeiros de céu claro nos últimos tempos. Ele
resolvera, no entanto, aproveitar o tempo para tentar mais um assalto à Sala Precisa.
— Você faria melhor — retrucou Hermione quando o amigo confessou sua idéia a ela e
Rony no Saguão de Entrada — se fosse direto ao escritório de Slughorn e tentasse obter a
lembrança.
— Estou tentando! — defendeu-se Harry irritado, porque era a absoluta verdade. No fim de
cada aula de Poções daquela semana demorara-se na masmorra tentando encurralar Slughorn,
mas o professor sempre saía tão rápido que Harry não conseguia alcançá-lo. Duas vezes Harry
fora ao seu escritório e batera na porta, mas não recebera resposta, embora na segunda vez ele
tivesse certeza de que ouvira o som de um velho gramofone, em seguida abafado. — Ele não quer
falar comigo, Hermione! Já percebeu que andei tentando ficar a sós com ele e não vai deixar que
isto aconteça!
— Bem, você vai ter de continuar insistindo, não é mesmo?
A pequena fila de alunos aguardando passar por Filch, que fazia o seu costumeiro número
de cutucar todo o mundo com o Sensor de Segredos, avançou alguns passos, e Harry não
respondeu para evitar que o zelador o ouvisse. Desejou boa sorte a Rony e Hermione, então se
virou para subir a escadaria de mármore, decidido, apesar dos conselhos de Hermione, a dedicar
umas duas horas à Sala Precisa.
Uma vez longe do Saguão de Entrada, Harry apanhou o Mapa do Maroto e a sua Capa da
Invisibilidade na mochila. Ocultando-se, deu um toque de varinha no mapa e murmurou: "Juro
solenemente que não pretendo fazer nada de bom", e examinou-o com atenção.
Por ser domingo de manhã, quase todos os alunos estavam em suas salas comunais, os da
Grifinória em uma torre, os da Corvinal em outra, os da Sonserina nas masmorras e os da Lufa-
Lufa no porão próximo às cozinhas. Aqui e ali, uma pessoa andava pela biblioteca ou por um
corredor... havia pouca gente nos jardins... e ali, sozinho no corredor do sétimo andar, estava
Gregório Goyle. Não havia sinal da Sala Precisa, mas Harry não estava preocupado com isto; se
Goyle estava montando guarda, a sala estava aberta, quer o mapa registrasse o fato ou não. Ele,
portanto, subiu correndo as escadas e só diminuiu a marcha quando alcançou o canto do corredor,
ponto em que começou a se esgueirar muito lentamente ao encontro da mesmíssima garotinha
com a pesada balança que Hermione tão gentilmente ajudara quinze dias atrás. Ele esperou
chegar às costas dela antes de se curvar e sussurrar:
— Olá... você é bem bonitinha, não é?
Goyle soltou um grito agudo de terror, atirou a balança para o ar e saiu desembalado,
desaparecendo de vista antes que o estrondo da balança ao bater no chão parasse de ecoar no
corredor. Às gargalhadas, Harry se virou para estudar a parede lisa atrás da qual Draco Malfoy
certamente estaria agora paralisado, consciente de que havia alguém indesejável lá fora, mas sem
ousar aparecer. Isto deu a Harry uma agradável sensação de poder, enquanto tentava lembrar
quais as frases que ainda não experimentara.
Contudo, sua esperança não durou muito. Meia hora depois, tendo experimentado outras
tantas variações do seu pedido para ver o que Malfoy estava fazendo, a parede continuava sólida.
Harry se sentiu incrivelmente frustrado; Malfoy talvez estivesse a poucos passos, e ele continuava
a não ter o menor indício do que o garoto fazia lá dentro. Perdendo completamente a paciência,
Harry avançou para a parede e chutou-a.
—Ai!
Ele achou que talvez tivesse quebrado o dedo do pé; enquanto o segurava dando pulos com
o outro pé, a Capa da Invisibilidade escorregou do seu corpo.
— Harry?
Ele se virou ainda num pé só e desabou. E ali, para seu absoluto espanto, vinha Tonks
caminhando em sua direção como se habitualmente freqüentasse aquele corredor.
— Que é que você está fazendo aqui? — perguntou ele, erguendo-se depressa; por que será
que ela sempre o encontrava caído no chão?
— Vim ver Dumbledore.
Harry achou que ela estava com uma aparência horrível; mais magra do que o normal, seus
cabelos baços e lambidos.
— O escritório dele não é aqui — informou Harry —, é do outro lado do castelo, atrás da
gárgula...
— Eu sei — respondeu Tonks. — Ele não está lá. Aparentemente viajou outra vez.
— Viajou? — admirou-se Harry, tornando a apoiar o pé machucado cuidadosamente no
chão. — Ei, por acaso você não sabe aonde ele vai?
— Não.
— Que é que você queria com o Dumbledore?
— Nada importante — respondeu Tonks, brincando, aparentemente sem perceber, com a
manga das vestes. — Pensei que ele talvez soubesse o que está acontecendo... ouvi boatos... teve
gente machucada...
— É, eu sei, saiu nos jornais. O garotinho que tentou matar os...
— O Profeta muitas vezes dá notícias com atraso — disse Tonks, que parecia não estar
ouvindo Harry. — Você recebeu cartas de alguém da Ordem recentemente?
— Ninguém da Ordem me escreve mais, desde que Sirius... Ele notou que os olhos de
Tonks se encheram de lágrimas.
— Desculpe — murmurou sem graça. — Quero dizer... eu também sinto falta dele...
— Quê? — exclamou Tonks sem entender, como se não o tivesse ouvido. — Bem... a gente
se vê por aí, Harry...
Ela deu as costas de repente, e saiu andando pelo corredor, deixando Harry sem resposta.
Passado pouco mais de um minuto, ele tornou a se cobrir com a Capa da Invisibilidade e retomou
seus esforços para entrar na Sala Precisa, mas perdera o interesse. Por fim, uma sensação de vazio
no estômago e a noção de que Rony e Hermione logo voltariam para almoçar levaram-no a
abandonar a tentativa e deixar o corredor livre para Malfoy, que, na melhor das hipóteses,
continuaria apavorado demais para sair durante algumas horas.
Ele encontrou Rony e Hermione no Salão Principal, e eles já estavam na metade de um
almoço antecipado.
— Consegui... bem, mais ou menos! — Rony contou entusiasmado a Harry assim que o
avistou. — Eu tinha de aparatar até a porta do salão de chá de Madame Puddifoot e errei por
pouco, fui parar próximo à Loja de Penas Escriba, mas pelo menos me desloquei!
— Legal — exclamou Harry. — E você, como foi, Hermione?
— Ah, ela foi perfeita, é óbvio — informou Rony antes que Hermione pudesse responder.
— Deliberação, Divinação e Desesperação, ou que nome tenham as cacas, perfeitas... depois a
turma foi tomar um drinque rápido no Três Vassouras, e você devia ouvir o que o Twycross disse
dela... vai ser uma surpresa se ele não fizer aquela pergunta logo, logo...
— E você? — perguntou Hermione, ignorando Rony. — Ficou lá em cima na Sala Precisa
esse tempão?
— Fiquei, e adivinhe quem eu encontrei lá? Tonks!
— Tonks? — repetiram Rony e Hermione juntos, admirados.
— É, ela disse que tinha vindo visitar Dumbledore...
— Se você quer saber a minha opinião — disse Rony quando Harry acabou de relatar a
conversa que tivera com Tonks —, ela está pirando. Perdeu a coragem depois do que aconteceu
no Ministério.
— É meio estranho — comentou Hermione, que por alguma razão pareceu muito
preocupada. — Ela devia estar guardando a escola, por que é que abandonou de repente o posto
para vir ver Dumbledore se ele nem está aqui?
— Pensei numa coisa — disse Harry hesitante. Era estranho estar dizendo isso; era muito
mais a área de Hermione do que a dele. —Você acha que ela talvez fosse... sabe... apaixonada
pelo Sirius?
Hermione arregalou os olhos para ele.
— De onde foi que você tirou essa idéia?
— Não sei — respondeu Harry sacudindo os ombros —, mas ela estava quase chorando
quando mencionei o nome dele... e o Patrono dela agora é um quadrúpede... fiquei pensando se
não teria se transformado... sabe... nele.
— É uma idéia — disse Hermione lentamente. — Mas continuo sem saber por que ela
adentraria o castelo de repente para ver Dumbledore, se este era realmente o motivo por que
estava aqui...
— O que nos traz de volta ao que eu disse, não é? — falou Rony, que agora enchia a boca
de purê de batatas. — Ela ficou esquisita. Se acovardou. Mulheres — sentenciou ele para Harry.
— Elas se perturbam à toa.
— Ainda assim — continuou Hermione despertando de suas divagações —, duvido que
você encontre uma mulher que fique meia hora emburrada porque Madame Rosmerta não riu da
piada que ela contou sobre a bruxa, o curandeiro e a Mimbulus mimbletonia.
Rony amarrou a cara.

CAPÍTULO VINTE E DOIS
DEPOIS DO ENTERRO
RETALHOS DE CÉU MUITO AZUL estavam começando a aparecer sobre as torres do castelo,
mas estes indícios da aproximação do verão não melhoraram o humor de Harry. Ele se frustrara
tanto nas tentativas de descobrir o que fazia Malfoy quanto em seus esforços para iniciar uma
conversa com Slughorn que pudesse levar o professor a lhe entregar a lembrança que
aparentemente vinha reprimindo havia muitas décadas.
— Pela última vez, esquece o Malfoy — disse Hermione a Harry com firmeza.
Os três amigos estavam sentados a um canto ensolarado do pátio depois do almoço.
Hermione e Rony seguravam vim panfleto do Ministério da Magia: Como evitar erros comuns
em Aparatação, porque iam fazer o teste naquela tarde, mas, em geral, os panfletos não tinham se
mostrado eficazes para acalmar os nervos. Rony assustou-se e tentou se esconder atrás de
Hermione ao ver uma garota entrar no pátio.
— Não é a Lilá — disse Hermione, impaciente.
— Ah, bom — exclamou Rony relaxando.
— Harry Potter? — perguntou a garota. — Me pediram para lhe entregar isso.
— Obrigado...
Harry sentiu-se apreensivo ao receber o rolinho de pergaminho. Quando a garota se
distanciou, ele comentou:
— Dumbledore disse que não teríamos mais aulas até eu conseguir a lembrança!
— Talvez ele queira saber como você está indo? — arriscou Hermione, enquanto Harry
desenrolava o pergaminho; mas, em vez da letra longa, fina e inclinada de Dumbledore, ele
deparou com uma caligrafia irregular e espalhada, muito difícil de se ler devido à presença de
grandes borrões nos lugares em que a tinta escorrera.
Caros Harry, Rony e Hermione,
Aragogue morreu ontem à noite. Harry e Rony, vocês o conheceram, e sabem como ele era
especial. Hermione, eu sei que você teria gostado dele. Significaria muito para mim se vocês
dessem uma passada aqui mais tarde para o enterro. Pretendo fazer isso ao crepúsculo, que era a
hora do dia que ele mais gostava. Sei que é proibido saírem tão tarde, mas podem usar a Capa. Eu
não pediria se pudesse enfrentar esse momento sozinho.
Hagrid
— Dá uma olhada nisso — disse Harry, entregando o bilhete a Hermione.
— Ah, pelo amor de Deus — exclamou ela, correndo os olhos pelo bilhete e passando-o a
Rony, que o leu com uma expressão de crescente incredulidade.
— Ele é maluco! — exclamou furioso. — Aquela coisa mandou a turma dele nos devorar!
Disse para se servirem! E agora Hagrid espera que a gente vá lá embaixo chorar por aquele
defunto peludo!
— E não é só isso — acrescentou Hermione. — Ele está nos pedindo para sair do castelo à
noite, sabendo que a segurança está mil vezes mais rigorosa e que nos meteríamos era uma baita
encrenca se fôssemos apanhados.
— Já descemos para ver Hagrid à noite antes — lembrou Harry.
— Mas por um motivo desse? — replicou Hermione. —Já nos arriscamos muito para ajudar
o Hagrid, afinal o Aragogue morreu. Se fosse uma questão de salvar a vida dele...
— Eu teria ainda menos vontade de ir — interpôs Rony com firmeza. — Você não o
conheceu, Hermione. Pode acreditar, morto ele deve estar bem melhor.
Harry recolheu o bilhete e olhou para os borrões de tinta. Sem dúvida, tinham caído
lágrimas no pergaminho, grossas e sucessivas...
— Harry, você não pode estar pensando em ir — falou Hermione. — Não tem o menor
sentido pegar uma detenção por uma coisa dessas.
Harry suspirou.
— É, sei disso. Presumo que o Hagrid vá ter de enterrar Aragogue sem a nossa presença.
— Vai — disse Hermione aliviada. — Olhem, a aula de Poções vai estar quase vazia hoje à
tarde, todos estaremos fazendo os testes... aproveite para amaciar o Slughorn um pouco!
— Sorte na qüinquagésima sétima vez, é isso? — perguntou Harry amargurado.
— Sorte — exclamou Rony de repente. — Harry, é isso aí: mude a sorte!
— Como assim?
— Use a sua poção da sorte!
— Rony, é isso... isso aí! — concordou Hermione, com voz de espanto. — Claro! Por que
não pensei nisso antes?
Harry encarou os dois.
— Felix Felicis? Não sei... estava meio que guardando...
— Para quê? — indagou Rony, incrédulo.
— Que pode ser mais importante do que essa lembrança, Harry? — perguntou Hermione.
O garoto não respondeu. A idéia daquele frasquinho dourado tinha pairado na periferia de
sua imaginação por um bom tempo; planos vagos e não formulados que envolviam Gina romper o
namoro com Dino, e Rony se alegrar de vê-la com um novo namorado, tinham fermentado nas
profundezas do seu cérebro, inconfessados exceto em sonhos ou durante a sonolência que
antecede o sono e o despertar...
— Harry? Você ainda está com a gente? — perguntou Hermione.
— Quê...? Claro — respondeu ele, voltando ao presente. — Bem... o.k. Se eu não conseguir
fazer Slughorn falar hoje à tarde, vou tomar um pouco da Felix e tentar novamente à noite.
— Está decidido, então — aprovou Hermione com energia, ficando em pé e executando
uma graciosa pirueta. — Destinação... determinação... deliberação — murmurou.
— Ah, pode parar — pediu Rony a ela. — Eu já estou até nauseado... rápido, me esconde!
— Não é a Lilá! — disse Hermione, impaciente, quando mais duas garotas chegaram ao
pátio e Rony mergulhou atrás dela.
— Legal — disse o garoto, espiando por cima do ombro de Hermione para verificar. —
Caramba, elas não parecem nada felizes, não é?
— São as irmãs Montgomery, e é claro que não estão nada felizes, você não soube o que
aconteceu com o irmãozinho delas? — perguntou Hermione.
— Para ser sincero, já perdi a conta do que está acontecendo com os parentes de todo o
mundo — disse Rony.
— Bem, o irmão delas foi atacado por um lobisomem. Corre o boato de que a mãe se
recusou a ajudar os Comensais da Morte. O garoto só tinha cinco anos e morreu no St. Mungus,
não conseguiram salvá-lo.
— Morreu? — repetiu Harry, chocado. — Mas com certeza os lobisomens não matam, só
transformam a pessoa em um deles.
— Às vezes matam — disse Rony, que parecia anormalmente sério agora. — Ouvi falar que
isso acontece quando o lobisomem se empolga.
— Qual era o nome do lobisomem? — perguntou Harry imediatamente.
— Bem, dizem que foi o Lobo Greyback — disse Hermione.
— Eu sabia: o maníaco que gosta de atacar crianças, o Lupin me falou dele! — comentou
Harry com indignação.
Hermione olhou-o triste.
— Harry, você precisa obter aquela lembrança. Vai servir para paralisar o Voldemort, não
é? Essas coisas horrendas que estão acontecendo são culpa dele...
A sineta tocou no castelo, e Hermione e Rony se ergueram de um salto com um ar
apavorado.
— Vocês vão se sair bem — disse Harry aos dois quando se dirigiam ao Saguão de Entrada
para se reunir aos outros alunos que iam fazer o teste de Aparatação. — Boa sorte.
— E para você também! — disse Hermione com um olhar expressivo quando Harry tomou
a direção das masmorras.
Só havia três alunos na sala de Poções aquela tarde; Harry, Ernesto e Draco Malfoy.
— Todos jovens demais para aparatar? — perguntou Slughorn cordialmente. — Ainda não
fizeram dezessete anos?
Eles sacudiram a cabeça.
— Ah, bem — disse Slughorn animado —, como somos tão poucos, vamos nos divertir.
Quero que vocês preparem alguma coisa engraçada!
— Parece uma boa idéia, senhor — bajulou Ernesto, esfregando as mãos. Malfoy, por sua
vez, nem ao menos sorriu.
— Que é que o senhor quer dizer com alguma coisa "engraçada"? — perguntou com
irritação.
— Ah, me façam uma surpresa — respondeu Slughorn, despreocupado.
Malfoy abriu seu exemplar de Estudos avançados no preparo de poções de mau humor. Não
podia ser mais evidente que, em sua opinião, a aula seria um desperdício de tempo. Sem dúvida,
pensou Harry, observando-o por cima do próprio livro, Malfoy estava cedendo de má vontade o
tempo que poderia gastar na Sala Precisa.
Era sua imaginação ou Malfoy, como Tonks, parecia mais magro? Com certeza, estava mais
pálido, sua pele conservava aquele tom acinzentado, provavelmente porque nos últimos tempos
era raro ele ver a luz do dia. Mas não havia presunção, nem excitação, nem superioridade em seu
rosto; tampouco a segurança que aparentara no Expresso de Hogwarts, quando se gabara
abertamente da missão que tinha recebido de Voldemort... só podia haver uma conclusão, na
opinião de Harry: a missão, qualquer que fosse, não estava indo bem.
Animado por este pensamento, correu os olhos pelo seu exemplar de Estudos avançados no
preparo de poções e descobriu uma versão do Elixir para Induzir Euforia cheia de anotações do
Príncipe, que parecia não somente corresponder às instruções de Slughorn, como também (e o
coração de Harry deu um salto só de pensar) deixaria o professor tão bem-humorado que ele
ficaria no ponto de entregar a lembrança, se Harry o persuadisse a provar um pouquinho da
poção...
— Ora, então, esta poção parece absolutamente maravilhosa —exclamou Slughorn batendo
palmas, hora e meia depois, ao inspecionar o conteúdo amarelo-sol do caldeirão de Harry. —
Euforia, presumo. E que cheiro é esse que estou sentindo? Hummm... você acrescentou um
galhinho de menta, não foi? Heterodoxo, mas que sopro de inspiração, Harry. Claro, poderia
compensar os efeitos colaterais, as excessivas cantorias e coceiras no nariz... eu realmente não sei
onde você arranja essas idéias luminosas, meu rapaz... a não ser...
Harry empurrou o livro do Príncipe com o pé, mais para dentro da mochila.
— ... que sejam os genes de sua mãe se revelando em você!
— Ah... é, quem sabe — disse Harry aliviado.
Ernesto estava com um ar muito rabugento; decidido a brilhar mais que Harry ao menos
uma vez, apressadamente inventara uma poção que talhara e formara uns grumos roxos no fundo
do caldeirão. Malfoy já estava guardando seu material, de cara amarrada; Slughorn declarara a
sua Solução dos Soluços apenas "passável".
A sineta tocou, e Ernesto e Malfoy saíram logo.
— Senhor — começou Harry, mas Slughorn imediatamente espiou por cima do ombro do
garoto; ao ver a sala vazia, exceto por ele e Harry, apressou-se o máximo que pôde.
— Professor... professor... o senhor não quer provar a minha po...? — chamou o garoto
desesperado.
Mas Slughorn se fora. Desapontado, Harry esvaziou o caldeirão e guardou o material, em
seguida saiu da masmorra e se dirigiu lentamente à sala comunal.
Rony e Hermione retornaram no final da tarde.
— Harry! — exclamou Hermione ao passar pelo buraco do retrato.
— Harry, passei!
— Parabéns! — disse ele. — E Rony?
— Ele... ele não passou por pouco — sussurrou Hermione ao ver Rony entrar na sala de
ombros caídos e mal-humorado. — Foi realmente falta de sorte, uma coisinha à toa, o
examinador notou que ele tinha deixado metade de uma sobrancelha para trás... como foi com o
Slughorn?
— Melou — respondeu Harry, quando Rony ia chegando. — Você deu azar, cara, mas da
próxima vez vai passar... podemos fazer o teste juntos.
— É, presumo que sim — respondeu o amigo, rabugento. — Mas por meia sobrancelha!
Como se isso fizesse diferença!
— Eu sei — consolou-o Hermione —, parece realmente rigoroso demais...
Os três passaram a maior parte do jantar xingando sem meias palavras o examinador de
Aparatação, e Rony parecia um tantinho mais animado quando voltaram à sala comunal, agora
discutindo o problema, ainda sem solução, de Slughorn e sua lembrança.
— Então, Harry, você vai ou não vai usar a Felix Felicis? — perguntou Rony.
— É, presumo que é o jeito. Acho que não vou precisar tomar toda, não a dose para doze
horas, não pode levar a noite inteira... Vou tomar só um gole. Duas ou três horas devem ser
suficientes.
— É uma sensação incrível quando a gente toma — comentou Rony lembrando-se. —
Como se não fosse possível fazer nada errado.
— Do que é que você está falando? — perguntou Hermione rindo.
— Você nunca tomou!
— É, mas pensei que tinha tomado, não é? — replicou Rony como se explicasse o óbvio. —
Dá no mesmo...
Como tinham acabado de ver Slughorn entrar no Salão Principal e sabiam que o professor
gostava de se demorar à mesa, eles fizeram uma horinha na sala comunal; o plano era Harry ir ao
escritório de Slughorn depois de lhe darem tempo de voltar para lá. Quando o sol poente atingiu
as copas das árvores da Floresta Proibida, os garotos resolveram que chegara o momento e,
depois de verificar que Nevile, Dino e Simas estavam na sala comunal, subiram discretamente ao
dormitório dos garotos.
Harry tirou do fundo do malão as meias enroladas e apanhou o minúsculo frasco cintilante.
— Bom, lá vai — exclamou Harry, erguendo o frasquinho e tomando uma dose
cuidadosamente medida.
— Qual é a sensação? — cochichou Hermione.
Harry não respondeu logo. Então, gradual mas inegavelmente, invadiu-o a sensação de
euforia em que tudo é possível; sentiu que poderia fazer qualquer coisa, qualquer coisa no
mundo... e extrair a lembrança de Slughorn pareceu de repente não apenas possível, mas
decididamente fácil...
Ele se levantou sorrindo, transbordando confiança.
— Excelente. Realmente excelente. Certo... vou até a cabana do Hagrid.
— Quê? — exclamaram Rony e Hermione, perplexos.
— Não, Harry: você tem de ir ver o Slughorn, lembra? — disse Hermione.
— Não — respondeu ele seguro. — Vou à cabana do Hagrid, este pensamento produz em
mim uma sensação boa.
— Pensar em enterrar uma aranha gigante produz em você uma sensação boa? — perguntou
Rony estarrecido.
— Produz — respondeu Harry tirando a Capa da Invisibilidade da mochila. — Sinto que é o
lugar onde devo estar hoje à noite, entendem o que quero dizer?
— Não — exclamaram os dois amigos ao mesmo tempo, parecendo agora positivamente
alarmados.
— Isto aqui é a Felix Felicis, presumo? — perguntou Hermione, ansiosa, segurando o frasco
contra a luz. — Você não apanhou outro frasquinho cheio de... sei lá...
— Essência de Insanidade? — sugeriu Rony quando Harry jogou a Capa nos ombros.
Harry deu uma risada, e Rony e Hermione ficaram ainda mais alarmados.
— Confiem em mim. Sei o que estou fazendo... ou pelo menos... — ele rumou para a porta,
confiante — a Felix Felicis sabe.
Ele puxou a Capa da Invisibilidade sobre a cabeça e desceu as escadas, com Rony e
Hermione acompanhando-o, apressados. Ao pé da escada, Harry se esgueirou pela porta aberta.
— Que é que você estava fazendo lá em cima com ela? — guinchou Lilá Brown, sem ver
Harry, encarando Rony e Hermione que emergiam juntos do dormitório dos garotos. Harry ouviu
Rony gaguejar enquanto disparava pela sala, deixando os amigos para trás.
Passar pelo buraco do retrato foi simples; ao se aproximar, Gina e Dino entravam e Harry
pôde sair entre os dois. Ao fazer isso, roçou sem querer em Gina.
— Não me empurra, Dino, por favor — disse a garota em tom aborrecido. — Você sempre
faz isso, posso perfeitamente entrar sozinha...
O retrato girou, fechando a abertura à passagem de Harry, mas não antes que ele ouvisse a
resposta enraivecida de Dino... com a sensação de euforia aumentando, Harry saiu pelo castelo.
Não precisou ter cautela porque não encontrou ninguém no caminho, mas isto não o surpreendeu:
esta noite, ele era o indivíduo mais sortudo de Hogwarts.
Por que sabia que ir à cabana de Hagrid era a coisa certa, Harry não fazia a menor idéia. É
como se a poção estivesse iluminando uns poucos passos do seu caminho de cada vez: ele não
conseguia ver seu destino final, não conseguia ver onde entrava Slughorn, mas sabia que estava
agindo corretamente para obter a lembrança. Quando chegou ao Saguão de Entrada, descobriu
que Filch se esquecera de trancar a porta da entrada do castelo. Sorrindo, Harry escancarou-a e
inspirou o cheiro de ar puro e grama por um momento, antes de descer as escadas e sair para a
noite que caía.
Foi quando chegou ao último degrau que lhe ocorreu que seria muito agradável passar pela
horta a caminho da cabana de Hagrid. Não ficava exatamente no caminho, mas lhe pareceu claro
que era um capricho a que devia obedecer, então dirigiu imediatamente os seus passos para a
horta, e ficou satisfeito, embora não de todo surpreso, ao topar com o professor Slughorn
conversando com a professora Sprout. Harry se escondeu atrás de uma mureta de pedra, sentindose
em paz com o mundo e escutando a conversa dos dois.
— ... agradeço muito por me ceder seu tempo, Pomona — dizia Slughorn educadamente.
— A maioria das autoridades concorda que elas são mais eficazes quando colhidas ao crepúsculo.
— Ah, concordo inteiramente — respondeu a professora Sprout cordial. — Essas são
suficientes?
— São mais do que suficientes — respondeu Slughorn; Harry viu que o professor carregava
uma braçada de plantas folhosas. — Dará para distribuir algumas folhas a cada aluno do terceiro
ano e ainda sobrará para quem as cozinhar demais... bem, boa-noite para você, e, mais uma vez,
muito obrigado!
A professora Sprout saiu pela escuridão que se adensava em direção às suas estufas, e
Slughorn foi andando para o lugar em que estava Harry, invisível.
Tomado de um desejo imediato de se revelar, Harry despiu a Capa com um gesto dramático.
— Boa-noite, professor.
— Pelas barbas de Merlim, você me assustou — disse Slughorn, parando de súbito, com ar
cauteloso. — Como foi que saiu do castelo?
— Filch deve ter esquecido de trancar as portas — respondeu Harry, animado, e ficou
satisfeito de ver Slughorn amarrar a cara.
— Vou dar parte desse homem, ele se preocupa mais com bobagens do que com a
verdadeira segurança, se você quer saber... mas por que está aqui fora, Harry?
— Bem, senhor, é o Hagrid — respondeu Harry, sabendo que o certo naquele momento era
dizer a verdade. — Ele está muito chateado... mas o senhor não vai contar a ninguém, não é
professor? Não quero criar problema para ele...
Evidentemente Slughorn ficou curioso.
— Bem, não posso lhe prometer isso — respondeu com impaciência. — Mas sei que
Dumbledore confia em Hagrid até a medula dos ossos, por isso tenho certeza de que não pode
estar fazendo nada muito ruim...
— Bem, é uma aranha gigante que ele tinha há anos... vivia na Floresta... falava e tudo...
— Ouvi rumores de que havia acromântulas na Floresta — comentou Slughorn baixinho,
olhando para a massa de árvores escuras. — É verdade, então?
É. Mas a tal, Aragogue, a primeira que Hagrid conseguiu, morreu ontem à noite. Ele está
arrasado. Quer companhia para fazer o enterro, e eu disse que iria.
Comovente, comovente — disse Slughorn distraído, seus grandes olhos de pálpebras
enrugadas fixos nas luzes distantes da cabana de Hagrid. — Mas o veneno da acromântula é
muito valioso... se o artrópode acabou de morrer, talvez ainda não tenha secado... claro, eu não
gostaria de fazer nada desrespeitoso se Hagrid está perturbado... mas se houvesse algum meio de
obter algum... quero dizer, é quase impossível obter veneno de uma acromântula viva...
Slughorn parecia estar falando mais para si do que para Harry.
— ... parece um terrível desperdício não recolhê-lo... pode chegar a alcançar cem galeões
por meio litro... para ser franco, o meu salário não é alto...
E Harry viu claramente o que precisava fazer.
— Bem — disse ele, hesitando de modo convincente —, bem, se o senhor quiser ir,
professor, Hagrid provavelmente ficaria muito satisfeito... fazer uma despedida melhor, entende...
— Claro — exclamou Slughorn, seus olhos agora faiscando de entusiasmo. — Faremos o
seguinte, Harry, encontro você lá embaixo com umas duas garrafas... beberemos... não à saúde da
pobre criatura... bem... mas, em todo caso, faremos uma despedida em grande estilo, depois do
enterro. E vou trocar a minha gravata, esta é um pouco berrante para a ocasião...
Ele voltou ligeiro para o castelo, e Harry correu para a cabana de Hagrid, satisfeitíssimo.
— Você veio — exclamou Hagrid rouco, quando abriu a porta e viu à sua frente Harry,
emergindo da Capa da Invisibilidade.
— É... mas Rony e Hermione não puderam vir — disse Harry. — Eles realmente lamentam.
— Não faz... não faz mal... ele teria ficado sensibilizado por você ter vindo, Harry...
Hagrid deixou escapar um grande soluço. Tinha feito uma braçadeira preta, que parecia uma
tira de pano mergulhada em graxa de sapato, e seus olhos estavam inchados e vermelhos. Harry
consolou-o com palmadinhas no cotovelo, que era a altura máxima do amigo que ele conseguia
atingir sem esforço.
— Onde vamos enterrá-lo? — perguntou. — Na Floresta?
— Caramba, não — protestou Hagrid, enxugando os olhos que não paravam de lacrimejar
com a fralda da camisa. — As outras aranhas não me deixarão nem chegar perto das teias, agora
que Aragogue partiu. Fiquei sabendo que só as ordens dele evitavam que me comessem. Dá para
acreditar, Harry?
A resposta sincera seria "sim"; Harry lembrou, sem dificuldade, a cena em que ele e Rony
se viram cara a cara com a acromântula: ficara bem evidente que Aragogue era a única coisa que
as impedia de devorar Hagrid.
— Nunca teve antes uma área da Floresta a que eu não pudesse ir — comentou Hagrid
balançando a cabeça. — Não foi nada fácil tirar o cadáver de Aragogue de lá, acredite... elas
costumam comer os mortos, entende... mas eu queria dar a ele um enterro decente... uma despedida
digna...
Ele desatou a soluçar, e Harry recomeçou a afagar seu cotovelo, dizendo (porque a poção
parecia indicar que era o que devia ser feito) ao mesmo tempo:
— O professor Slughorn me encontrou quando eu ia descendo, Hagrid.
— Você não se encrencou, não? — perguntou Hagrid, alarmado. — Não devia estar fora do
castelo à noite, eu sei, a culpa é minha...
— Não, não, quando ele soube aonde eu ia, disse que também gostaria de vir prestar as
últimas homenagens a Aragogue. Ele foi vestir uma roupa mais apropriada, acho... e disse que
traria umas garrafas para podermos beber à memória de Aragogue...
— Verdade? — exclamou Hagrid, parecendo ao mesmo tempo espantado e comovido. —
É... é muita bondade dele, é sim, e também não entregar você. Eu nunca tive realmente muito
contato com Horácio Slughorn antes... mas ele vem se despedir do velho Aragogue, eh? Bem...
ele teria gostado disso, o Aragogue...
Harry pensou com seus botões que o que Aragogue teria gostado mais em Slughorn era a
fartura de carne comestível que ele oferecia, mas limitou-se a ir até a janela dos fundos da cabana
de Hagrid, de onde teve a sinistra visão da enorme aranha que jazia de costas com as pernas
encolhidas e entrelaçadas.
— Vamos enterrar Aragogue aqui, Hagrid, na sua horta?
— Logo depois do canteiro de abóboras, pensei — respondeu ele com a voz embargada. —
Já cavei a... entende... sepultura. Para podermos dizer alguma coisa simpática sobre ele...
lembranças felizes, entende...
Sua voz tremeu e falhou. Houve uma batida na porta e ele se virou para atender, assoando o
nariz no grande lenço manchado. Slughorn apressou-se a entrar, trazendo várias garrafas nos
braços e usando um sóbrio lenço preto ao pescoço.
— Hagrid — disse ele com voz grave e profunda. — Lamento muito a sua perda.
— É muita gentileza sua — respondeu Hagrid. — Muito obrigado. E muito obrigado por
não dar uma detenção a Harry...
— Eu nem sonharia. Noite triste, noite triste... onde está o coitado?
— Lá fora — informou Hagrid com a voz trêmula. — Vamos... vamos começar, então?
Os três saíram para o quintal. A lua brilhava palidamente entre as árvores e sua claridade se
misturava à luz que saía da janela de Hagrid para iluminar o cadáver de Aragogue, à beira de uma
enorme cova ladeada por um monte de terra recém-cavada, de três metros.
— Magnífico — disse Slughorn, aproximando-se da cabeça da aranha, onde oito olhos
leitosos contemplavam inutilmente o céu e duas enormes pinças curvas brilhavam imóveis ao
luar. Harry pensou ouvir o tinido de frascos quando Slughorn se curvou para as pinças,
aparentemente examinando a enorme cabeça peluda.
— Não é todo o mundo que sabe apreciar como elas são bonitas — comentou Hagrid às
costas de Slughorn, as lágrimas escorrendo dos seus olhos enrugados. — Eu não sabia que você
tinha interesse em criaturas como o Aragogue, Horácio.
— Interesse? Meu caro Hagrid, tenho veneração por elas — respondeu o professor,
afastando-se do corpo. Harry viu o reflexo de um frasco desaparecer sob sua capa, embora
Hagrid, secando os olhos mais uma vez, não notasse nada. — Agora... vamos prosseguir com o
enterro?
Hagrid acenou a cabeça concordando, e se adiantou. Ergueu a gigantesca aranha nos braços
e, com um enorme gemido, derrubou-a na cova escura. O corpo bateu no fundo, com um baque
feio e triturante. Hagrid recomeçou a chorar.
— Claro, é difícil para você que o conhecia melhor — disse Slughorn, que, como Harry, só
conseguia alcançar o cotovelo de Hagrid, mas deu-lhe umas palmadinhas assim mesmo. — Que
tal eu dizer umas palavrinhas?
Ele devia ter retirado muito veneno de boa qualidade de Aragogue, pensou Harry, porque
tinha um ar satisfeito quando se aproximou da cova e disse, em voz lenta e comovente:
— Adeus, Aragogue, rei dos aracnídeos, cuja longa e fiel amizade os que o conheceram
jamais esquecerão! Embora o seu corpo se desintegre, o seu espírito permanecerá nas teias
tranqüilas de sua Floresta natal. Que os seus descendentes multioculares prosperem e seus amigos
humanos encontrem consolo pela perda que sofreram.
— Foi... foi... lindo! — berrou Hagrid, desmontando em cima da estrumeira aos prantos.
— Vamos, vamos — disse Slughorn, e acenou com a varinha, fazendo uma grande
quantidade de terra se elevar e cair com um ruído abafado sobre a aranha morta, formando um
monte liso. — Vamos entrar e beber alguma coisa. Pegue do outro lado dele, Harry... isso... em
pé, Hagrid... muito bem...
Eles sentaram Hagrid em uma cadeira à mesa. Canino, que estivera escondido em seu cesto
durante o enterro, agora veio pisando macio até eles e descansou a pesada cabeça no colo de
Harry, como sempre fazia. Slughorn desarrolhou uma das garrafas de vinho que trouxera.
— Testei todas à procura de veneno — garantiu ele a Harry, servindo a primeira garrafa
quase toda em uma das canecas tamanho-balde de Hagrid e entregando-a a ele. — Mandei um
elfo doméstico provar cada garrafa depois do que aconteceu ao coitado do seu amigo Rupert.
Harry imaginou a expressão de Hermione se algum dia ela viesse a saber deste abuso contra
elfos domésticos, e decidiu que jamais o mencionaria à amiga.
— Uma para Harry... — disse Slughorn, dividindo uma segunda garrafa em duas canecas —
... e uma para mim. Bem — ele ergueu a caneca —, ao Aragogue.
— Aragogue — repetiram juntos, Harry e Hagrid.
Slughorn e Hagrid tomaram um grande gole. Harry, porém, com o seu próximo passo
iluminado pela Felix Felicis, percebeu que não devia beber, então fingiu apenas tomar um gole e
em seguida devolveu a caneca à mesa.
— Eu o criei a partir de um ovo, sabem — disse Hagrid sombriamente. — Uma coisinha à
toa quando saiu da casca. Mais ou menos do tamanho de um pequinês.
— Que encanto — comentou Slughorn.
— Eu costumava guardar Aragogue em um armário na escola até que... bem...
Passou uma sombra pelo rosto de Hagrid, e Harry entendeu o porquê: Tom Riddle tinha
tramado para Hagrid ser expulso da escola, culpado de ter aberto a Câmara Secreta. Slughorn,
porém, não parecia estar ouvindo; contemplava o teto, de onde pendiam vários tachos de latão,
bem como uma sedosa mecha de pêlos muito brancos.
— Isso não pode ser pêlo de unicórnio, Hagrid, pode?
— Ah, é — respondeu ele com indiferença. — Arrancado da cauda deles, os pêlos se
agarram nos galhos e plantas da Floresta, entende...
— Mas, meu caro, você sabe quanto vale isso?
— Uso para prender bandagens e outras coisas, quando algum bicho se machuca — disse
Hagrid sacudindo os ombros. — É útil à beça... muito forte, mesmo.
Slughorn tomou mais um grande gole da caneca, seus olhos agora percorrendo a cabana
atentamente, à procura, Harry percebeu, de mais tesouros que ele pudesse converter em um
copioso suprimento de hidromel envelhecido em carvalho, abacaxi cristalizado e paletós de
smoking de veludo. Ele tornou a encher a caneca de Hagrid e a sua própria, e interrogou-o sobre
as criaturas que viviam na Floresta atualmente, e como viviam, e se ele dava conta de cuidar de
todas. Hagrid, tornando-se expansivo sob a influência da bebida e do interesse lisonjeiro de
Slughorn, parou de enxugar os olhos e embarcou feliz em uma longa explicação sobre a criação
de tronquilhos.
A essa altura, a Felix Felicis deu um toque em Harry, e ele reparou que o suprimento de
bebida que Slughorn trouxera estava se esgotando com rapidez. Harry ainda não conseguira
realizar o Feitiço de Reposição sem pronunciar o encantamento em voz alta, mas a idéia de que
fosse incapaz de realizá-lo esta noite era risível: de fato, Harry riu interiormente quando, sem que
Hagrid nem Slughorn (agora trocando casos sobre o comércio clandestino de ovos de dragão) o
vissem, apontou a varinha por baixo da mesa para as garrafas vazias e elas imediatamente
tornaram a encher.
Decorrida mais ou menos uma hora, os dois professores começaram a fazer brindes
extravagantes: a Hogwarts, a Dumbledore, ao vinho dos elfos e a...
— Harry Potter! — berrou Hagrid, babando um pouco do vinho no queixo, ao esvaziar sua
décima quarta caneca.
— Com certeza — exclamou Slughorn com a voz meio pastosa —, Parry Otter, o Garoto
Eleito Que... bem... alguma coisa assim — murmurou ele esvaziando sua caneca também.
Não demorou muito, Hagrid recomeçou a chorar e insistiu que Slughorn ficasse com a
cauda do unicórnio inteira, que o professor embolsou aos gritos de "À amizade! À generosidade!
A dez galeões o pêlo!".
E durante algum tempo, Hagrid e Slughorn se sentaram lado a lado, abraçados, cantando
uma música lenta e triste sobre um bruxo moribundo chamado Odo.
— Arre, os bons morrem jovens — murmurou Hagrid, debruçando-se sobre a mesa, um
pouco vesgo, enquanto Slughorn continuava a gorjear o refrão "Meu pai não tinha idade para
morrer... nem a sua mãe nem o seu pai, Harry..."
Lágrimas enormes tornaram a vazar dos cantos dos olhos enrugados de Hagrid; ele agarrou
o braço de Harry e sacudiu-o.
— ... melhor bruxo e bruxa da idade deles que já conheci... uma desgraça... uma desgraça...
Slughorn cantava melancolicamente:
"E Odo o herói foi levado para casa Para o lugar que jovem conhecera E sepultado com o
chapéu pelo avesso E a varinha partida ao meio, que tristeza."
— ... uma desgraça — resmungou Hagrid, e sua enorme cabeça desgrenhada rolou para o
lado sobre os braços cruzados, e ele adormeceu roncando profundamente,
— Desculpe — disse Slughorn com um soluço. — Não consigo cantar afinado nem para
salvar a vida.
— Hagrid não estava falando do seu modo de cantar — explicou Harry em voz baixa. —
Estava falando da morte dos meus pais.
— Ah — exclamou Slughorn reprimindo um grande arroto. — Ah, nossa. Aquilo foi... foi
de fato terrível. Terrível... terrível...
Parecia não encontrar o que dizer e optou por tornar a encher as canecas.
— Suponho que você... não se lembre, não é, Harry? — perguntou ele sem jeito.
— Não... bem eu só tinha um ano quando eles morreram — respondeu Harry, seus olhos
fixos na chama da vela que bruxuleava com os fortes roncos de Hagrid. — Mas descobri com
bastante exatidão o que aconteceu. Meu pai morreu primeiro. O senhor sabia?
— Não... não sabia — disse Slughorn com a voz abafada.
— É... Voldemort matou-o e em seguida passou por cima do cadáver dele em direção a
minha mãe.
Slughorn estremeceu violentamente, mas não parecia capaz de despregar o olhar
horrorizado do rosto de Harry.
— Disse a ela para sair do caminho — continuou Harry, sem piedade. — Voldemort me
contou que minha mãe não precisava ter morrido. Ele só queria a mim. Ela poderia ter fugido.
— Nossa — murmurou Slughorn. — Ela podia ter... ela não precisava... que horror...
— Não é mesmo? — concordou Harry, num sussurro quase inaudível. — Mas ela não se
mexeu. Papai já estava morto, mas ela não queria que eu morresse também. Tentou suplicar ao
Voldemort... mas ele apenas riu...
— Basta! — exclamou Slughorn repentinamente, erguendo a mão trêmula. — Realmente,
meu caro rapaz, basta... Sou um velho... não preciso ouvir... não quero ouvir...
— Me esqueci — mentiu Harry, a Felix Felicis orientando-o. — O senhor gostava dela,
não?
— Gostava dela? — repetiu Slughorn, seus olhos tornando a se encher de lágrimas. — Não
consigo imaginar alguém que a conhecesse e não gostasse dela... muito corajosa... muito
engraçada... foi pavoroso.
— Mas o senhor não quer ajudar o filho dela — continuou Harry. — Ela deu a vida por
mim, mas o senhor não quer me dar uma lembrança.
Os roncos trovejantes de Hagrid ecoavam pela cabana. Harry encarava sem vacilar os olhos
lacrimosos de Slughorn. O professor de Poções parecia incapaz de desviar o olhar.
— Não diga isso — sussurrou ele. — Não é uma questão... se fosse para ajudá-lo, é claro...
mas não vai adiantar nada...
— Vai — disse Harry em voz alta e clara. — Dumbledore precisa de informações. Eu
preciso de informações.
Ele sabia que estava seguro: a Felix lhe dizia que o professor não lembraria nada pela
manhã. Olhando direto nos olhos de Slughorn, Harry se inclinou ligeiramente para ele.
— Eu sou o Eleito. Tenho de matá-lo. Preciso daquela lembrança.
Slughorn ficou mais pálido que nunca; o suor brilhava em sua testa lisa.
— Você é o Eleito?
— Claro que sou — respondeu Harry calmamente.
— Mas então... meu caro rapaz... você está me pedindo muito... você está me pedindo, de
fato, que o ajude em sua tentativa de destruir...
— O senhor não quer se livrar do bruxo que matou Lílian Evans?
— Harry, Harry, claro que quero, mas...
— O senhor tem medo que ele descubra que me ajudou? Slughorn não respondeu; estava
aterrorizado.
— Seja corajoso como a minha mãe, professor...
Slughorn ergueu a mão gorducha e levou os dedos trêmulos à boca; por um instante pareceu
um bebê que crescera demais.
— Não me orgulho — sussurrou ele entre os dedos. — Tenho vergonha do que... do que
aquela lembrança mostra... acho que eu talvez tenha causado um grande estrago naquele dia...
— O senhor compensaria o que fez me entregando aquela lembrança. Seria um ato de
grande coragem e nobreza.
Hagrid, adormecido, se mexeu e continuou a roncar. Slughorn e Harry olhavam-se
fixamente por cima da vela gotejante. Fez-se um silêncio extremamente longo, mas a Felix
Felicis disse a Harry que não o quebrasse, que aguardasse.
Então, muito lentamente, Slughorn levou a mão ao bolso e puxou sua varinha. Enfiou a
outra mão por dentro da capa e tirou um frasquinho vazio. Ainda sustentando o olhar de Harry,
Slughorn tocou a têmpora com a ponta da varinha e retirou-a, fazendo com que o longo fio
prateado de lembrança saísse, também, preso na ponta da varinha. A lembrança foi se esticando,
se esticando, até partir, e balançar luminosa e prateada da varinha. O professor colocou-a no
frasco onde ela se enroscou, depois se expandiu espiralando como um gás.
Ele arrolhou o vidro com a mão trêmula e passou-o por cima da mesa para Harry.
— Muito obrigado, professor.
— Você é um bom rapaz — disse Slughorn, com as lágrimas escorrendo pelas bochechas
gordas e entrando em seus bigodes de leão-marinho. — E você tem os olhos dela... só não pense
muito mal de mim depois que vir...
E ele também descansou a cabeça sobre os braços, deu um profundo suspiro e adormeceu.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
HORCRUXES
HARRY SENTIU O EFEITO DA FELIX FELICIS começar a passar enquanto se esgueirava
sorrateiro de volta ao castelo. A porta da frente permanecia destrancada, mas, no terceiro andar,
encontrou Pirraça, e por pouco evitou ser detido mergulhando em um dos seus atalhos laterais.
Quando finalmente chegou ao quadro da Mulher Gorda e despiu a Capa da Invisibilidade, não se
surpreendeu com a sua grande má vontade em atendê-lo.
— Que horas você acha que são?
— Eu realmente lamento... tive de sair para uma coisa importante...
— Bem, a senha mudou à meia-noite, e você terá de dormir no corredor, não é assim?
— A senhora está brincando — replicou Harry. — Por que mudaram a senha à meia-noite?
— Porque mudaram — respondeu a Mulher Gorda. — Se não gostou, vá reclamar com o
diretor, foi ele que reforçou a segurança.
— Fantástico — retrucou Harry com amargura, examinando o chão duro à sua volta. —
Realmente genial. É, eu iria realmente reclamar com Dumbledore se ele estivesse aqui, porque foi
ele quem quis que eu...
— Ele está aqui — disse uma voz às suas costas. — O professor Dumbledore retornou à
escola há uma hora...
Nick Quase Sem Cabeça flutuou em direção a Harry, sua cabeça balançando como sempre
em cima da gola de tufos engomados.
— Soube pelo Barão Sangrento que o viu chegar — informou Nick. — Parecia muito
animado, segundo o Barão, embora um pouco cansado, é claro.
— E onde ele está? — perguntou Harry, com o coração aos saltos.
— Ah, gemendo e arrastando correntes na Torre de Astronomia, é um dos seus passatempos
preferidos...
— Não, não o Barão Sangrento, Dumbledore!
— Ah... no escritório dele. Acredito, pelo que me disse o Barão, que tem de cuidar de uns
assuntos antes de se recolher...
— É, tem mesmo — disse Harry, a excitação incendiando o seu peito ante a perspectiva de
contar a Dumbledore que obtivera a lembrança. Ele deu meia-volta e saiu correndo, sem dar
atenção à Mulher Gorda que o chamava.
— Volte aqui! Está bem, eu menti! Fiquei aborrecida porque você me acordou! A senha
ainda é "solitária"!
Harry, porém, já disparava pelo corredor, e, minutos depois, estava dizendo "bombas de
caramelo" à gárgula do diretor, que saltou para o lado e admitiu-o à escada em espiral.
— Entre — mandou Dumbledore, quando Harry bateu. Pela voz, parecia exausto.
Harry empurrou a porta. Ali estava o escritório de Dumbledore com a aparência de sempre,
exceto pela vista do céu escuro e estrelado através das janelas.
— Céus, Harry — disse o diretor surpreso. — A que devo este prazer tão tardio?
— Senhor... consegui. Consegui a lembrança de Slughorn. Harry tirou o frasquinho e
mostrou-o a Dumbledore. Por um momento, o diretor pareceu aturdido. Então, seu rosto se
iluminou com um grande sorriso.
— Harry, que notícia espetacular! Muito bem mesmo! Eu sabia que você conseguiria!
Aparentemente esquecido da hora tardia, rapidamente ele contornou a escrivaninha,
apanhou o frasco com a lembrança de Slughorn com a mão boa e foi até o armário onde guardava
a Penseira.
— E agora — disse Dumbledore, colocando a bacia de pedra em cima da escrivaninha e
despejando nela o conteúdo do frasco —, agora finalmente veremos, Harry, vamos...
Harry se curvou obedientemente para a Penseira e sentiu os pés abandonarem o chão do
escritório... mais uma vez ele caiu pelo vácuo escuro e aterrissou na antiga sala de Horácio
Slughorn muitos anos atrás.
Ali estava o professor muito mais jovem, com seus cabelos cor de palha, espessos e
brilhantes, e seus bigodes arruivados, sentado na confortável bergère em sua sala, os pés apoiados
no pufe de veludo, uma das mãos segurando uma tacinha de vinho e a outra enfiada em uma caixa
de abacaxi cristalizado. E ali estavam, ao redor de Slughorn, meia dúzia de adolescentes, Tom
Riddle entre eles, com o anel ouro e preto de Servolo brilhando no dedo.
Dumbledore aterrissou ao lado de Harry na hora em que Riddle perguntava:
— Senhor, é verdade que a professora Merrythought está se aposentando? — perguntou
Riddle.
— Tom, Tom, se eu soubesse não poderia lhe dizer — respondeu Slughorn, sacudindo um
dedo açucarado para Riddle, num gesto de censura, embora estragasse esse efeito com uma
ligeira piscadela. — Confesso que gostaria de saber onde você obtém suas informações, rapaz;
sabe mais do que metade dos professores.
Riddle sorriu; os outros garotos riram e lhe lançaram olhares de admiração.
— Com a sua fantástica habilidade para saber o que não deve e a sua cuidadosa bajulação
das pessoas certas... aliás, obrigado pelo abacaxi, você acertou, é o meu preferido...
Vários meninos tornaram a rir.
— ... estou seguro que chegará a Ministro da Magia em vinte anos. Quinze, se continuar a
me mandar abacaxis. Tenho excelentes contatos no Ministério.
Tom Riddle apenas sorriu enquanto os colegas davam gostosas risadas. Harry reparou que
ele não era de modo algum o mais velho do grupo, mas todos os garotos pareciam considerá-lo
seu líder.
— Não sei se a política me conviria, senhor — respondeu ele quando cessaram as risadas.
— Primeiro porque não pertenço às famílias bem-nascidas.
Uns dois garotos trocaram sorrisos debochados. Harry teve certeza de que se divertiam com
uma piada secreta: sem dúvida ligada ao que sabiam, ou suspeitavam, a respeito do famoso
antepassado do líder da gangue.
— Tolice — replicou Slughorn energicamente —, não poderia ser mais evidente que você
descende de boa família bruxa, com as habilidades que tem. Não, você irá longe, Tom, até hoje
jamais me enganei a respeito de um aluno.
O pequeno relógio de ouro sobre a escrivaninha de Slughorn bateu onze horas às suas
costas, e ele se virou.
— Céus, já é tão tarde assim? — exclamou o professor. — É melhor irem andando, rapazes,
ou todos ficaremos encrencados. Lestrange, quero o seu trabalho até amanhã ou receberá uma
detenção. O mesmo se aplica a você, Avery.
Um a um, os garotos saíram da sala. Slughorn levantou-se da poltrona com esforço e levou
seu cálice vazio até a escrivaninha. Um movimento atrás do professor o fez virar-se; Riddle
continuava parado ali.
— Ande logo, Tom, você não quer ser apanhado fora da cama depois da hora, ainda mais
sendo monitor...
— Senhor, eu queria lhe perguntar uma coisa.
— Então pergunte, meu rapaz, pergunte...
— Senhor, estive imaginando o que o senhor saberia sobre... sobre Horcruxes.
Slughorn encarou-o, acariciando distraidamente a haste da taça de vinho com os dedos
grossos.
— Um trabalho para a Defesa contra as Artes das Trevas, eh?
Mas Harry percebeu que Slughorn sabia perfeitamente bem que não era trabalho escolar.
— Não exatamente, senhor. Encontrei o termo em um livro, e não entendi muito bem.
— Não... bem... você estaria num apuro para encontrar em Hogwarts um livro com detalhes
sobre Horcruxes, Tom. É feitiço das Trevas, realmente das Trevas.
— Mas obviamente o senhor conhece bem todos eles, não? Quero dizer, um bruxo como o
senhor... me desculpe, quero dizer, se o senhor não puder me falar, obviamente... achei que se
alguém pudesse, seria o senhor... então pensei em perguntar...
A coisa foi muito bem-feita, pensou Harry, a hesitação, o tom descontraído, a adulação
discreta, nada excessivo. Ele, Harry, tinha experiência demais em tentativas para extrair
informações de gente relutante, para não reconhecer um mestre em ação. Percebia que Riddle
queria a informação, e muito; talvez tivesse gasto semanas se preparando para aquele momento.
— Bem — falou Slughorn sem olhar para Riddle, mas brincando com a fita da caixa de
abacaxis cristalizados —, bem, é claro que não pode haver mal algum em lhe dar uma idéia geral.
Só para você entender o termo. Horcrux é a palavra usada para um objeto em que a pessoa
ocultou parte da própria alma.
— Mas não entendo muito bem como se faz isso, senhor.
A voz de Riddle estava cuidadosamente controlada, mas Harry sentiu sua excitação.
— Bem, a pessoa divide a alma, entende — explicou Slughorn —, e esconde uma metade
dela em um objeto externo ao corpo. Então, mesmo que seu corpo seja atacado ou destruído, a
pessoa não poderá morrer, porque parte de sua alma continuará presa à terra, intacta. Mas,
naturalmente, a existência sob tal forma...
O rosto de Slughorn murchou, e Harry se viu relembrando palavras que ouvira havia quase
dois anos.
"Fui arrancado do meu corpo, me tornei menos que um espírito, menos que o fantasma mais
insignificante... mas ainda assim, continuei vivo."
— ... poucas pessoas iriam querer, Tom, muito poucas. A morte seria preferível.
Mas a sofreguidão de Riddle naquele momento era visível; sua expressão era ávida, ele já
não conseguia esconder seu desejo.
— E como é que se divide a alma?
— Bem — respondeu Slughorn, constrangido —, você precisa compreender que a alma
deve permanecer intocada e una. A divisão é um ato de violação, é contra a natureza.
— Mas como é que se faz?
— Por meio de uma ação maligna: a suprema maldade. Matando alguém. Matar rompe a
alma. O bruxo que desejasse criar uma Horcrux usaria essa ruptura em seu proveito: encerraria a
parte que se rompeu...
— Encerraria? Mas como...?
— Há um feitiço, não me pergunte, eu não conheço! — respondeu Slughorn, sacudindo a
cabeça como um velho elefante importunado por mosquitos. — Tenho cara de quem já
experimentou isso... tenho cara de homicida?
— Não, senhor, naturalmente que não — apressou-se a dizer Riddle. — Desculpe... não
pretendi ofender o senhor...
— Tudo bem, tudo bem, não me ofendi — disse o professor bruscamente. — É natural
sentir alguma curiosidade por essas coisas... bruxos de certo calibre sempre se sentiram atraídos
por este aspecto da magia...
— Sim, senhor. Mas o que não entendo... só por curiosidade... quero dizer será que uma
Horcrux serve para alguma coisa? Pode-se dividir a alma apenas uma vez? Não seria melhor,
fortaleceria mais a pessoa, se ela dividisse a alma em várias partes? Quero dizer, por exemplo,
sete não é o número mágico mais poderoso, será que sete...?
— Pelas barbas de Merlim, Tom! — ganiu Slughorn. — Sete! Já não é bastante ruim pensar
em matar uma pessoa? E em todo caso... bastante ruim romper a alma uma vez... mas rompê-la
em sete partes...
Slughorn parecia agora profundamente perturbado: fitava Riddle como se nunca o tivesse
visto direito, e Harry percebia que estava começando a se arrepender de ter entrado naquela
conversa.
— É claro — murmurou —, isto é uma hipótese, o que estamos discutindo, não é mesmo?
Uma questão acadêmica...
— É claro que sim, senhor — concordou Riddle imediatamente.
— Ainda assim, Tom... não repita para ninguém o que eu disse... ou seja, o que discutimos.
As pessoas não gostariam de pensar que estivemos conversando sobre Horcruxes. É um assunto
proibido em Hogwarts, sabe... Dumbledore é particularmente rigoroso nisso...
— Não direi uma palavra, senhor — prometeu Riddle se retirando, mas não antes de Harry
ter visto de relance o seu rosto, em que se espalhava aquela mesma felicidade delirante do dia em
que descobrira que era bruxo, o tipo de felicidade que não realçava suas bonitas feições, mas, por
alguma razão, as tornava menos humanas...
— Obrigado, Harry — disse Dumbledore em voz baixa. — Vamos.
Quando Harry voltou ao escritório, Dumbledore já estava sentado à escrivaninha. O garoto
sentou-se, também, e esperou o diretor falar.
— Há muito tempo estou esperando obter esta prova — disse ele por fim. — Confirma a
teoria em que venho trabalhando, me diz que tenho razão, e também quanto chão ainda
precisamos percorrer...
Harry de repente reparou que cada um dos retratos dos antigos diretores e diretoras nas
paredes estava acordado e atento à conversa. Um bruxo corpulento, de nariz vermelho, chegara a
apanhar uma corneta acústica.
— Bem, Harry — recomeçou o diretor. — Estou certo de que você compreendeu o
significado do que acabou de ouvir. À mesma idade que você, com uma diferença de poucos
meses a mais ou a menos, Tom Riddle estava fazendo tudo que podia para descobrir como se
tornar imortal.
— O senhor, então, acha que ele conseguiu? Ele fez uma Horcrux? E foi por isso que não
morreu, quando me atacou? Tinha uma Horcrux escondida em algum lugar? Um pedacinho de
sua alma estava segura?
— Um pedacinho... ou muitos. Você ouviu Voldemort: o que ele queria de Slughorn era
uma opinião sobre o que aconteceria ao bruxo que criasse mais de uma Horcrux, que aconteceria
ao bruxo tão decidido a evitar a morte que se dispusesse a matar muitas vezes, romper a alma
seguidamente, para poder guardá-la era várias Horcruxes secretas e separadas. Nenhum livro teria
lhe dado tal informação. Até onde sei, até onde estou certo que Voldemort sabia, nenhum bruxo
jamais rompera a alma em mais de dois pedaços.
Dumbledore fez uma pausa momentânea para coordenar os pensamentos, então disse:
— Há quatro anos, recebi o que considero uma prova decisiva de que Voldemort dividiu sua
alma.
— Onde? — perguntou Harry. — Como?
— Recebi-a de você, Harry. O diário de Riddle, o que dava instruções para reabrir a Câmara
Secreta.
— Não compreendo, senhor.
— Bem, embora eu não tivesse visto o Riddle que saiu do diário, o que você me descreveu
foi um fenômeno que eu jamais presenciara. Uma simples lembrança começar a agir e pensar por
conta própria? Uma simples lembrança exaurir a vida da menina em cujas mãos fora parar? Não,
alguma coisa muito mais sinistra vivia naquele livro... um fragmento de alma, disso eu estava
quase seguro. O diário era uma Horcrux. Mas isto levantava o mesmo número de perguntas que
respondia. O que mais me intrigava e assustava é que o diário tinha sido planejado não apenas
como uma arma, mas como uma salvaguarda.
— Continuo sem entender — disse Harry.
— Bem, ele produzia o efeito que se espera de uma Horcrux; em outras palavras, o
fragmento de alma oculto no diário foi resguardado e, sem dúvida, desempenhou o seu papel de
impedir a morte do dono. Mas não podia restar dúvida de que Riddle realmente queria que
alguém lesse aquele diário, queria que aquela parte de sua alma habitasse ou possuísse outra
pessoa, de modo que o monstro de Slytherin pudesse mais uma vez ser solto.
— Bem, ele não queria desperdiçar todo o seu esforço. Queria que as pessoas soubessem
que ele era herdeiro de Slytherin, coisa que ele não pôde assumir naquela época.
— Correto — disse Dumbledore, assentindo com a cabeça. — Mas você não percebe,
Harry, que se ele pretendia que futuramente o diário passasse a um aluno de Hogwarts ou fosse
plantado nele, estava sendo extraordinariamente insensível com relação ao precioso fragmento de
sua alma ali escondido? Uma Horcrux, como explicou o professor Slughorn, serve para guardar
uma parte do eu em lugar secreto e seguro, não para o bruxo atirá-la aos pés de alguém correndo
o risco de vê-la destruída, como de fato ocorreu: aquele determinado fragmento de alma não
existe mais; você cuidou dele.
"O pouco caso com que Voldemort tratou essa Horcrux me pareceu um péssimo agouro.
Pareceu-me um indício de que ele devia ter, ou planejava ter, mais Horcruxes, por isso a perda da
primeira não causaria grande prejuízo. Eu não queria acreditar, mas nada mais parecia fazer
sentido.
"Então você me contou, dois anos depois, que, na noite em que Voldemort retomou seu
corpo, ele tinha feito uma afirmação alarmante e muito esclarecedora aos Comensais da Morte:
'Eu que cheguei mais longe do que qualquer outro no caminho que leva à imortalidade.' Foram
essas as palavras que você me relatou. 'Mais longe do que qualquer outro.' E pensei ter entendido
o que isto queria dizer, embora os Comensais da Morte não tenham. Ele estava se referindo às
suas Horcruxes, no plural, Harry, o que acredito que nenhum outro bruxo jamais tenha possuído.
Contudo, se encaixava perfeitamente: com a passagem do tempo, Lord Voldemort parecia ter se
tornado menos humano, e as transformações que ele sofrera só me pareciam explicáveis se sua
alma estivesse mutilada além da esfera do que chamaríamos de maldade normal..."
— Então ele se tornou imperecível matando outras pessoas? — perguntou Harry. — Por que
ele não fez uma Pedra Filosofal, ou roubou uma, se estava tão interessado na imortalidade?
— Bem, sabemos que foi exatamente isto que ele tentou fazer, cinco anos atrás — afirmou
Dumbledore. — Mas há várias razões pelas quais, em minha opinião, a Pedra Filosofal seria
menos desejável por Lord Voldemort do que Horcruxes.
"Embora o Elixir da Vida de fato prolongue a vida, precisa ser tomado regularmente, para
sempre, se quem o beber quiser conservar a imortalidade. Portanto, Voldemort ficaria
inteiramente dependente do Elixir, mas, se ele se esgotasse ou fosse contaminado, ou se a Pedra
fosse roubada, Voldemort morreria como qualquer outro homem. Lembre-se de que ele gosta de
agir sozinho. Acredito que teria achado a idéia de depender, ainda que fosse do Elixir, intolerável.
Naturalmente estava disposto a bebê-lo, se isso o livrasse da semi-vida a que tinha sido
condenado depois que atacou você, apenas para recuperar um corpo. A partir daí, estou
convencido de que ele pretendia continuar a depender de suas Horcruxes: nada mais seria
necessário, se ao menos pudesse recuperar a forma humana. Já era imortal, entende... ou quase
tão imortal quanto um homem pode ser.
"Mas agora, Harry, munido desta informação, a lembrança crucial que você conseguiu obter
para nós, estamos mais próximos do segredo para liquidar Lord Voldemort do que alguém já
esteve antes. Você ouviu o que ele disse, Harry: 'Não seria melhor, fortaleceria mais a pessoa, se
ela dividisse a alma em várias partes... sete não é o número mágico mais poderoso... Sete não é o
número mágico mais poderoso?' Sim, acho que a idéia de uma alma em sete partes agradaria
muito a Lord Voldemort."
— Ele fez sete Horcruxes? — questionou Harry, horrorizado, enquanto vários retratos nas
paredes soltaram exclamações semelhantes, de susto e indignação. — Mas elas poderiam estar em
qualquer parte do mundo... escondidas... enterradas ou invisíveis...
— Fico satisfeito que você avalie a amplitude do problema — disse Dumbledore
calmamente. — Mas, primeiro, não, Harry, não são sete Horcruxes: são seis. A sétima parte da
alma, por mais desfigurada que esteja, habita o seu corpo regenerado. Foi a parte dele que viveu
uma existência espectral por tantos anos durante o seu exílio; sem essa, ele não possui eu algum.
Essa sétima parte é a última que quem quiser matar Lord Voldemort deverá atacar: a parte que
vive em seu corpo.
— Mas as seis Horcruxes, então — perguntou Harry meio desesperado —, como é que
vamos encontrá-las?
— Está esquecendo... você já destruiu uma. E eu destruí outra.
— Foi? — perguntou o garoto ansioso.
— Sem dúvida — respondeu Dumbledore, erguendo a mão escura, que parecia queimada.
— O anel, Harry. O anel de Servolo. E também uma terrível maldição que havia nele. Se não
fosse, me desculpe a aparente falta de modéstia, a minha prodigiosa habilidade e a oportuna
intervenção do professor Snape quando retornei a Hogwarts, desesperadamente ferido, eu não
teria sobrevivido para contar a história. Contudo, a mão murcha não me parece um preço
exorbitante a pagar por um sétimo da alma de Voldemort. O anel deixou de ser uma Horcrux.
— Mas como foi que o senhor descobriu?
— Bem, como você sabe, faz muitos anos que me incumbi de descobrir o máximo possível
sobre o passado de Voldemort. Viajei extensamente, visitando os lugares que ele conheceu.
Encontrei, por acaso, o anel escondido nas ruínas da casa de Gaunt. Parece que, ao conseguir
encerrar uma parte de sua alma no anel, ele não quis mais usá-lo. Escondeu-o, protegido por
vários encantamentos poderosos, no casebre em que seus antepassados tinham vivido (Morfino já
fora levado para Azkaban, é claro), sem nunca suspeitar que eu pudesse um dia me dar ao
trabalho de visitar a ruína, ou estar atento a vestígios de ocultamente mágico.
"No entanto, não devemos nos felicitar com excessivo entusiasmo. Você destruiu o diário e,
eu, o anel, mas, se estivermos certos em nossa teoria de uma alma dividida em sete partes, restam
quatro Horcruxes."
— E elas poderiam ser qualquer coisa? Poderiam ser latas velhas ou, sei lá, frascos de
poções vazios...?
— Você está pensando em Chaves de Portal, Harry, que devem ser objetos comuns, que não
chamem atenção. Mas Lord Voldemort usaria latas ou velhos frascos de poção para guardar sua
preciosa alma? Você está esquecendo o que lhe mostrei. Lord Voldemort gostava de colecionar
troféus, e preferia objetos com uma convincente história mágica. Seu orgulho, sua crença na
própria superioridade, sua determinação de abrir para si um lugar surpreendente na história da
magia; tudo isto me sugere que Voldemort escolheria suas Horcruxes com algum cuidado,
favorecendo objetos que merecessem tal honra.
— O diário não era tão especial assim.
— O diário, como você mesmo disse, provava que ele era o herdeiro de Slytherin; tenho
certeza de que Voldemort considerava isto de extraordinária importância.
— E as outras Horcruxes? O senhor acha que sabe o que são?
— Só posso imaginar — respondeu Dumbledore. — Pelas razões que já lhe dei, acredito
que Lord Voldemort daria preferência a objetos que, em si, possuíssem certo esplendor. Portanto,
repassei a vida de Voldemort procurando provas do desaparecimento de certos artefatos à sua
volta.
— O medalhão! — exclamou Harry em voz alta. — A taça de Hufflepuff!
— Certo — disse Dumbledore sorrindo. — Eu estaria pronto a apostar, talvez não a minha
outra mão, mas uns dois dedos, que esses foram transformados nas Horcruxes três e quatro. As
duas restantes, presumindo mais uma vez que ele tenha criado seis totais, são mais problemáticas,
mas eu arriscaria o palpite de que, uma vez que obteve objetos de Hufflepuff e Slytherin, ele saiu
em busca de outros que tivessem pertencido a Gryffindor ou Ravenclaw. Estou certo de que
quatro objetos dos quatro fundadores teriam exercido uma forte atração na imaginação de
Voldemort. Não sei dizer se ele conseguiu achar alguma coisa de Ravenclaw. Atrevo-me a
afirmar, porém, que a única relíquia conhecida de Gryffindor continua a salvo.
Dumbledore apontou os dedos escuros para a parede às suas costas, onde uma espada
incrustada de rubis descansava em uma caixa de vidro.
— O senhor acha que essa é a verdadeira razão por que ele queria voltar a Hogwarts: para
tentar encontrar alguma coisa de um dos outros fundadores?
— Exatamente o que pensei. Mas, infelizmente, isso não nos leva muito longe, porque ele
foi recusado, ou assim acredito, sem ter tido oportunidade de dar uma busca na escola. Sou
forçado a concluir que ele nunca satisfez a sua ambição de colecionar objetos dos quatro fundadores.
Inegavelmente possuía dois, talvez tenha encontrado um terceiro, isto é o melhor que
podemos afirmar por ora.
— Mesmo que ele tenha encontrado alguma coisa de Ravenclaw ou de Gryffindor, ainda
falta a sexta Horcrux — disse Harry, contando nos dedos. — A não ser que tenha conseguido as
duas?
— Creio que não — replicou Dumbledore. — Acho que sei qual é a sexta Horcrux. Fico
imaginando o que você dirá se eu confessar que há algum tempo sinto curiosidade pelo
comportamento da cobra Nagini.
— A cobra? — espantou-se Harry. — Pode-se usar animais como Horcruxes?
— Bem, não é aconselhável fazer isso, porque confiar uma parte da alma a algo que pode
pensar e se locomover, obviamente, é muito arriscado. Contudo, se o meu cálculo estiver correto,
faltava a Voldemort pelo menos uma Horcrux para completar as seis que pretendia, quando
entrou na casa de seus pais com a intenção de matar você.
"Ele parece ter reservado o processo de criar Horcruxes a mortes particularmente
significantes. Você certamente estaria neste caso. Ele acreditava que matando-o eliminaria o
perigo descrito na profecia. Acreditava que se tornaria invencível. Tenho certeza de que pretendia
fazer a última Horcrux com a sua morte.
"Sabemos que ele fracassou. Mas, depois de um intervalo de alguns anos, Voldemort usou
Nagini para matar um velho trouxa e talvez lhe ocorresse transformá-la em sua última Horcrux. A
cobra enfatiza a ligação com Slytherin, que, por sua vez, realça a mística de Lord Voldemort.
Acho que ele talvez goste tanto dela quanto é capaz de gostar de alguma coisa; sem dúvida gosta
de mantê-la por perto, e parece exercer um controle incomum sobre ela, até mesmo para um
ofidioglota."
— Então — disse Harry —, o diário já foi, o anel também. A taça, o medalhão e a cobra
continuam intactos, e o senhor acha que talvez haja uma Horcrux que, no passado, pertenceu a
Ravenclaw ou Gryffindor?
— Um resumo admiravelmente sucinto e exato — aprovou Dumbledore, inclinando a
cabeça.
— Então... o senhor ainda está procurando as Horcruxes? É atrás delas que o senhor tem ido
quando se ausenta da escola?
— Correto. Faz muito tempo que as procuro. Acho... talvez... eu esteja próximo de
encontrar mais uma. Há sinais promissores.
— E se encontrar — perguntou Harry ligeiro —, posso ir com o senhor e ajudá-lo a se livrar
dela?
Dumbledore fitou Harry atentamente por um momento antes de responder:
— Acho que sim.
— Posso? — exclamou Harry muito surpreso.
— Pode — confirmou o diretor, com um leve sorriso. — Acho que você conquistou esse
direito.
Harry criou ânimo novo. Era muito bom não ouvir palavras acautelatórias e protetoras, para
variar. Os diretores e diretoras nas paredes pareceram menos impressionados com a decisão de
Dumbledore; Harry viu alguns deles balançarem negativamente a cabeça e Fineus Nigellus rir
pelo nariz.
— Voldemort sabe quando uma Horcrux é destruída, senhor? É capaz de sentir? —
perguntou Harry, não dando atenção aos quadros.
— Uma pergunta muito interessante, Harry. Acredito que não. Acredito que Voldemort
esteja tão impregnado de maldade, e essas partes essenciais tenham sido destacadas dele há tanto
tempo, que ele não sinta como nós. Talvez, quando estiver à beira da morte, ele tome consciência
de sua perda... mas ele não percebeu, por exemplo, que o diário tinha sido destruído até obrigar
Lúcio Malfoy a confessar a verdade. Quando Voldemort descobriu que o diário fora mutilado e
perdera todos os poderes, me contaram que foi horrível presenciar a sua cólera.
— Mas pensei que ele queria que Lúcio Malfoy trouxesse o diário para Hogwarts.
— É verdade, ele quis quando estava certo de que poderia criar mais Horcruxes; mas, ainda
assim, Lúcio devia aguardar uma ordem dele que jamais chegou, porque Voldemort desapareceu
pouco depois de lhe entregar o diário. Sem dúvida, ele achou que Lúcio Malfoy não se atreveria a
fazer nada com a Horcrux exceto guardá-la com cuidado, mas ele confiou demais no medo que
Lúcio teria de um senhor ausente havia anos e que Lúcio pensava estar morto. Naturalmente,
Lúcio não sabia o que era aquele diário. Pelo que sei, Voldemort tinha lhe dito que o diário faria a
Câmara Secreta reabrir, porque fora engenhosamente encantado. Se Lúcio soubesse que tinha em
mãos uma porção da alma do seu senhor sem dúvida a teria tratado com maior respeito; ao invés,
ele deu prosseguimento ao plano antigo para seus próprios fins: ao plantar o diário na filha de
Arthur Weasley, ele esperava desacreditar Arthur, me ver demitido de Hogwarts e se livrar de um
objeto muito incriminador de um único golpe. Ah, coitado do Lúcio... com a fúria de Voldemort
por ele ter se desfeito da Horcrux para seu lucro pessoal e o fiasco do ano passado no Ministério,
eu não me surpreenderia se, no momento, ele estivesse secretamente feliz de se ver seguro em
Azkaban.
Harry ficou pensativo por um momento, então perguntou:
— Então, se todas as Horcruxes fossem destruídas, Voldemort poderia ser morto?
— Acho que sim — respondeu Dumbledore. — Sem as Horcruxes, Voldemort será um
homem mortal, com uma alma mutilada e diminuída. Mas não se esqueça jamais que, embora a
alma dele esteja irrecuperavelmente danificada, seu cérebro e seus poderes mágicos permanecem
intactos. Serão necessários perícia e poder incomuns para matar um bruxo como Voldemort,
mesmo sem as Horcruxes.
— Mas eu não tenho perícia e poder incomuns — protestou Harry, sem conseguir se refrear.
— Tem, sim — disse Dumbledore com firmeza. — Você tem um poder que Voldemort
nunca teve. Você pode...
— Eu sei! — interpôs Harry impaciente. — Sou capaz de amar! — E foi com extrema
dificuldade que deixou de acrescentar: "Grande coisa!"
— É, Harry, você é capaz de amar — replicou Dumbledore, que parecia saber perfeitamente
o que Harry acabara de calar. — O que, considerando tudo que lhe aconteceu, é um sentimento
poderoso e notável. Você ainda é jovem demais, Harry, para compreender a pessoa extraordinária
que você é.
— Então, quando a profecia diz que terei "um poder que o Lorde das Trevas desconhece",
quer dizer apenas... amor? — perguntou Harry, um pouco desapontado.
— Isso mesmo... apenas amor. Mas, Harry, nunca esqueça que os dizeres da profecia só têm
significação porque Voldemort fez com que tivessem. Eu lhe disse isto no final do ano passado.
Voldemort destacou você como a pessoa que ofereceria maior perigo para ele; e, ao fazer isso,
transformou-o na pessoa que ofereceria maior perigo para ele!
— Mas isto acaba dando no...
— Não, não acaba! — disse Dumbledore, agora parecendo impaciente. E, apontando a mão
escura e murcha para Harry: — Você está valorizando demais a profecia!
— Mas — engrolou Harry —, mas o senhor falou que a profecia quer dizer...
— Se Voldemort nunca tivesse sabido da profecia, será que ela teria se cumprido? Será que
teria tido alguma significação? Claro que não! Você acha que todas as profecias na Sala da
Profecia se cumpriram?
— Mas — replicou Harry aturdido —, mas no ano passado o senhor falou que um de nós
teria de matar o outro...
— Harry, Harry, só porque Voldemort cometeu um grave erro e agiu segundo as palavras da
professora Trelawney! Se ele nunca tivesse matado seu pai, será que teria despertado em você um
furioso desejo de vingança? Claro que não! Se ele não tivesse forçado sua mãe a morrer por você,
será que teria lhe conferido uma proteção mágica que ele não poderia penetrar? Claro que não,
Harry. Você não está entendendo? O próprio Voldemort criou seu pior inimigo, como fazem os
tiranos em todo o mundo! Você tem idéia do medo que os tiranos sentem do povo que eles
oprimem? Todos eles percebem que, um dia, entre suas muitas vítimas, com certeza haverá uma
que se rebelará e revidará! Voldemort não é diferente! Ele sempre esteve atento ao aparecimento
daquele que o desafiaria. Ele soube da profecia e entrou imediatamente em ação, e, em
conseqüência, não apenas escolheu o homem com maior probabilidade de liquidá-lo, mas lhe deu
armas singularmente letais!
— Mas...
— É essencial que você compreenda o que ocorreu! — disse Dumbledore se erguendo e
começando a andar pelo escritório, suas vestes fulgurantes farfalhando a cada passo; Harry nunca
o vira tão agitado. — Ao tentar matá-lo, Voldemort destacou a pessoa notável que está sentada à
minha frente e lhe deu os instrumentos para a tarefa! É culpa de Voldemort que você seja capaz
de ler seus pensamentos, suas ambições, e até mesmo que você entenda a linguagem das cobras
em que ele transmite suas ordens; contudo, Harry, apesar da visão privilegiada que você tem do
mundo dele (que, por sinal, é uma dádiva que qualquer Comensal da Morte mataria para ter),
você nunca se deixou seduzir pelas Artes das Trevas, nunca, nem por um segundo, manifestou o
menor desejo de se tornar um dos seguidores de Voldemort!
— Claro que não! — confirmou Harry indignado. — Ele matou os meus pais!
— Resumindo, você está protegido por sua capacidade de amar! —disse Dumbledore em
voz alta. — A única proteção eficaz contra a fascinação por um poder como o de Voldemort!
Apesar de todas as tentações que você suportou, de todo o sofrimento, o seu coração permanece
puro, tão puro quanto era aos onze anos, quando você se mirou no espelho que refletia o maior
desejo de seu coração, e ele lhe mostrou apenas o caminho para frustrar Lord Voldemort em vez
de imortalidade ou riqueza. Harry, você faz idéia de como são raros os bruxos que poderiam ter
visto o que você viu naquele espelho? Voldemort deveria ter percebido, então, com quem estava
lidando, mas não percebeu!
"Mas ele agora sabe. Você perpassou a mente de Lord Voldemort sem sofrer o menor dano,
mas ele não pode possuir a sua sem sofrer uma agonia mortal, como descobriu no Ministério.
Acho que ele não compreende por quê, Harry, ele teve tanta pressa de mutilar a própria alma, que
nem sequer parou para compreender o poder incomparável de uma alma imaculada e inteira."
— Mas, senhor — disse Harry, fazendo valentes esforços para não parecer que argumentava
—, no final dá tudo no mesmo, não? Eu tenho de tentar matá-lo ou...
— Tem? — perguntou Dumbledore. — Claro que tem! Mas não por causa da profecia! Mas
porque você, no íntimo, jamais descansará enquanto não tentar! Nós dois sabemos disso!
Imagine, por favor, apenas por um momento que você nunca tivesse sabido daquela profecia!
Quais seriam os seus sentimentos com relação a Voldemort agora? Pense!
Harry ficou observando Dumbledore andar para lá e para cá à sua frente, e pensou. Pensou
em sua mãe, em seu pai e em Sirius. Pensou em Cedrico Diggory. Pensou em todos os terríveis
feitos de Lord Voldemort que conhecia. Uma labareda pareceu saltar do seu peito e queimar sua
garganta.
— Eu iria querer que Voldemort fosse liquidado. E iria querer fazer isso pessoalmente.
— Claro que sim! — exclamou Dumbledore. — A profecia não significa que você tem de
fazer nada, entende! Mas a profecia levou Lord Voldemort a marcá-lo como seu igual... em outras
palavras, você é livre para escolher o próprio caminho, livre para dar as costas à profecia!
Voldemort, no entanto, continua a valorizar a profecia. E continuará a persegui-lo... o que de,
fato, transforma em certeza que...
— Que um de nós vai acabar matando o outro — completou Harry. — Eu sei.
Mas ele finalmente entendeu o que Dumbledore estivera tentando lhe dizer. Era, pensou
Harry, a diferença entre ser arrastado para a arena para enfrentar uma luta mortal e entrar na arena
de cabeça erguida. Algumas pessoas diriam, talvez, que a escolha era mínima, mas Dumbledore
sabia — e eu também, pensou Harry, com súbito orgulho, bem como meus pais — que aí residia
toda a diferença do mundo.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
SECTUMSEMPRA
EXAUSTO, MAS FELIZ, com o trabalho daquela noite, Harry contou tudo o que acontecera a
Rony e Hermione durante a aula de Feitiços na manhã seguinte (tendo primeiro lançado o feitiço
Abaffiato sobre os colegas que estavam mais próximos). Os dois ficaram bem impressionados
com o modo com que ele extraíra a memória de Slughorn, e decididamente assombrados com o
seu relato sobre as Horcruxes de Voldemort e a promessa de Dumbledore de levá-lo em sua
companhia, se encontrasse outra.
— Uau — exclamou Rony, quando o amigo finalmente terminou de contar tudo; Rony acenava
com a varinha em direção ao teto, sem prestar a mínima atenção ao que estava fazendo. — Uau.
Você vai realmente acompanhar Dumbledore... e tentar destruir... uau.
— Rony, você está fazendo nevar — avisou Hermione, pacientemente, agarrando o pulso do
garoto e desviando sua varinha do teto, de onde, de fato, tinham começado a cair grandes flocos
de neve. Harry notou que Lilá Brown, de uma das mesas vizinhas, observava Hermione com
raiva e olhos muito vermelhos, e que Hermione largou imediatamente o braço de Rony.
— Ah, é — exclamou Rony, olhando para seus ombros vagamente surpreso. —
Desculpem... parece que agora todos estamos com uma caspa horrível...
Ele espanou um pouco da falsa neve dos ombros de Hermione. Lilá caiu no choro. Rony
pareceu sentir uma imensa culpa e deu as costas para a garota.
— Nós terminamos — disse ele a Harry pelo canto da boca. — Na noite passada. Quando
me viu saindo do dormitório com a Hermione. Obviamente, ela não pôde ver você, então pensou
que estávamos sozinhos.
— Ah — exclamou Harry. — Bem... você não está ligando para isso, está?
— Não — admitiu Rony. — Foi bem chato ouvir os gritos dela, mas pelo menos eu não
precisei terminar.
— Covarde — disse Hermione, embora parecesse achar graça. — Bem, foi uma noite ruim
para os namoros em geral. Gina e Dino também terminaram, Harry.
Harry achou que havia uma expressão de entendimento nos olhos de Hermione ao dizer
aquilo, mas era impossível que ela soubesse que suas entranhas repentinamente começaram a
dançar uma conga; mantendo os músculos do rosto imóveis e a voz o mais indiferente possível,
ele perguntou:
— Por quê?
— Ah, por uma coisa realmente boba... Gina falou que ele estava sempre querendo ajudar
na hora de passar pelo buraco do retrato, como se ela não soubesse subir sozinha... mas o namoro
já estava balançando há um tempão.
Harry olhou para Dino do lado oposto da sala de aula. Certamente o garoto parecia muito
infeliz.
— Claro que isto deixa você num dilema, não é?
— Como assim? — perguntou Harry imediatamente.
— A equipe de quadribol. Se Gina e Dino não estão se falando...
— Ah... ah, é — concordou Harry.
— Flitwick — alertou Rony. O minúsculo professor de Feitiços vinha saltitando em direção
a eles, e Hermione era a única que conseguira transformar vinagre em vinho; seu balão de ensaio
estava cheio de um líquido muito vermelho, enquanto os de Harry e Rony continuavam castanhoturvos.
— Vamos, vamos, rapazes — censurou-os o professor Flitwick com sua voz fininha. —
Menos conversa e um pouco mais de ação... quero ver vocês experimentarem.
Juntos, eles ergueram as varinhas, concentrando-se ao máximo, e apontaram-nas para os
balões. O vinagre de Harry virou gelo; o balão de Rony explodiu.
— Então... para casa... — disse o professor Flitwick, saindo de baixo da mesa e tirando
estilhaços de vidro do chapéu — praticar.
Os três amigos tiveram um dos seus raros períodos livres em comum depois de Feitiços, e
voltaram juntos para a sala comunal.
Rony parecia estar positivamente descontraído com o fim do seu relacionamento com Lilá, e
Hermione também parecia animada, embora, quando lhe perguntassem por que estava sorrindo,
ela respondesse simplesmente: "Está fazendo um belo dia." Nenhum dos dois parecia notar que
uma feroz batalha devastava o cérebro de Harry.
Ela é irmã do Rony.
Mas ela deu o fora no Dino!
Ela continua sendo irmã do Rony.
Eu sou o melhor amigo dele!
Isso só vai piorar as coisas.
E se eu falasse com ele primeiro...
Ele bateria em você.
E se eu não ligar?
Ele é o seu melhor amigo!
Harry nem reparou que estavam passando pelo buraco do retrato para entrar na ensolarada
sala comunal, e apenas registrou vagamente a rodinha de alunos do sétimo ano até que Hermione
gritou:
— Cátia! Você voltou! Você está o.k.?
Harry arregalou os olhos: era de fato Cátia Bell, parecendo completamente saudável e
cercada por amigos radiantes.
— Estou realmente boa! — disse ela feliz. — Eles me deram alta no St. Mungus na
segunda-feira, passei uns dias em casa com meus pais e voltei para Hogwarts hoje de manhã.
Liane acabou de me contar o que o McLaggen fez no último jogo, Harry...
— É, bem, agora que você já voltou e Rony está em forma, teremos uma chance decente de
dar uma surra na Corvinal, o que significa que ainda poderíamos estar na disputa pela Copa.
Escuta, Cátia...
Harry não pôde esperar para lhe fazer a pergunta; a curiosidade chegou a varrer
temporariamente Gina do seu cérebro. Ele baixou a voz quando os amigos de Cátia começaram a
juntar seus pertences; pelo jeito estavam atrasados para a aula de Transfiguração.
— ... aquele colar... você agora lembra quem lhe deu?
— Não — respondeu Cátia, sacudindo a cabeça pesarosa. — Todo o mundo está me
perguntando, mas não faço a menor idéia. A última coisa de que me lembro é que entrei no
banheiro feminino no Três Vassouras.
— Então, definitivamente você entrou no banheiro? — indagou Hermione.
— Bem, eu sei que abri a porta, então imagino que quem me lançou a Maldição Imperius
estava parado ali atrás. Depois disso, minha memória apagou tudo até as duas últimas semanas no
St. Mungus. Escutem, é melhor eu ir andando, a McGonagall é bem capaz de me passar uma frase
de castigo, mesmo sendo o primeiro dia da minha volta...
Cátia apanhou a mochila e seus livros e correu atrás dos amigos, deixando Harry, Rony e
Hermione se sentarem a uma das mesas junto à janela para pensar no que ela acabara de contar.
— Então deve ter sido uma garota ou uma mulher quem deu o colar a Cátia — arriscou
Hermione —, para estar no banheiro feminino...
— Ou alguém com a aparência de uma garota ou de uma mulher — interpôs Harry. — Não
esqueça que existe um caldeirão de Polissuco em Hogwarts. Sabemos que roubaram um pouco...
Mentalmente, Harry viu um desfile de Crabbes e Goyles passando, todos transformados em
garotas.
— Acho que vou tomar outra dose de Felix — anunciou Harry —, e fazer uma nova
tentativa para entrar na Sala Precisa.
— Isto seria um completo desperdício de poção — disse Hermione taxativamente,
descansando o exemplar do Silabário de Spellman que acabara de retirar da mochila. — A sorte
só pode levar uma pessoa até certo ponto, Harry. A situação com Slughorn foi diferente; você
sempre teve habilidade para convencer o professor, só precisou dar um empurrãozinho nas
circunstâncias. Mas não basta sorte para você passar por um poderoso encantamento. Não gaste à
toa o resto da sua poção! Vai precisar de toda a sorte que puder arranjar, se Dumbledore levar
mesmo você com ele... — Sua voz transformou-se num sussurro.
— Será que não podíamos preparar mais um pouco? — Rony perguntou a Harry ignorando
Hermione. — Seria o máximo ter um estoque de poção... dê uma olhada no livro...
Harry apanhou seu exemplar de Estudos avançados no preparo de poções na mochila e
procurou a Felix Felicis.
— Caramba, é a maior complicação — exclamou, correndo os olhos pela lista de
ingredientes. — E leva seis meses... é preciso deixar cozinhar em fogo lento...
— Só podia ser — comentou Rony.
Harry ia guardando o livro de novo quando notou o canto de página dobrado; abrindo-a, viu
o feitiço Sectumsempra, com a legenda
"Para inimigos", que ele marcara algumas semanas antes. Ainda não descobrira para que
servia, principalmente porque não queria testá-lo perto de Hermione, mas estava pensando em
experimentar em McLaggen da próxima vez que encontrasse o garoto de costas, distraído.
A única pessoa que não ficou muito feliz ao ver Cátia Bell voltar à escola foi Dino Thomas,
porque não precisaria mais substituí-la como artilheiro. Ele suportou o golpe estoicamente
quando Harry lhe deu a notícia, limitando-se a resmungar e sacudir os ombros, mas Harry teve a
nítida impressão, ao se afastar, de que Dino e Simas estavam reclamando, inconformados, às suas
costas.
A quinzena seguinte registrou os melhores treinos de quadribol que Harry conhecera como
capitão. Sua equipe estava tão satisfeita de se livrar de McLaggen, tão contente de ter Cátia
finalmente de volta, que todos estavam voando excepcionalmente bem.
Gina não parecia nem um pouco chateada com o fim do namoro com Dino; pelo contrário,
era a vida e a alma da equipe. Suas imitações de Rony, subindo e descendo na frente das balizas
quando a goles vinha em sua direção, ou de Harry, berrando ordens a McLaggen antes de ser
nocauteado, divertiam constantemente os jogadores. Harry, rindo com os outros, ficava satisfeito
de ter um motivo inocente para olhar Gina; ele recebera outros tantos balaços durante os treinos
porque não estava mantendo os olhos no pomo.
A batalha continuava a devastar o seu cérebro: Gina ou Rony? Por vezes, ele achava que o
Rony pós-Lilá talvez não se importasse tanto se ele convidasse Gina para sair, então se lembrava
da expressão do amigo quando vira a irmã beijando Dino, e tinha certeza de que Rony
consideraria uma vil traição se ele sequer segurasse a mão de Gina...
Contudo, Harry não podia deixar de falar com Gina, rir com ela e voltar do treino, caminhando,
com a garota; por mais que sua consciência doesse, ele vivia imaginando a melhor maneira de
encontrá-la a sós: o ideal teria sido Slughorn dar uma de suas festinhas, onde Rony não estaria
por perto. Infelizmente, o professor parecia ter desistido das reuniões. Uma ou duas vezes, Harry
considerou pedir a ajuda de Hermione, mas achou que não agüentaria o ar de presunção que veria
no rosto da amiga; pensou já tê-lo visto quando Hermione o surpreendia olhando para Gina ou
rindo de suas brincadeiras. E, para complicar, havia a preocupação insistente de que, se não a
convidasse, logo alguém certamente o faria: pelo menos, ele e Rony estavam de acordo que Gina
era popular demais para seu próprio bem.
De um modo geral, a tentação de tomar outro gole de Felix Felicis tornava-se mais forte a
cada dia que passava, porque, sem dúvida, este era um caso, segundo dissera Hermione, de "dar
um empurrãozinho nas circunstâncias", não? Os dias mornos e agradáveis foram desfilando
mansamente pelo mês de maio, e Rony parecia estar colado em seu ombro toda vez que ele via
Gina. Harry viu-se desejando um feliz acaso que fizesse Rony perceber que nada lhe agradaria
mais do que seu melhor amigo e sua irmã se apaixonarem e deixar os dois sozinhos por mais do
que uns poucos segundos. Parecia, no entanto, não haver chance de nada disso acontecer nas
vésperas da última partida de quadribol da temporada; Rony queria discutir táticas com Harry o
tempo todo, e praticamente não pensava em outra coisa.
Neste particular, Rony não era original; o interesse pela partida Grifinória-Corvinal
aumentava extraordinariamente em toda a escola, porque o confronto decidiria o campeonato, que
continuava em aberto. Se a Grifinória vencesse a Corvinal por uma margem de trezentos pontos
(uma tarefa difícil, embora Harry nunca tivesse visto sua equipe voar melhor), o campeonato
seria deles. Se vencessem por menos de trezentos pontos, terminariam em segundo lugar, atrás da
Corvinal; se perdessem por uma diferença de até cem pontos, chegariam em terceiro lugar, atrás
da Lufa-Lufa, e, se perdessem por mais de cem pontos, ficariam em quarto lugar e ninguém,
pensava Harry, nunca, jamais o deixaria esquecer que fora o capitão que levara a Grifinória à
lanterna do campeonato nos últimos dois séculos.
Os dias que precederam essa partida crítica apresentaram todos os problemas costumeiros:
os jogadores das Casas rivais tentavam intimidar as equipes adversárias nos corredores; cantavam
refrões grosseiros sobre os jogadores à sua passagem; os membros das equipes se exibiam pela
escola, deliciando-se com as atenções ou correndo ao banheiro nos intervalos das aulas para
vomitar. Por alguma razão, na mente de Harry, o jogo se tornara indissociável do sucesso ou
fracasso de seus planos em relação a Gina. Ele não podia deixar de sentir que, se ganhassem por
mais de trezentos pontos, as cenas de euforia e uma estrondosa comemoração pós-jogo seriam tão
eficazes quanto uma boa dose de Felix Felicis.
Em meio a toda essa preocupação, Harry não se esquecera de sua outra ambição: descobrir o
que Malfoy fazia na Sala Precisa. Ele ainda consultava o Mapa do Maroto e, como muitas vezes
não conseguia localizar o garoto, deduzia que ele ainda passasse um bom tempo na Sala. E,
embora estivesse perdendo a esperança de conseguir um dia entrar ali, sempre que estava nas
vizinhanças fazia nova tentativa; mas, por mais que refraseasse o seu pedido, a parede
permanecia sólida.
Poucos dias antes da partida com a Corvinal, Harry viu-se descendo sozinho da sala
comunal para jantar, Rony saíra correndo outra vez para vomitar no banheiro mais próximo, e
Hermione dera uma fugida para consultar a professora Vector a respeito de um possível erro no
último trabalho de Aritmancia. Mais por hábito do que por outro motivo, Harry fez o desvio
habitual pelo sétimo andar, verificando o Mapa do Maroto enquanto andava. Por um momento,
não conseguiu localizar Malfoy em parte alguma, e presumiu que ele estivesse na Sala Precisa.
Então, viu o pontinho do garoto em um banheiro masculino no andar abaixo, acompanhado, não
de Crabbe ou Goyle, mas da Murta-Que-Geme.
Harry só parou de olhar fixamente para esta improvável parceria quando colidiu em cheio
com uma armadura. O estrondo o despertou do seu devaneio; fugindo da cena antes que Filch
aparecesse, ele desceu correndo a escadaria de mármore e entrou pelo corredor abaixo. Do lado
de fora do banheiro, colou o ouvido à porta. Não conseguiu ouvir nada. Então, empurrou-a
silenciosamente.
Draco Malfoy estava parado de costas, com as mãos apoiadas dos lados da pia e a cabeça
loura curvada.
— Não — murmurou a Murta-Que-Geme, de um dos boxes. — Não... me conte qual é o
problema... posso ajudar você...
— Ninguém pode me ajudar — respondeu Malfoy. Todo o seu corpo tremia. — Não posso
fazer isso... não posso... não vai dar certo... e se eu não fizer logo... ele diz que vai me matar...
E Harry percebeu, com um choque tão colossal que pareceu pregá-lo no chão, que o garoto
estava chorando, realmente chorando, as lágrimas escorriam do seu rosto pálido para a pia
encardida. Malfoy ofegou e engoliu em seco e, então, com um estremeção, olhou para o espelho
rachado e viu Harry encarando-o por cima do seu ombro.
Malfoy girou nos calcanhares puxando a varinha. Instintivamente, Harry sacou a dele. O feitiço
de Malfoy passou a centímetros dele e quebrou um lampião na parede ao seu lado; Harry se atirou
para um lado, mentalizou Levicorpus! e acenou com a varinha, mas Malfoy bloqueou o feitiço e
ergueu a varinha para revidar...
— Não! Não! Parem com isso! — guinchou a Murta-Que-Geme, sua voz ecoando nos
azulejos do banheiro. — Parem! PAREM!
Houve um forte estampido, e a lata de lixo atrás de Harry explodiu; Harry experimentou um
Feitiço das Pernas Presas, que ricocheteou na parede do lado da orelha de Malfoy e partiu a
cisterna embaixo da Murta, fazendo-a berrar; a água vazou para todo lado, e Harry escorregou na
hora em que Malfoy, de rosto contorcido, exclamou:
— Cruci ...
— SECTUMSEMPRA! — urrou Harry do chão, agitando a varinha freneticamente.
O sangue espirrou do rosto e do peito de Malfoy como se ele tivesse sido cortado por uma
espada invisível. Ele recuou, vacilante, e caiu no chão inundado, espalhando água e deixando cair
a varinha da mão direita frouxa.
— Não... — exclamou Harry.
Ele se levantou, escorregando e cambaleando, e se precipitou para Malfoy, cujo rosto agora
brilhava escarlate, suas mãos pálidas apalpavam o peito encharcado de sangue.
— Não... eu não...
Harry não sabia o que estava dizendo; caiu de joelhos ao lado de Malfoy, que tremia,
descontrolado, em uma poça do próprio sangue. A Murta-Que-Geme soltou um urro
ensurdecedor.
— CRIME! CRIME! CRIME NO BANHEIRO! CRIME!
A porta se escancarou e Harry ergueu a cabeça, aterrorizado: Snape invadira o banheiro com
o rosto lívido. Empurrando Harry com violência, ajoelhou-se ao lado de Malfoy, tirou a varinha e
passou-a por cima dos profundos cortes que o feitiço de Harry produzira, murmurando um
encantamento que parecia quase uma canção. O fluxo de sangue pareceu diminuir; Snape limpou
o coágulo do rosto do garoto e repetiu o encantamento. Agora os cortes pareciam estar fechando.
Harry continuava a olhar horrorizado o que fizera, sem se dar conta de que ele também
estava empapado de água e sangue. A Murta-Que-Geme soluçava e gemia. Depois de executar o
contra-feitiço pela terceira vez, Snape ajudou Malfoy a se levantar.
— Você precisa da ala hospitalar. Talvez fiquem muitas cicatrizes, mas, se tomar ditamno
imediatamente, talvez possamos evitar até isso... venha...
Ele amparou Malfoy pelo banheiro, virando-se à porta para dizer com a voz gelada de fúria:
— E você, Potter... você espere por mim aqui.
Nem por um segundo ocorreu a Harry desobedecer. Ergueu-se lentamente, trêmulo, e olhou
para o chão molhado. Havia manchas de sangue boiando como flores carmim à superfície. Ele
nem sequer conseguiu arranjar forças para mandar a Murta-Que-Geme sossegar, pois ela
continuava a chorar e soluçar, com visível e crescente prazer.
Snape voltou dez minutos mais tarde. Entrou no banheiro e fechou a porta ao passar.
— Saia — disse à Murta, e imediatamente ela mergulhou de volta em seu vaso, deixando
um silêncio ressonante à sua saída.
— Não tive intenção — disse Harry na mesma hora. Sua voz ecoou pelo espaço frio e
molhado. — Eu não sabia qual era o efeito daquele feitiço.
Mas Snape fingiu não ouvir.
— Aparentemente eu o subestimei, Potter — disse suavemente. —Quem teria pensado que
você conhecia magia das Trevas? Quem lhe ensinou aquele feitiço?
— Eu... li em algum lugar.
— Onde?
— Foi... num livro da biblioteca — inventou Harry. — Não me lembro do título...
— Mentiroso — retrucou o professor. A garganta de Harry secou. Ele sabia o que Snape ia
fazer, e nunca fora capaz de impedir...
O banheiro pareceu tremeluzir ao seu olhar; ele lutou para bloquear todos os pensamentos,
porém, por mais que tentasse, o exemplar do Estudos avançados no preparo de poções que
pertencia ao Príncipe Mestiço flutuava indistinto para o primeiro plano de sua mente...
E então ele voltara a encarar Snape, no meio do banheiro destruído e encharcado. Fixou os
olhos negros do professor, esperando, desesperado, que não tivesse visto o que ele, Harry,
receava, mas...
— Vá apanhar sua mochila — disse o professor baixinho — e todos os seus livros escolares.
Todos. Traga-os para mim aqui. Agora!
Não adiantava discutir. Harry virou-se prontamente e saiu do banheiro espalhando água. Uma vez
no corredor, começou a correr para a Torre da Grifinória. A maioria das pessoas vinha em direção
contrária; admiravam-se ao vê-lo encharcado de água e sangue, mas ele não respondeu a
nenhuma das perguntas que lhe fizeram quando passou desembalado.
Sentia-se aturdido; era como se um bicho muito estimado tivesse de repente se tornado
feroz. Em que o Príncipe estava pensando ao copiar um feitiço daquele em seu livro? E que
aconteceria quando Snape visse? Será que contaria a Slughorn — o estômago de Harry
embrulhou — como ele obtivera resultados tão bons em Poções o ano inteiro? Será que o
professor confiscaria ou destruiria o livro que lhe ensinara tanta coisa... o livro que se tornara uma
espécie de guia e amigo? Harry não podia deixar isso acontecer... simplesmente não podia...
— Onde é que você...? Por que está todo molhado...? Isso é sangue? Rony estava parado no
alto da escada, espantado de ver o amigo.
— Preciso do seu livro — ofegou Harry. — O seu livro de Poções. Depressa... me dá aqui...
— E o do Príncipe Mestiço?
— Depois eu explico!
Rony tirou o seu exemplar de Estudos avançados no preparo de poções da mochila e
entregou-o ao amigo; Harry disparou de volta à sala comunal. Ali, pegou sua mochila, ignorando
os olhares espantados dos colegas que já haviam terminado de jantar, atirou-se pelo buraco do
retrato e desembestou pelo corredor do sétimo andar.
Parou, derrapando, ao lado da tapeçaria dos trasgos dançarinos, fechou os olhos e começou
a caminhar.
Preciso de um lugar para esconder o meu livro... preciso de um lugar para esconder o meu
livro... preciso de um lugar para esconder o meu livro...
Três vezes ele foi e voltou diante da parede lisa. Quando abriu os olhos, ali estava
finalmente: a porta para a Sala Precisa. Harry escancarou-a, atirou-se para dentro e bateu a porta.
Ficou sem fôlego. Apesar da pressa, do pânico e do medo do que o aguardava no retorno ao
banheiro, não pôde deixar de se assombrar com o que via. Achava-se em uma sala do tamanho de
uma grande catedral, cujas altas janelas lançavam raios de luz sobre uma verdadeira cidade de
elevadas muralhas construídas com objetos, percebia Harry, escondidos por gerações de
habitantes de Hogwarts. Havia travessas e ruas margeadas por pilhas mal equilibradas de móveis
gastos e partidos, guardados, talvez, para esconder provas de magia malfeita, ou então por elfos
domésticos orgulhosos de seus castelos. Havia alguns milhares de livros, sem dúvida, proibidos
ou rabiscados ou roubados. Havia catapultas aladas e Frisbees-dentados, alguns com suficiente
energia para pairar indiferentes sobre montanhas de outros objetos proibidos; havia frascos
lascados com poções congeladas, chapéus, jóias, capas; havia coisas que pareciam cascas de ovos
de dragão, garrafas arrolhadas cujos conteúdos ainda refulgiam malignamente, várias espadas
enferrujadas e um machado sujo de sangue.
Harry avançou ligeiro por uma das muitas travessas entre tantos tesouros escondidos. Virou
à direita depois de um enorme trasgo empalhado, correu uma pequena distância, embicou para a
esquerda junto ao Armário Sumidouro quebrado, onde Montague se perdera no ano anterior, e
finalmente parou em frente a um grande armário que dava a impressão de ter recebido ácido em
sua superfície cheia de bolhas. Ele abriu uma das portas emperradas do armário: já fora usada
como esconderijo para algum bicho engaiolado que morrera muito tempo atrás; o esqueleto tinha
cinco pernas. Ele enfiou o livro do Príncipe Mestiço atrás da gaiola e bateu a porta. Parou um
instante, com o coração barbaramente acelerado, e correu o olhar pela montoeira... será que
conseguiria reencontrar este lugar no meio de todo esse lixo? Apanhando o busto lascado de um
bruxo velho e feio de cima de um caixote próximo, colocou-o no alto do armário em que
escondera o livro, encarrapitou uma velha peruca empoeirada e uma tiara oxidada na cabeça da
estátua para poder distingui-la, então voltou correndo pelas travessas de guardados o mais rápido
que pôde, refez o caminho até a porta, saiu e, ao batê-la, às suas costas, viu-a transformar-se mais
uma vez em pedra.
Harry correu sem parar em direção ao banheiro do andar abaixo, enfiando o exemplar de
Rony de Estudos avançados no preparo de poções na mochila, enquanto corria. Um minuto
depois, estava novamente diante de Snape, que estendeu a mão em silêncio para receber a
mochila de Harry. O garoto entregou-a, ofegando, sentindo uma dor ardida no peito, e aguardou.
Snape tirou os livros de Harry, um a um, e examinou-os. Por fim, restou apenas o livro de
poções, que ele olhou muito atentamente antes de perguntar:
— Este é o seu exemplar de Estudos avançados no preparo de poções, é, Potter?
— É — respondeu Harry, ainda respirando com esforço.
— Você tem certeza, não é, Potter?
— Tenho — respondeu o garoto em tom mais atrevido.
— Este é o exemplar de Estudos avançados no preparo de poções que você comprou na
Floreios e Borrões?
— É — respondeu ele com firmeza.
— Então, por que tem o nome "Roonil Wazlib" escrito na segunda capa?
O coração de Harry parou um instante.
— Esse é o meu apelido.
— Seu apelido — repetiu Snape.
— E... é assim que meus amigos me chamam.
— Eu sei o que é um apelido. — Os olhos frios e escuros de Snape perfuravam mais uma
vez os de Harry; o garoto tentou não encarar os do professor. Feche sua mente... feche sua
mente... mas ele nunca aprendera a fazer isso direito...
— Você sabe o que eu acho, Potter? — disse Snape, muito calmamente. — Acho que você é
um mentiroso e um trapaceiro, e merece ficar detido comigo todos os sábados até o final do
trimestre. Que é que você acha, Potter?
— Eu... eu não concordo, senhor — disse Harry, ainda se recusando a encarar Snape nos
olhos.
— Bem, veremos o que sente depois de suas detenções. Dez horas, sábado de manhã, Potter.
Meu escritório.
— Mas, senhor... — protestou Harry, erguendo os olhos desesperado. — Quadribol... o
último jogo da...
— Dez horas — sussurrou Snape, com um sorriso que revelou seus dentes amarelados. —
Coitada da Grifinória... a lanterna deste ano, receio que seja...
E saiu do banheiro sem dizer mais nada, deixando Harry diante do espelho partido,
sentindo-se mais enjoado do que Rony jamais se sentira na vida, disto ele tinha plena certeza.
— Não vou dizer "Eu bem que disse" — lembrou Hermione, uma hora depois na sala
comunal.
— Não encarna, Hermione — retrucou Rony com raiva.
Harry não chegara a tempo para jantar; não sentia fome alguma. Acabara de contar a Rony,
Hermione e Gina o que acontecera, não que isso fosse necessário. As notícias tinham corrido
muito rápido: aparentemente a Murta-Que-Geme se encarregara de aparecer em cada banheiro do
castelo para contar a história; Malfoy já fora visitado na ala hospitalar por Pansy Parkinson, que
não perdera tempo e saíra difamando Harry por toda a escola, e Snape informara aos professores
exatamente o que acontecera: Harry já fora chamado na sala comunal para enfrentar quinze
minutos extremamente desagradáveis na presença da professora McGonagall, que lhe dissera que
tinha sorte em não ser expulso, e que ela apoiava integralmente a decisão de detê-lo todos os
sábados até o fim do trimestre.
— Eu disse que tinha alguma coisa errada com aquele tal Príncipe — comentou Hermione,
evidentemente incapaz de se conter. — E tinha razão, não é?
— Não, acho que não — teimou Harry.
Ele já estava se sentindo péssimo sem os sermões de Hermione, a cara dos jogadores da
Grifinória quando ele contou que não poderia jogar no sábado fora o pior castigo. Sentia o olhar
de Gina agora, mas evitou-o; não queria ver nele desapontamento nem raiva. Acabara de lhe dizer
que ia jogar de apanhadora no sábado, e que Dino voltaria à equipe, no lugar dela, como
artilheiro. Talvez, se a Grifinória vencesse, Gina e Dino fizessem as pazes durante a euforia pósjogo...
a idéia atravessou a mente de Harry como uma faca gelada...
— Harry — recomeçou Hermione —, como você ainda pode defender aquele livro quando
o feitiço...
— Quer parar de falar naquele livro? — retrucou Harry. — O Príncipe apenas copiou o
feitiço! Não é o mesmo que aconselhar alguém a usar! E, pelo que sabemos, ele podia até estar
anotando uma coisa que foi usada contra ele.
— Eu não acredito — exclamou Hermione. — Você está mesmo defendendo...
— Não estou defendendo o que fiz! — protestou Harry imediatamente. — Gostaria de não
ter feito, e não só porque recebi uma tonelada de detenções. Você sabe que eu não teria usado um
feitiço daqueles, nem mesmo contra o Malfoy, mas você não pode culpar o Príncipe, ele não
escreveu "Experimente este, é realmente bom"... eram anotações pessoais, não é? Não era para
mais ninguém...
— Você está me dizendo — perguntou Hermione — que você vai voltar...?
— Para apanhar o livro? Vou — disse Harry com energia. — Escuta aqui, sem o Príncipe eu
jamais teria ganhado a Felix Felicis. Jamais saberia como salvar Rony do envenenamento,
jamais...
— ... conquistaria a reputação de gênio em Poções que não merece — concluiu Hermione
maldosamente.
— Dá um tempo, Hermione! — exclamou Gina, e Harry ficou tão admirado, tão agradecido,
que ergueu a cabeça. — Pelo jeito, Malfoy estava tentando usar uma Maldição Imperdoável, você
devia ficar feliz que Harry tivesse um trunfo na manga!
— Bem, é claro que estou contente que Harry não tenha sido amaldiçoado! — respondeu
Hermione, visivelmente ofendida —, mas você não pode dizer que aquele Sectumsempra é um
trunfo, Gina, olhe só a confusão em que meteu o Harry! E eu imaginaria, vendo as conseqüências
para suas chances no jogo...
— Ah, não começa a agir como se entendesse de quadribol — respondeu Gina com
aspereza —, você só vai se complicar.
Harry e Rony olharam espantados: Hermione e Gina, que sempre tinham se dado tão bem, agora
estavam sentadas de braços cruzados e cara amarrada, olhando em direções opostas. Rony lançou
um olhar nervoso para Harry, então apanhou um livro qualquer e se escondeu atrás dele. Harry,
embora soubesse que não merecia, sentiu, de repente, uma inacreditável animação, embora
nenhum deles voltasse a falar o resto da noite.
Sua animação durou pouco. Teve de aturar insultos dos alunos da Sonserina no dia seguinte,
sem falar na raiva dos colegas da Grifinória, que se sentiam infelicíssimos que o seu capitão
tivesse provocado a própria suspensão do jogo de final da temporada. Quando chegou a manhã de
sábado, apesar do que ele pudesse ter dito a Hermione, Harry teria trocado de boa vontade toda a
Felix Felicis do mundo para estar a caminho do campo de quadribol com Rony, Gina e os outros.
Foi quase insuportável dar as costas à massa de estudantes que saía para o sol, todos usando
rosetas e chapéus e agitando estandartes e echarpes, e descer a escada de pedra para as masmorras
e ir andando até que os ruídos distantes da multidão se extinguissem, sabendo que não
conseguiria ouvir nem uma palavra da narração, nem aplauso, nem protesto.
— Ah, Potter — disse Snape, quando Harry bateu à porta e entrou no escritório
desagradavelmente familiar que o professor, apesar de dar aulas andares acima, ainda não
desocupara; estava mal iluminado como sempre, e os mesmos objetos viscosos e mortos
flutuavam em poções coloridas nas paredes. E, mau sinal, havia muitas caixas cobertas de teias de
aranha empilhadas sobre a mesa à que Harry deveria sentar; emanavam uma aura de trabalho
monótono, árduo e inútil.
— O Sr. Filch esteve procurando alguém para limpar esses arquivos antigos — disse Snape
brandamente. — São os registros de outros transgressores de Hogwarts e os castigos que
receberam. Onde a tinta desbotou, ou os cartões foram danificados por ratos, gostaríamos que
você copiasse os crimes e castigos de novo e, depois de verificar se estão em ordem alfabética,
tornasse a guardá-los nas caixas. Não deverá usar magia.
— Certo, professor — respondeu Harry, com o maior desprezo que conseguiu colocar nas
três últimas sílabas.
— Achei que podia começar — disse Snape, com um sorriso malicioso nos lábios — com
as caixas que vão de mil e doze a mil e cinqüenta e seis. Encontrará aí alguns nomes conhecidos,
o que deve emprestar interesse à sua tarefa. Veja aqui...
O professor retirou um cartão de uma das caixas no alto da pilha com um gesto teatral e leu:
— "Tiago Potter e Sirius Black. Detidos pelo uso de azaração ilegal em Bertram Aubrey. A
cabeça de Aubrey está o dobro do tamanho normal. Detenção dupla." — Snape deu um sorriso
desdenhoso. — Deve ser um consolo pensar que, embora já tenham partido, reste um registro dos
seus grandes feitos...
Harry sentiu a familiar sensação fervendo no fundo do estômago. Mordendo a língua para
não retorquir, sentou-se à frente das caixas e puxou uma para perto.
Era, como Harry previra, um trabalho monótono e inútil, pontuado (o que fora visivelmente
planejado por Snape) por um constante solavanco no estômago, ao ler os nomes do pai e de
Sirius, em geral associados em vários delitos menores, por vezes acompanhados por Remo Lupin
e Pedro Pettigrew. E, enquanto transcrevia as várias transgressões e os castigos, ficou imaginando
o que estaria acontecendo lá fora, onde a partida devia estar iniciando... Gina jogando na posição
de apanhadora contra Cho...
Harry olhou várias vezes para o grande relógio que tiquetaqueava na parede. Parecia
trabalhar com a metade da velocidade de um relógio normal; será que Snape o teria enfeitiçado
para andar bem devagar? Não podia estar ali apenas há meia hora... uma hora... uma hora e
meia...
O estômago de Harry começou a roncar quando o relógio marcou meio-dia e meia. Snape,
que se mantinha calado desde que passara a tarefa para Harry, finalmente ergueu a cabeça a uma
hora e dez minutos.
— Acho que já basta — anunciou friamente. — Marque o ponto em que parou. Continuará
no próximo sábado, às dez horas.
— Sim, senhor.
Harry enfiou aleatoriamente um cartão dobrado na caixa e saiu depressa, porta afora, antes
que Snape pudesse mudar de idéia; subiu correndo a escada, apurando os ouvidos para algum
ruído do campo, mas estava tudo silencioso... então o jogo acabara...
Ele hesitou à porta do Salão Principal lotado, e subiu correndo a escadaria de mármore; quer
a Grifinória tivesse ganhado ou perdido, a equipe costumava comemorar ou lamentar na sala
comunal.
— Quid agis? — experimentou Harry dizer à Mulher Gorda, imaginando o que encontraria
lá dentro.
Sua expressão estava indecifrável quando ela respondeu:
— Você verá.
E o quadro girou.
Um urro de comemoração explodiu do buraco às suas costas. Harry parou boquiaberto
quando, ao avistá-lo, as pessoas começaram a gritar; várias mãos puxaram-no para dentro.
— Vencemos! — berrou Rony, pulando à sua frente, sacudindo a taça de prata. — Vencemos!
Quatrocentos e cinqüenta a cento e quarenta! Vencemos!
Harry olhou para os lados; lá estava Gina correndo ao seu encontro; tinha uma expressão
dura e intensa no rosto ao atirar os braços ao seu pescoço. E, sem pensar, sem planejar, sem se
preocupar com o fato de que cinqüenta pessoas estavam olhando, Harry a beijou.
Decorridos longos minutos, ou talvez tenha sido meia hora, ou possivelmente vários dias
ensolarados, eles se separaram. A sala ficara muito silenciosa. Várias pessoas assoviaram e houve
uma erupção de risadinhas nervosas. Harry olhou por cima da cabeça de Gina e viu Dino Thomas
segurando um copo esmagado na mão, e Romilda Vane com cara de quem queria atirar alguma
coisa neles. Hermione sorria exultante, mas o olhar de Harry procurou Rony. Encontrou-o finalmente,
ainda segurando a taça com a expressão de quem levara uma bordoada na cabeça. Por uma
fração de segundo eles se olharam, então Rony fez um discreto aceno com a cabeça que Harry
entendeu como "Bem, se não tem jeito".
A criatura em seu peito rugiu triunfante, Harry sorriu para Gina e fez um gesto mudo
indicando a saída do buraco do retrato. Um longo passeio pelos jardins parecia o mais indicado,
durante o qual, se tivessem tempo, poderiam discutir o jogo.
CAPITULO VINTE E CINCO
A VIDENTE ENTREOUVIDA
O FATO DE HARRY POTTER ESTAR SAINDO com Gina Weasley parecia interessar a muitas
pessoas, a maioria garotas, Harry, porém, sentiu-se, de uma forma nova e feliz, indiferente às
fofocas, nas semanas que se seguiram. Afinal de contas, era bem agradável ser assunto de conversas
por algo que o deixava mais contente do que lembrava haver sido em muito tempo, em vez
de por sua participação em terríveis cenas de magia das Trevas.
— Eu achava que as pessoas teriam mais o que fofocar — comentou Gina, no chão da sala
comunal, recostada nas pernas de Harry e lendo o Profeta Diário. — Três ataques de
dementadores em uma semana, e só o que a Romilda Vane me pergunta é se é verdade que você
tem um hipogrifo tatuado no peito.
Rony e Hermione caíram na gargalhada. Harry fingiu não ouvir.
— Que foi que você respondeu?
— Que era um rabo-córneo húngaro — informou Gina, virando lentamente a página do
jornal. — Muito mais macho.
— Obrigado — disse Harry rindo. — E o que foi que você disse a ela que o Rony tem?
— Um Mini-Pufe, mas eu não disse onde.
Rony ficou sério, enquanto Hermione rolava de rir.
— Olha — ameaçou ele, apontando para Harry e Gina. — Só porque dei licença não quer
dizer que não possa retirar...
— "Licença" — caçoou Gina. — Desde quando você dá licença para eu fazer alguma coisa?
Aliás, foi você mesmo que disse que preferia o Harry ao Miguel ou o Dino.
— Preferia mesmo — concordou Rony de má vontade. — E desde que vocês não comecem
a se agarrar em público...
— Seu hipócrita nojento! E você e a Lilá que ficavam se enroscando feito um par de enguias
por toda a escola? — quis saber Gina.
Mas a tolerância de Rony não seria posta à prova porque começou junho, e o tempo de
Harry e Gina juntos foi se tornando mais limitado. Os N.O.M.s dela estavam próximos e, com
isto, ela era obrigada a rever a matéria noite adentro. Em uma dessas noites, em que Gina se
recolhera à biblioteca e Harry se sentou junto à janela da sala comunal, supostamente para
terminar o dever de Herbologia, mas na realidade revivendo uma hora muito feliz que passara
com Gina à beira do lago na hora do almoço, Hermione largou-se na cadeira entre ele e Rony
com uma expressão desagradavelmente decidida no rosto.
— Quero falar com você, Harry.
— Sobre o quê? — perguntou ele, desconfiado. Ainda na véspera, Hermione o censurara
por distrair Gina, quando ela devia estar estudando a sério para os exames.
— O tal do Príncipe Mestiço.
— Ah, outra vez, não — gemeu ele. — Quer esquecer isso?
Harry não ousara voltar à Sala Precisa para recuperar o livro, e o seu desempenho em
Poções estava sofrendo proporcionalmente (embora Slughorn, que aprovava Gina, atribuísse isso,
brincando, ao fato de Harry estar apaixonado). Mas ele tinha certeza de que Snape ainda não
perdera a esperança de pôr as mãos no livro do Príncipe, por isso resolvera deixá-lo onde o
guardara, enquanto o professor estivesse vigiando.
— Não vou esquecer — respondeu Hermione com firmeza — enquanto você não escutar
tudo. Então, estive investigando um pouco quem poderia ter o passatempo de inventar feitiços das
Trevas...
— Não era um passatempo para ele...
— Ele, ele... quem disse que era ele?
— Já discutimos isso — retrucou Harry irritado. — Príncipe, Hermione, Príncipe!
— Certo! — disse Hermione, manchas vermelhas afogueando seu rosto enquanto tirava uma
notícia de jornal muita antiga do bolso e a batia na mesa diante de Harry. — Olhe isto aqui! Olhe
a foto!
Harry apanhou o pedaço de papel quebradiço e estudou a foto animada, que o tempo
amarelara; Rony se inclinou para ver também. A foto mostrava uma garota magricela de uns
quinze anos. Não era bonita; seu rosto expressava, ao mesmo tempo, raiva e mau humor, com
sobrancelhas grossas e um rosto pálido e comprido. Sob a foto, havia a legenda: Eileen Prince,
Capitã do Time de Bexigas.
— E daí? — perguntou Harry, passando os olhos pela pequena notícia que a foto ilustrava;
era uma história meio sem graça sobre competições interescolares.
— O nome dela era Eileen Prince. Príncipe, Harry.
Os dois se entreolharam, e Harry entendeu o que Hermione estava tentando dizer. Ele caiu
na gargalhada.
— Nem pensar. — Quê?
— Você acha que ela era o Príncipe...? Ah, qual é?
— E por que não? Harry, não existem príncipes de verdade no mundo bruxo. Ou é um
apelido, um título que alguém inventou, ou até mesmo o sobrenome verdadeiro, não? Não,
escute! Vamos dizer que o pai dela fosse um bruxo com o sobrenome "Prince", e a mãe fosse uma
trouxa, isso faria dela um "Príncipe Mestiço"!
— Ah, muito engenhoso, Hermione...
— Mas faria! Talvez ela sentisse orgulho de ser meio Príncipe!
— Escute aqui, Hermione, sei que não é uma garota. Simplesmente sei a diferença.
— A verdade é que você acha que uma garota não seria inteligente o bastante — retrucou
Hermione, zangada.
— Como é que eu poderia conviver com você durante cinco anos e achar que garotas não
são inteligentes? — perguntou Harry ofendido. — É o jeito de ele escrever. Sei que o Príncipe era
um cara, sei a diferença. Essa garota não tem nada a ver com a história. Mas, afinal, onde foi que
você arranjou esta notícia?
— Na biblioteca — respondeu Hermione previsivelmente. — Tem uma coleção completa de
Profetas antigos. Bem, vou descobrir mais sobre a Eileen Prince, se puder.
— Divirta-se — desejou Harry irritado.
— Pode deixar — respondeu Hermione. — E o primeiro lugar onde vou procurar — atirou
para Harry, ao chegar ao buraco do retrato — é nos registros dos prêmios de Poções!
Harry acompanhou-a com um olhar feio por um momento, então voltou à contemplação do
céu que escurecia.
— Hermione jamais conseguiu se conformar que você seja melhor do que ela em Poções —
disse Rony, retomando a leitura do seu exemplar de Mil ervas e fungos mágicos.
— Você não acha que eu sou maluco por querer o livro de volta, acha?
— Claro que não — respondeu Rony lealmente. — Ele era um gênio, o Príncipe. Aliás...
sem aquela dica do bezoar... — ele riscou a garganta com o dedo significativamente —, eu não
estaria aqui para discutir isso, não é? Quero dizer, não estou dizendo que aquele feitiço que você
usou contra o Malfoy foi legal...
— Nem eu — Harry se apressou em concordar.
— Mas ele se recuperou, não foi? Pronto para outra num instante.
— É — concordou Harry. Era a pura verdade, embora sua consciência continuasse a doer
um pouquinho. — Graças ao Snape...
— Você ainda tem uma detenção com ele nesse sábado? — continuou Rony.
— Tenho, e no sábado seguinte e no sábado depois do sábado seguinte — suspirou Harry.
— E, agora, ele anda insinuando que, se eu não terminar todas as caixas até o fim do trimestre,
continuaremos no próximo ano.
Harry estava achando essas detenções particularmente chatas porque consumiam o tempo já
limitado que ele poderia passar com Gina. Na verdade, ultimamente ele tinha se perguntado
muitas vezes se Snape não saberia disso, porque estava liberando Harry cada vez mais tarde e
fazia comentários mordazes de que Harry estava deixando de aproveitar o tempo claro e as várias
oportunidades que oferecia.
Harry foi despertado dessas amargas reflexões pelo aparecimento de Jaquito Peakes, que lhe
estendia um rolinho de pergaminho.
— Obrigado, Jaquito... ei, é do Dumbledore! — exclamou Harry excitado, desenrolando e
lendo o pergaminho. — Ele quer que eu vá ao escritório dele o mais rápido que puder!
Os garotos se entreolharam.
— Caramba — sussurrou Rony. — Você supõe que... será que ele achou...?
— É melhor ir ver, não é? — disse Harry, pondo-se de pé de um salto.
Ele saiu correndo da sala comunal e continuou pelo corredor do sétimo andar o mais rápido
que pôde, sem encontrar ninguém exceto Pirraça, que passou voando na direção oposta, atirando
pedacinhos de giz em Harry, de um jeito meio rotineiro, e soltando grandes gargalhadas ao se
desviar das azarações defensivas do garoto. Quando Pirraça desapareceu, o silêncio voltou aos
corredores; faltando apenas quinze minutos para o toque de recolher, a maioria das pessoas já
voltara para suas salas comunais.
Então Harry ouviu um grito e um baque. Ele parou abruptamente e apurou os ouvidos.
— Como... é... que... você... se... atreve... aaaaarre!
O estardalhaço vinha de um corredor vizinho; Harry acorreu, empunhando a varinha, virou
um canto e viu a professora Trelawney esparramada no chão, a cabeça coberta com seus muitos
xales, várias garrafas de xerez caídas a um lado, uma delas quebrada.
— Professora...
Harry adiantou-se depressa e ajudou a professora Trelawney a se pôr de pé. Alguns de seus
colares cintilantes tinham embaraçado em seus óculos. Ela soluçou alto, ajeitou os cabelos e se
levantou apoiada no braço que Harry oferecia.
— Que aconteceu, professora?
— É mesmo de se perguntar! — respondeu ela esganiçada. — Eu estava andando, refletindo
sobre certos portentos das Trevas que por acaso vislumbrei...
Mas Harry não estava prestando muita atenção. Acabara de reparar onde estavam parados:
ali, à direita, encontrava-se a tapeçaria dos trasgos dançarinos e, à esquerda, aquele trecho liso e
impenetrável de parede que ocultava...
— Professora, a senhora estava tentando entrar na Sala Precisa?
— ... oráculos que me foram confiados... quê? Ela pareceu repentinamente esquiva.
— A Sala Precisa — repetiu Harry. — A senhora estava tentando entrar aí?
— Eu... bem... não sabia que alunos tinham conhecimento...
— Nem todos. Mas que aconteceu? A senhora gritou... como se tivesse se machucado...
— Eu... bem — disse a professora, cobrindo-se defensivamente com os xales, e fixando em
Harry os olhos imensamente aumentados pelas lentes. — Eu queria... ah... depositar... hum...
certos pertences meus na Sala... — E murmurou alguma coisa sobre "acusações perversas".
— Certo — concordou Harry, olhando para as garrafas de xerez dela. — Mas a senhora não
conseguiu entrar para escondê-los?
Harry achou isto muito estranho; afinal, a Sala abrira-se para ele, quando quisera esconder o
livro do Príncipe Mestiço.
— Ah, eu entrei sem problema — explicou a professora Trelawney, olhando aborrecida para
a parede. — Mas já havia alguém lá dentro.
— Alguém lá...? Quem? — quis saber o garoto. — Quem estava lá dentro?
— Não faço idéia — respondeu a professora, parecendo um pouco assustada com a urgência
na voz de Harry. — Entrei na Sala e ouvi uma voz, o que nunca me aconteceu em todos esses
anos em que escondi... em que usei a Sala, quero dizer.
— Uma voz? Dizendo o quê?
— Não sei se estava dizendo alguma coisa. Estava dando... vivas.
— Vivas?
— Gritos de alegria. — Ela confirmou com a cabeça. Harry olhou-a espantado.
— Homem ou mulher?
— Eu arriscaria dizer que era homem.
— E parecia feliz?
— Muito feliz — disse a professora fungando.
— Como se estivesse comemorando?
— Sem a menor dúvida.
— E então...?
— Então perguntei: "Quem está aí?"
— A senhora não poderia descobrir sem perguntar? — questionou-a Harry, ligeiramente
frustrado.
— O Olho Interior — replicou a professora com dignidade, ajeitando seus xales e os muitos fios
de contas reluzentes — estava contemplando questões muito distantes da esfera mundana de
vozes que gritam de alegria.
— Certo — apressou-se Harry a dizer; já ouvira falar demais no Olho Interior da professora
Trelawney. — E a voz respondeu quem era?
— Não, não respondeu. Ficou tudo escuro como breu e, no momento seguinte, eu estava
sendo arremessada de cabeça para fora da Sala!
— E a senhora não previu isso? — exclamou Harry, incapaz de se conter.
— Não, não previ, como disse, ficou tudo escuro como... — A professora parou e olhou-o
desconfiada.
— Acho melhor a senhora contar ao professor Dumbledore — sugeriu Harry. — Ele precisa
saber que Malfoy está comemorando... quero dizer, que alguém arremessou a senhora para fora
da Sala.
Para sua surpresa, a professora Trelawney empertigou-se ao ouvir sua sugestão, com ar de
superioridade.
— O diretor insinuou que preferia receber menos visitas minhas — disse ela friamente. —
Não sou pessoa de impor a minha presença àqueles que não a apreciam. Se Dumbledore prefere
ignorar os avisos dados pelas cartas...
Sua mão ossuda agarrou subitamente o pulso de Harry.
— Repetidamente, seja qual for o modo com que eu as ponha... E, dramaticamente,
Trelawney puxou uma carta de baixo dos xales.
— ... A Torre atingida pelo raio — sussurrou ela. — Calamidade. Catástrofe. Cada dia mais
próxima...
— Certo — concordou Harry outra vez. — Bem... continuo achando que a senhora deveria
contar a Dumbledore sobre a voz e a Sala escurecer de repente e a senhora ser arremessada para
fora...
— Você acha? — A professora Trelawney pareceu considerar a questão por um momento,
mas Harry percebeu que ela gostara da idéia de tornar a contar sua pequena aventura.
— Estou indo vê-lo agora — disse Harry. — Tenho uma reunião com ele. Poderíamos ir
juntos.
— Ah, bem, neste caso — replicou a professora Trelawney com um sorriso. Ela se abaixou,
recolheu suas garrafas de xerez e atirou-as sem cerimônia dentro de um grande vaso azul e branco
em um nicho próximo.
— Sinto falta de você nas minhas aulas, Harry — disse ela comovida, quando começaram a
andar. — Você nunca foi grande coisa como vidente... mas era um Objeto de estudo
maravilhoso...
Harry não respondeu; detestara ser o Objeto de estudo dos contínuos vaticínios catastróficos
da professora Trelawney.
— Receio — continuou ela — que aquele pangaré... desculpe, centauro... não saiba nada de
cartomancia. Perguntei-lhe, de um vidente para outro, se também não tinha sentido as distantes
vibrações do advento da catástrofe. Mas, pelo jeito, ele me acha quase cômica. Isso mesmo,
cômica!
Sua voz alteou-se histericamente, e Harry sentiu uma forte baforada de xerez, embora as
garrafas tivessem sido deixadas para trás.
— Talvez o cavalo tenha ouvido pessoas dizerem que não herdei o dom das minhas
tataravós. Há anos os invejosos têm espalhado esses boatos. Sabe qual a minha resposta para essa
gente, Harry? Será que Dumbledore teria me deixado ensinar nesta grande escola, confiado em
mim todos esses anos, se eu não tivesse comprovado o meu valor?
Harry murmurou alguma coisa inaudível.
— Lembro-me muito bem da minha primeira entrevista com Dumbledore — continuou a
professora Trelawney, com a voz rouca. — Ele ficou profundamente impressionado, é claro,
profundamente impressionado... eu estava hospedada no Cabeça de Javali, que, aliás, não
recomendo... percevejos, meu caro rapaz... mas eu estava sem recursos. Dumbledore fez a
gentileza de ir até o meu quarto na estalagem. Interrogou-me... devo confessar que, a princípio,
achei que parecia pouco favorável à Adivinhação... e lembro que comecei a me sentir meio
estranha, não tinha comido quase nada naquele dia... mas então...
E agora, pela primeira vez, Harry estava realmente prestando atenção, porque sabia o que
tinha acontecido: a professora Trelawney fizera uma profecia que alterara o curso de toda a sua
vida, a profecia sobre ele e Voldemort.
— ... então fomos rudemente interrompidos por Severo Snape!
— Quê?
— Sim, houve uma agitação no corredor, a porta do quarto se escancarou, e lá estava aquele
barman rude, parado com Snape, que tentava confundi-lo, dizendo que se enganara ao subir,
embora eu ache que ele foi apanhado escutando a minha entrevista com Dumbledore; você
entende, ele próprio estava procurando emprego à época, e com certeza esperava ouvir umas
dicas! Bem, depois disso, entende, Dumbledore pareceu bem mais disposto a me contratar, e não
pude deixar de pensar, Harry, que ele deve ter percebido o violento contraste entre o meu jeito
modesto e o meu talento discreto comparados aos do rapaz cavador e intrometido, que se
dispunha a escutar às portas... Harry, querido?
Trelawney olhou por cima do ombro, pois acabara de perceber que Harry não estava mais
com ela; o garoto parara e agora havia três metros de distância entre eles.
— Harry? — repetiu a professora insegura.
Talvez o rosto dele estivesse branco, para fazê-la parecer tão preocupada e assustada. Harry
estava paralisado, sentindo o impacto de ondas de choque, onda após onda, que obliteravam tudo,
exceto a informação que lhe haviam negado por tanto tempo...
Snape é quem tinha ouvido a profecia. Snape é quem tinha levado a notícia da profecia a
Voldemort. Snape e Pedro Pettigrew, juntos, tinham feito Voldemort sair caçando Lílian, Tiago e
seu filho...
Nada mais importava a Harry no momento.
— Harry? — chamou de novo a professora. — Harry... pensei que íamos ver o diretor
juntos?
— A senhora fica aqui — disse Harry, com os lábios dormentes.
— Mas, querido... eu ia contar a ele que fui atacada na Sala...
— A senhora fica aqui! — repetiu Harry com raiva.
Trelawney fez um ar assustado quando ele passou correndo por ela, entrou pelo corredor de
Dumbledore, onde a gárgula solitária montava guarda. Harry gritou a senha para a gárgula e subiu
correndo a escada móvel em espiral, três degraus de cada vez. Ele não bateu a porta de
Dumbledore, esmurrou-a; e a voz calma respondeu "Entre", depois que Harry já se precipitara
para dentro da sala.
Fawkes, a fênix, girou a cabeça, seus olhos vivos e negros refletindo o dourado do sol
poente. Dumbledore estava parado à janela, contemplando os terrenos da escola, uma longa capa
de viagem nos braços.
— Bem, Harry, prometi que você poderia vir comigo.
Por um momento, Harry não compreendeu; a conversa com Trelawney varrera tudo o mais
de sua cabeça, e seu cérebro parecia estar funcionando muito vagarosamente.
— Ir... com o senhor... ?
— Somente se você quiser, é claro.
— Se eu...
E então Harry se lembrou por que inicialmente estivera ansioso para vir ao escritório de
Dumbledore.
— O senhor encontrou uma? Encontrou uma Horcrux?
— Creio que sim.
A fúria e o ressentimento entraram em conflito com o choque e a excitação: por um longo
momento, Harry não conseguiu falar.
— É natural ter medo — disse Dumbledore.
— Não estou apavorado! — retrucou Harry imediatamente, e era a absoluta verdade: medo
não era uma emoção que ele estivesse sentindo. — Qual é a Horcrux? Onde está?
— Não tenho certeza qual é, embora pense que podemos excluir a cobra... acredito que
esteja escondida em uma caverna na costa, a muitos quilômetros daqui, uma caverna que venho
tentando localizar há muito tempo: a caverna em que, no passado, Tom Riddle aterrorizou duas
crianças do orfanato no passeio anual que faziam, lembra-se?
— Lembro. Como está protegida?
— Não sei; tenho algumas suspeitas que talvez estejam completamente erradas. —
Dumbledore hesitou, em seguida disse: — Harry, prometi que você poderia vir comigo, e
mantenho a promessa, mas seria um grande erro se eu não o prevenisse de que será excepcionalmente
perigoso.
— Eu vou — disse Harry, quase antes de Dumbledore terminar de falar. Enfurecido com
Snape, seu desejo de fazer alguma coisa extrema e insensata redobrara nos últimos minutos. Isto
talvez tenha transparecido em seu rosto, porque Dumbledore se afastou da janela e olhou mais
atentamente para Harry, uma leve ruga entre suas sobrancelhas prateadas.
— Que aconteceu com você?
— Nada — mentiu Harry prontamente.
— Que foi que o perturbou?
— Não estou perturbado.
— Harry, você nunca foi um bom Oclumente...
A palavra foi a faísca que desencadeou a fúria de Harry.
— Snape! — disse ele muito alto, e Fawkes soltou um leve grasnido às suas costas. —
Snape foi o que me aconteceu! Ele contou a Voldemort sobre a profecia, foi ele, ele escutou à
porta do quarto, Trelawney me contou!
A expressão de Dumbledore não se alterou, mas Harry teve a impressão de que seu rosto
empalidecia à claridade avermelhada do sol poente. Por um longo momento, o diretor nada disse.
— Quando foi que descobriu isso? — perguntou ele por fim.
— Agora! — respondeu Harry, que, com enorme dificuldade, reprimia a vontade de gritar.
Então, de repente, não conseguiu mais se conter: — E O SENHOR DEIXOU ELE ENSINAR
AQUI E ELE DISSE A VOLDEMORT PARA ATACAR OS MEUS PAIS!
Ofegando como se lutasse, Harry se afastou de Dumbledore, que ainda não movera um
único músculo, e começou a andar para cima e para baixo no escritório, esfregando os nós dos
dedos nas mãos e exercendo todo o seu controle para não derrubar nada. Queria explodir com
Dumbledore, mas também queria acompanhá-lo para tentar destruir a Horcrux; queria dizer ao
diretor que ele era um velho tolo por confiar em Snape, mas estava aterrorizado que Dumbledore
não o levasse se não dominasse sua raiva...
— Harry — disse Dumbledore em voz baixa. — Por favor, me escute. Era tão difícil parar
de andar quanto se conter para não gritar.
Harry hesitou, mordendo o lábio, e encarou o rosto enrugado de Dumbledore.
— O professor Snape cometeu um terrível...
— Não me diga que foi um engano, senhor, ele estava escutando à porta!
— Por favor, me deixe terminar. — Dumbledore aguardou até ver Harry assentir
bruscamente com a cabeça, então prosseguiu: — O professor Snape cometeu um terrível engano.
Ele ainda estava a serviço de Voldemort na noite em que ouviu a primeira metade da profecia da
professora Trelawney. Naturalmente, correu a contar o que ouvira, porque afetava profundamente
o seu senhor. Mas ele não sabia, não tinha a menor possibilidade de saber, qual era o garoto que
Voldemort iria perseguir daquele dia em diante ou que os pais que ele destruiria em sua busca
homicida eram pessoas que ele próprio conhecia, que eram seu pai e sua mãe...
Harry soltou uma gargalhada sombria.
— Ele odiava meu pai como odiava Sirius! O senhor não reparou, professor, como as
pessoas a quem Snape odeia têm uma tendência a aparecer mortas?
— Você não faz idéia do remorso que o professor Snape sentiu quando percebeu como Lord
Voldemort interpretara a profecia, Harry. Acredito que tenha sido o maior arrependimento da
vida dele, e o motivo por que voltou...
— Mas ele é um Oclumente muito bom, não é, senhor? — contrapôs Harry, cuja voz tremia
com o esforço de mantê-la firme. — E, Voldemort não está convencido de que Snape está do lado
dele, ainda hoje? Professor... como o senhor pode ter certeza de que o Snape está do nosso lado?
Dumbledore ficou calado por um momento; parecia estar tentando tomar uma decisão. Por
fim, disse:
— Tenho certeza. Confio plenamente em Severo Snape.
Harry respirou fundo por alguns momentos, esforçando-se para se controlar. Não adiantou.
— Bem, eu não! — bradou ele como antes. — Ele está tramando alguma coisa com Draco
Malfoy neste instante, bem debaixo do seu nariz, e o senhor continua...
— Já discutimos isso antes, Harry. — E seu tom retomou a severidade anterior. — Dei-lhe a
minha opinião.
— O senhor vai sair da escola esta noite, e aposto como nem considerou que Snape e
Malfoy podem decidir...
— O quê? — perguntou Dumbledore, com as sobrancelhas erguidas. — Que é que você
suspeita que eles estejam fazendo, exatamente?
— Eles estão armando alguma coisa! — insistiu Harry, fechando os punhos ao dizer isso. —
A professora Trelawney acabou de entrar na Sala Precisa, tentando esconder garrafas de xerez, e
ouviu Malfoy dando vivas, comemorando! Ele está tentando consertar alguma coisa perigosa lá
dentro e, se o senhor quer saber, ele finalmente conseguiu, e o senhor daqui a pouco vai sair porta
afora sem...
— Basta. — Dumbledore falou calmo, mas Harry calou-se imediatamente; percebeu que
enfim ultrapassara alguma linha invisível. — Você acha que deixei a escola desprotegida uma
única vez nas minhas ausências deste ano? Não. Hoje à noite, quando eu viajar, mais uma vez
teremos proteção adicional instalada. Por favor, não insinue que eu não levo a sério a segurança
dos meus estudantes, Harry.
— Eu não... — murmurou Harry, um pouco envergonhado, mas Dumbledore interrompeuo.
— Não quero mais discutir este assunto.
Harry engoliu o que ia dizer, receoso de que tivesse ido longe demais, de que tivesse
estragado sua chance de acompanhar o diretor, mas este prosseguiu:
— Você quer ir comigo hoje à noite?
— Quero — respondeu Harry prontamente.
— Muito bem, então ouça. Dumbledore aprumou-se.
— Levo você com uma condição: que você obedeça a qualquer ordem que eu lhe dê,
imediatamente e sem fazer perguntas.
— Claro.
— Entenda bem, Harry. Estou dizendo que deverá obedecer até a ordens como "corra", "se
esconda" ou "volte". Você me dá sua palavra?
— Eu... é claro.
— Se eu mandar que se esconda, você fará isso?
— Farei.
— Se eu o mandar fugir, você obedecerá?
— Obedecerei.
— Se eu lhe disser para me abandonar e se salvar, você fará o que mandei?
— Eu...
— Harry?
Eles se encararam por um momento.
— Farei, sim, senhor.
— Muito bem. Então, quero que você vá buscar a sua Capa da Invisibilidade e me encontre
no Saguão de Entrada dentro de cinco minutos.
Dumbledore voltou a contemplar a janela flamejante; o sol era um clarão vermelho-rubi na
linha do horizonte. Harry saiu depressa do escritório e desceu a escada espiral. De repente, sua
mente ficou estranhamente clara. Sabia o que fazer.
Rony e Hermione estavam sentados juntos na sala comunal quando ele retornou.
— Que é que o Dumbledore quer? — perguntou Hermione ao vê-lo. — Harry, você está
o.k.? — acrescentou ela, ansiosa.
— Estou ótimo — respondeu ele brevemente, passando apressado. Correu escada acima e
entrou no dormitório; ali, escancarou o malão e tirou o Mapa do Maroto e um par de meias
enroladas. Então, tornou a se precipitar pela escada e voltar à sala comunal, derrapando diante de
Rony e Hermione, que observavam perplexos.
— Não tenho muito tempo — ofegou Harry. — Dumbledore acha que estou só apanhando a
Capa da Invisibilidade, escutem...
Em poucas palavras, contou-lhes aonde estava indo e por quê. Não parou nem diante das
exclamações de horror de Hermione nem das perguntas apressadas de Rony; eles poderiam
deduzir os detalhes sozinhos depois.
— ... estão entendendo o que isto significa? — Harry terminou ligeiro. — Dumbledore não
estará aqui hoje à noite, portanto Malfoy estará livre para tentar o que quer que esteja tramando.
Não, me escutem! — sibilou ele zangado, quando Rony e Hermione deram sinais de querer
interrompê-lo. — Sei que era o Malfoy comemorando na Sala Precisa. Tomem... — Ele empurrou
o Mapa do Maroto na mão de Hermione. — Vocês têm de vigiá-lo e têm de vigiar Snape
também. Usem quem puderem reunir da AD. Hermione, aqueles galeões de contato ainda estão
funcionando, certo? Dumbledore diz que instalou proteção adicional na escola, mas, se Snape
estiver envolvido, ele saberá qual foi a proteção e como evitá-la... mas ele não estará esperando
que vocês estejam de guarda, não é?
— Harry — começou Hermione, seus olhos arregalados de medo.
— Não tenho tempo para discutir — cortou-a Harry. — Tome isto também... — Ele
empurrou as meias nas mãos de Rony.
— Obrigado — disse Rony. — Ah... para que preciso de meias?
— Precisa do que está embrulhado nelas, é a Felix Felicis. Dividam entre vocês e a Gina
também. Se despeçam dela por mim. É melhor eu ir, Dumbledore está me esperando...
— Não! — exclamou Hermione, quando Rony desembrulhou o frasquinho de poção
dourada, parecendo assombrado. — Não queremos a poção, leve com você, quem sabe o que irá
enfrentar.
— Estarei bem, estarei com o Dumbledore — respondeu Harry. — Quero ter certeza de que
vocês estejam o.k... não me olhe assim, Hermione, vejo vocês mais tarde...
E ele se foi, atravessou o buraco do retrato e rumou para o Saguão de Entrada.
Dumbledore aguardava-o junto às portas de carvalho. Virou-se quando Harry apareceu
derrapando e pisou o degrau mais alto da escadaria, muito ofegante, sentindo uma pontada ardida
do lado.
— Gostaria que você usasse sua Capa da Invisibilidade, por favor — pediu o diretor, e
esperou até Harry se cobrir, antes de dizer: — Muito bem. Vamos?
Dumbledore começou a descer imediatamente os degraus de pedra, sua capa de viagem
quase imóvel no ar parado do verão. Harry corria a seu lado, sob a Capa da Invisibilidade, ainda
ofegando e suando muito.
— Mas que é que as pessoas vão pensar quando o virem saindo, professor? — perguntou
Harry, pensando em Malfoy e Snape.
— Que vou a Hogsmeade beber alguma coisa — respondeu Dumbledore brincando. — Às vezes,
dou preferência a Rosmerta, outras visito o Cabeça de Javali... ou finjo visitar. E uma boa
maneira de disfarçar o verdadeiro destino.
Eles foram descendo pela estrada da escola à claridade crepuscular. O ar estava impregnado
de aromas de capim aquecido, água do lago e fumaça de madeira da cabana de Hagrid. Era difícil
acreditar que estavam caminhando para algo perigoso ou assustador.
— Professor — disse Harry baixinho, quando avistaram os portões no início da estrada —,
vamos aparatar?
— Vamos. Você já sabe aparatar, creio eu.
— Sei, mas ainda não tenho licença.
Harry achou melhor ser honesto; e se estragasse tudo desaparatando a quilômetros do lugar
onde devia?
— Não faz mal — disse o diretor. — Posso ajudá-lo novamente.
A saída dos portões, eles viraram para a estrada deserta de Hogsmeade. A escuridão foi
descendo rapidamente durante a caminhada e, quando por fim alcançaram a rua principal, já era
quase noite. As luzes brilhavam nas janelas sobre as lojas, e, assim que se aproximaram do Três
Vassouras, ouviram gritos estridentes.
— ... e fique fora daqui! — gritava Madame Rosmerta, expulsando, à força, um bruxo
malvestido. — Ah, olá, Alvo... saindo tarde...
— Boa-noite, Rosmerta, boa-noite... me desculpe, estou indo ao Cabeça de Javali... não se
ofenda, mas gostaria de um ambiente mais tranqüilo hoje à noite...
Um minuto mais tarde, eles viraram para uma rua lateral onde o letreiro do Cabeça de Javali
balançava, rangendo, suavemente, embora não houvesse brisa. Ao contrário do Três Vassouras, o
bar parecia estar completamente vazio.
— Não precisaremos entrar — murmurou Dumbledore, olhando para os lados. — Desde
que as pessoas não nos vejam desaparecendo... agora, apóie a mão no meu braço, Harry. Não
precisa apertar com muita força, vou apenas guiá-lo. Quando eu contar três: um... dois... três...
Harry se virou. Na mesma hora teve aquela horrível sensação de que o empurravam à força
para dentro de um grosso cano de borracha; não conseguia respirar, cada parte de seu corpo
comprimia-se insuportavelmente, então, quando pensou que ia sufocar, a cinta invisível pareceu
se romper, e ele se viu parado em fria escuridão, enchendo os pulmões de ar fresco e salgado.

26/30

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