segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Harry Pottere o Enigma do Príncipe 16/20


CAPÍTULO DEZESSEIS
UM NATAL MUITO GELADO
— ENTÃO SNAPE ESTAVA SE OFERECENDO para ajudar Malfoy? Sem a menor dúvida ele
estava se oferecendo para ajudar Malfoy?
— Se você perguntar isso mais uma vez, vou enfiar este talo de couve...
— Só estou confirmando! — exclamou Rony. Os dois estavam sozinhos junto à pia da
cozinha d'A Toca, limpando um monte de couves-de-bruxelas para a Sra. Weasley. A neve
passava voando pela janela à sua frente.
— Exatamente, Snape estava se oferecendo para ajudar ele! Disse que tinha prometido à
mãe de Malfoy proteger ele, que tinha feito um Juramento Perpétuo ou coisa parecida...
— Um Voto Perpétuo? — admirou-se Rony. — Nah, não pode ser... você tem certeza?
— Claro que tenho. Que quer dizer isso?
— Bem, a gente não pode quebrar um Voto Perpétuo...
— Até aí eu concluí sozinho, por estranho que pareça. E o que acontece se a gente quebra?
— Morre — disse Rony com simplicidade. — Fred e Jorge tentaram me convencer a fazer
um quando eu tinha cinco anos. E quase que fiz, eu estava segurando as mãos de Fred e tudo,
quando papai nos encontrou. Ele pirou — contou Rony, recordando a cena com um brilho no
olhar. — Foi a única vez que vi papai tão furioso como a mamãe. Fred diz que depois disso a
nádega esquerda dele nunca mais foi a mesma.
— É, bem, deixando de lado a nádega esquerda de Fred...
— Perdão? — Ouviu-se a voz de Fred, e os gêmeos entraram na cozinha. — Aaah, Jorge,
olha só isso. Eles estão usando facas e tudo. Deus os abençoe.
— Vou fazer dezessete anos dentro de dois meses e uns dias — retrucou Rony malhumorado
—, então vou poder usar magia para fazer isto.
— Mas, nesse meio-tempo — comentou Jorge, sentando-se à mesa da cozinha e
descansando os pés em cima do móvel —, podemos apreciar a sua demonstração do uso correto
de uma... epa!
— A culpa foi sua! — exclamou Rony zangado, chupando o corte no polegar. — Espere até
eu fazer dezessete anos...
— Tenho certeza de que vai nos deixar deslumbrados com suas insuspeitadas habilidades
em magia — concluiu Fred bocejando.
— E, por falar em insuspeitadas habilidades em magia, Ronald —aproveitou Jorge —, que
história é essa, que estamos sabendo pela Gina, entre você e uma jovem chamada... a não ser que
a informação esteja errada, Lilá Brown?
Rony corou um pouco, mas não pareceu aborrecido quando voltou a dar atenção às couves.
— Cuide da sua vida.
— Que resposta malcriada — disse Fred. — Não sei aonde vai buscá-las. Não, o que eu
queria saber era... como foi que aconteceu?
— Que é que você quer dizer com isso?
— Ela teve um acidente ou coisa parecida? —Quê?
— Bem, como foi que ela sofreu um dano cerebral tão extenso? Cuidado com isso!
A Sra. Weasley entrou na cozinha em tempo de ver Rony atirando a faca de descascar
legumes em Fred, que a transformou em um aviãozinho de papel, com um piparote displicente de
varinha.
— Rony! — exclamou a bruxa furiosa. — Nunca mais me deixe ver você atirando facas!
— Não vou deixar — disse Rony — você ver — acrescentou baixinho, voltando ao monte
de couves-de-bruxelas.
— Fred, Jorge, lamento, queridos, mas Remo vai chegar hoje à noite e Gui vai ter de se
apertar no quarto de vocês!
— Não esquenta — respondeu Jorge.
— E, como Carlinhos não vem, isto deixa Harry e Rony no sótão, e se Fleur dividir o quarto
com Gina...
— ... isso é que é um Feliz Natal! — murmurou Fred.
— ... e todos ficarão confortáveis. Bem, pelo menos terão uma cama — acrescentou a Sra.
Weasley, um pouco cansada e ansiosa.
— Então Percy não vai mesmo mostrar a carranca dele por aqui? — perguntou Fred.
A Sra. Weasley virou de costas antes de responder.
— Não, ele está ocupado, imagino, no Ministério.
— Ah, ele é o maior babaca do mundo — comentou Fred, quando a mãe se retirou da
cozinha. — Um dos dois maiores. Bem, vamos indo então, Jorge.
— Que é que vocês vão fazer? — perguntou Rony. — Será que não podiam ajudar a gente a
limpar essas couves? É só usarem a varinha e ficaremos livres, também!
— Não, acho que não podemos fazer isso — respondeu Fred sério.
— É bom para a formação do caráter, aprender a limpar couves-de-bruxelas sem recorrer à
magia, faz você entender como é difícil para os trouxas e bruxos abortados...
— ... e se quiser que as pessoas o ajudem, Rony — acrescentou Jorge, atirando no irmão
um aviãozinho de papel —, não deve ficar arremessando facas nelas. É só uma dica. Nós vamos à
aldeia, tem uma garota bonita trabalhando na papelaria que acha que os meus truques com cartas
são maravilhosos... até parecem magia de verdade...
— Debilóides — xingou Rony, sombriamente, observando Fred e Jorge atravessarem o
quintal coberto de neve. — Gastariam só dez segundos, e então poderíamos sair também.
— Não eu — disse Harry. — Prometi a Dumbledore que não sairia enquanto estivesse aqui.
— Ah, é. — Rony limpou mais algumas couves, então perguntou:
— Você vai contar ao Dumbledore o que ouviu Snape e Malfoy conversando?
— Vou. Vou contar a todo o mundo que puder acabar com isso, e Dumbledore é o primeiro
da lista. Talvez eu dê mais uma palavrinha com o seu pai também.
— Pena que você não tenha ouvido o que Malfoy está realmente fazendo.
— Não foi possível, não é? Esse é o problema, ele estava se recusando a contar ao Snape.
Por um momento fez-se silêncio, em seguida Rony comentou:
— É claro que você sabe o que todos vão dizer, não? Papai, Dumbledore e todo o resto.
Vão dizer que Snape não está realmente tentando ajudar Malfoy, estava só tentando descobrir o
que Malfoy vai fazer.
— Eles não ouviram o que ele disse — disse Harry, sem emoção. — Ninguém representa
tão bem, nem mesmo o Snape.
— E... só estou lembrando — disse Rony.
Harry virou-se para encarar o amigo, franzindo a testa.
— Mas você acha que eu tenho razão?
— Claro que acho! — apressou-se Rony a confirmar. — Estou falando sério! Mas eles estão
convencidos de que Snape faz parte da Ordem, não é mesmo?
Harry não respondeu. Já lhe ocorrera que aquela seria a objeção mais provável ao novo
indício; podia até ouvir Hermione dizendo:
"É óbvio, Harry, que ele estava fingindo ajudar para poder fazer Malfoy contar o que está
fazendo..."
Isto era pura imaginação, porque ele não tinha tido oportunidade de contar a Hermione o
que ouvira. A amiga tinha sumido da festa de Slughorn antes que ele voltasse, ou assim lhe
informara um irado McLaggen, e já tinha ido dormir quando ele retornou à sala comunal. Quando
ele e Rony viajaram para A Toca, cedo no dia seguinte, Harry mal tivera tempo para lhe desejar
um Feliz Natal e dizer que tinha notícias muito importantes para contar quando voltassem das
férias. Não estava muito seguro, porém, se Hermione o ouvira; Rony e Lilá estavam fazendo uma
despedida totalmente não-verbal às suas costas naquele momento.
Contudo, nem Hermione poderia negar: decididamente Malfoy estava fazendo alguma
coisa, e Snape sabia disso, portanto Harry se sentia plenamente justificado em dizer "Eu bem que
falei", como já fizera várias vezes para Rony.
Até a noite de Natal, Harry não teve oportunidade de conversar com o Sr. Weasley, que
estava trabalhando até mais tarde no Ministério. Os Weasley e seus convidados estavam sentados
na sala de estar; Gina a decorara com tanto exagero que tinham a impressão de estar no meio de
uma explosão de papel em cadeia. Fred, Jorge, Harry e Rony eram os únicos que sabiam que o
anjo no alto da árvore era, na realidade, um gnomo de jardim que mordera o calcanhar de Fred
quando ele arrancava cenouras para a ceia de Natal. Estupidificado, pintado de ouro, apertado em
um minitutu, com asinhas coladas às costas, ele olhava de cara amarrada para todos, o anjo mais
feio que Harry já vira, com uma cabeçorra pelada como uma batata e pés bem cabeludos.
Todos deviam estar ouvindo o programa de Natal apresentado pela cantora favorita da Sra.
Weasley, Celestina Warbeck, cuja voz saía tremida de um grande rádio com a caixa de madeira.
Fleur, que aparentemente achava Celestina muito chata, falava tão alto a um canto que a Sra.
Weasley, aborrecida, a toda hora apontava a varinha para o botão do volume, fazendo com que
Celestina berrasse cada vez mais. Aproveitando um número particularmente animado, "Um
caldeirão cheio de amor quente e forte", Fred e Jorge começaram um joguinho de Snap Explosivo
com Gina. Rony não parava de lançar olhares sorrateiros a Gui e Fleur, como se esperasse
aprender umas dicas. Enquanto isso, Remo Lupin, mais magro e mais roto que nunca, estava
sentado à lareira, contemplando suas profundezas como se não ouvisse a voz de Celestina.
"Ah, vem mexer o meu caldeirão, E se mexer como deve ser Faço procê um amor quente e
forte Para sua noite aquecer."
— Dançamos ao som dessa música quando tínhamos dezoito anos! — exclamou a Sra.
Weasley, enxugando os olhos no seu tricô. — Você lembra, Arthur?
— Hum? — respondeu o Sr. Weasley, que estivera cochilando enquanto descascava uma
tangerina. — Ah, sim... uma canção maravilhosa...
Com esforço, ele se sentou mais aprumado e olhou para Harry, que estava ao seu lado.
— Desculpe isso aí — disse ele, indicando com a cabeça o rádio no qual Celestina desatava
a entoar o refrão. — Já vai terminar.
— Não se preocupe — respondeu Harry sorrindo. — O senhor tem tido muito trabalho no
Ministério?
— Muito. Eu não me incomodaria se estivéssemos obtendo algum resultado, mas, nas três
prisões que fizemos nos últimos dois meses, duvido que algum dos suspeitos fosse um autêntico
Comensal da Morte... mas não repita isso, Harry — acrescentou ele depressa, parecendo
subitamente bem mais acordado.
— Mas já soltaram o Lalau Shunpike, não? — perguntou Harry.
— Receio que não. Sei que Dumbledore tentou apelar diretamente para Scrimgeour no caso
do Lalau... quero dizer, qualquer um que de fato tenha entrevistado o garoto concorda que ele é
tão Comensal da Morte quanto esta tangerina... mas os figurões querem passar a imagem de que
estamos fazendo progressos, e "três prisões" parecem melhor do que "três prisões equivocadas
seguidas de solturas"... mas, repito, tudo isso é ultra-secreto...
— Não direi nada. — Harry hesitou um momento, imaginando a melhor maneira de abordar
o que queria dizer; enquanto organizava seus pensamentos, Celestina Warbeck começou uma
balada intitulada "Seu feitiço arrancou meu coração".
— Sr. Weasley, o senhor se lembra do que lhe contei na estação quando estávamos indo
para a escola?
— Eu verifiquei, Harry — respondeu ele na mesma hora. — Revistei a casa dos Malfoy.
Não encontrei nada, nem quebrado nem inteiro, que não devesse estar lá.
— É, eu sei, li no Profeta que o senhor tinha revistado... mas isto é diferente... bem, uma
coisa mais...
E ele contou ao Sr. Weasley a conversa que escutara entre Malfoy e Snape. Enquanto
falava, viu a cabeça de Lupin virar um pouco para o seu lado, absorvendo cada palavra. Quando
Harry terminou, fez-se silêncio, exceto pela cantoria de Celestina.
"Ah, onde foi parar o meu pobre coração? Abandonou-me por um feitiço..."
— Já lhe ocorreu, Harry — perguntou o Sr. Weasley —, que Snape estivesse simplesmente
fingindo...
— Fingindo oferecer ajuda, para poder descobrir o que Malfoy está fazendo? — completou
Harry depressa. — E, achei que o senhor iria dizer isso. Mas como vamos saber?
— Não temos de saber — disse Lupin inesperadamente. Tinha dado as costas à lareira e
encarava Harry do outro lado do Sr. Weasley. — Dumbledore é quem tem. Ele confia em Severo,
e isto deve ser suficiente para todos nós.
— Mas digamos... digamos que Dumbledore esteja enganado a respeito do Snape...
— Muita gente tem dito isso muitas vezes. A questão se resume em confiar ou não confiar
no julgamento de Dumbledore. Eu confio; portanto, eu confio em Severo.
— Mas Dumbledore pode errar — argumentou Harry. — Ele mesmo diz isso. E você...
Ele olhou Lupin diretamente nos olhos.
— ... sinceramente, você gosta do Snape?
— Não gosto nem desgosto do Severo — respondeu Lupin. — Não, Harry, estou falando a
verdade — acrescentou, ao ver a expressão descrente de Harry. — Talvez nunca sejamos amigos
do peito; depois de tudo que aconteceu entre Tiago, Sirius e Severo, restou muita amargura. Mas
não esqueço que, durante o ano que ensinei em Hogwarts, Severo preparou a Poção de Acônito
para mim todos os meses, e com perfeição, para eu não precisar sofrer como normalmente sofro
na lua cheia.
— Mas deixou escapar "sem querer" que você era um lobisomem, e você teve de ir embora!
— lembrou Harry com raiva.
Lupin sacudiu os ombros.
— A notícia teria vazado de qualquer maneira. Nós dois sabemos que ele queria o meu
lugar, mas ele poderia ter me causado mais mal se tivesse adulterado a poção. Ele me manteve
saudável. Devo ser grato.
— Talvez ele não se atrevesse a adulterar a poção com Dumbledore de olho nele!
— Você está decidido a odiá-lo, Harry — disse Lupin com um leve sorriso. — E eu
compreendo; tendo Tiago por pai e Sirius por padrinho, você herdou um velho preconceito. Não
se detenha, conte a Dumbledore o que contou ao Arthur e a mim, mas não espere que ele
concorde com seu ponto de vista; nem mesmo que se surpreenda com o que ouvir. Talvez Severo
tenha até recebido ordem de Dumbledore para interrogar Draco.
"... e você agora o despedaçou. Agradeço que devolva o meu coração!"
Celestina terminou a canção com uma nota muito longa e aguda, e ouviram-se estrondosos
aplausos no rádio aos quais a Sra. Weasley fez um coro entusiamado.
— Terrminô? — perguntou Fleur em voz alta. — Grraças a Dês qu' cois horrro...
— Vamos tomar mais uma para encerrar? — ofereceu o Sr. Weasley também em voz alta,
levantando-se, ligeiro. — Quem aceita uma gemada?
— Que é que você tem feito ultimamente? — Harry perguntou a Lupin, enquanto o Sr.
Weasley se encarregava de apanhar a gemada, e os demais convidados recomeçavam a conversar.
— Ah, ando na clandestinidade. Quase literalmente. Por isso não tenho podido escrever;
mandar cartas seria o mesmo que me denunciar.
— Como assim?
— Tenho vivido entre companheiros, meus iguais — respondeu Lupin. — Lobisomens —
acrescentou ao ver o olhar de incompreensão de Harry. — Quase todos estão do lado de
Voldemort. Dumbledore queria um espião e eu estava ali... pronto.
Sua voz pareceu um pouco amargurada, e talvez ele percebesse, porque sorriu mais
calorosamente ao continuar:
— Não estou me queixando, é um trabalho necessário, e quem melhor do que eu para
executá-lo? Mas tem sido difícil ganhar a confiança deles. Trago comigo sinais inconfundíveis de
que tentei viver entre os bruxos, entende, enquanto eles evitaram a sociedade normal e vivem na
marginalidade, roubando e por vezes matando, para comer.
— E por que eles gostam de Voldemort?
— Acham que, sob o domínio dele, terão uma vida melhor — respondeu Lupin. — É difícil
argumentar com o Greyback lá fora...
— Quem é Greyback?
— Você nunca ouviu falar? — as mãos de Lupin se fecharam convulsivamente no colo. —
Fenrir Lobo Greyback talvez seja o lobisomem mais selvagem que existe hoje. Encara como
missão de sua vida morder e contaminar o maior número possível de pessoas; quer criar um
número suficiente de lobisomens para superar os bruxos.
Voldemort lhe prometeu vítimas como pagamento pelos seus serviços. Greyback se
especializa em crianças... morda-as enquanto pequenas, diz, e as crie longe dos pais, faça com
que odeiem os bruxos normais. Voldemort tem ameaçado lançá-lo contra os filhos das pessoas; é
uma ameaça que normalmente produz bons resultados.
Lupin fez uma pausa, e então continuou:
— Foi Greyback quem me mordeu.
— Quê? — exclamou Harry, perplexo. — Você quer dizer, quando você era criança?
— É. Meu pai o ofendeu. Durante muito tempo eu não soube a identidade do lobisomem
que tinha me atacado; cheguei a sentir pena dele, achando que não pudera se controlar, já
sabendo, então, o que a pessoa sentia quando se transformava. Mas Greyback não é assim. Na lua
cheia, ele se coloca a curta distância da vítima para garantir que esteja bem próximo para atacar.
Planeja cada detalhe. E é esse homem que Voldemort está usando para liderar os lobisomens. Não
posso fingir que a argumentação que adoto esteja dando resultado contra a insistência de
Greyback de que os lobisomens merecem sangue, que devem se vingar de quem é normal.
— Mas você é normal! — exclamou Harry com veemência. — Só tem um... um problema...
Lupin caiu na gargalhada.
— Às vezes você me lembra muito o Tiago. Quando havia pessoas por perto, ele dizia que
eu tinha um "probleminha peludo". Muita gente pensava que eu tinha um coelhinho
malcomportado.
Lupin aceitou um copo de gemada do Sr. Weasley, agradecendo, e pareceu um pouco mais
alegre. Harry sentiu uma onda de excita-ção: a menção do pai lembrou-lhe que havia uma coisa
que estava querendo perguntar a Lupin.
— Você já ouviu falar de alguém que se intitula Príncipe Mestiço?
— Príncipe quê?
— Mestiço — disse Harry, observando-o com atenção, à procura de sinais de
reconhecimento.
— Não há príncipes bruxos — respondeu Lupin, agora sorrindo. — Esse é o título que você
está pensando em adotar? Eu teria achado que "o Eleito" já era o suficiente.
— Não, não tem nada a ver comigo! — exclamou ele indignado. — O Príncipe Mestiço é
alguém que freqüentou Hogwarts, tenho o livro de Poções que ele usou. Tem anotações sobre
feitiços no livro todo, feitiços que ele inventou. Um deles foi o Levicorpus...
— Ah, esse aí esteve em grande moda em Hogwarts, no meu tempo — disse Lupin,
lembrando-se. — Durante alguns meses, no meu quinto ano, a pessoa não podia andar sem ser
pendurada no ar pelo tornozelo.
— Meu pai o usou. Vi na Penseira quando o usou contra Snape. Harry tentou parecer
displicente, como se aquele fosse um comentário sem real importância, mas não teve certeza de
que obtiver a o efeito pretendido; o sorriso de Lupin foi compreensivo demais.
— Usou, mas ele não foi o único. Como disse, foi muito popular... você sabe como esses
feitiços vêm e vão...
— Mas parece que foi inventado enquanto você esteve na escola — insistiu Harry.
— Não necessariamente. Azarações entram e saem de moda como tudo o mais. — Ele
encarou Harry e disse em voz baixa: — Tiago tinha sangue puro, Harry, e juro a você, ele nunca
nos pediu para chamá-lo de "Príncipe".
Harry, abandonando os rodeios, perguntou:
— E não foi Sirius? Nem você?
— Decididamente não.
— Ah. — Harry contemplou as chamas da lareira. — Pensei... bem, ele me ajudou muito
nas aulas de Poções, o Príncipe.
— Que idade tem o livro, Harry?
— Não sei, nunca olhei.
— Bem, talvez lhe dê uma pista da época em que o Príncipe esteve em Hogwarts.
Pouco depois, Fleur resolveu imitar Celestina cantando "Um caldeirão cheio de amor quente
e forte", que todos entenderam, ao ver a expressão da Sra. Weasley como uma deixa para se
retirarem. Harry e Rony subiram até o quarto de Rony no sótão, onde tinha sido posta uma cama
de armar para Harry.
Rony adormeceu quase imediatamente, mas Harry, antes de se deitar, foi procurar no malão,
de onde tirou o exemplar de Estudos avançados no preparo de poções. Na cama, folheou as
páginas com atenção, até encontrar, no início do livro, a data em que fora publicado. Tinha quase
cinqüenta anos. Nem seu pai nem seus amigos tinham freqüentado Hogwarts há cinqüenta anos.
Desapontado, Harry atirou o livro de volta ao malão, apagou o lampião e se virou para o lado
oposto da cama, pensando em lobisomens e Snape, em Lalau Shunpike e no Príncipe Mestiço,
mergulhando, por fim, em um sono inquieto, cheio de sombras furtivas e gritos de crianças
mordidas...
— Ela tem de estar brincando...
Harry acordou assustado e deparou com uma meia estufada nos pés de sua cama. Pôs os
óculos e olhou ao seu redor; a janela minúscula estava quase totalmente escurecida pela neve e
diante dela estava Rony, sentado muito reto na cama, examinando um objeto que parecia um
cordão de ouro.
— Que é isso? — perguntou Harry.
— É da Lilá — respondeu ele, parecendo revoltado. — Ela não pode pensar seriamente que
eu usaria...
Harry se aproximou para olhar e soltou uma grande gargalhada. Pendurada no cordão, em
grandes letras de ouro, havia a frase "Meu Namorado".
— Legal — comentou ele. — Estiloso. Decididamente, você tem de usar isso na frente de
Fred e Jorge.
— Se você contar a eles — ameaçou Rony, fazendo o colar desaparecer embaixo do
travesseiro —, eu... eu... eu vou...
— Gaguejar para mim? — respondeu Harry, rindo. — Ah, vai, você acha que eu faria isso?
— Mas como é que ela pôde pensar que eu ia gostar de uma coisa dessas? — perguntou
Rony, parecendo muito chocado.
— Bem, procure se lembrar. Alguma vez você deixou escapar que gostaria de aparecer em
público com as palavras "Meu Namorado" penduradas no pescoço?
— Bem... na realidade não conversamos muito — disse Rony. — Ficamos mais...
— Dando uns amassos — completou Harry.
— Bem, é. — Ele hesitou um momento, então perguntou: — A Hermione está realmente
namorando o McLaggen?
— Não sei. Eles estiveram na festa de Slughorn juntos, mas acho que não foi muito legal.
Rony pareceu um pouco mais animado ao enfiar a mão no fundo da meia.
Os presentes de Harry incluíam uma suéter com um grande pomo de ouro no peito, tricotado
a mão pela Sra. Weasley, uma grande caixa com produtos da Gemialidades Weasley, dada pelos
gêmeos, e um embrulho ligeiramente úmido, cheirando a mofo, com uma etiqueta em que se lia:
"Ao Senhor, do Monstro." Harry arregalou os olhos.
— Você acha que é seguro abrir? — perguntou.
— Não pode ser nada perigoso, toda a nossa correspondência continua a ser verificada pelo
Ministério — respondeu Rony, embora olhasse o embrulho com desconfiança.
— Não pensei em dar nada ao Monstro! Normalmente as pessoas dão presentes de Natal aos
elfos domésticos? — tornou Harry, cutucando o embrulho com cautela.
— Hermione daria. Mas vamos esperar para ver o que é, antes de você começar a sentir
remorsos.
Um instante depois, Harry dava um berro e pulava da cama; o pacote continha numerosas
larvas de varejeira.
— Legal — exclamou Rony às gargalhadas. — Quanta consideração!
— Prefiro as larvas a esse colar — disse Harry, fazendo Rony parar de rir na mesma hora.
Todos estavam usando suéteres novos quando se sentaram para o almoço de Natal, todos
exceto Fleur (em quem, pelo visto, a Sra. Weasley não quisera desperdiçar um) e a própria Sra.
Weasley, com um chapéu de bruxa novo, azul-noite, que brilhava com minúsculos diamantes
estrelados, e um espetacular colar de ouro.
— Foram presentes de Fred e Jorge! Não são lindos?
— Bem, descobrimos que gostamos cada vez mais de você, mamãe, agora que temos de
lavar as nossas meias — disse Jorge, com um leve aceno de mão. — Pastinaca, Remo?
— Harry, tem uma larva no seu cabelo — disse Gina alegre, debruçando-se sobre a mesa
para retirá-la; Harry sentiu subirem pelo seu pescoço arrepios que não tinham relação alguma
com a larva.
— Qu' horrrivell — exclamou Fleur, afetando um arrepio.
— É, não é, Fleur? — concordou Rony. — Molho, Fleur?
Em sua ânsia de ajudar, ele lançou o molho pelos ares; Gui fez um gesto com a varinha, e o
molho pairou no ar e voltou obedientemente à molheira.
— Você é ton desastrrade quanto a Tonks — disse Fleur a Rony, quando terminou de beijar
Gui para lhe agradecer. — Ela stá semprre derrrubande...
— Convidei a querida Tonks para vir hoje aqui — anunciou a Sra. Weasley, pondo na mesa
as cenouras, com desnecessária violência, e encarando Fleur. — Mas ela não aceitou. Você tem
falado com ela ultimamente, Remo?
— Não, não tenho tido muito contato com ninguém — disse Lupin. — Mas Tonks tem
família para visitar, não?
— Hummm. Talvez. Na realidade, tive a impressão de que estava planejando passar o Natal
sozinha.
Molly lançou a Lupin um olhar irritado, como se fosse culpa dele que sua futura nora fosse
Fleur em vez de Tonks. Ocorreu a Harry, ao olhar Fleur — que agora oferecia a Gui pedacinhos
de peru com o próprio garfo —, que a Sra. Weasley estava travando uma batalha há muito tempo
perdida. Lembrou-se, no entanto, de uma pergunta que queria fazer sobre Tonks, e quem melhor
para responder a ela do que Lupin, o homem que conhecia tudo sobre Patronos?
— O Patrono de Tonks mudou de forma — disse Harry a ele. — Pelo menos foi o que disse
Snape. Eu não sabia que isto podia acontecer. Por que razão um Patrono mudaria?
Lupin demorou algum tempo mastigando o peru, e engoliu-o antes de responder lentamente.
— Às vezes... um grande choque... uma perturbação emocional...
— Parecia grande e era quadrúpede — comentou Harry, tendo uma súbita idéia e baixando
a voz. — Ei... não poderia ser...?
— Arthur! — chamou a Sra. Weasley de repente. Levantara-se da cadeira; sua mão apertava
o peito e tinha os olhos fixos na janela da cozinha. — Arthur... é o Percy!
— Quê?
O Sr. Weasley se virou. Todos olharam depressa para a janela; Gina ficou em pé para ver
melhor. De fato, era Percy Weasley, avançando pelo quintal coberto de neve, seus óculos de aros
de tartaruga refletindo o sol. Não vinha, porém, sozinho.
— Arthur, ele está... está com o ministro!
De fato, o homem que Harry vira no Profeta Diário acompanhava os passos de Percy,
mancando levemente, a cabeleira grisalha e a capa negra salpicadas de neve. Antes que qualquer
um pudesse dizer alguma coisa, antes que o Sr. e a Sra. Weasley pudessem trocar mais que um
olhar surpreso, a porta dos fundos se abriu e ali estava Percy. Fez-se um momento de doloroso
silêncio. Em seguida, Percy disse formalmente:
— Feliz Natal, mamãe.
— Ah, Percy! — exclamou a Sra. Weasley atirando-se em seus braços. Rufo Scrimgeour
parou à porta, apoiando-se na bengala e sorrindo, enquanto observava a comovente cena.
— Perdoem-me a intromissão — disse, quando a Sra. Weasley virou-se para ele, sorrindo e
enxugando as lágrimas. — Percy e eu estávamos nas vizinhanças, a trabalho, e ele não pôde
resistir à tentação de passar para ver todos vocês.
Mas Percy não deu sinal algum de querer cumprimentar ninguém mais da família. Ficou
parado, rígido, sem jeito, olhando por cima das cabeças de todos. O Sr. Weasley, Fred e Jorge o
observavam, impassíveis.
— Por favor, entre, ministro, sente! — alvoroçou-se a Sra. Weasley, endireitando o chapéu.
— Voma um pouco de teru ou um pouco de tudim..., quero dizer...
— Não, não, minha cara Molly — respondeu Scrimgeour. Harry imaginou que ele tivesse
perguntado o nome dela a Percy antes de entrarem na casa. — Não quero incomodar, não estaria
aqui se Percy não tivesse querido tanto ver vocês...
— Ah, Percy! — exclamou a Sra. Weasley chorosa, aproximando-se para beijá-lo.
— ... é só uma passadinha de cinco minutos, vou dar uma volta pelo quintal enquanto vocês
põem a conversa em dia. Não, não, torno a afirmar que não quero ser inconveniente! Bem,
alguém gostaria de me mostrar o seu encantador jardim... ah, aquele jovem já terminou, por que
ele não me acompanha no passeio?
A atmosfera em volta da mesa mudou perceptivelmente. Todos olharam de Scrimgeour para
Harry. Ninguém parecia achar convincente o ministro fingir que não sabia o nome de Harry, nem
natural que o escolhesse para acompanhá-lo pelo jardim quando Gina, Fleur e Jorge também
tinham os pratos vazios.
— Ah, eu vou — disse Harry no silêncio que se seguiu.
Ele não se deixara enganar; apesar de toda aquela conversa de Scrimgeour de que estavam
nas proximidades, que Percy queria visitar a família, esta devia ser a verdadeira razão por que
tinham vindo, para o ministro poder falar a sós com Harry.
— Tudo bem — disse Harry baixinho ao passar por Lupin, que fizera menção de se levantar
da cadeira. — Tudo bem — acrescentou, quando o Sr. Weasley abriu a boca para falar.
— Excelente! — disse Scrimgeour, afastando-se para deixar Harry passar primeiro pela
porta. — Só vamos dar uma volta pelo jardim, e então Percy e eu vamos embora. Podem
continuar!
Harry atravessou o quintal em direção ao jardim descuidado e coberto de neve, com
Scrimgeour mancando ao seu lado. O garoto sabia que ele tinha sido chefe da Seção de Aurores;
parecia durão e marcado pelas lutas, muito diferente do corpulento Fudge com o seu chapéucoco.
— Encantador — comentou Scrimgeour, parando junto à cerca do jardim e contemplando o
gramado coberto de neve e as plantas indistinguíveis. — Encantador.
Harry ficou calado. Sabia que o ministro o observava.
— Há muito tempo que queria conhecê-lo — disse Scrimgeour após alguns instantes. —
Você sabia?
— Não — respondeu Harry com sinceridade.
— Ah, sim, há muito tempo. Mas Dumbledore o protege muito. O que é natural, depois de
tudo por que você passou... principalmente o que aconteceu no Ministério...
Ele esperou que Harry dissesse alguma coisa, mas o garoto não correspondeu, então
continuou.
— Estou esperando uma oportunidade para conversar com você desde que assumi, mas
Dumbledore tem, e, como digo, é compreensível, me impedido.
Ainda assim, Harry nada disse, aguardou.
— Os boatos que têm corrido! Bem, é claro que sabemos que as histórias acabam
distorcidas... todos os rumores de uma profecia... de você ser "o Eleito"...
Estavam chegando mais perto agora, pensou Harry, da razão que levara Scrimgeour até ali.
— ... presumo que Dumbledore tenha discutido essas questões com você, não?
Harry debateu mentalmente se devia ou não mentir. Olhou para as pegadinhas dos gnomos
em volta dos canteiros, e para um trecho pisoteado que assinalava o lugar onde Fred apanhara o
gnomo que agora enfeitava o alto da árvore de Natal, vestido com um tutu. Por fim, decidiu-se
pela verdade... ou por parte dela.
— É, temos discutido.
— Têm, têm... — animou-se Scrimgeour. Harry via pelo canto do olho que o ministro o
observava de olhos semicerrados, então fingiu estar muito interessado em um gnomo que acabara
de pôr a cabeça para fora de um rododendro congelado. — E que é que Dumbledore tem lhe dito,
Harry?
— Desculpe, mas isto é só entre nós.
Ele procurou manter a voz a mais agradável possível, e o tom de Scrimgeour também foi
leve e simpático quando disse:
— Ah, claro, são confidencias, eu não iria querer que você as revelasse... não, não... e, de
qualquer forma, faz diferença se você é ou não "o Eleito"?
Harry precisou remoer a pergunta alguns segundos antes de responder.
— Não sei o que o senhor quer realmente dizer, ministro.
— Bem, naturalmente, para você, fez uma enorme diferença — disse Scrimgeour dando
uma risada. — Mas para a comunidade bruxa como um todo... é uma questão de percepção, não
é? É aquilo em que as pessoas acreditam que é importante.
Harry não disse nada. Pensou ter percebido difusamente aonde iriam chegar, mas não ia
ajudar Scrimgeour a chegar lá. O gnomo sob o rododendro agora escavava à procura de minhocas
nas raízes da planta, e Harry manteve os olhos fixos nele.
— As pessoas acreditam que você é "o Eleito", entende? Acham que você é um herói, o que
é claro, você é, Harry, eleito ou não! Quantas vezes você enfrentou Aquele-Que-Não-Deve-Ser-
Nomeado até agora? Bem, seja como for — ele prosseguiu sem esperar resposta —, a questão é
que você é um símbolo de esperança para muitos, Harry. A idéia de que tem alguém de sentinela
que talvez possa, ou até talvez esteja destinado a destruir Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado...
bem é natural que isto revigore as pessoas. E não posso deixar de sentir que, quando perceber
isto, você talvez considere, bem, quase como um dever, apoiar o Ministério e dar alento a todos.
O gnomo tinha acabado de pegar uma minhoca. Agora puxava-a com muita força, tentando
extraí-la da terra gelada. Harry guardou silêncio por tanto tempo que Scrimgeour comentou,
desviando o olhar dele para o gnomo:
— São umas criaturinhas engraçadas, não? Mas que me diz, Harry?
— Não compreendo exatamente o que o senhor quer — respondeu ele vagaroso. — Apoiar
o Ministério... que quer dizer com isso?
— Ah, bem, nada muito oneroso, posso lhe assegurar. Se você fosse visto entrando e saindo
do Ministério de vez em quando, por exemplo, daria a impressão correta. E, naturalmente,
enquanto estivesse lá, você teria ampla oportunidade de conversar com Gawain Robards, meu
sucessor na chefia da Seção de Aurores. Dolores Umbridge me disse que você alimenta a
ambição de se tornar auror. Bem, isso poderia ser facilmente arranjado...
Harry sentiu a raiva borbulhar no fundo do estômago: então Dolores Umbridge continuava
no Ministério?
— Então, basicamente — falou Harry, como se quisesse apenas esclarecer alguns pontos —
, o senhor gostaria de dar a impressão de que estou trabalhando para o Ministério?
— Daria mais ânimo a todos pensar que você participa mais, Harry — disse Scrimgeour,
parecendo aliviado que o garoto tivesse entendido tão rápido. — "O Eleito" sabe... é uma questão
de dar esperança às pessoas, a sensação de que há coisas emocionantes acontecendo...
— Mas se eu ficar entrando e saindo do Ministério — perguntou Harry, ainda se esforçando
para manter um tom amigável —, não irá parecer que eu aprovo o que o Ministério está fazendo?
— Bem — respondeu Scrimgeour, franzindo ligeiramente a testa —, bem, sim, em parte é
por isso que gostaríamos...
— Não, acho que não vai dar certo — disse Harry gentilmente. —Veja o senhor, não gosto
de algumas coisas que o Ministério está fazendo. Prender o Lalau Shunpike, por exemplo.
Scrimgeour calou-se por um momento, mas sua expressão endureceu instantaneamente.
— Eu não esperaria que você compreendesse — disse ele, mas não foi tão bem-sucedido
quanto Harry em ocultar sua raiva. — Vivemos tempos perigosos, e é preciso tomar certas
medidas. Você tem dezesseis anos...
— Dumbledore tem muito mais de dezesseis anos e também acha que Lalau não devia estar
em Azkaban. O senhor está transformando
Lalau em bode expiatório do mesmo modo que quer me transformar em mascote.
Eles se encararam demorada e inflexivelmente. Por fim, Scrimgeour falou, sem fingir
cordialidade:
— Entendo. Você prefere, como o seu herói Dumbledore, se desassociar do Ministério?
— Não quero ser usado.
— Alguns diriam que é seu dever se deixar usar pelo Ministério!
— É, e outros diriam que é seu dever verificar se as pessoas são realmente Comensais da
Morte antes de metê-las na prisão — respondeu Harry se encolerizando. — O senhor está fazendo
o mesmo que Bartô Crouch fez. Os senhores nunca entendem muito bem, não é? Ou temos
Fudge, fingindo que tudo está ótimo enquanto as pessoas são assassinadas debaixo do nariz dele,
ou temos o senhor, metendo as pessoas erradas na prisão e querendo fingir que "o Eleito" está trabalhando
para o Ministério!
— Então você não é "o Eleito"? — indagou Scrimgeour.
— Pensei ter ouvido o senhor dizer que não faria diferença — respondeu Harry com uma
risada amargurada. — Pelo menos, não para o senhor.
— Eu não devia ter dito isso — interpôs ligeiro Scrimgeour. — Foi falta de tato...
— Não, foi sincero. Uma das poucas coisas sinceras que o senhor me disse. O senhor não se
importa que eu viva ou morra, mas faz questão que eu o ajude a convencer a todos que está
ganhando a guerra contra Voldemort. Não esqueci, ministro...
Harry ergueu a mão direita. Ali, nas costas de sua mão fria, destacavam-se, lívidas, as
cicatrizes que Dolores Umbridge o obrigara a gravar na própria carne: Não devo contar mentiras.
— Não me lembro do senhor ter corrido em minha defesa quando eu estava tentando dizer a
todos que Voldemort tinha retornado. O Ministério não esteve tão interessado em ser meu amigo
no ano que passou.
Os dois ficaram parados em um silêncio gelado como o chão sob seus pés. O gnomo
finalmente conseguira retirar a minhoca e agora a chupava feliz, encostado nos galhos mais
baixos do rododendro.
— Que anda fazendo o Dumbledore? — perguntou Scrimgeour bruscamente. — Aonde vai
quando se ausenta de Hogwarts?
— Não faço a menor idéia — respondeu Harry.
— E não me diria se fizesse, não é?
— Não, não diria.
— Bem, então, terei de ver se descubro por outros meios.
— Pode tentar — disse Harry com indiferença. — Mas o senhor parece mais inteligente do
que Fudge, por isso seria de imaginar que tivesse aprendido com os erros dele. Fudge tentou
interferir em Hogwarts. O senhor deve ter reparado que ele não é mais ministro, mas Dumbledore
continua a ser diretor. Eu deixaria Dumbledore em paz, se fosse o senhor.
Houve uma longa pausa.
— Bem, é evidente que ele fez um excelente trabalho com você — disse Scrimgeour, com o
olhar frio e duro por trás dos óculos de aros de arame. — Você é por inteiro um homem de
Dumbledore, não, Potter?
— Sou. Que bom que deixamos isto claro.
E dando as costas ao ministro da Magia, Harry saiu em direção à casa.
CAPÍTULO DEZESSETE
UMA LEMBRANÇA RELUTANTE
NO FINAL DA TARDE, POUCOS DIAS DEPOIS do Ano-Novo, Harry, Rony e Gina se
enfileiraram ao lado do fogão da cozinha para regressar a Hogwarts. O Ministério providenciara
essa conexão com a Rede de Flu para os estudantes poderem se transportar à escola com rapidez e
segurança. Apenas a Sra. Weasley estava presente para se despedir, porque o marido, Fred, Jorge,
Gui e Fleur estavam no trabalho. A Sra. Weasley debulhou-se em lágrimas no momento da
separação. Nos últimos tempos, era preciso muito pouco para fazê-la chegar às lágrimas; andava
chorando a toda hora desde que Percy se retirara bruscamente de casa no dia de Natal, com os
óculos sujos de purê de pastinaca (pelo que Fred, Jorge e Gina se diziam responsáveis).
— Não chore, mamãe — consolava-a Gina, dando palmadinhas nas costas da mãe chorosa
ao seu ombro. — Tá tudo bem.
— É, não se preocupe conosco — disse Rony, deixando a mãe plantar-lhe um beijo muito
molhado na bochecha — nem com o Percy. Ele é tão babaca que não se perde grande coisa, não
é?
A Sra. Weasley soluçou ainda mais forte ao abraçar Harry.
— Prometa que vai se cuidar... não se meta em confusões...
— Eu sempre me cuido, Sra. Weasley. Gosto de levar uma vida tranqüila, a senhora me
conhece.
Ela deu uma risada lacrimosa e se afastou.
— Comportem-se, então, todos vocês...
Harry entrou nas chamas verde-esmeralda e gritou:
— Hogwarts! — Ele teve uma última e fugaz visão da cozinha da Sra. Weasley e do seu
rosto molhado de lágrimas antes de ser envolvido pelas chamas; rodopiando velozmente, captou
vislumbres difusos de outros aposentos de bruxos, que sumiam de vista antes que ele pudesse vêlos
direito; por fim desacelerou e parou alinhado com a lareira da sala da professora McGonagall.
Ela mal ergueu os olhos do seu trabalho quando ele saiu engatinhando da lareira.
— Noite, Potter. Procure não deixar muita cinza no tapete.
— Sim, professora.
Harry ajeitou os óculos e achatou os cabelos na hora em que Rony surgiu, rodopiando.
Quando Gina chegou, os três saíram da sala de McGonagall e tomaram a direção da Torre da
Grifinória. No caminho, Harry espiou pelas janelas do corredor; o sol já estava se pondo nos
terrenos da escola cobertos por um tapete de neve mais alto do que o d'A Toca. Ao longe, viu
Hagrid alimentando Bicuço na frente da cabana.
— Bolas festivas — disse Rony, confiante, quando chegaram ao quadro da Mulher Gorda,
que estava bem mais pálida do que o normal e fez uma careta à voz alta do garoto.
— Não — respondeu ela.
— Como assim "não"?
— Há uma nova senha. E, por favor, não grite.
— Mas estivemos fora, como é que...?
— Harry! Gina!
Hermione corria em sua direção, de rosto muito corado, trajando capa, chapéu e luvas.
— Cheguei há umas duas horas, dei um pulinho lá embaixo para visitar Hagrid e Bicuço,
quero dizer, Asafugaz — disse sem fôlego. — Tiveram um bom Natal?
— Tivemos — respondeu Rony na mesma hora —, bem movimentado, Rufo Scrimgeour...
— Tenho uma coisa para você, Harry — falou Hermione sem olhar para Rony, nem dar
sinal de que o ouvira. — Ah, calma aí, a senha. Abstinência.
— Exatamente — confirmou a Mulher Gorda com voz fraca, e girou abrindo o buraco do
retrato.
— Que é que ela tem? — perguntou Harry.
— Aparentemente exagerou no Natal — informou Hermione, olhando para o teto e abrindo
caminho para a sala comunal repleta de alunos. — Ela e a amiga Violeta acabaram com aquele
vinho no quadro dos monges bêbados junto ao corredor de Feitiços. Então...
Ela remexeu no bolso um instante e tirou um rolo de pergaminho com a caligrafia de
Dumbledore.
— Legal — exclamou Harry, desenrolando-o imediatamente e descobrindo que sua próxima
aula com Dumbledore estava marcada para a noite seguinte. — Tenho um monte de coisas para
contar a ele... e a você. Vamos sentar...
Mas naquele momento ouviram um guincho de "Uon-Uon!", e Lilá Brown apareceu
correndo, ninguém sabe de onde, e atirou-se nos braços de Rony. Muitas pessoas ao redor
abafaram risinhos. Hermione soltou uma risada tilintante e disse:
— Tem uma mesa ali adiante... você vem, Gina?
— Não, obrigada, prometi me encontrar com o Dino — respondeu a garota, embora Harry
não pudesse deixar de notar que não parecia muito entusiasmada. Deixando Rony e Lilá atracados
em uma espécie de luta livre vertical, Harry conduziu Hermione para a mesa vazia.
— Então, como foi o Natal?
— Ah, bom — ela sacudiu os ombros. — Nada especial. E como foi na casa do Uon-Uon?
— Conto num minuto — disse Harry. — Olhe, Hermione, será que você não pode...
— Não, não posso — respondeu ela taxativamente. — Por isso nem me peça.
— Pensei que talvez, sabe, durante as férias de Natal...
— Foi a Mulher Gorda que bebeu um barril de vinho de quinhentos anos, Harry, e não eu.
Então, que notícias importantes eram essas que você queria me contar?
No momento ela parecia agressiva demais para discussões, então Harry deixou de lado o
assunto Rony e relatou o que escutara Malfoy e Snape dizerem.
Quando ele terminou, Hermione refletiu por um instante e disse:
— Você não acha...?
— ... que ele estava fingindo oferecer ajuda para poder induzir Malfoy a lhe contar o que
estava fazendo?
— Bem, é isso.
— O pai de Rony e Lupin acham que sim — concedeu Harry de má vontade. — Mas isto só
prova que Malfoy está tramando alguma coisa, isto você não pode negar.
— Não, não posso — respondeu ela lentamente.
— E ele está agindo por ordens de Voldemort, exatamente como falei!
— Hum... algum dos dois chegou a mencionar o nome de Voldemort?
Harry franziu a testa, tentando lembrar.
— Não tenho certeza... Snape disse "o seu senhor", quem mais poderia ser?
— Não sei — respondeu Hermione mordendo o lábio. — Talvez o pai dele?
Ela fixou o olhar do lado oposto da sala, aparentemente perdida em pensamentos, sem
sequer reparar que Lilá fazia cócegas em Rony.
— Como vai o Lupin?
— Nenhuma maravilha — respondeu Harry contando-lhe a missão de Lupin entre os
lobisomens e as dificuldades que estava enfrentando. — Você já ouviu falar de Lobo Greyback?
— Já! — exclamou Hermione levando um susto. — E você também, Harry!
— Quando, em História da Magia? Você sabe muito bem que nunca prestei atenção...
— Não, não, não foi em História da Magia: Malfoy usou o Lobo para ameaçar Borgin! Lá
na travessa do Tranco, não se lembra? Ele disse que o Lobo Greyback era um velho amigo da
família e que iria verificar o andamento do serviço!
Harry ficou boquiaberto.
— Eu tinha me esquecido! Mas isto comprova que Malfoy é um Comensal da Morte, de
que outro modo ele poderia estar em contato com Greyback, e lhe dizer o que fazer?
— É muito suspeito — sussurrou Hermione. — A não ser que...
— Ah, fala sério — exclamou Harry exasperado —, não dá para você justificar essa!
— Bem... há uma possibilidade de que tenha sido uma falsa ameaça.
— Você é inacreditável, ah, é — disse Harry balançando a cabeça. —Você vai ver quem
tem razão... você vai engolir o que está dizendo, Hermione, como fez o Ministério. Ah, sim, e
também tive uma briga com Rufo Scrimgeour...
E o resto da noite se passou amigavelmente, com os dois xingando o ministro da Magia,
porque Hermione, tal como Rony, achou que, depois de tudo que o Ministério tinha feito Harry
sofrer no ano anterior, era muita cara-de-pau agora lhe pedir ajuda.
O novo trimestre começou na manhã seguinte com uma surpresa agradável para o sexto ano:
um grande aviso fora pregado durante a noite nos quadros da sala comunal.
AULAS DE APARATAÇÃO
Se você tem dezessete anos, ou vai completá-los até 31 de agosto, inclusive, poderá se
inscrever em um curso de Aparatação de doze aulas semanais com um instrutor do
Ministério da Magia.
Se quiser participar, assine abaixo, por favor.
Custo: 12 galeões
Harry e Rony se juntaram à multidão que se acotovelava em volta do aviso, revezando-se
para se inscrever no local indicado. Rony ia apanhando a caneta para assinar em seguida a
Hermione quando Lilá se aproximou sorrateiramente pelas costas dele, cobriu seus olhos com as
mãos e cantarolou "Adivinha quem é, Uon-Uon?". Harry virou-se e viu Hermione se afastar
discretamente; foi em seu encalço porque não tinha o menor desejo de ficar para trás com Rony e
Lilá, mas, para sua surpresa, Rony os alcançou um pouco adiante do buraco do retrato, com as
orelhas em fogo e uma expressão aborrecida no rosto. Sem dizer uma palavra, Hermione se
apressou para caminhar com Neville.
— Então, Aparatação — começou Rony, deixando perfeitamente claro pelo seu tom de voz
que Harry não devia mencionar o que acabara de acontecer. — Deve ser maneiro, eh?
— Não sei, não — disse Harry. — Talvez seja melhor quando a gente aparata sozinho, eu
não gostei muito quando Dumbledore me levou de carona.
— Esqueci que você já aparatou... É bom eu passar no teste da primeira vez — comentou
Rony parecendo ansioso. — Fred e Jorge passaram.
— Mas Carlinhos levou bomba, não foi?
— É, mas Carlinhos é maior do que eu — Rony esticou os braços para os lados como se
fosse um gorila —, e com isso Fred e Jorge não gozaram muito com a cara dele... pelo menos não
pela frente...
— Quando é que podemos fazer o teste real?
— Assim que completarmos dezessete anos. Para mim, isto quer dizer em março!
— É, mas você não poderia aparatar aqui, não no castelo...
— Não é o que está em jogo. Todo o mundo ia ficar sabendo que eu poderia aparatar se
quisesse.
Rony não foi o único a ficar excitado com a perspectiva de aparatar. Durante todo o dia
falou-se muito sobre as futuras aulas; deu-se muita importância à habilidade de desaparecer e
reaparecer à vontade.
— Vai ser maneiro quando a gente puder... — Simas estalou os dedos para indicar sumiço.
— Meu primo Fergus faz isso só para implicar comigo, espere até eu poder fazer o mesmo... ele
nunca mais vai ter um momento de paz na vida...
Perdido em visões dessa feliz perspectiva, ele agitou a varinha com excessivo entusiasmo, e
em vez de produzir a fonte de água pura que era o objeto da aula de Feitiços daquele dia,
materializou um jato de mangueira que ricocheteou no teto e derrubou o professor Flitwick de
cara no chão.
— Harry já aparatou — Rony contou ao espantado Simas, depois que o professor se
enxugou com um aceno da varinha e mandou-o escrever uma frase várias vezes ("Sou um bruxo e
não um babuíno empunhando uma varinha.").—Dum... ah... uma pessoa fez uma Aparataçãoacompanhada
com ele, sabe.
— Pô! — sussurrou Simas, e ele, Dino e Neville juntaram as cabeças para escutar como era
uma Aparatação. Pelo resto do dia, Harry foi assediado com pedidos de outros sextanistas para
descrever como alguém se sentia quando aparatava. Todos manifestavam assombro em vez de
desapontamento quando contava o desconforto que era, e, ele ainda respondia a perguntas
detalhadas às dez para as oito da noite, quando foi obrigado a inventar que precisava devolver um
livro à biblioteca, para se livrar em tempo de ir à aula de Dumbledore.
Os lampiões no escritório do diretor estavam acesos, os retratos dos diretores anteriores
roncavam suavemente em suas molduras e a Penseira estava mais uma vez pronta sobre a
escrivaninha. As mãos de Dumbledore estavam dos lados da Penseira, a direita escura e queimada
como sempre. Não parecia ter sarado, e Harry ficou imaginando, talvez pela centésima vez, o que
teria causado aquele ferimento singular, mas não perguntou nada; Dumbledore dissera que lhe
contaria no momento certo e, seja como for, havia outro assunto que ele queria discutir. Antes,
porém, que Harry pudesse mencionar qualquer coisa sobre Snape e Malfoy, Dumbledore falou:
— Ouvi dizer que você se encontrou com o ministro da Magia no Natal.
— Verdade — respondeu Harry. — Ele não ficou muito satisfeito comigo.
— Não — suspirou Dumbledore. — Ele também não está muito satisfeito comigo. É preciso
tentar não sucumbir sob o peso de nossas angústias, Harry, e continuar a lutar.
O garoto sorriu.
— Ele queria que eu dissesse à comunidade bruxa que o Ministério está fazendo um
trabalho maravilhoso.
Dumbledore sorriu.
— Originalmente, essa idéia foi de Fudge, sabe. Nos últimos dias de Ministério, quando ele
ainda tentava desesperadamente se manter no cargo, quis se encontrar com você, na esperança de
receber seu apoio...
— Depois de tudo que ele fez no ano passado? — exclamou Harry irritado. — Depois da
Umbridge?
— Eu disse ao Cornélio que não havia a menor chance, mas a idéia não morreu quando ele
deixou o cargo. Horas depois de Scrimgeour ser nomeado, nos encontramos e ele exigiu que eu
marcasse uma reunião com você...
— Então foi por isso que os senhores se desentenderam! — deixou escapar Harry. — Deu
no Profeta Diário.
— O Profeta Diário às vezes acaba noticiando a verdade, ainda que por acaso. Certo, foi por
isso que discutimos.
Bem, parece que finalmente Rufo descobriu um jeito de encurralar você.
— Ele me acusou de ser "por inteiro um homem de Dumbledore".
— Que grosseria a dele.
— Eu respondi a ele que era.
Dumbledore abriu a boca para falar e tornou a fechá-la. Às costas de Harry, Fawkes, a fênix,
soltou um pio baixo, suave e melodioso. Para seu intenso constrangimento, Harry percebeu
repentinamente que os olhos muito azuis de Dumbledore pareciam marejados, e depressa
começou a encarar os próprios joelhos. Quando o diretor falou, porém, sua voz estava bem firme.
— Fico muito comovido, Harry.
— Scrimgeour queria saber aonde o senhor vai quando não está em Hogwarts — tornou
Harry, ainda fixando os joelhos.
— É, ele anda muito curioso a respeito disso — disse Dumbledore, agora com a voz
animada, e Harry achou que já era seguro erguer os olhos. — Chegou a tentar mandar me seguir.
Na realidade, é engraçado. Pôs Dawlish no meu rastro. Não foi nada gentil. Já fui obrigado a
azarar Dawlish uma vez; tive de fazer isto outra vez, lamentando muito.
— Então eles continuam sem saber aonde o senhor vai? — perguntou Harry esperando obter
mais informações sobre sua intrigante ausência, mas os olhos de Dumbledore meramente
sorriram por cima dos oclinhos de meia-lua.
— Continuam, e ainda não chegou a hora de você saber. Agora sugiro que nos apressemos,
a não ser que tenha mais alguma coisa...?
— Na realidade tenho, sim, senhor. E sobre Malfoy e Snape.
— Professor Snape, Harry.
— Sim, senhor. Eu escutei os dois durante a festa do professor Slughorn... bem, para dizer a
verdade, eu os segui...
Dumbledore ouviu impassível a história de Harry. Quando o garoto terminou, ele
permaneceu calado por alguns momentos, depois disse:
— Obrigado por me contar, Harry, mas sugiro que você esqueça esse assunto. Acho que não
tem grande importância.
— Não tem grande importância? — repetiu Harry incrédulo. — Professor, o senhor
entendeu...?
— Claro, Harry, abençoado como sou com uma extraordinária capacidade intelectual,
entendi tudo que me contou — disse Dumbledore, com uma certa rispidez. — Acho mesmo que
você talvez devesse considerar a possibilidade de eu ter entendido mais do que você. Mais uma
vez fico satisfeito que tenha confiado em mim, mas asseguro que você não me disse nada que
possa me inquietar.
Harry ficou parado em furioso silêncio, olhando zangado para Dumbledore. Que estava
acontecendo? Será que isto significava que, de fato, o diretor dera ordem a Snape para descobrir o
que Malfoy estava fazendo, caso em que já teria sabido de tudo que Harry acabava de lhe contar
pela boca do próprio Snape? Ou será que estava realmente preocupado com o que ouvira e fingia
não estar?
— Então, senhor — perguntou Harry num tom que desejava que fosse educado e calmo —,
o senhor decididamente ainda confia...?
— Já fui bastante tolerante em ter respondido a essa pergunta — replicou Dunibledore, mas
sua voz já não parecia muito tolerante. — Minha resposta não mudou.
— Eu acharia que não — falou uma voz irônica; evidentemente era Fineus Nigellus que
apenas fingia estar dormindo. Dunibledore não lhe deu atenção.
— E agora, Harry, devo insistir que nos apressemos. Tenho coisas mais importantes a
discutir com você hoje à noite.
Harry sentiu-se revoltado. Que aconteceria se ele não permitisse a mudança de assunto, se
insistisse em sua suspeita contra Malfoy? Como se tivesse lido a mente de Harry, Dumbledore
balançou a cabeça.
— Ah, Harry, com que freqüência isso ocorre até entre os melhores amigos! Cada qual
acredita que o que tem a dizer é muito mais importante do que qualquer coisa que o outro tenha a
contribuir!
— Eu não acho que seja pouco importante o que o senhor tem a dizer — disse Harry,
formal.
— Bem, você tem toda razão, porque não é — respondeu o diretor com energia. — Tenho
mais duas lembranças para lhe mostrar esta noite, ambas obtidas com enorme dificuldade, e creio
que a segunda seja a mais importante que já recolhi.
Harry não fez comentários; ainda sentia raiva pela reação de Dumbledore às suas
confidencias, mas não via o que poderia ganhar se continuasse a discutir.
— Então — disse o diretor em tom ressonante —, na reunião desta noite daremos
prosseguimento à história de Tom Riddle, que na última aula deixamos no limiar de sua entrada
em Hogwarts. Você lembrará como ele ficou excitado ao ouvir que era bruxo, que recusou a
minha companhia para ir ao beco Diagonal e que eu, por minha vez, o alertei contra a prática de
furtos quando chegasse à escola.
"Bem, chegou o início do ano escolar e com ele veio Tom Riddle, um garoto quieto, com
vestes de segunda mão, que se enfileirou com os outros calouros para a Seleção. Quase no
instante em que o Chapéu Seletor tocou sua cabeça, ele foi colocado na Sonserina — continuou
Dumbledore, indicando com a mão escurecida a prateleira acima de sua cabeça onde estava
o Chapéu Seletor, antigo e imóvel. — Não sei em que momento Riddle soube que o famoso
fundador da Casa era capaz de falar com as cobras, talvez naquela mesma noite. Este conhecimento
só pode tê-lo alvoroçado e incentivado o seu senso de importância.
"Contudo, se estava assustando ou impressionando os colegas da Sonserina com
demonstrações de ofidioglossia na sala comunal, os professores de nada souberam. Ele não
manifestava nenhum sinal de arrogância ou agressividade. Sendo um órfão talentoso e muito
bonito, é claro que atraiu a atenção e a solidariedade dos professores quase na hora em que
chegou. Parecia educado, quieto e sedento de saber. Deixou praticamente todos bem
impressionados."
— O senhor não contou a eles como era o Tom quando o conheceu no orfanato? —
perguntou Harry.
— Não, não contei. Embora ele não tivesse demonstrado o menor remorso, era possível que
estivesse arrependido pelo seu comportamento anterior e resolvido a virar a página. Preferi lhe
dar essa oportunidade.
Dumbledore fez uma pausa e olhou curioso para Harry, que abrira a boca para falar. Ali
estava novamente a sua tendência a confiar nas pessoas, apesar dos indícios avassaladores de que
não mereciam sua confiança! Mas Harry então se lembrou de uma coisa...
— Mas o senhor não confiava nele realmente, não é? Ele me disse... o Riddle que saiu
daquele diário disse: "Dumbledore nunca pareceu gostar tanto de mim quanto os outros
professores."
— Digamos que eu não pressupus que ele fosse confiável — respondeu Dumbledore. —
Conforme já mencionei, eu tinha decidido vigiá-lo de perto, e foi o que fiz. Não posso fingir que,
a princípio, tenha conseguido grande coisa com as minhas observações. Ele era muito reservado
comigo; percebia, sem dúvida, que, na emoção de descobrir sua verdadeira identidade falara
demais. Cuidava-se para não tornar a revelar tanto, mas não podia retirar o que deixara escapar
em sua empolgação nem o que a Sra. Cole me confidenciara. Tinha, no entanto, o bom senso de
jamais tentar me cativar como fazia com tantos colegas meus.
"À medida que progredia na vida escolar, ele foi reunindo ao seu redor um grupo de 'amigos
dedicados'; eu os chamo assim, na falta de um termo melhor, embora eu já tenha mencionado que
inegavelmente Riddle não sentia afeto por nenhum deles. O grupo exercia uma espécie de
fascinação sombria no castelo. Era urna coleção variada; uma mistura de fracos em busca de
proteção, ambiciosos em busca de partilhar sua glória, e violentos que gravitavam em torno de
um líder capaz de ensinar formas mais requintadas de crueldade. Em outras palavras, eles foram
os precursores dos Comensais da Morte, e, na verdade, quando terminaram Hogwarts, alguns
deles se tornaram os primeiros Comensais.
"Controlados com rigor por Riddle, nunca foram apanhados agindo mal abertamente,
embora os sete anos que passaram em Hogwarts tivessem sido marcados por numerosos
incidentes desagradáveis a que eles jamais foram comprovadamente ligados, entre os quais a
abertura da Câmara Secreta — sem dúvida, o mais sério deles — que resultou na morte de uma
garota. Hagrid, como você sabe, foi injustamente acusado desse crime.
"Não consegui encontrar muitas lembranças de Riddle em Hogwarts — disse Dumbledore,
pousando a mão murcha na Penseira. — Poucos que o conheceram naquele tempo querem falar
sobre ele; estão aterrorizados demais. Descobri o que sei depois de sua saída de Hogwarts, depois
de penosos esforços, depois de localizar os poucos que poderiam ser induzidos a falar, depois de
pesquisar em registros antigos e interrogar testemunhas bruxas e trouxas.
"Aqueles que consegui convencer a falar me contaram que Riddle tinha obsessão por sua
ascendência. O que, naturalmente, é compreensível; tinha sido criado em um orfanato e
naturalmente queria saber como fora parar lá. Parece que procurou em vão algum vestígio de
Tom Riddle pai nos brasões da sala de troféus, nas listas de monitores nos antigos registros da
escola, e até mesmo em livros de história bruxa. Por fim, foi forçado a aceitar que seu pai jamais
pusera os pés em Hogwarts. Creio ter sido então que ele abandonou o seu nome para sempre,
assumiu a identidade de Lord Voldemort e começou a investigar a família de sua desprezada mãe
— a mulher que, você lembrará, ele achava que não podia ser bruxa porque sucumbira à
vergonhosa fraqueza humana da morte.
"Sua única pista era o nome 'Servolo', que, segundo soubera pelos que dirigiam o orfanato,
era o nome do pai de sua mãe. Finalmente, depois de penosas pesquisas em velhos livros de
famílias bruxas, ele descobriu a existência do ramo sobrevivente da família Slytherin. No verão
de seu décimo sexto aniversário, saiu do orfanato ao qual retornava todo ano e foi procurar seus
parentes Gaunt. E agora, Harry, se você se levantar..."
Dumbledore ergueu-se, e Harry viu que de novo segurava um frasquinho de cristal em que
revolvia uma lembrança perolada.
— Tive muita sorte em recolher esta — disse, despejando a massa refulgente na Penseira.
— Você entenderá a razão quando a tiver vivenciado. Vamos?
Harry se aproximou da bacia de pedra e se inclinou obedientemente até seu rosto afundar na
superfície da lembrança; teve a conhecida sensação de cair no vácuo, e em seguida aterrissou em
um piso de pedra suja envolto em quase total escuridão.
Ele precisou de vários segundos para reconhecer o lugar, tempo que levou para Dumbledore
aterrissar ao seu lado. A casa dos Gaunt agora estava indescritivelmente mais imunda do que
qualquer lugar que Harry já vira. O teto estava coalhado de teias de aranha, o chão coberto por
uma camada de sujeira; havia comida mofada e podre sobre a mesa, em meio a várias panelas
com crostas. A única luz vinha de uma vela derretida, colocada aos pés de um homem com
cabelos e barba tão crescidos que Harry não conseguia distinguir nem olhos nem boca. Ele estava
largado em uma poltrona junto à lareira, e o garoto se perguntou por um momento se estaria
morto. Ouviu-se, então, uma forte batida na porta e o homem despertou instantaneamente,
empunhando uma varinha na mão direita e uma faca curta na esquerda.
A porta se entreabriu, rangendo. Na soleira, segurando um lampião antiquado, encontrava-se
um garoto que Harry reconheceu na hora: alto, pálido, os cabelos escuros, bonito — o Voldemort
adolescente.
Seu olhar percorreu lentamente o casebre e deparou com o homem na poltrona. Por alguns
segundos eles se encararam, então o homem se pôs de pé com dificuldade, as muitas garrafas a
seus pés tombaram e reuniram no chão.
— VOCÊ! — berrou ele. — VOCÊ!
E ele se arremessou ebriamente contra Riddle, a varinha e a faca erguidas.
— Pare.
Riddle falou em linguagem de cobra. O homem derrapou e bateu na mesa, lançando as
panelas emboloradas no chão, onde caíram com estrepito. Ele encarou Riddle. Fez-se um longo
silêncio enquanto se estudavam. O homem perguntou:
— Você sabe falar?
— Sei falar — respondeu Riddle. Ele entrou na sala permitindo que a porta se fechasse às
suas costas. Harry não pôde deixar de sentir uma admiração mesclada de ressentimento pelo
completo destemor de Voldemort. Seu rosto expressava apenas desagrado e, talvez, desapontamento.
— Onde está Servolo? — perguntou ele.
— Morreu. Morreu há anos, não foi? Riddle franziu a testa.
— Quem é você, então?
— Sou Morfino, não sou?
— O filho de Servolo?
— Claro que sou, então...
Morfino afastou os cabelos do rosto sujo, para enxergar Riddle melhor, e Harry notou que
ele usava o anel de pedra negra na mão direita.
— Pensei que você fosse aquele trouxa — sussurrou Morfino. — Você é a cara daquele
trouxa.
— Que trouxa? — perguntou Riddle com rispidez.
— àquele trouxa que minha irmã gostava, aquele trouxa que mora na casa grande mais
adiante na estrada — respondeu Morfino, e inesperadamente cuspiu no chão entre os dois. —
Você é igualzinho a ele. Riddle. Mas ele está mais velho agora, não é? Mais velho do que você,
agora que estou pensando...
Morfino pareceu ligeiramente atordoado e oscilou um pouco, ainda se apoiando na borda da
mesa.
— Ele voltou, sabe — acrescentou tolamente.
Voldemort mirava Morfino como se avaliasse suas possibilidades. Aproximou-se um pouco
mais e perguntou:
— Riddle voltou?
— Ai, deixou ela, e foi bem feito, casar com ralé! — explicou Morfino, e tornou a cuspir no
chão. — E roubou a gente, veja bem, antes de fugir! Onde está o medalhão, eh, onde está o
medalhão de Slytherin?
Voldemort não respondeu. Morfino foi se enraivecendo outra vez; brandiu a faca e gritou:
— Ela desonrou a gente, foi o que ela fez, a vadia! E quem é você para entrar aqui e ficar
fazendo perguntas sobre isso? Já acabou, não é... acabou...
Ele desviou o olhar, cambaleando um pouco, e Voldemort se adiantou. Ao fazer isso,
sobreveio uma escuridão anormal, que apagou a luz do lampião de Voldemort e a vela de
Morfino, apagou tudo...
Os dedos de Dumbledore apertaram o braço de Harry e eles tornaram a voar para o presente.
A claridade suave e dourada do escritório de Dumbledore pareceu ofuscar os olhos de Harry
depois daquela escuridão impenetrável.
— É só isso? — perguntou o garoto imediatamente. — Por que ficou escuro, que
aconteceu?
— Porque Morfino não conseguiu lembrar mais nada daquele ponto em diante — respondeu
Dumbledore, fazendo um gesto para que Harry tornasse a sentar. — Quando ele acordou na
manhã seguinte, estava deitado no chão, sozinho. O anel de Servolo desaparecera.
"Nesse meio-tempo, na aldeia de Little Hangleton, uma empregada corria pela rua principal
gritando que havia três corpos caídos na sala de visitas da casa grande: Tom Riddle pai, e a mãe e
o pai dele.
"As autoridades trouxas ficaram perplexas. Pelo que sei, até hoje não sabem como os Riddle
morreram, porque a Maldição Avada Kedavra normalmente não produz dano visível... a exceção
acha-se à minha frente — acrescentou Dumbledore, indicando a cicatriz de Harry. — Por outro
lado, o Ministério percebeu na mesma hora que se tratava de um homicídio bruxo. Percebeu
também que um sentenciado que odiava trouxas morava no vale do lado oposto à casa dos Riddle,
um bruxo que já fora preso por atacar uma das pessoas assassinadas.
"Então o Ministério fez uma visita a Morfino. Não precisaram interrogá-lo nem usar
Veritaserum nem Legilimência. Ele confessou o homicídio imediatamente, fornecendo detalhes
que somente o assassino poderia conhecer. Disse que sentia orgulho de ter matado os trouxas,
havia anos que esperava essa oportunidade. Ele entregou a varinha, e logo se comprovou que fora
usada para matar os Riddle. E Morfino se deixou levar para Azkaban sem resistir. A única coisa
que o perturbava era que o anel de seu pai desaparecera. 'Ele vai me matar por ter perdido o anel',
repetia, sem parar, aos seus captores. E, aparentemente, isso foi tudo que voltou a dizer. Ele viveu
o resto da vida em Azkaban, lamentando a perda da última peça herdada por Servolo, e foi
enterrado ao lado da prisão com outros pobres coitados que expiraram em seu interior."
— Então Voldemort roubou a varinha de Morfino e a usou? — perguntou Harry, sentandose
ereto.
— Exatamente — respondeu Dumbledore. — Não temos lembranças para confirmar isto,
mas acho que podemos ter razoável certeza do que aconteceu. Voldemort estupeficou o tio,
apanhou sua varinha e atravessou o vale em direção "à casa grande mais adiante na estrada". Lá,
ele matou o trouxa que abandonara sua mãe bruxa, e, por precaução, os avós trouxas, suprimindo,
assim, os últimos membros da indigna família Riddle e vingando-se do pai que jamais o quisera.
Voltou, então, ao casebre dos Gaunt, realizou o complexo feitiço de implantar uma falsa
lembrança na mente do tio, colocou a varinha de Morfino ao lado do seu dono inconsciente,
guardou o anel antigo que ele usava e partiu.
— E Morfino nunca percebeu que não tinha sido ele?
— Nunca. Como digo, ele fez uma confissão vaidosa e completa.
— Mas durante todo esse tempo guardou a lembrança verdadeira!
— Guardou, mas foi necessária uma boa dose de competente Legilimência para fazê-la
aflorar. E por que alguém iria se deter mais tempo examinando a mente de Morfino se ele já
confessara o crime? Contudo, consegui permissão para visitá-lo em suas últimas semanas de vida,
época em que eu estava tentando descobrir o máximo possível sobre o passado de Voldemort.
Extraí a lembrança com dificuldade. Quando vi o que continha, tentei usá-la para obter a
libertação de Morfino de Azkaban. Mas, antes que o Ministério tomasse uma decisão, ele morreu.
— Mas por que o Ministério não percebeu que Voldemort tinha feito tudo isso a Morfino?
— perguntou Harry indignado. — Ele era menor de idade à época, não era? Pensei que fossem
capazes de detectar o uso de magia por menores.
— Você está certo... eles podem detectar a magia, mas não o seu autor: você está lembrado
que o Ministério o culpou pelo Feitiço de Levitação que na verdade foi realizado por...
— Dobby — resmungou Harry; a injustiça ainda o exasperava. — Então, se um menor de
idade usa a magia em um bruxo adulto ou na casa de um bruxo, o Ministério não fica sabendo?
— Certamente não saberá dizer quem realizou o feitiço — respondeu Dumbledore com ar
de riso ao ver a grande indignação no rosto de Harry. — O Ministério confia que os pais bruxos
exijam dos filhos que moram sob seu teto o cumprimento das leis.
— Ora que bobagem — retorquiu Harry. — Veja o que aconteceu neste caso, veja o que
aconteceu a Morfino!
— Concordo. Por pior que fosse Morfino, ele não merecia morrer como morreu, culpado
por crimes que não tinha cometido. Mas está ficando tarde, e quero que você veja mais uma
lembrança antes de nos separarmos...
Dumbledore tirou de um bolso interno outro frasquinho de cristal, e Harry se calou mais
uma vez, lembrando que o diretor lhe dissera que era a lembrança mais importante que tinha
recolhido. O garoto reparou que foi difícil esvaziar o conteúdo do frasco na Penseira, como se
estivesse levemente congelado; será que as lembranças talhavam?
— Esta vai ser rápida — disse Dumbledore, quando finalmente esvaziou o frasco. —
Estaremos de volta antes que você perceba. Mais uma vez, mergulhe na Penseira, então...
E Harry atravessou mais uma vez a superfície prateada, aterrissando desta vez diante de um
homem que ele reconheceu imediatamente.
Era um Horácio Slughorn mais jovem. Harry estava tão habituado a vê-lo careca que achou
a visão de Slughorn com uma basta e brilhante cabeleira cor de palha muito desconcertante; dava
a impressão de que mandara cobrir a cabeça de sapê, embora no topo já fosse visível uma tonsura
calva e reluzente. Os bigodes, menos compactos do que os atuais, eram louro-avermelhados. Ele
não era tão gordo quanto o Slughorn que Harry conhecia, embora os botões dourados do seu
colete ricamente bordado já estivessem sob tensão. Com os pezinhos apoiados sobre um pufe de
veludo, ele se encontrava sentado em uma confortável bergère, tendo um cálice de vinho em uma
das mãos e a outra enfiada em uma caixa de abacaxi cristalizado.
Harry olhou ao redor quando Dumbledore apareceu ao seu lado e percebeu que estavam no
escritório de Slughorn. Havia meia dúzia de garotos sentados ao redor do professor, todos em
cadeiras mais duras e baixas do que a dele, e todos aparentando uns dezesseis anos. Harry
reconheceu Riddle imediatamente. Tinha o rosto mais bonito, e parecia o mais descontraído dos
garotos. Sua mão direita estava pousada negligentemente sobre o braço da cadeira; com um
sobressalto, Harry viu que ele estava usando o anel ouro e negro de Servolo; já tinha matado o
pai.
— Senhor, é verdade que a professora Merrythought está se aposentando? — perguntou
Riddle.
— Tom, Tom, se eu soubesse não poderia lhe dizer — respondeu Slughorn, sacudindo um
dedo açucarado para Riddle, num gesto de censura, embora estragasse esse efeito com uma
ligeira piscadela. — Confesso que gostaria de saber onde você obtém suas informações, rapaz;
sabe mais do que metade dos professores.
Riddle sorriu; os outros garotos riram e lhe lançaram olhares de admiração.
— Com a sua fantástica habilidade para saber o que não deve e a sua cuidadosa bajulação
das pessoas certas... aliás, obrigado pelo abacaxi, você acertou, é o meu preferido...
Enquanto vários garotos abafavam risinhos, aconteceu algo muito estranho. A sala foi
repentinamente tomada por uma densa névoa branca, impedindo Harry de ver outra coisa além do
rosto de Dumbledore, que estava parado ao seu lado. Então, a voz de Slughorn ecoou através da
névoa, anormalmente alta:
— ... você vai acabar mal, rapaz, escute bem o que estou dizendo.
A névoa desapareceu tão repentinamente quanto surgira, embora ninguém fizesse qualquer
alusão nem parecesse ter visto nada diferente acontecer. Intrigado, Harry correu os olhos pela sala
no mesmo instante em que um pequeno relógio de ouro em cima da escrivaninha de Slughorn
batia onze horas.
— Santo Deus, já é tão tarde assim? — exclamou o professor. — É melhor irem andando,
rapazes, ou vamos todos nos meter em confusão. Lestrange, quero o seu trabalho até amanhã ou
receberá uma detenção. O mesmo se aplica a você, Avery.
Slughorn levantou-se da poltrona com esforço e levou seu cálice vazio até a escrivaninha
enquanto os garotos saíam. Riddle, no entanto, ficou para trás. Harry percebeu que o garoto se
demorava de propósito, querendo ser o último na sala com o professor.
— Ande logo, Tom — disse Slughorn se virando e ainda encontrando-o ali. — Você não
quer ser apanhado fora da cama depois da hora, ainda mais sendo monitor...
— Senhor, eu queria lhe perguntar uma coisa.
— Pois pergunte, meu rapaz, pergunte...
— Senhor, estive me perguntando o que o senhor sabe sobre... sobre Horcruxes?
E o mesmo fenômeno tornou a acontecer: o denso nevoeiro invadiu a sala de modo que
Harry não pôde mais ver Slughorn nem Riddle; apenas Dumbledore sorrindo serenamente ao seu
lado. Então a voz do professor ecoou exatamente como acontecera antes.
— Não sei nada sobre Horcruxes e não lhe diria se soubesse! Agora saia daqui imediatamente
e não me deixe apanhá-lo mencionando isso outra vez!
— Bem, é só — anunciou Dumbledore placidamente ao lado de Harry. — Hora de partir.
E os pés de Harry saíram do chão e bateram, segundos depois, no tapete defronte à
escrivaninha de Dumbledore.
— A lembrança é só isso? — perguntou Harry sem entender. Dumbledore dissera que essa
lembrança era a mais importante de todas, mas ele não conseguia ver o que tinha de tão
significativo. Sem dúvida, o nevoeiro e o fato de que ninguém parecia tê-lo percebido eram
esquisitos, mas afora isso nada mais acontecera além de Riddle ter feito uma pergunta e não ter
recebido resposta.
— Você talvez tenha notado — disse Dumbledore tornando a se sentar à escrivaninha —
que essa lembrança foi alterada.
— Alterada? — repetiu Harry, sentando-se também.
— Certamente. O professor Slughorn modificou as próprias recordações.
— Mas por que faria isso?
— Porque, em minha opinião, tem vergonha do que lembra. E tentou retrabalhar a
lembrança para aparecer sob uma luz mais favorável, apagando as partes que não quer que eu
veja. Fez isto, como você deve ter reparado, de modo muito tosco, o que foi muito bom, porque
mostra que a lembrança verdadeira persiste sob as alterações.
"Então, pela primeira vez, vou lhe passar um dever de casa, Harry. Você deverá persuadir o
professor Slughorn a revelar a lembrança verdadeira, que sem dúvida será a nossa informação
mais crucial."
Harry arregalou os olhos para o diretor.
— Mas, com certeza, senhor — respondeu no tom de voz mais respeitoso possível —, o
senhor não precisa de mim... o senhor pode usar Legilimência... ou Veritaserum...
— O professor Slughorn é um bruxo extremamente competente que estará prevenido contra
ambos os recursos. Ele é muito mais competente em Oclumência do que o pobre Morfino Gaunt,
e eu não me espantaria se estivesse carregando um antídoto contra o soro da verdade desde que o
obriguei a me contar este arremedo de recordação.
"Não, acho que seria tolice tentar extrair a verdade do professor Slughorn à força, faria mais
mal do que bem; não quero que ele abandone Hogwarts. Contudo, ele tem fraquezas como todos
nós, e acredito que você seja o único que talvez possa penetrar suas defesas. É muito importante
obtermos a lembrança verdadeira, Harry... e sua real importância nós só saberemos quando
virmos o que de fato aconteceu. Então, boa sorte... e boa-noite."
Um pouco surpreso ante a dispensa abrupta, Harry se pôs de pé ligeiro.
— Boa-noite, senhor.
Ao fechar a porta atrás de si, ouviu distintamente o comentário de Fineus Nigellus:
— Não vejo por que o garoto seria capaz de fazer isso melhor que você, Dumbledore.
— Eu não esperaria que visse, Fineus — replicou Dumbledore, e Fawkes soltou outro pio
baixo e melodioso.
CAPÍTULO DEZOITO
SURPRESAS DE ANIVERSÁRIO
NO DIA SEGUINTE, HARRY CONFIDENCIOU A Rony e Hermione o dever que Dumbledore lhe
passara, a cada um, separadamente, porque Hermione ainda se recusava a permanecer na
presença de Rony mais tempo do que o necessário para lhe lançar um olhar de desprezo.
Rony achou que era pouco provável que Harry tivesse alguma dificuldade com Slughorn.
— Ele adora você — disse durante o café da manhã, gesticulando com o garfo cheio de ovo
frito. — Não vai lhe recusar nada, não é? Não ao seu pequeno Príncipe das Poções. É só ficar
depois da aula hoje à tarde e perguntar a ele.
Hermione, no entanto, foi menos otimista.
— Ele deve estar decidido a esconder o que realmente aconteceu, se Dumbledore não
conseguiu extrair nada dele — disse a amiga em voz baixa, quando estavam no pátio deserto e
coberto de neve na hora do recreio. — Horcruxes... Horcruxes... nunca ouvi falar nisso...
— Não?
Harry ficou desapontado; esperara que Hermione pudesse lhe dar uma pista do que seriam
Horcruxes.
— Deve ser magia das Trevas realmente avançada ou, então, por que Voldemort iria querer
saber? Acho que vai ser difícil obter a informação, Harry, você vai precisar de muita cautela
quando abordar Slughorn, pense em uma estratégia...
— Rony acha que eu devia ficar na sala depois da aula de Poções hoje à tarde...
— Ah, bem, se Uon-Uon acha isso, então é melhor você fazer — retrucou ela, irritando-se.
— Afinal, quando foi que a opinião de Uon-Uon esteve errada?
— Hermione, será que você não pode...
— Não! — exclamou ela com raiva e saiu bruscamente, deixando Harry sozinho com os pés
enfiados na neve até os tornozelos.
As aulas de Poções eram bem constrangedoras ultimamente, uma vez que Harry, Rony e
Hermione tinham de dividir a mesma mesa. Naquele dia, Hermione mudou a posição do caldeirão
de modo a ficar perto de Ernesto, e ignorou os dois amigos.
— Que foi que você fez? — murmurou Rony para Harry, olhando para o perfil arrogante de
Hermione.
Mas, antes que Harry pudesse responder, Slughorn pediu silêncio à frente da turma.
— Acomodem-se, acomodem-se, por favor! E depressa, temos muito o que fazer hoje à
tarde! A Terceira Lei de Golpalott... quem sabe me dizer...? A srta. Granger sabe, é claro!
Hermione recitou-a em grande velocidade:
— A-Terceira-Lei-de-Golpalott-diz-que-o-antídoto-para-uma-mistura-venenosa-será-maiordo-
que-a-soma-dos-antídotos-para-cada-um-de-seus-elementos.
— Exatamente! — exclamou sorridente o professor. — Dez pontos para a Grifinória.
Agora, se considerarmos a Terceira Lei de Golpalott verdadeira...
Harry teria de aceitar a palavra de Slughorn de que a Terceira Lei de Golpalott era
verdadeira porque não entendera nada. Ninguém, exceto Hermione, parecia estar acompanhando
o que Slughorn disse a seguir.
— ... o que significa, naturalmente, que, supondo que tenhamos identificado corretamente
os ingredientes da poção, com o Revelencanto de Scarpin, o nosso objetivo primário não é a
simples seleção de antídotos para os ingredientes por si e de si, mas encontrar o componente
adicional que, por um processo quase alquímico, transformará esses elementos díspares...
Rony estava sentado ao lado de Harry com a boca entreaberta, babando distraído sobre o seu
exemplar novo de Estudos avançados no preparo de poções. Ele vivia esquecendo que não podia
mais depender de Hermione para ajudá-lo a sair das dificuldades quando não conseguia entender
o que estava acontecendo.
— ... e portanto — terminou Slughorn —, quero que cada um de vocês venha apanhar um
dos frascos sobre a minha escrivaninha. E deverão criar um antídoto para o veneno que o frasco
contém antes do fim da aula. Boa sorte, e não se esqueçam das luvas protetoras!
Hermione deixara o seu banco e estava a meio caminho da escrivaninha de Slughorn, antes
que o restante da turma tivesse entendido que era hora de se mexer; e quando, finalmente, Harry,
Rony e Ernesto voltaram à mesa, a garota já tinha despejado o conteúdo do frasco e estava
acendendo um fogo sob o caldeirão.
— É uma pena que o Príncipe não vá lhe adiantar muito, Harry — disse ela animada ao se
levantar. — Desta vez é preciso compreender os princípios envolvidos. Não existem atalhos nem
colas!
Aborrecido, Harry desarrolhou o veneno rosa berrante que apanhara na escrivaninha de
Slughorn, despejou-o no caldeirão e acendeu um fogo embaixo. Não tinha a menor idéia do que
deveria fazer a seguir. Olhou para Rony, que agora estava parado ali com cara de bobo, depois de
copiar tudo que Harry fizera.
— Você tem certeza de que o Príncipe não dá nenhuma dica? — murmurou Rony para
Harry.
Harry apanhou seu confiável exemplar de Estudos avançados no preparo de poções e abriuo
no capítulo sobre antídotos. Ali estava a Terceira Lei de Golpalott, palavra por palavra, tal
como Hermione a recitara, mas nem uma anotação esclarecedora na caligrafia do Príncipe
explicando o seu significado. Pelo visto, o Príncipe, tal como Hermione, não tivera dificuldade
em compreendê-la.
— Nada — respondeu Harry com tristeza.
Hermione agora acenava a varinha com entusiasmo sobre o caldeirão. Infelizmente, os dois
não poderiam copiar o feitiço que ela estava executando porque agora se tornara tão boa em
feitiços não-verbais que não precisava pronunciar as palavras em voz alta. Ernesto Macmillan,
porém, estava murmurando "Specialis revelio!" sobre o caldeirão, e o som parecia
impressionante, por isso Harry e Rony se apressaram a imitá-lo.
Harry levou apenas cinco minutos para perceber que sua reputação de melhor preparador de
poções da turma estava desmoronando à sua volta. Slughorn dera uma espiada esperançosa dentro
do seu caldeirão, em sua primeira ronda pela masmorra, preparado para soltar exclamações de
prazer como geralmente fazia, mas, em vez disso, erguera a cabeça depressa, tossindo, porque o
cheiro de ovos estragados o sufocara. A expressão de Hermione não poderia ser mais presunçosa;
ela detestava ficar em segundo lugar nas aulas de Poções. Agora, ela decantava os ingredientes do
seu veneno, misteriosamente separados, em dez diferentes frasquinhos de cristal. Mais para evitar
contemplar visão tão irritante do que por outro motivo, Harry se debruçou sobre o livro do
Príncipe Mestiço e virou algumas páginas com desnecessária violência.
E ei-la, escrita em diagonal sobre uma longa lista de antídotos.
Meta-lhes um bezoar goela abaixo.
Harry fixou as palavras por um momento. Havia muito tempo, não ouvira falar em
bezoares? Snape não os mencionara na primeira aula de Poções? "Uma pedra tirada do estômago
do bode, que o protegerá da maioria dos venenos?"
Não era uma resposta ao problema de Golpalott, e, se Snape ainda fosse seu professor,
Harry não teria se atrevido a fazer isso, mas o momento exigia medidas desesperadas. Ele correu
ao armário de classe e procurou ali, afastando chifres de unicórnio e entrelaçados de ervas secas
até encontrar, bem no fundo, uma caixinha de papelão em que havia escrita a palavra "Bezoares".
Abriu a caixa na hora em que Slughorn avisou: "Faltam dois minutos, turma!" Dentro dela
havia meia dúzia de objetos castanhos e enrugados, parecendo mais rins secos do que pedras de
verdade. Harry apanhou um deles, repôs a caixa no armário e voltou correndo ao seu caldeirão.
— Tempo... ENCERRADO! — anunciou Slughorn cordialmente. — Vamos ver como
vocês se saíram! Blásio... que é que você tem aí?
Lentamente, Slughorn foi se deslocando pela sala, examinando os vários antídotos.
Ninguém terminara o dever, embora Hermione estivesse tentando forçar mais alguns ingredientes
para dentro do seu frasco antes de Slughorn passar. Rony desistira completamente, e apenas
tentava evitar inalar os vapores fétidos que emanavam do seu caldeirão. Harry ficou parado
aguardando, o bezoar apertado na mão ligeiramente suada.
Slughorn foi à sua mesa por último. Ele cheirou a poção de Ernesto e passou à de Rony com
uma careta. Não se demorou sobre o caldeirão de Rony, antes recuou depressa, com uma ligeira
ânsia de vômito.
— E você, Harry. Que tem para me mostrar?
O garoto estendeu a palma da mão com o bezoar.
Slughorn contemplou-o por longos dez segundos. Harry se perguntou, por um momento, se
iria levar um berro do professor. Então, ele atirou a cabeça para trás às gargalhadas.
— Você é atrevido, rapaz! — trovejou ele, apanhando o bezoar e erguendo-o no ar para que
toda a turma o visse. — Ah, você é como sua mãe... bem, não posso dizer que está errado... um
bezoar certamente agiria como antídoto para todas essas poções!
Hermione, que tinha o rosto suado e fuligem no nariz, ficou lívida. Seu antídoto, ainda pela
metade, que compreendia cinqüenta e dois ingredientes inclusive uma mecha dos próprios
cabelos, borbulhava devagarinho às costas de Slughorn, que não via mais ninguém senão Harry.
— E você pensou no bezoar sozinho, foi, Harry? — perguntou a amiga entre dentes.
— Esse é o espírito individual imprescindível a um verdadeiro preparador de poções! —
exclamou Slughorn alegre, antes que Harry pudesse responder. — Igualzinho à mãe, Lílian tinha
a mesma compreensão intuitiva do preparo de poções, sem dúvida ele herdou da mãe... certo,
Harry, certo, se você tivesse um bezoar à mão, é claro que resolveria... mas, como bezoares não
servem para tudo e são bem raros, ainda vale a pena saber preparar antídotos...
A única pessoa na sala que parecia mais irritada do que Hermione era Malfoy, que, para
satisfação de Harry, derramara na roupa algo que lembrava vômito de gato. Antes, porém, que
qualquer dos dois pudesse expressar sua fúria por Harry ter sido o melhor da turma sem se
esforçar, a sineta tocou.
— Hora de guardar tudo! — disse Slughorn. — E mais dez pontos para Grifinória pela
ousadia!
Ainda rindo, ele voltou gingando à sua escrivaninha à frente da masmorra.
Harry se demorou, levando um tempo excessivo para arrumar a mochila. Nem Rony nem
Hermione lhe desejaram boa sorte ao sair; os dois pareciam muito aborrecidos. Por fim, restaram
apenas Harry e Slughorn na sala.
— Depressa, Harry, ou vai se atrasar para a próxima aula — disse Slughorn afavelmente,
fechando com um estalo as presilhas de ouro de sua maleta de pele de dragão.
— Senhor — disse Harry, lembrando-se irresistivelmente de Voldemort —, eu queria lhe
perguntar uma coisa.
— Pergunte, então, meu caro rapaz, pergunte...
— Senhor, será que o senhor saberia alguma coisa sobre... sobre Horcruxes?
Slughorn congelou. Seu rosto redondo pareceu afundar. Ele umedeceu os lábios com a
língua e respondeu roucamente:
— Que foi que você disse?
— Perguntei se o senhor saberia alguma coisa sobre Horcruxes, senhor. O senhor entende...
— Dumbledore mandou você fazer isso — sussurrou Slughorn. Sua voz mudara
completamente. Já não era afável, mas chocada, aterrorizada. Ele apalpou o bolso do peito e
puxou um lenço, enxugando a testa suada.
— Dumbledore lhe mostrou aquela... aquela lembrança — afirmou Slughorn. — Então,
mostrou?
— Mostrou — respondeu Harry, decidindo imediatamente que era melhor não mentir.
— É, é claro — comentou Slughorn em voz baixa, ainda enxugando o rosto pálido. — E
claro... bem, se você viu aquela lembrança, Harry, então sabe que eu não sei nada... nada... e
repetiu a palavra enfatizando-a — ... sobre Horcruxes.
E, apanhando a maleta, repôs o lenço no bolso e saiu em direção à porta da masmorra.
— Senhor — disse Harry, desesperado —, eu só achei que o senhor talvez pudesse
acrescentar alguma coisa à lembrança...
— Achou? Pois enganou-se, não é? ENGANOU-SE!
Ele berrou a última palavra e, antes que Harry pudesse dizer mais alguma coisa, saiu
batendo a porta da masmorra.
Nem Rony nem Hermione foram compreensivos quando Harry lhes contou a catastrófica
entrevista. Hermione ainda estava espumando com o modo com que Harry saíra vitorioso sem ter
feito realmente o trabalho. Rony estava chateado porque Harry não lhe oferecera um bezoar.
— Pareceria idiota se nós dois tivéssemos feito a mesma coisa! — respondeu Harry irritado.
— Olhe, eu tinha de tentar amaciar o professor para poder lhe perguntar sobre Voldemort, não é?
Ah, se controla! — acrescentou exasperado quando viu Rony estremecer ao som daquele nome.
Enfurecido com o seu fracasso e as atitudes de Rony e Hermione, nos dias que se seguiram
Harry ficou remoendo o que fazer a respeito de Slughorn. Decidiu que por ora deixaria o
professor pensar que ele esquecera as Horcruxes; com certeza seria melhor deixar Slughorn se
acalmar e pensar que estava seguro antes de voltar à carga.
Ao ver que Harry não tornava a interrogá-lo, o professor de Poções reverteu ao tratamento
afetuoso que lhe dispensava, e pareceu ter afastado o assunto de sua mente. O garoto esperou um
convite para uma de suas festinhas noturnas, decidido desta vez a aceitá-lo, mesmo que tivesse de
remarcar um treino de quadribol. Infelizmente, não veio convite algum. Harry verificou com
Hermione e Gina: nenhuma das duas recebera convite e, pelo que sabiam, ninguém mais o
recebera tampouco. Harry não pôde deixar de se perguntar se isto significaria que Slughorn não
era tão esquecido quanto parecia ou simplesmente decidira não dar a Harry novas oportunidades
para fazer perguntas.
Nesse meio-tempo, a biblioteca de Hogwarts, pela primeira vez na memória, deixara
Hermione na mão. A garota ficou tão chocada, que até esqueceu que estava aborrecida com Harry
por causa do bezoar.
— Não encontrei uma única explicação sobre o efeito das Horcruxes! — disse ela. — Nem
umazinha! Consultei toda a Seção Reservada e até os livros mais horripilantes, que ensinam a
preparar as poções mais sinistras... nada! A única coisa que encontrei foi isto aqui, na introdução
de Magia mui maligna... escute só: "Sobre Horcruxes, a invenção mais perversa da magia, não
falaremos, nem daremos instruções..." Então, para que mencionaram? — indagou com
impaciência, fechando com força o velho livro que soltou um gemido fantasmagórico. — Ah,
cala essa boca — disse com rispidez, enfiando-o na mochila.
A neve em torno da escola derreteu com a chegada de fevereiro e foi substituída por uma
umidade fria e monótona. Nuvens cinza-arroxeadas pairavam à baixa altitude sobre o castelo, e
uma chuva gelada contínua deixava os gramados escorregadios e lamacentos. O resultado disso
foi que a primeira aula de Aparatação do sexto ano, programada para a manhã de sábado, para os
alunos não faltarem às aulas normais, foi realizada no Salão Principal e não ao ar livre.
Quando Harry e Hermione chegaram ao Salão (Rony descera com Lilá), descobriram que as
mesas tinham desaparecido. A chuva chicoteava as janelas altas e o teto encantado girava
sombriamente no alto, quando eles se reuniram diante dos professores McGonagall, Snape,
Flitwick e Sprout — diretores das quatro Casas —, e um bruxo miúdo que Harry acreditou ser o
instrutor de Aparatação do Ministério. O bruxo era estranhamente descorado, com pestanas transparentes,
cabelos ralos e um ar incorpóreo, como se uma única lufada de vento pudesse levá-lo.
Harry ficou imaginando se as constantes Aparatações e Desaparatações teriam reduzido a sua
solidez, ou se a sua frágil compleição seria a ideal para alguém que quisesse sumir.
— Bom-dia — disse o bruxo do Ministério, quando todos os alunos haviam chegado e os
diretores das Casas pediram silêncio. — Meu nome é Wilkie Twycross, e serei o seu instrutor
ministerial de Aparatação nas próximas doze semanas. Espero poder prepará-los para o teste de
Aparatação, neste prazo...
— Malfoy, sossegue e preste atenção! — vociferou a professora McGonagall.
Todos se viraram. Malfoy ficara rosa-escuro; estava enfurecido quando se afastou de
Crabbe, com quem, pelo jeito, estivera discutindo aos cochichos. Harry olhou de relance para
Snape, que também parecia irritado, embora tivesse fortes suspeitas de que fosse menos pela
grosseria de Malfoy do que pelo fato de McGonagall ter repreendido alguém de sua Casa.
— ... prazo em que muitos de vocês talvez estejam prontos para fazer o teste — continuou
Twycross, como se não tivesse havido interrupção.
— Como vocês talvez saibam, normalmente é impossível aparatar ou desaparatar em
Hogwarts. O diretor suspendeu este encantamento, apenas no Salão Principal, por uma hora, para
que vocês possam praticar. Aproveito para enfatizar que não poderão aparatar fora das paredes
deste Salão, e que seria imprudente tentar.
"Gostaria agora que cada um se posicionasse deixando um metro e meio de espaço livre à
frente."
Houve um grande empurra-empurra durante o qual as pessoas se separaram, colidiram e
mandaram os colegas dar distância. Os diretores das Casas andavam entre os alunos, enfileirandoos
em posição e interrompendo discussões.
— Harry, aonde você vai? — quis saber Hermione.
Mas Harry não respondeu; atravessou rápido a multidão, passou pelo lugar em que o
professor Flitwick se esganiçava, fazendo tentativas de posicionar uns alunos da Corvinal que
queriam ficar mais à frente, passou pela professora Sprout que aos gritos apressava os alunos da
Lufa-Lufa a se enfileirarem, e por, fim, contornando Ernesto Macmillan, conseguiu se colocar
atrás de todo mundo, bem perto de Malfoy, que aproveitava a confusão geral para continuar sua
discussão com Crabbe, a metro e meio dele e parecendo revoltado.
— Não sei quanto tempo vai demorar, tá bem? — disparou Malfoy para ele, ignorando a
presença de Harry postado às suas costas. — Está levando mais tempo do que pensei.
Crabbe abriu a boca, mas Malfoy pareceu adivinhar o que ele ia dizer.
— Escuta aqui, não é de sua conta o que estou fazendo, Crabbe, você e Goyle façam o que
eu mando e fiquem de olhos abertos!
— Eu digo aos meus amigos o que estou fazendo, se quero que eles fiquem vigiando para
mim — comentou Harry, suficientemente alto para que Malfoy ouvisse.
Malfoy girou nos calcanhares, a mão voando para a varinha, mas naquele exato momento os
quatro diretores das Casas gritaram:
— Quietos! — E fez-se novamente silêncio. Malfoy virou-se lentamente para frente.
— Obrigado — disse Twycross. — Agora então...
Ele acenou a varinha. Instantaneamente apareceram aros antiquados de madeira no chão em
frente a cada estudante.
— E importante lembrar dos três Ds quando aparatamos! Destinação, Determinação e
Deliberação!
"Primeiro: concentrem a mente na destinação desejada", disse Twycross. "No caso, o
interior do seu aro. Agora, façam o favor de se concentrar nesta destinação."
Os alunos olharam para os lados furtivamente, para verificar se todos estavam olhando para
o próprio aro, então obedeceram depressa. Harry fixou o espaço circular no chão empoeirado
circunscrito pelo aro e fez força para não pensar em mais nada. Não foi possível porque não
conseguia parar de imaginar o que Malfoy estaria fazendo para precisar de vigias.
— Segundo — disse Twycross —, focalizem a sua determinação de ocupar o espaço
visualizado! Deixe este desejo fluir da mente para todas as partículas do seu corpo!
Harry olhou sorrateiramente ao redor. Um pouco à esquerda, Ernesto contemplava o aro
com tanto empenho que seu rosto estava cor-de-rosa; parecia que estava tentando botar um ovo
do tamanho de uma goles. Harry sufocou uma risada e voltou depressa o olhar para o próprio
arco.
— Três — disse Twycross —, e somente quando eu der a ordem... girem o corpo, sentindoo
penetrar o vácuo, mexendo-se com deliberação! Quando eu mandar... um...
Harry tornou a olhar para os lados; muita gente estava decididamente assustada com a
ordem de aparatar tão depressa.
— ... dois...
Harry tentou fixar seu pensamento novamente no aro; já esquecera o que significavam os
três Ds.
— ... TRÊS!
Harry girou o corpo, desequilibrou-se e quase caiu. Não foi o único. O salão inteiro de
repente se encheu de pessoas que cambaleavam; Neville estatelou-se de costas; Ernesto, por outro
lado, atravessara o aro com uma espécie de pirueta e pareceu momentaneamente impressionado
até ver Dino Thomas rindo dele às gargalhadas.
— Não faz mal, não faz mal — disse secamente Twycross, que não parecia ter esperado
nada melhor. — Acertem os seus aros, por favor, e voltem à posição inicial...
A segunda tentativa não foi melhor do que a primeira. A terceira foi igualmente ruim.
Somente na quarta aconteceu algo excitante. Ouviu-se um terrível guincho de dor e todos se
viraram, aterrorizados; viram Susana Bonés, da Lufa-Lufa, bamboleando no arco com a perna
esquerda ainda parada, a um metro e meio de distância, onde começara.
Os diretores das Casas correram para a garota; houve um forte estampido e uma baforada de
fumaça púrpura que, ao se dissolver, revelou Susana soluçante, reintegrada à sua perna, mas
horrorizada.
— Estrunchamento, ou separação casual de partes do corpo — explicou Twycross, sem
demonstrar emoção —, ocorre quando a mente não tem determinação suficiente. É preciso
concentrar continuamente em sua destinação e se mexer sem pressa, mas com deliberação...
assim.
Twycross deu um passo à frente, girou o corpo com elegância mantendo os braços
estendidos e sumiu em um rodopio de vestes, reaparecendo no fundo do Salão.
— Lembrem-se dos três Ds — disse o instrutor — e tentem outra vez... um... dois... três...
Mas uma hora depois, o Estrunchamento de Susana ainda era a coisa mais interessante que
tinha acontecido. Twycross não pareceu desanimar. Abotoando a capa ao pescoço, disse com
simplicidade:
— Até o próximo sábado, e não se esqueçam: destinação, determinação e deliberação.
E, dizendo isso, acenou a varinha fazendo os aros desaparecerem e saiu do Salão
acompanhado pela professora McGonagall. Imediatamente as pessoas começaram a conversar e a
se deslocar em direção ao Saguão de Entrada.
— Como foi com você? — perguntou Rony, correndo a se reunir a Harry. — Acho que
senti alguma coisa da última vez que tentei: uma espécie de formigamento nos pés.
— Acho que os seus tênis estão pequenos demais, Uon-Uon — disse uma voz às suas
costas, e Hermione passou, risonha.
— Não senti nada — comentou Harry, ignorando a interrupção. — Mas não estou ligando
para isso agora...
— Você quer dizer que não está ligando... que não quer aprender a aparatar? — perguntou
Rony incrédulo.
— Não estou realmente preocupado. Prefiro voar — disse Harry, espiando por cima do
ombro para ver onde estava Malfoy, e apressando o passo quando alcançaram o Saguão de
Entrada. — Olha, quer fazer o favor de andar mais depressa, tem uma coisa que quero fazer...
Perplexo, Rony acompanhou Harry de volta à Torre da Grifinória, correndo. Foram
temporariamente detidos por Pirraça, que emperrara a porta do quarto andar e se recusava a
deixar as pessoas passarem a não ser que ateassem fogo às próprias calças, mas Harry e Rony
simplesmente deram meia-volta e tomaram um dos seus atalhos confiáveis. Em cinco minutos,
estavam passando pelo buraco do retrato.
— Então, vai me dizer o que estamos fazendo? — perguntou Rony um pouco ofegante.
— Lá em cima — respondeu Harry, atravessando a sala comunal e entrando pela porta que
levava ao dormitório dos garotos.
O dormitório estava vazio, como Harry previra. Ele abriu o malão e começou a procurar
alguma coisa, enquanto Rony observava impaciente.
— Harry...
— Malfoy está usando Crabbe e Goyle como vigias. Ele esteve brigando com Crabbe agora
há pouco. Quero saber... ah-ah.
Ele o encontrara, um quadrado de pergaminho dobrado e aparentemente limpo, que em
seguida abriu e tocou com a ponta da varinha.
— Juro solenemente que não pretendo fazer nada de bom... ou pelo menos é o que o Malfoy
não pretende
Na mesma hora, o Mapa do Maroto se tornou visível na superfície do pergaminho. Ali
estava uma planta detalhada de cada andar do castelo e, deslocando-se por ela, os minúsculos
pontinhos negros com rótulos que indicavam cada um dos ocupantes do castelo.
— Me ajude a localizar Malfoy — pediu Harry em tom de urgência. Ele esticou o mapa em
cima da cama, e os dois se debruçaram para procurar.
— Ali! — exclamou Rony depois de um minuto e pouco. — Ele está na sala comunal da
Sonserina, olhe... com Parkinson e Zabini e Crabbe e Goyle...
Harry olhou desapontado, mas reanimou-se quase imediatamente.
— Bem, vou ficar de olho nele daqui para frente — disse com firmeza. — E, na hora em
que o vir rondando por algum lugar com Crabbe e Goyle vigiando do lado de fora, vou vestir
minha Capa da Invisibilidade e sair para descobrir o que ele...
Harry parou de falar quando Nevílle entrou no dormitório, espalhando um cheiro forte de
tecido queimado, e começou a procurar calças limpas no malão.
Apesar de sua determinação de apanhar Malfoy em flagrante, Harry não teve sorte nas duas
semanas seguintes. E, embora consultasse o mapa sempre que podia, por vezes fazendo visitas
desnecessárias ao banheiro entre as aulas para dar uma olhada, nem uma vez viu Malfoy em
qualquer lugar suspeito. E verdade que ele localizou Crabbe e Goyle andando sozinhos pelo
castelo com maior freqüência do que a normal, por vezes parando em corredores desertos, mas,
nessas ocasiões, Malfoy nem sequer se encontrava por perto, e era até impossível localizá-lo no
mapa. O que era um grande mistério. Harry brincou com a possibilidade de Malfoy estar saindo
dos limites da escola, mas não conseguia ver como poderia fazer isso, dado o alto nível das
medidas de segurança em vigor no castelo. Só poderia supor que não estava identificando Malfoy
entre as centenas de minúsculos pontos pretos que apareciam no mapa. Quanto ao fato de Malfoy,
Crabbe e Goyle darem a impressão de tomar caminhos diferentes quando costumavam ser
inseparáveis, era comum isto acontecer quando as pessoas ficavam mais velhas: Rony e
Hermione, refletiu Harry com tristeza, eram uma prova viva disso.
O mês de fevereiro foi se aproximando de março sem alteração no tempo, exceto que passou
a ventar mais além de chover. Para indignação geral, foi afixado um aviso em todas as salas
comunais: o passeio seguinte a Hogsmeade fora cancelado. Rony ficou furioso.
— Era no dia do meu aniversário! — exclamou. — Eu estava aguardando, ansioso!
— Mas não é uma surpresa tão grande, não é? — comentou Harry. — Não depois do
que aconteceu com Cátia.
A garota ainda não voltara do St. Mungus. Além disso, o Profeta Diário andara
noticiando novos desaparecimentos, inclusive de parentes de alunos de Hogwarts.
— Agora só me resta aguardar aquela aula idiota de Aparatação! — replicou Rony
rabugento. — Grande presente de aniversário...
Três aulas depois, a Aparatação continuava difícil como sempre, embora mais alguns
alunos tivessem conseguido se Estrunchar. Havia muita frustração e uma certa má vontade
com relação a Twycross e seus três Ds, que tinham inspirado numerosos apelidos, entre os
quais os mais gentis eram Destrambelhado e Despirocado.
— Feliz aniversário, Rony — desejou-lhe Harry, quando foram acordados no primeiro
dia de março com o barulho que fizeram Simas e Dino ao sair para o café da manhã. —
Toma o seu presente.
Ele atirou na cama de Rony um embrulho que foi se juntar a uma pequena pilha que
devia ter sido entregue pelos elfos domésticos durante a noite, supôs Harry.
— Falou — disse Rony sonolento, e, enquanto ele rasgava o papel, Harry se levantou,
abriu o malão e começou a procurar o Mapa do Maroto, que sempre escondia, depois de
usar. Tirou metade do conteúdo do malão antes de encontrá-lo, escondido sob as meias
enroladas onde ainda guardava o frasco da poção da felicidade, a Felix Felicis.
— Certo — murmurou, e, levando-o para a cama, tocou-o com a varinha e sussurrou:
— Juro solenemente que não pretendo fazer nada de bom... — tão baixinho que Neville, que
ia passando ao lado de sua cama, não ouviu.
— Beleza, Harry! — exclamou Rony entusiasmado, agitando o novo par de luvas de
goleiro que o amigo lhe dera.
— Não esquenta — disse Harry, distraído, enquanto examinava atentamente o
dormitório da Sonserina à procura de Malfoy. — Ei... acho que ele não está na cama dele...
Rony não respondeu, estava ocupado demais desembrulhando presentes, e soltando de
vez em quando uma exclamação de prazer.
— Maior arrastão este ano! — anunciou, erguendo um pesado relógio de ouro com
símbolos estranhos em volta do mostrador e estrelinhas móveis em vez de ponteiros. — Viu
o que minha mãe e meu pai compraram para mim? Caramba, acho que vou me emancipar
no ano que vem também...
— Legal — resmungou Harry, olhando o relógio de relance e voltando a estudar o
mapa com mais atenção. Onde estava o Malfoy? Pelo jeito, não estava à mesa da Sonserina
no Salão Principal, tomando o café da manhã... nem perto de Snape, sentado em seu
escritório... nem nos banheiros, nem na ala hospitalar.
— Quer um? — perguntou Rony com a voz empastada, estendendo uma caixa de
caldeirões de chocolate.
— Não, obrigado — respondeu Harry erguendo os olhos. — Malfoy desapareceu outra
vez!
— Não pode ser — disse Rony, enfiando um segundo caldeirão na boca ao mesmo
tempo que saía da cama para se vestir. — Anda, se você não se apressar terá de aparatar
com a barriga vazia... quem sabe é mais fácil...
Rony olhou pensativo para a caixa de caldeirões de chocolate, depois sacudiu os
ombros e se serviu de um terceiro bombom.
Harry tocou o mapa com a varinha, e resmungou: "Malfeito feito", embora não o
tivesse feito, e se vestiu pensativo. Tinha de haver uma explicação para os sumiços
periódicos de Malfoy, mas ele simplesmente não conseguia saber qual era. A melhor
maneira de descobrir seria segui-lo, mas, mesmo com a Capa da Invisibilidade, a idéia não
era prática; ele tinha aulas, treino de quadribol, deveres de casa e Aparatação; não poderia
seguir Malfoy pela escola o dia inteiro sem que sua ausência fosse notada.
— Pronto? — perguntou a Rony.
Harry estava a meio caminho da porta do dormitório quando percebeu que Rony não
se mexera, estava apoiado no pilar da cama com os olhos fixos na janela lavada de chuva e
um olhar estranhamente desfocado no rosto.
— Rony! Café da manhã.
— Não estou com fome. Harry encarou-o.
— Achei que você tinha acabado de dizer...?
— Bem, tudo bem, eu desço com você — suspirou Rony —, mas não quero comer.
Harry examinou-o desconfiado.
— Você acabou de comer metade de uma caixa de caldeirões de chocolate, não foi?
— Não é isso — Rony tornou a suspirar. — Você... não entenderia.
— Então tá... — respondeu Harry, embora intrigado, virando-se para abrir a porta.
— Harry! — Rony chamou de repente.
— Quê?
— Harry, não consigo suportar!
— Não consegue suportar o quê? — indagou Harry, agora decididamente começando a se
assustar. Rony estava muito pálido como se fosse enjoar.
— Não consigo parar de pensar nela! — respondeu ele rouco. Harry olhou-o boquiaberto.
Não esperava uma coisa dessas e não estava muito seguro de que queria ouvi-la. Eram amigos,
mas se Rony começasse a chamar Lilá de "Lá-lá", ele teria de resistir com firmeza.
— E em que isso impede você de tomar café? — perguntou Harry, tentando introduzir uma
dose de bom senso na negociação.
— Acho que ela não sabe que eu existo — respondeu o amigo com um gesto desesperado.
— Decididamente, ela sabe que você existe — replicou Harry, espantado. — Ela não pára
de agarrar você, não é?
Rony abriu e fechou os olhos.
— De quem é que você está falando?
— De quem é que você está falando? — perguntou Harry, com a sensação crescente de que
a conversa deixara de ser racional.
— Romilda Vane — respondeu Rony baixinho, e todo o seu rosto pareceu iluminar ao dizer
este nome, como se um puríssimo raio de sol o tivesse atingido.
Os dois se encararam por quase um minuto e, por fim, Harry falou:
— Isto é uma brincadeira, certo? Você está brincando.
— Acho... Harry, acho que estou apaixonado por ela — disse Rony com a voz estrangulada.
— O.k. — concordou Harry, aproximando-se de Rony para examinar melhor os seus olhos
vidrados e o rosto pálido. — O.k... diz isso outra vez de cara séria.
— Amo a Romilda — repetiu Rony de um fôlego. — Você notou os cabelos dela, são
negros e brilhantes e macios... e os olhos? Aqueles olhos enormes, negros? E...
— É muito engraçado e tudo o mais — disse Harry impaciente —, mas chega de
brincadeira, tá? Acabou.
Ele se virou para sair do dormitório; dera dois passos em direção à porta quando um golpe
demolidor atingiu-o na orelha direita. Cambaleando, ele se virou. Rony já recuara o punho, seu
rosto estava distorcido de raiva; ia dar outro murro.
Harry reagiu instintivamente; a varinha saiu do bolso e o encantamento aflorou à sua mente
sem que ele percebesse: Levicorpus!
Rony urrou quando sentiu o seu calcanhar ser novamente puxado para o alto; ficou
pendurado sem ação, de cabeça para baixo, as vestes caindo pelo avesso.
— Por que isso? — berrou Harry.
— Você a ofendeu, Harry! Você disse que era uma brincadeira! — gritou Rony, cujo rosto
foi ficando gradualmente púrpura à medida que o sangue descia para a cabeça.
— Isso é uma piração! Que é que deu em...
E então ele viu a caixa aberta na cama de Rony, e a verdade o atingiu com a força de um
trasgo desembestado.
— Onde você arranjou esses caldeirões de chocolate?
— Foram presente de aniversário! — gritou Rony, girando lentamente no ar tentando se
desvencilhar. — Eu lhe ofereci um, não foi?
— Você simplesmente os apanhou no chão, não foi?
— Caíram da minha cama, tá bem? Me solte!
— Não caíram da sua cama, seu retardado, você não entende? Eles são meus, eu os atirei
fora do malão quando estava procurando o mapa. São os caldeirões de chocolate que a Romilda
me deu antes do Natal, e estão incrementados com uma poção de amor!
Mas apenas uma palavra de tudo que Harry dissera parecia ter penetrado a cabeça de Rony.
— Romilda? — repetiu ele. — Você disse Romilda? Harry... eu conheço ela? Você pode
me apresentar?
Harry ficou olhando para o amigo pendurado, cujo rosto agora transparecia esperança, e
refreou um intenso desejo de rir. Uma parte dele, a parte mais próxima da orelha direita que
latejava, era favorável à idéia de deixar Rony descer e ficar assistindo às suas loucuras até os
efeitos da poção passarem... mas, por outro lado, eles eram amigos; Rony estava fora de si
quando o atacara, e Harry achou que mereceria outro soco, se o deixasse declarar seu
imorredouro amor a Romilda Vane.
— E, vou lhe apresentar — disse Harry pensando rápido. — Vou descer você agora, o.k.?
Ele fez Rony despencar de volta ao chão (sua orelha doía à beca), mas Rony simplesmente
se levantou ágil e sorridente.
— Ela deve estar no escritório de Slughorn — informou Harry com segurança, saindo
primeiro em direção à porta.
— Por que ela deve estar lá? — perguntou Rony ansioso, correndo para alcançar o amigo.
— Ah, ela tem aulas extras de Poções com ele — respondeu Harry, fantasiando.
— Quem sabe eu também posso ter aulas junto com ela? — sugeriu Rony ansioso.
— Ótima idéia.
Lilá estava esperando ao lado do buraco do retrato, uma complicação que Harry não previra.
— Você está atrasado Uon-Uon! — disse, fazendo beicinho. — Comprei um presente de...
— Me deixa em paz — disse Rony impaciente. — Harry vai me apresentar a Romilda Vane.
E, sem dizer mais nada, saiu pelo buraco do retrato. Harry tentou fazer cara de quem pede
desculpas, mas talvez tenha feito cara de riso porque Lilá parecia mais ofendida do que nunca
quando a Mulher Gorda tornou a fechar a passagem.
Harry ficou um pouco apreensivo que Slughorn pudesse estar tomando café, mas o
professor atendeu a porta do escritório à primeira batida, usando um roupão de veludo verde e um
gorro igual, com olhos de quem não dormira direito.
— Harry — murmurou ele. — É muito cedo para fazer visitas... em geral durmo até tarde no
sábado.
— Professor, lamento realmente incomodar o senhor — disse Harry com a voz mais baixa
possível, enquanto Rony se erguia nas pontas dos pés tentando espiar a sala que o professor
bloqueava —, mas o meu amigo Rony engoliu uma poção de amor por engano. Será que o senhor
poderia preparar um antídoto para ele? Eu o levaria a Madame Pomfrey, mas é proibido ter
artigos da Gemialidades Weasley e, o senhor entende... perguntas embaraçosas...
— Eu teria pensado que você fosse capaz de preparar um remédio em um minuto, Harry,
um exímio preparador de poções como você, não? — questionou Slughorn.
— Ãh — começou Harry, meio distraído, porque Rony agora o acotovelava tentando forçar
entrada no aposento —, bem, eu nunca preparei um antídoto para uma poção de amor, senhor, e
até que eu acertasse, Rony poderia ter feito alguma coisa grave...
Por sorte, Rony escolheu esse momento para gemer:
— Não estou vendo ela, Harry... o professor está escondendo a Romilda?
— A poção estava dentro da validade? — perguntou Slughorn, examinando Rony com
interesse profissional. — Ficam mais concentradas, sabe, quando guardadas por muito tempo.
— Isto explicaria muita coisa — ofegou Harry, agora positivamente resistindo a Rony para
não deixá-lo derrubar Slughorn. — É aniversário dele, professor — acrescentou o garoto em tom
de súplica.
— Ah, está bem, entrem, então, entrem — concordou Slughorn. — Tenho o que preciso
aqui na bolsa, não é um antídoto trabalhoso...
Rony embarafustou pela porta do escritório superaquecido e supermobiliado de Slughorn,
tropeçou em um tamborete com borlas para os pés, recobrou o equilíbrio agarrando Harry pelo
pescoço e murmurou:
— Ela não viu isso, não é?
— Ela ainda não chegou — disse Harry, observando Slughorn abrir o estojo de poções e
misturar umas pitadinhas disto e daquilo em um pequeno frasco de cristal.
— Que bom! — exclamou Rony com fervor. — Como é que estou?
— Bonitão — respondeu Slughorn sem hesitar, entregando a Rony um copo de líquido
claro. — Agora beba, é um tônico para os nervos, para mantê-lo calmo quando ela chegar, sabe.
— Genial — Rony falou com ansiedade e engoliu ruidosamente o antídoto.
Harry e Slughorn o observaram. Por um momento, Rony sorriu para ambos. Depois, aos
poucos, seu sorriso murchou e desapareceu, e foi substituído por uma expressão de total horror.
— Então, voltou ao normal? — perguntou Harry sorrindo. Slughorn deu uma risada
discreta. — Obrigado, professor.
— Não foi nada, meu rapaz, não foi nada — disse Slughorn, enquanto Rony desmontava
em uma cadeira próxima, parecendo arrasado. — Um tônico, é do que ele precisa — continuou
Slughorn, agora indo até uma mesa repleta de bebidas. — Tenho cerveja amanteigada, tenho
vinho, tenho uma última garrafa de hidromel envelhecido em barril de carvalho... hum... ia
presenteá-la a Dumbledore no Natal... ah bem... — sacudiu os ombros — ele não pode sentir falta
do que nunca recebeu! Por que não a abrimos agora para comemorar o aniversário do Sr.
Weasley? Nada como uma boa bebida para curar as dores de um desapontamento amoroso...
Ele riu de novo, e Harry o acompanhou. Esta era a primeira vez que ele se encontrava quase
sozinho com Slughorn desde a desastrosa tentativa de extrair do professor a lembrança
verdadeira. Talvez, se ele pudesse manter Slughorn de bom humor... talvez se tomassem
suficiente hidromel envelhecido em carvalho...
— Pronto, aqui têm — disse Slughorn, entregando a cada garoto uma taça de hidromel,
antes de erguer a própria.
— Bem, um ótimo aniversário para você, Ralph...
— Rony... — sussurrou Harry.
Mas Rony, que não pareceu estar ouvindo o brinde, já virará o hidromel de um gole.
Transcorreu um segundo, pouco mais que uma pulsação, em que Harry notou que havia
alguma coisa terrivelmente errada, e Slughorn, pelo visto, não percebeu.
— ... e que esta data se repita por muitos...
— Rony!
Rony tinha deixado cair a taça; fez menção de se levantar da cadeira e desmontou
frouxamente, suas extremidades sacudindo descontroladas. Ele babava espuma e seus olhos
saltavam das órbitas.
— Professor! — berrou Harry. — Faça alguma coisa!
Slughorn, porém, parecia paralisado pelo choque. Rony se contorceu e engasgou: sua pele
começou a azular.
— Que... mas... — gaguejou Slughorn.
Harry saltou por cima de uma mesinha baixa em direção ao estojo de poções aberto, tirou
frascos e bolsinhas, enquanto o medonho ruído da respiração gorgolejante de Rony enchia a sala.
Então Harry a encontrou: a pedra com aspecto de rim murcho que entregara a Slughorn na aula de
Poções.
Tornou a correr para junto de Rony, abriu sua boca e jogou dentro o bezoar. O amigo deu
um estremeção, um arquejo estertorante, e seu corpo ficou mole e imóvel.
CAPÍTULO DEZENOVE
CAMPANA DE ELFOS
— ENTÃO, NO GERAL, NÃO FOI um dos melhores aniversários do Rony, não é? — comentou
Fred.
Era noite; a ala hospitalar estava silenciosa, as cortinas fechadas, as luzes acesas. A cama de
Rony era a única ocupada. Harry, Hermione e Gina estavam sentados à sua volta; tinham passado
o dia inteiro esperando do lado de fora das portas duplas, tentando espiar lá para dentro, sempre
que alguém entrava ou saía. Madame Pomfrey só os deixara entrar às oito horas da noite. Fred e
Jorge tinham chegado dez minutos depois.
— Não foi bem assim que imaginamos entregar nosso presente —disse Jorge, sério,
deixando um grande embrulho na mesa-de-cabeceira de Rony e se sentando ao lado de Gina.
— É, quando imaginamos a cena, ele estava consciente — confirmou Fred.
— Estávamos em Hogsmeade, esperando para fazer uma surpresa a ele — falou Jorge.
— Vocês estavam em Hogsmeade? — admirou-se Gina, erguendo a cabeça.
— Estivemos pensando em comprar a Zonkos — respondeu Fred triste. — Uma filial em
Hogsmeade, sabe, mas não vai nos adiantar nada, se vocês não tiverem mais permissão de sair
nos fins de semana e comprar os nossos artigos... mas deixa isso para lá.
Ele puxou uma cadeira ao lado de Harry e contemplou o rosto pálido de Rony.
— Como foi exatamente que isso aconteceu, Harry?
O garoto tornou a contar a história que tinha a impressão de já ter repetido cem vezes a
Dumbledore, a McGonagall, a Madame Pomfrey, a Hermione e a Gina.
— ... então enfiei o bezoar na boca de Rony e a respiração dele melhorou um pouco,
Slughorn correu para buscar ajuda, McGonagall e Madame Pomfrey apareceram e o trouxeram
aqui para cima. Acham que vai se curar. Madame Pomfrey diz que terá de ficar aqui mais ou
menos uma semana... tomando Essência de Arruda.
— Caramba, foi sorte você ter se lembrado do bezoar — disse Jorge em voz baixa.
— Sorte que tivesse um na sala — respondeu Harry, que gelava só de pensar no que teria
acontecido se não tivesse conseguido obter a pedrinha.
Hermione deu uma fungada quase inaudível. Tinha estado excepcionalmente quieta o dia
todo. Tendo se precipitado, lívida, ao encontro de Harry, à porta da ala hospitalar, e exigido saber
o que acontecera, ela praticamente não participara da discussão obsessiva entre Harry e Gina
sobre o modo como Rony fora envenenado; meramente se postara ao lado deles, com os dentes
cerrados e uma expressão de medo até que, finalmente, receberam autorização para vê-lo.
— Mamãe e papai sabem? — perguntou Fred a Gina.
— Eles já viram o Rony, chegaram há uma hora; estão no escritório de Dumbledore, agora,
mas vão voltar logo...
Houve uma pausa durante a qual todos ficaram observando Rony, adormecido, resmungar
um pouco.
— Então o veneno estava na garrafa? — perguntou Jorge em voz baixa.
— Estava — respondeu Harry imediatamente; não conseguia pensar em nada mais, e a
oportunidade de retomar a discussão o deixava feliz. — Slughorn serviu o hidromel...
— Ele poderia ter posto alguma coisa na taça de Rony sem você ver?
— Provavelmente, mas por que Slughorn iria querer envenenar Rony?
— Não faço a menor idéia — respondeu Fred, enrugando a testa. — Você acha que ele
poderia ter trocado as taças por engano? Querendo envenenar você?
— Por que Slughorn iria querer envenenar Harry? — indagou Gina.
— Não sei — replicou Fred —, mas deve haver muita gente que gostaria de envenenar
Harry, não? "O Eleito" e tudo o mais?
— Então você acha que Slughorn é um Comensal da Morte? — perguntou Gina.
— Tudo é possível — respondeu Fred sombriamente.
— Ele poderia estar dominado pela Maldição Imperius — sugeriu Jorge.
— Ou poderia ser inocente — tornou Gina. — O veneno poderia estar na garrafa, caso em
que provavelmente era destinado ao próprio Slughorn.
— Quem iria querer matar Slughorn?
— Dumbledore acha que Voldemort queria o apoio de Slughorn — disse Harry. — O
professor esteve escondido durante um ano antes de vir para Hogwarts. E... — ele pensou na
lembrança que Dumbledore ainda não conseguira extrair dele — ... e talvez Voldemort queira
tirar Slughorn do caminho, talvez ache que ele pode ser valioso para Dumbledore.
— Mas você disse que Slughorn tinha pensado em dar a garrafa a Dumbledore no Natal —
Gina lembrou a Harry. — Então o envenenador poderia muito bem estar atrás do Dumbledore.
— Então o envenenador não conhecia Slughorn muito bem — falou Hermione pela primeira
vez em horas, com voz de quem pegara um forte resfriado. — Qualquer um que conhecesse
Slughorn saberia que havia grande probabilidade do professor guardar uma coisa gostosa daquela
para si mesmo.
— Her-mi-o-ne — crocitou Rony inesperadamente.
Todos se calaram, observando-o ansiosos, mas, depois de resmungar palavras
incompreensíveis por um momento, ele simplesmente começou a roncar.
As portas da enfermaria se escancararam, sobressaltando a todos: Hagrid entrou e se
encaminhou para o grupo, sua cabeleira salpicada de chuva, o casaco de pêlo de urso ondulando
aos seus passos, um arco na mão, deixando no chão um rastro de pegadas lamacentas do tamanho
de bóias.
— Passei o dia todo na Floresta! — ofegou. — Aragogue piorou, estive lendo para ele... só
me levantei para jantar agora há pouco, e a professora Sprout me contou o que aconteceu ao
Rony. Como é que ele está?
— Nada mal — respondeu Harry. — Dizem que vai ficar bom.
— Somente seis visitas de cada vez! — avisou Madame Pomfrey, saindo depressa de sua
sala.
— Com o Hagrid são seis — salientou Jorge.
— Ah... é... — concordou Madame Pomfrey, que, pelo jeito, contara Hagrid como várias
pessoas, diante de sua corpulência. Para disfarçar seu embaraço, ela correu a limpar as pegadas
com a varinha.
— Não acredito — disse Hagrid rouco, sacudindo a cabeça peluda enquanto olhava para
Rony. — Simplesmente não acredito... olha só ele deitado aí... quem iria querer fazer mal a ele,
eh?
— É justamente o que estamos discutindo — disse Harry. — Não sabemos.
— Será que alguém poderia estar com raiva da equipe de quadribol da Grifinória? —
perguntou Hagrid ansioso. — Primeiro a Cátia, agora o Rony...
— Não consigo ver ninguém tentando liquidar uma equipe de quadribol — comentou Jorge.
— Wood teria acabado com os jogadores da Sonserina se não tivesse de pagar pelo crime —
respondeu Fred, querendo ser justo.
— Bem, acho que o motivo não é o quadribol, mas acho que há uma ligação entre os
ataques — disse Hermione, baixinho.
— Como é que você chegou a essa conclusão? — perguntou Fred.
— Bem, primeiro, os dois casos deviam ter sido fatais, mas não foram, embora tenha sido
por pura sorte. Por outro lado, nem o veneno nem o colar parecem ter atingido a pessoa que
deviam matar. É claro — acrescentou ela pensativa — que de certa forma isto torna o mandante
dos atentados ainda mais perigoso, porque parece que não se importa com o número de pessoas
que liquida até realmente chegar à sua vítima.
Antes que alguém pudesse reagir a essa afirmação agourenta, as portas tornaram a se abrir, e
o casal Weasley entrou apressado na enfermaria. Em sua última visita, tinham apenas se
assegurado de que Rony se recuperaria totalmente: agora a Sra. Weasley agarrou Harry e lhe deu
um abraço apertado.
— Dumbledore nos contou como você salvou Rony com o bezoar — soluçou a bruxa. —
Ah, Harry, que podemos dizer? Você salvou Gina... salvou Arthur... agora salvou Rony...
— Não precisa... eu não... — murmurou Harry sem jeito.
— Parece que metade da nossa família lhe deve a vida, agora que paro para pensar — falou
o Sr. Weasley com a voz embargada. — Bem, só o que posso dizer é que foi um dia de sorte para
os Weasley quando Rony resolveu sentar no seu compartimento no Expresso de Hogwarts, Harry.
O garoto não soube o que responder e quase se alegrou quando Madame Pomfrey tornou a
ralhar com eles porque só podiam permanecer seis visitas em torno da cama de Rony; ele e
Hermione se levantaram na mesma hora para sair e Hagrid decidiu acompanhá-los, deixando
Rony com a família.
— É terrível — resmungou Hagrid, quando os três caminhavam pelo corredor em direção à
escadaria de mármore. — Todas essas novidades na segurança e os garotos continuam a ser
atingidos... Dumbledore está morto de preocupação... ele não fala muito, mas dá para sentir...
— Ele não tem nenhuma idéia, Hagrid? — perguntou Hermione desesperada.
— Acho que tem centenas de idéias, um cérebro como o dele — disse Hagrid lealmente. —
Mas não sabe quem mandou aquele colar nem quem envenenou o vinho, ou eles já teriam sido
pegos, não acha? O que me preocupa — continuou ele baixando a voz e espiando por cima do
ombro (Harry, por precaução, verificou se Pirraça estaria no teto) — é quanto tempo Hogwarts
pode continuar aberta se os garotos não param de ser atacados. É a Câmara Secreta outra vez, não
é mesmo? Vai haver pânico, muitos pais vão tirar os filhos da escola e, quando a gente der pela
coisa, o conselho diretor...
Hagrid se calou enquanto o fantasma de uma mulher de longos cabelos passava serenamente
por eles, então retomou o que dizia num sussurro rouco:
— ... o conselho diretor vai começar a falar em nos fechar para sempre.
— Com certeza que não — contestou Hermione, preocupada.
— Temos que ver o ponto de vista deles — replicou Hagrid pesaroso. — Quero dizer,
sempre foi meio arriscado mandar um garoto para Hogwarts, não acham? A gente espera que haja
acidentes, não é, centenas de bruxos de menor idade trancados juntos, mas tentativa de homicídio
é outra coisa. Não admira que Dumbledore esteja aborrecido com o Sn...
Hagrid parou de repente, e uma expressão de culpa que os garotos conheciam tão bem
tornou-se visível acima da emaranhada barba negra.
— Quê? — perguntou Harry depressa. — Dumbledore está aborrecido com o Snape?
— Eu nunca disse isso — protestou Hagrid, embora sua expressão de pânico não pudesse
ser maior confirmação. — Olhem como é tarde, já é quase meia-noite, preciso...
— Hagrid, por que Dumbledore está aborrecido com Snape? — perguntou Harry em voz
alta.
— Chiii! — disse Hagrid, parecendo ao mesmo tempo nervoso e zangado. — Não grite
essas coisas, Harry, você quer que eu perca o meu emprego? Não que eu ache que você se
importaria, não é, agora que desistiu de estudar Trato das...
— Não tente me fazer sentir culpado, não vai funcionar! — exclamou Harry energicamente.
— Que foi que Snape fez?
— Não sei, Harry, eu não devia nem ter ouvido! Ah... bem, eu ia saindo da Floresta uma
noite dessas e ouvi os dois conversando... bem, discutindo. Não quis chamar atenção para a
minha pessoa, então meio que me escondi e tentei não ouvir, mas foi uma... bem uma discussão
inflamada, e foi difícil não ouvir.
— E aí? — insistiu Harry, enquanto o amigo arrastava os enormes pés pouco à vontade.
— Bem... eu só ouvi Snape dizer que o Dumbledore contava com muita coisa e talvez ele...
Snape... não quisesse continuar a...
— O quê?
— Não sei, Harry, pareceu que o Snape estava se sentindo sobrecarregado, foi só... em todo
caso, Dumbledore disse, sem rodeios, que ele tinha concordado em fazer alguma coisa e que era
assunto encerrado. Foi bastante firme com ele. E então ele falou algo sobre Snape fazer
investigações na Casa dele, na Sonserina. Bem, não vejo nada estranho nisso! — Hagrid
apressou-se a acrescentar, enquanto Harry e Hermione trocavam olhares muito significativos. —
Todos os diretores de Casas receberam ordem de investigar o caso do colar...
— É, mas Dumbledore não andou brigando com os outros, não é? — replicou Harry.
— Olhe — Hagrid torceu o arco nas mãos sem jeito; ouviu-se um forte estalo de madeira e
o arco se partiu em dois —, eu sei o que você pensa do Snape, Harry, e não quero que entenda
nessa história mais do que tem para entender.
— Cuidado — avisou Hermione bruscamente.
Eles se viraram em tempo de ver a sombra de Argo Filch se avultar na parede às suas costas
antes que o homem, corcunda, de queixo trêmulo, aparecesse no canto do corredor.
— Oho! — exclamou num chiado. — Fora da cama tão tarde, isto vai significar detenção!
— Não vai, não, Filch — disse Hagrid secamente. — Eles estão comigo, não é mesmo?
— E que diferença faz isso? — perguntou Filch desaforado.
— Pombas, sou professor, não é mesmo, seu aborto fofoqueiro! — retrucou Hagrid,
irritando-se.
Ouviu-se um sibilo agressivo à medida que Filch inchava de fúria; Madame Nora apareceu,
sem ninguém perceber, e se enroscou, sinuosa, nos tornozelos magros do dono.
— Vão andando — disse Hagrid pelo canto da boca.
Harry não precisou ouvir a segunda vez; ele e Hermione saíram ligeiros, ouvindo os ecos da
altercação de Hagrid e Filch às suas costas enquanto corriam. Passaram por Pirraça antes de
virarem para a Torre da Grifinória, mas o poltergeist voava feliz em direção à fonte da gritaria,
rindo e cantarolando:
Quando tem conflito e quando tem barulho, Chamem o Pirraça, ele dobra a confusão!
A Mulher Gorda estava tirando um cochilo e não gostou de ser acordada, mas girou,
resmungando, para permitir que os garotos entrassem na sala comunal, felizmente vazia e
tranqüila. Pelo visto, as pessoas ainda não sabiam o que acontecera a Rony; Harry sentiu um
grande alívio, já fora suficientemente interrogado aquele dia. Hermione lhe deu boa-noite e foi
para o dormitório das garotas. Harry, porém, ficou na sala, e se sentou junto à lareira,
contemplando as brasas que iam se apagando.
Então Dumbledore discutira com Snape. Apesar de tudo que dissera a Harry, apesar de
insistir que confiava inteiramente em Snape, perdera a paciência com ele... achava que Snape não
se empenhara o suficiente para investigar os alunos da Sonserina... ou, talvez, investigar um único
aluno: Malfoy?
Será que Dumbledore não queria que Harry fizesse uma tolice, resolvesse agir por conta
própria, por isso fingira que não havia fundamento nas suspeitas do garoto? Era plausível. Podia
até ser que Dumbledore quisesse evitar que Harry se desviasse de suas aulas ou de obter aquela
lembrança de Slughorn. Talvez Dumbledore não achasse direito confiar suas suspeitas sobre
professores a adolescentes de dezesseis anos...
— Aí está você, Potter!
Harry saltou, assustado, empunhando a varinha. Estava certo de que não havia ninguém na
sala comunal; não estava preparado para ver um vulto colossal se erguer de repente de uma
cadeira distante. Um olhar mais atento mostrou-lhe que era Córmaco McLaggen.
— Estive esperando você voltar — disse McLaggen, ignorando a varinha de Harry. — Devo
ter adormecido. Olha, vi quando levaram Weasley para a ala hospitalar hoje cedo. E, pelo jeito,
não estará em condições de jogar a partida da semana que vem.
Harry levou uns momentos para compreender o que McLaggen estava dizendo.
— Ah... certo... quadribol — disse, guardando a varinha no cós do jeans e passando a mão,
cansado, pelos cabelos. — É... talvez ele não possa jogar.
— Bem, então, eu serei o goleiro, não é?
— É. É, presumo que sim...
Não conseguia pensar em nenhum argumento em contrário; afinal, McLaggen fora, sem
dúvida, o segundo melhor nos testes.
— Excelente — disse McLaggen satisfeito. — Então, quando vai ser o treino?
— Quê? Ah... haverá um amanhã à noite.
— Ótimo. Escute aqui, Potter, acho que devíamos ter uma conversa antes. Tenho algumas
idéias sobre estratégia que podem lhe ser úteis.
— Certo — concordou Harry sem entusiasmo. — Bem, você me fala amanhã então. Estou
muito cansado agora... a gente se vê...
A notícia de que Rony fora envenenado se espalhou rapidamente no dia seguinte, mas não
causou a mesma sensação do ataque a Cátia. Aparentemente, as pessoas pensaram que poderia ter
sido um acidente, e, considerando que ele estava na sala do professor de Poções naquele
momento e que recebera logo um antídoto, não acontecera realmente mal algum. De fato, os
alunos da Grifinória, de um modo geral, se mostravam bem mais interessados no jogo iminente
contra a Lufa-Lufa, porque muitos queriam ver Zacarias Smith, que era o artilheiro da equipe,
receber um bom castigo pelos seus comentários durante a partida de abertura da temporada contra
a Sonserina.
Harry, no entanto, nunca estivera menos interessado em quadribol; estava se tornando
aceleradamente obcecado por Draco Malfoy. Ainda observando o Mapa do Maroto sempre que
podia, ele por vezes saía do seu caminho para ir onde Malfoy estivesse, sem, contudo, encontrá-lo
fazendo qualquer coisa fora do comum. E continuava a haver aqueles momentos inexplicáveis em
que Malfoy simplesmente desaparecia do mapa.
O garoto, porém, não teve muito tempo para refletir sobre o problema era face dos treinos
de quadribol, dos deveres e do fato de que ele estava sendo perseguido aonde quer que fosse por
Córmaco McLaggen e Lilá Brown.
Ele não conseguia decidir qual era o mais importuno. McLaggen despejava um fluxo
constante de insinuações de que seria um goleiro titular melhor para a equipe do que Rony e que
agora que Harry o veria jogar regularmente, com certeza, acabaria pensando o mesmo; Córmaco
também gostava de criticar os outros jogadores e de fornecer a Harry esquemas detalhados de
treinamento, forçando Harry, mais de uma vez, a lembrar-lhe quem era o capitão.
Enquanto isso, Lilá não parava de abordá-lo para falar sobre Rony, o que Harry achava mais
estressante do que as preleções de McLaggen sobre quadribol. A princípio, Lilá ficara muito
aborrecida que ninguém tivesse pensado em avisá-la de que Rony estava hospitalizado ("quero
dizer, eu sou a namorada dele!"), mas, infelizmente, ela resolvera perdoar a Harry este lapso de
memória, e estava preferindo manter com ele conversas freqüentes e profundas sobre os
sentimentos de Rony, uma experiência extremamente desconfortável que o garoto teria
dispensado com prazer.
— Olha, por que você não conversa com Rony sobre tudo isso? — perguntou Harry, depois
de um interrogatório particularmente longo de Lilá, que incluiu desde o que Rony dissera sobre
suas novas vestes até a opinião de Harry se Rony estaria levando a "sério" o namoro dos dois.
— Bem, eu faria isso, mas ele está sempre dormindo quando vou à enfermaria! —
respondeu Lilá impaciente.
— É mesmo? — exclamou Harry, surpreso, pois encontrara Rony completamente acordado
todas as vezes em que estivera na ala hospitalar, muito interessado em saber notícias da discussão
entre Dumbledore e Snape, e em xingar McLaggen sempre que podia.
— Hermione Granger continua visitando Rony? — quis saber Lilá inesperadamente.
— Acho que sim. Bem, eles são amigos, não é? — respondeu Harry constrangido.
— Amigos, não me faça rir — comentou Lilá com desdém. — Ela deixou de falar com
Rony durante semanas quando ele começou a sair comigo! Mas imagino que queira reatar agora
que ele se tornou tão interessante...
— Você chama interessante alguém ser envenenado? De qualquer modo... me desculpe,
tenho de ir andando... aí vem McLaggen para falar de quadribol — disse Harry, apressado, e se
precipitou por uma porta lateral disfarçada de parede sólida e desceu por um atalho que o levaria
à aula de Poções onde, felizmente, nem Lilá nem McLaggen poderiam segui-lo.
Na manhã do jogo de quadribol contra a Lufa-Lufa, Harry passou na ala hospitalar antes de
seguir para o campo. Encontrou Rony muito agitado; Madame Pomfrey não queria deixá-lo ir
assistir ao jogo, achando que poderia perturbá-lo demais.
— Então, como é que McLaggen está se saindo? — perguntou nervoso a Harry,
aparentemente esquecido de que já fizera a mesma pergunta duas vezes.
— Já lhe disse — respondeu Harry pacientemente —, ele poderia ser um goleiro de primeira
linha e, ainda assim, eu não iria querer ele na equipe. Ele não pára de dizer a todo o mundo o que
fazer, acha que poderia jogar em qualquer posição melhor do que a gente. Mal posso esperar para
me livrar dele. E, por falar em se livrar de pessoas — acrescentou Harry, levantando-se e
apanhando sua Firebolt —, quer parar de fingir que está dormindo quando a Lilá vem visitar
você? Ela é outra que está me deixando maluco.
— Ah — exclamou Rony, sem graça. — Tudo bem.
— Se você não quer mais namorar, é só dizer a ela.
— É... bem... não é tão fácil, não é? — Rony fez uma pausa. — Hermione vai passar aqui
antes do jogo? — acrescentou displicente.
— Não, ela já foi para o campo com a Gina.
— Ah — tornou Rony, parecendo deprimido. — Certo. Bem, boa sorte. Espero que você dê
uma surra no McLag... quero dizer, no Smith.
— Vou tentar — disse Harry, levando a vassoura ao ombro. — A gente se vê depois do
jogo.
Ele saiu apressado pelos corredores desertos; a escola inteira estava lá fora ou sentada no
estádio ou a caminho. Harry foi espiando pelas janelas ao passar, tentando avaliar quanto vento
iam enfrentar, quando um barulho mais à frente chamou sua atenção; ele viu Malfoy andando em
sua direção em companhia de duas garotas, ambas com ar de contrariedade e raiva.
Malfoy parou imediatamente ao ver Harry, então soltou uma risada curta e seca e continuou
a andar.
— Aonde é que você vai? — quis saber Harry.
— É, vou mesmo lhe dizer, Potter, porque é da sua conta — debochou Malfoy. — É melhor
você correr, devem estar esperando o "Capitão Eleito", o "Rapaz que fez Gol", ou sei lá qual é o
nome que lhe dão ultimamente.
Uma das garotas riu, contrafeita. Harry encarou-a. Ela corou. Malfoy passou por Harry, e
ela e a amiga o seguiram quase correndo, viraram num canto e desapareceram de vista.
Harry ficou pregado ali, observando-os desaparecer. Isto era de enfurecer; estava em cima
da hora para chegar ao estádio em tempo e via Malfoy, rondando pelos corredores enquanto o
restante da escola estava ausente: a melhor chance que Harry tivera até o momento para descobrir
o que Malfoy andava fazendo. Os segundos silenciosos passaram lentos e Harry continuou onde
estava, paralisado, olhando para o lugar onde vira Malfoy desaparecer...
— Aonde é que você andou? — indagou Gina, quando Harry entrou correndo no vestiário.
A equipe inteira estava uniformizada e pronta; Coote e Peakes, os batedores, balançavam os
bastões nervosamente contra as pernas.
— Encontrei Malfoy — respondeu ele em voz baixa, enquanto enfiava as vestes vermelhas
pela cabeça.
— E daí?
— E daí eu queria saber por que ele estava no castelo com duas garotas enquanto todo o
mundo está aqui embaixo...
— E isso faz diferença agora?
— Bem, provavelmente não vou descobrir, não é mesmo? — respondeu ele, apanhando a
Firebolt e endireitando os óculos. — Andem, vamos!
E sem dizer mais nada, entrou em campo sob vaias e aplausos ensurdecedores. Ventava
pouco; as nuvens estavam esgarçadas; a intervalos, deixavam passar lampejos ofuscantes de sol.
— Condições enganosas! — disse McLaggen para estimular a equipe. — Coote, Peakes,
vocês terão de voar evitando o sol, para eles não verem vocês se aproximando...
— Eu sou o capitão, McLaggen, pare de dar instruções — exclamou Harry irritado. — Vai
logo para junto das balizas!
Quando McLaggen se afastou, Harry se dirigiu a Cootes e Peakes.
— Procurem realmente voar evitando o sol — repetiu para os jogadores de má vontade.
Harry apertou a mão do capitão da Lufa-Lufa e, quando Madame Hooch apitou, deu
impulso e levantou vôo, ganhando uma altitude maior do que o resto da equipe, para sobrevoar os
limites do campo à procura do pomo. Se conseguisse agarrá-lo bem cedo, talvez pudesse voltar ao
castelo, apanhar o Mapa do Maroto e descobrir o que Malfoy estava fazendo...
"E lá vai Smith da Lufa-Lufa levando a goles", ecoou uma voz sonhadora pelos terrenos de
Hogwarts. "Da última vez, foi ele quem narrou o jogo, é claro, e Gina Weasley colidiu com o
pódio, provavelmente de propósito: ou assim me pareceu. Smith foi muito grosseiro nos
comentários sobre a Grifinória, imagino que esteja arrependido agora que tem de enfrentar a
equipe da Casa... ah, olhem, ele perdeu a posse da goles, Gina roubou-a dele, gosto dela, é muito
boa..."
Harry olhou admirado para o pódio do locutor. Decerto, ninguém com o juízo perfeito
deixaria Luna Lovegood narrar o jogo! Mas, mesmo ali do alto, não havia como confundir
aqueles longos cabelos louro-sujos nem aquele colar de rolhas de cerveja amanteigada... Ao lado
de Luna, a professora McGonagall parecia meio constrangida, como se de fato estivesse
refletindo sobre tal escolha.
"... mas agora aquele grandalhão da Lufa-Lufa tirou a goles de Gina, não estou conseguindo
lembrar o nome dele, é alguma coisa parecida com Bibble... não, Buggins..."
— É Cadwallader! — exclamou a professora McGonagall em voz alta ao lado de Luna. A
multidão riu.
Harry correu os olhos ao redor, procurando o pomo; nem sinal. Instantes depois,
Cadwallader marcou. McLaggen estivera aos berros, criticando Gina por perder a posse da goles,
e, em conseqüência, não vira a grande bola vermelha passar voando por sua orelha direita.
— McLaggen, quer prestar atenção no que você devia estar fazendo e deixar os outros em
paz?! — berrou Harry, dando meia-volta para ficar de frente para o seu goleiro.
— Grande exemplo você está dando! — gritou McLaggen em resposta, a cara vermelha de
fúria.
"E Harry Potter agora está discutindo com o seu goleiro", irradiou Luna calmamente,
enquanto as torcidas da Lufa-Lufa e da Sonserina, entre os espectadores, aplaudiam e vaiavam.
"Acho que isso não vai ajudá-lo a localizar o pomo, mas talvez seja um estratagema bem
sacado..."
Xingando enraivecido, Harry tornou a girar e recomeçou a contornar o campo, varrendo o
céu à procura de um sinal da bolinha de ouro alada.
Gina e Demelza marcaram cada uma o seu gol, dando à torcida vermelho-e-ouro, lá
embaixo, um motivo para se alegrar. Caldwallader tornou a golear, empatando o placar, mas
Luna não pareceu notar; narrava como se não tivesse interessada em detalhes mundanos como o
marcador, e todo o tempo tentava chamar a atenção da multidão para nuvens de formas curiosas e
a possibilidade de Zacarias Smith, que até o momento não conseguira manter a posse da goles por
mais de um minuto, estar sofrendo de uma doença chamada "fiascurgia".
"Setenta a quarenta para Lufa-Lufa!", anunciou a professora McGonagall ao megafone de
Luna.
"Já?", exclamou Luna distraída. "Ah, vejam! O goleiro da Grifinória arrancou o bastão de
um dos batedores."
Harry se virou no ar. De fato, McLaggen, por razões que só ele sabia, tirara o bastão de
Peakes e parecia estar demonstrando como bater um balaço em Cadwallader, que se aproximava.
— Quer devolver o bastão dele e voltar às balizas?! — rugiu Harry voando em direção a
McLaggen, exatamente na hora em que ele golpeava com ferocidade um balaço e errava o alvo.
Uma dor nauseante de cegar... um lampejo... gritos distantes... e a sensação de despencar por
um longo túnel...
Quando recuperou os sentidos, Harry se viu deitado em uma cama extraordinariamente
quente e confortável, olhando para um lampião, no alto, que projetava um círculo de luz dourada
no teto escuro. Harry ergueu a cabeça desajeitado. À sua esquerda, estava alguém de sardas e
cabelos ruivos que lhe pareceu familiar.
— Que bom que veio me visitar — disse Rony rindo.
Harry piscou os olhos e olhou ao redor. Claro: encontrava-se na ala hospitalar. O céu lá fora
estava azul-anil raiado de vermelho. O jogo devia ter acabado havia horas... tal como a esperança
de encurralar Malfoy. Sua cabeça parecia estranhamente pesada; ele ergueu a mão e sentiu um
turbante compacto de bandagens.
— Que aconteceu?
— Fratura no crânio — respondeu Madame Pomfrey, aproximando-se, enérgica, e
obrigando-o a deitar de novo nos travesseiros. — Não precisa se preocupar, emendei tudo na
hora, mas vou mantê-lo aqui até amanhã. Você não deve fazer maiores esforços por algumas
horas.
— Não quero ficar aqui até amanhã — respondeu Harry, aborrecido, sentando-se e atirando
as cobertas para longe. — Quero achar o McLaggen e matar ele.
— Creio que isso se enquadre entre "maiores esforços" — disse Madame Pomfrey,
empurrando-o, com firmeza, na cama e erguendo sua varinha ameaçadoramente. — Você vai
ficar aqui até que eu lhe dê alta, Potter, ou chamarei o diretor.
A bruxa voltou depressa para a sua sala, e Harry afundou nos travesseiros, espumando.
— Você sabe de quanto perdemos? — perguntou a Rony entre os dentes.
— Bem, sei — respondeu Rony em tom de quem pede desculpas. — O placar final foi
trezentos e vinte a sessenta.
— Genial — exclamou Harry com ferocidade. — Realmente genial! Quando eu pegar o
McLaggen...
— Você não quer pegar o McLaggen, ele é do tamanho de um trasgo — argumentou Rony.
— Pessoalmente, sou mais a favor de azarar ele com aquele feitiço do Príncipe, na unha do pé.
De qualquer modo, quem sabe o resto da equipe já terá cuidado dele quando você sair daqui,
ninguém ficou feliz...
Havia uma nota de mal contida alegria na voz de Rony; Harry percebeu que ele estava
simplesmente vibrando que McLaggen tivesse metido os pés pelas mãos. Harry ficou ali,
contemplando o retalho de luz no teto, sua cabeça recém-emendada não estava exatamente doída,
mas parecia sensível sob aquelas bandagens.
— Ouvi a narração da partida daqui — disse Rony, a voz trêmula de riso. — Espero que
seja sempre a Luna a comentar daqui para frente... Fiascurgia...
Harry, no entanto, continuava zangado demais para achar muita graça na situação, e pouco
depois Rony parou de rir.
— Gina veio fazer uma visita quando você estava inconsciente — disse ele depois de uma
longa pausa, e instantaneamente a imaginação de Harry disparou, montando uma cena em que
Gina, chorando sobre o seu corpo sem vida, confessava sentir uma forte atração por ele enquanto
Rony os abençoava... — Ela acha que você chegou em cima da hora para o jogo. Que aconteceu?
Você saiu daqui bem cedo.
— Ah... — começou Harry enquanto a cena implodia em sua mente. — E... bem, vi Malfoy
se esgueirando pelo corredor com duas garotas que pareciam não estar querendo a companhia
dele, e esta é a segunda vez que ele dá um jeito de não estar no estádio com o resto da escola. E
ele também faltou ao último jogo, lembra? — suspirou Harry. — Eu gostaria de ter seguido o
Malfoy, já que o jogo foi aquele fiasco...
— Não seja idiota — replicou Rony com rispidez. — Você não podia faltar a um jogo de
quadribol só para seguir Malfoy, você é o capitão!
— Quero saber o que ele anda fazendo. E não me diga que isso é coisa da minha
imaginação, não depois da conversa que escutei entre ele e o Snape...
— Eu nunca disse que você estava imaginando coisas — protestou Rony, erguendo-se sobre
um cotovelo e franzindo a testa para Harry —, mas não existe regra que diga que somente uma
pessoa de cada vez pode tramar coisas neste lugar! Você está ficando meio obcecado pelo
Malfoy, Jerry. Quero dizer, pensar em faltar um jogo só para seguir o cara...
— Quero apanhar Malfoy com a mão na massa! — respondeu Harry frustrado. — Quero
dizer, aonde é que ele vai quando desaparece do mapa?
— Não sei... Hogsmeade? — sugeriu Rony, bocejando.
— Nunca o vi andando por nenhuma passagem secreta no mapa. Aliás, achei que todas elas
estavam sendo vigiadas agora, não?
— Bem, então, não sei.
Fez-se silêncio entre os dois. Harry ficou olhando para o círculo de luz no alto, refletindo...
Se ao menos ele tivesse o poder de Rufo Scrimgeour, poderia mandar seguir Malfoy, mas
infelizmente não tinha uma seção de aurores sob seu comando... ele pensou por um breve instante
em montar alguma coisa com a AD, mas, de novo, haveria o problema de darem por falta dos
alunos nas aulas; afinal, a maioria deles tinha horários apertados...
Ouviu-se um ronco surdo vindo da cama de Rony. Passado um tempo, Madame Pomfrey
saiu de sua sala, desta vez trajando um grosso roupão. Era mais fácil fingir que estava dormindo;
Harry virou para o lado e ouviu as cortinas se fecharem quando a bruxa acenou com a varinha. As
luzes diminuíram e ela voltou à sua sala; ele ouviu o clique da porta ao fechar, e entendeu que ela
se recolhera.
Esta, refletiu Harry no escuro, era a terceira vez que o traziam para a ala hospitalar por conta
de um acidente de quadribol. Da última vez, ele caíra da vassoura por causa da presença dos
dementadores em torno do campo, e, da vez anterior, perdera todos os ossos do braço pela
incompetência incurável do professor Lockhart... fora de longe o seu acidente mais doloroso... ele
se lembrou da agonia de restaurar todos os ossos do braço em uma noite, um mal-estar que só fez
aumentar com a chegada de um visitante inesperado no meio da...
Harry se sentou de repente, o coração batendo forte, o turbante de bandagens enviesado.
Finalmente encontrara a solução: havia uma maneira de seguir Malfoy... como podia ter
esquecido, por que não pensara nisso antes?
Mas a questão era: como chamá-lo? Como se fazia isso?

CAPÍTULO VINTE
O PEDIDO DE LORD VOLDEMORT
HARRY E RONY DEIXARAM A ALA HOSPITALAR bem cedo na manhã de segunda-feira, com a
saúde perfeita, graças aos cuidados de Madame Pomfrey, prontos para gozar os benefícios de
terem sido, respectivamente, fraturado e envenenado, e, o que era melhor, Hermione reatara a
amizade com Rony. A garota chegou a acompanhá-los quando desceram para o café da manhã,
trazendo a notícia de que Gina tinha discutido com Dino. O animal adormecido no peito de Harry
instantaneamente ergueu a cabeça e farejou o ar, esperançoso.
— E qual foi o motivo da discussão? — perguntou ele, tentando parecer desinteressado,
quando entraram por um corredor deserto do sétimo andar, exceto por uma garotinha que estava
examinando uma tapeçaria com trasgos usando tutus. Ela fez uma cara de terror ao ver os
sextanistas se aproximarem, e deixou cair a pesada balança que estava carregando.
— Tudo bem! — disse Hermione gentilmente, correndo para ajudá-la. — Veja... — E tocou
a balança partida com a varinha dizendo Reparo!
A garota não agradeceu, continuou pregada no chão enquanto eles passavam,
acompanhando, com o olhar, o grupo desaparecer de vista; Rony virou a cabeça para espiá-la.
— Juro que cada dia elas estão ficando menores — comentou.
— Esqueça a garota — disse Harry, um pouco impaciente. — Por que foi que Gina e Dino
brigaram, Hermione?
— Ah, Dino estava rindo de McLaggen ter acertado aquele balaço em você — respondeu
Hermione.
— Deve ter sido engraçado — comentou Rony sensatamente.
— Não foi nada engraçado! — replicou Hermione indignada. — Foi horrível, e se Coote e
Peakes não tivessem agarrado Harry ele poderia ter se machucado seriamente!
— É, bem, Gina e Dino não precisavam ter rompido o namoro por causa disso — tornou
Harry, ainda tentando parecer displicente. — Ou eles continuam juntos?
— Continuam... mas por que você está tão interessado? — perguntou Hermione, lançando a
Harry um olhar penetrante.
— Não quero ver a equipe de quadribol bagunçada outra vez! — apressou-se a justificar,
mas Hermione continuou desconfiada, e ele sentiu um grande alívio quando uma voz às suas
costas gritou "Harry!", dando-lhe uma desculpa para virar as costas para ela.
— Ah, oi, Luna.
— Fui procurar você na ala hospitalar — disse Luna vasculhando a mochila. — Mas
disseram que você já tinha saído...
Ela empurrou nas mãos de Rony uma coisa que parecia uma cebola verde, um grande
chapéu-de-cobra e uma bolada de outra coisa que lembrava argila absorvente para caixa de
dejetos de gatos, e, por fim, tirou um pergaminho meio sujo que entregou a Harry.
— ... mandaram lhe entregar isto.
Era um rolinho de pergaminho no qual Harry reconheceu imediatamente outro convite para
uma aula com Dumbledore.
— Hoje à noite — informou ele a Rony e Hermione, quando abriu o pergaminho.
— Legal a sua narração no último jogo! — disse Rony a Luna, quando ela pegou de volta a
cebola verde, o chapéu-de-cobra e a argila. A garota deu um sorriso indefinido.
— Você está caçoando de mim, não é? Todo o mundo disse que foi péssima.
— Não, estou falando sério! — replicou Rony com sinceridade. — Não me lembro de ter
gostado tanto de uma narração! A propósito, que é isso? — acrescentou, erguendo a tal cebola à
altura dos olhos.
— Ah, é raiz-de-cuia — disse ela, devolvendo a argila e o cogumelo à sua mochila. — Pode
ficar com ela se quiser, tenho muito. É excelente para a gente se proteger das Dilátex Vorazes.
E ela se afastou, deixando Rony ainda segurando a raiz-de-cuia na mão e rindo.
— Sabe, ela acabou me conquistando, a Luna — comentou ele, quando recomeçaram a
andar para o Salão Principal. — Sei que é maluca, mas é no bom...
Ele parou repentinamente de falar. Lilá Brown estava parada ao pé da escadaria de mármore
com um ar tempestuoso.
— Oi — cumprimentou Rony nervoso.
— Vamos — murmurou Harry para Hermione, e eles deixaram os dois para trás depressa,
mas não sem antes ter ouvido Lilá dizer:
— Por que você não me avisou que estava saindo hoje? E por que ela estava com você?
Rony parecia esquivo e aborrecido quando chegou para tomar café meia hora mais tarde e,
embora sentasse com Lilá, Harry não os viu trocarem uma única palavra à mesa. Hermione agia
como se estivesse indiferente à cena, mas uma ou duas vezes Harry percebeu um inexplicável ar
de riso perpassar seu rosto. Durante todo aquele dia, ela pareceu particularmente bem-humorada
e, à noite, na sala comunal, ela até consentiu em dar uma lida (em outras palavras, terminar de
escrever) no trabalho de Herbologia de Harry, coisa que se recusara terminantemente a fazer até
então, porque sabia que Harry deixaria Rony copiar seu trabalho.
— Valeu, Hermione — disse Harry, dando-lhe uma palmadinha apressada nas costas ao
mesmo tempo em que consultava o relógio e constatava que já eram quase oito horas. — Escute,
tenho de correr ou vou chegar atrasado à aula do Dumbledore...
Ela não respondeu, apenas cortou algumas frases menos adequadas com um ar cansado.
Harry, rindo, passou rápido pelo buraco do retrato e saiu em direção ao escritório do diretor. A
gárgula saltou para o lado ao ouvir falar em bombas de caramelo, e Harry, subindo a escada de
dois em dois degraus, bateu na porta na hora em que o relógio marcou oito horas.
— Entre — falou Dumbledore, mas quando Harry estendeu a mão para empurrar a porta ela
foi escancarada pelo lado de dentro. A sua frente estava a professora Trelawney.
— Ah-ah! — exclamou ela, apontando dramaticamente para Harry e piscando os olhos por
trás das lentes que aumentavam seus olhos. — Então esta é a razão por que fui expulsa sem a
menor cerimônia de seu escritório, Dumbledore!
— Minha cara Sibila — respondeu o diretor ligeiramente exasperado —, não é uma questão
de expulsá-la sem a menor cerimônia de lugar algum, Harry tem uma hora marcada comigo, e
realmente acho que já terminamos a nossa conversa...
— Muito bem — retrucou a professora Trelawney profundamente magoada. — Se você não
quer banir o pangaré usurpador, então seja... talvez eu encontre uma escola onde os meus talentos
sejam melhor apreciados...
Ela passou por Harry e desapareceu pela escada em espiral; eles a ouviram tropeçar na
descida, e Harry imaginou que tivesse tropeçado em um dos seus longos xales.
— Por favor, feche a porta e sente, Harry — ordenou Dumbledore com a voz cansada.
O garoto obedeceu, reparando, ao sentar na cadeira habitual à frente da escrivaninha, que a
Penseira estava mais uma vez entre os dois, bem como dois frasquinhos de cristal em que
giravam lembranças.
— Então a professora Trelawney continua infeliz porque Firenze está dando aulas? —
perguntou Harry.
— Continua — respondeu Dumbledore. — Adivinhação está me saindo uma disciplina
bem mais complicada do que pude prever, uma vez que eu mesmo nunca a estudei. Não posso
pedir a Firenze para retornar à Floresta, onde agora ele é um proscrito, nem posso pedir a Sibila
Trelawney para sair. Aqui entre nós, ela não faz idéia do perigo que correria fora do castelo. A
professora não sabe, e acho que não seria prudente esclarecer, que foi ela quem fez a profecia
sobre você e Voldemort, entende.
Dumbledore deu um grande suspiro e disse:
— Mas vamos esquecer os meus problemas com os professores. Temos assuntos bem mais
importantes a discutir. Primeiro: você cumpriu a tarefa que lhe dei ao concluirmos a nossa aula
anterior?
— Ah — respondeu Harry, pego de surpresa. Com as aulas de Aparatação e o quadribol e o
envenenamento de Rony e a fratura da própria cabeça, além da determinação em descobrir o que
Draco Malfoy andava fazendo, ele quase se esquecera da lembrança que Dumbledore tinha lhe
pedido que extraísse do professor Slughorn... — Bem, falei com o professor Slughorn sobre a
lembrança, no final da aula de Poções, senhor, mas, ãh, ele não quis me dar.
Fez-se um breve silêncio.
— Entendo — respondeu por fim Dumbledore, fitando-o por cima dos oclinhos de meia-lua
e dando a Harry a habitual sensação de que estava sendo radiografado. — E você acha que
dedicou todos os seus esforços à questão? Que exerceu toda a sua enorme inventividade?
Que não deixou de explorar nenhuma possibilidade em sua busca para recuperar a
lembrança?
— Bem. — Harry procurou ganhar tempo, sem saber o que responder. Sua única tentativa
de obter a lembrança pareceu-lhe, de repente, embaraçosamente medíocre. — Bem... no dia em
que Rony tomou a poção do amor por engano, eu o levei ao professor Slughorn. Pensei que
talvez, se deixasse o professor de muito bom humor...
— E isso deu resultado? — perguntou Dumbledore.
— Bem, não, senhor, porque Rony foi envenenado...
— ... o que naturalmente o fez esquecer completamente a tentativa de recuperar a
lembrança; eu não teria esperado outra atitude enquanto o seu melhor amigo corria perigo. Mas,
uma vez que ficou claro que o Sr. Weasley ia se recuperar totalmente, eu teria esperado que você
retomasse a tarefa que lhe dei. Pensei que tivesse deixado muito clara a importância daquela
lembrança. De fato, fiz tudo que pude para convencê-lo de que essa é a lembrança mais crucial, e
que sem ela estaremos perdendo o nosso tempo.
Uma sensação quente e incômoda de vergonha espalhou-se da cabeça aos pés de Harry.
Dumbledore não erguera a voz, nem sequer falara aborrecido, mas Harry teria preferido que
gritasse; este frio desapontamento era pior do que qualquer outra coisa.
— Senhor — disse ele, meio desesperado —, não é que eu não tenha me importado nem
nada, é só que tive outras... outras coisas...
— Outras coisas na cabeça — Dumbledore concluiu a frase para ele. — Entendo.
Os dois ficaram novamente em silêncio, o mais constrangedor de sua vivência com o
diretor; o silêncio parecia se prolongar indefinidamente, pontuado apenas pelos breves roncos que
vinham do retrato de Armando Dippet, no alto da parede, às costas de Dumbledore. Harry se
sentiu estranhamente pequeno, como se tivesse encolhido um pouco desde que entrara na sala.
Quando não conseguiu mais agüentar, ele disse:
— Professor Dumbledore, lamento sinceramente. Eu devia ter me esforçado mais... devia ter
compreendido que o senhor não me pediria isso se não fosse realmente importante.
— Obrigado por dizer isso, Harry — falou Dumbledore em voz baixa. — Posso, então,
esperar que de hoje em diante você dará ao assunto maior prioridade? Não fará muito sentido nos
reunirmos depois desta noite a não ser que tenhamos aquela lembrança.
— Pode, sim, senhor, obterei a lembrança — disse Harry honestamente.
— Então, por ora, não falaremos mais nisso — disse o diretor mais brandamente —,
continuaremos a nossa história do ponto em que paramos. Você lembra onde foi?
— Lembro, sim, senhor — respondeu Harry prontamente. — Voldemort matou o pai e os
avós e fez parecer que o culpado era o seu tio Morfino. Voltou, então, a Hogwarts e perguntou...
perguntou ao professor Slughorn a respeito das Horcruxes — murmurou envergonhado.
— Muito bem. Agora, você lembra, espero que sim, de que falei logo no início das nossas
reuniões que entraríamos no terreno da adivinhação e da especulação, certo?
— Sim, senhor.
— Até aqui, espero que concorde, mostrei-lhe fontes razoavelmente seguras para as minhas
deduções sobre os passos de Voldemort até os dezessete anos.
Harry concordou com a cabeça.
— Agora, no entanto, Harry, as coisas se tornam mais obscuras e estranhas. Se foi difícil
encontrar indícios sobre o garoto Riddle, tem sido quase impossível encontrar quem se disponha a
se lembrar do homem Voldemort. De fato, duvido que haja um único ser vivente, além dele
mesmo, que possa nos fornecer um relato completo de sua vida desde que deixou Hogwarts.
Contudo, tenho duas últimas lembranças que gostaria de partilhar com você. — Dumbledore
indicou os dois frasquinhos de cristal que refulgiam ao lado da Penseira. — Depois, gostaria
muito de saber se você acha prováveis as conclusões que extraí dessas lembranças.
A idéia de que Dumbledore desse tanto valor à sua opinião fez Harry se sentir mais
profundamente envergonhado de não ter se desincumbido da tarefa de recuperar a lembrança
sobre a Horcrux, e ele se mexeu na cadeira, constrangido, quando o diretor ergueu o primeiro dos
dois frascos para examiná-lo contra a luz.
— Espero que você não esteja cansado de mergulhar nas lembranças de outras pessoas,
porque estas duas são curiosas. A primeira vem de uma elfo doméstica muito velha, chamada
Hóquei. Antes de vermos o que ela presenciou, preciso resumir rapidamente como foi a saída de
Lord Voldemort de Hogwarts.
"Ele concluiu o sétimo ano da escola, como seria de esperar, tendo obtido nota máxima em
cada exame que prestou. Em sua volta, os colegas de turma estavam decidindo que empregos
iriam procurar quando deixassem a escola. Quase todos esperavam feitos espetaculares de Tom
Riddle, monitor, monitor-chefe, ganhador do Prêmio Especial por Serviços Prestados à Escola.
Sei que vários professores, entre eles Slughorn, sugeriram que ele entrasse para o Ministério da
Magia, se ofereceram para marcar entrevistas, apresentarem-lhe contatos úteis. Voldemort
recusou todos os oferecimentos. Pouco depois, os professores souberam que ele estava
trabalhando na Borgin & Burkes."
— Na Borgin & Burkes? — repetiu Harry atordoado.
— Na Borgin & Burkes — confirmou Dumbledore calmamente. — Acho que você
entenderá as atrações que o lugar lhe oferecia quando entrarmos na lembrança da Hóquei. Esta,
porém, não foi a primeira opção de emprego de Voldemort. Muito pouca gente soube, eu era um
dos poucos em quem o diretor daquela época confiava, mas Voldemort procurou o professor
Dippet e perguntou se poderia continuar em Hogwarts como professor.
— Ele quis continuar aqui? Por quê? — perguntou Harry, ainda mais espantado.
— Creio que houvesse várias razões para isso, embora não tivesse confidenciado nenhuma
delas ao professor Dippet. A primeira, e mais importante, creio que Voldemort era mais apegado
à escola do que jamais foi a pessoa alguma. Hogwarts era o lugar em que fora mais feliz; o
primeiro e único lugar em que tinha se sentido em casa.
Harry se sentiu ligeiramente incomodado ao ouvir essas palavras, porque era exatamente o
que ele sentia com relação a Hogwarts.
— Segundo, o castelo é um reduto de magia antiga. Sem dúvida, Voldemort penetrara um
número muito maior de segredos do que a maioria dos estudantes que passaram por aqui, mas ele
talvez tivesse percebido que ainda havia mistérios a desvendar, fontes de magia a explorar.
"E terceiro, como professor, ele teria tido grande poder e influência sobre os jovens bruxos e
bruxas. Talvez tenha adquirido esta noção com Slughorn, o professor com quem melhor se
relacionava, que lhe mostrara o papel influente que um professor pode desempenhar. Não
imagino, nem por um instante, que Voldemort tencionas-se passar o resto da vida em Hogwarts,
mas acho que viu na escola um valioso campo de recrutamento e um lugar onde poderia começar
a reunir para si um exército."
— Mas ele não conseguiu o emprego, senhor?
— Não, não conseguiu. O professor Dippet lhe disse que era demasiado jovem aos dezoito
anos, mas convidou-o a tornar a se candidatar dali a alguns anos, se ainda quisesse ensinar.
— Como é que ele se sentiu ao ouvir isso, senhor? — perguntou Harry hesitante.
— Muito contrafeito. Eu tinha alertado Armando contra a contratação, não lhe dei as razões
que dei a você, porque o professor Dippet gostava muito de Voldemort e estava convencido de
sua sinceridade, mas eu não queria que Lord Voldemort voltasse a esta escola, principalmente em
uma posição de poder.
— Qual era o cargo que ele queria, senhor? Qual era a disciplina que ele queria ensinar?
Por alguma razão, Harry sabia qual era a resposta mesmo antes que Dumbledore a desse.
— Defesa contra as Artes das Trevas. Naquele tempo, era ensinada por uma professora
antiga chamada Galatéia Merrythought, que estava em Hogwarts havia quase cinqüenta anos.
"Então Voldemort foi para a Borgin & Burkes, e todos os professores que o admiravam
comentaram o desperdício que era, um jovem bruxo brilhante como ele trabalhar em uma loja.
Contudo, Voldemort não era um mero balconista. Educado, bonitão e inteligente, logo passaram a
encarregá-lo de certas tarefas que só existem em um lugar como a Borgin & Burkes, que se
especializa, como você sabe, Harry, em objetos com propriedades poderosas e incomuns.
Voldemort foi instruído a persuadir as pessoas a cederem seus tesouros aos sócios, para venda, e
ele era, segundo todos dizem, muito talentoso nisso."
— Aposto que era — comentou Harry, incapaz de se conter.
— Bem, era mesmo — disse Dumbledore com um leve sorriso. — E agora chegou a hora de
ouvir o que diz Hóquei, a elfo doméstica que trabalhou para uma bruxa muito velha e riquíssima
chamada Hepzibá Smith.
Dumbledore tocou em um dos frascos com a varinha, a rolha saltou e ele despejou a
lembrança espiralante na Penseira dizendo:
— Primeiro você, Harry.
O garoto se levantou e se curvou mais uma vez para o conteúdo prateado e ondulante da
bacia de pedra até encostar o rosto nele. Despencou pelo vácuo escuro e aterrissou em uma sala
de estar diante de uma velha imensamente gorda, de peruca ruiva, com um caprichoso penteado e
um conjunto de brilhantes vestes cor-de-rosa que caíam à sua volta, dando-lhe a aparência de um
bolo com o glacê derretido. Mirava-se em um espelhinho cravejado de pedras e passava ruge nas
faces, já escarlates, com uma grande esponja de pó-de-arroz; enquanto isso, a elfo doméstica
menor e mais velha que Harry já vira na vida calçava, nos pés carnudos da bruxa, apertadas
pantufas de cetim.
— Depressa, Hóquei! — falou Hepzibá, autoritária. — Ele disse que viria às quatro horas,
faltam só uns minutinhos, e até hoje ele nunca se atrasou!
Ela guardou a esponja quando a elfo doméstica se levantou. A cabeça dela mal chegava ao
assento da cadeira de Hepzibá, e sua pele papirácea parecia pender dos ossos tal como o lençol
engomado de linho que ela usava, drapejado, como uma toga.
— Que tal estou? — perguntou Hepzibá, virando a cabeça para se admirar de vários ângulos
no espelho.
— Linda, madame — respondeu Hóquei esganiçada.
Harry só pôde supor que constava do contrato de Hóquei mentir descaradamente quando a
dona lhe fizesse essa pergunta, porque, em sua opinião, Hepzibá Smith estava longe de ser linda.
Uma campainha tilintou, e a senhora e a elfo se sobressaltaram.
— Depressinha, Hóquei, ele chegou — exclamou Hepzibá e a elfo saiu correndo da sala, tão
atulhada de móveis e objetos que era difícil imaginar como alguém era capaz de navegar entre
eles sem derrubar pelo menos uma dúzia de coisas: havia armários cheios de pequenas caixas de
xarão, estantes repletas de livros gravados em ouro, prateleiras de esferas e globos celestes, e
muitas plantas verdejantes em cachepôs de latão; de fato, a sala parecia uma cruza de antiquário
de magia e estufa de plantas.
A elfo doméstica voltou minutos depois, seguida por um rapaz alto em quem, sem a menor
dificuldade, Harry reconheceu Voldemort. Vestia um terno preto muito simples; seus cabelos
estavam um pouco mais compridos do que no tempo de escola e suas faces encovadas, mas tudo
isso lhe assentava bem: parecia mais bonito que nunca. Atravessou a sala, desviando-se dos
objetos com um ar de quem já estivera ali muitas vezes, e segurando a mão de Hepzibá fez uma
profunda reverência e tocou-a levemente com os lábios.
— Trouxe flores para a senhora — disse ele em voz baixa, materializando um buquê.
— Menino levado, você não precisava! — guinchou a velha Hepzibá, embora Harry
reparasse que havia um vaso pronto na mesinha mais próxima. — Você realmente estraga esta
velha, Tom... sente-se, sente-se... onde foi a Hóquei... ah...
A elfo voltou correndo à sala, trazendo uma bandeja de bolinhos, que depositou ao lado do
cotovelo de sua senhora.
— Sirva-se, Tom, sei como gosta dos meus bolos. Agora, como vai? Parece pálido. Fazem
você trabalhar demais naquela loja, já disse isso mil vezes...
Voldemort sorriu mecanicamente, e Hepzibá retribuiu com um sorrisinho afetado.
— Bem, desta vez qual é a desculpa para sua visita? — perguntou ela pestanejando.
— O Sr. Burke gostaria de fazer uma oferta melhor pela armadura fabricada pelos duendes
— respondeu Voldemort. — Quinhentos galeões, ele acha mais do que justo...
— Ora, ora, vamos com calma ou pensarei que você só veio aqui por causa das minhas
bugigangas! — disse Hepzibá, fazendo beicinho.
— Sou mandado aqui por causa delas — respondeu Voldemort em voz baixa. — Sou
apenas um pobre balconista, madame, que precisa cumprir ordens. O Sr. Burke quer que eu
indague...
— Ah, fiau para o Sr. Burke! — exclamou Hepzibá, fazendo um gesto de descaso com sua
mãozinha. — Tenho uma coisa para lhe mostrar que jamais mostrei ao Sr. Burke! Você é capaz
de guardar um segredo, Tom? Promete que não contará ao Sr. Burke o que tenho? Ele não me
daria mais descanso se soubesse que lhe mostrei, e não quero vender nem ao Burke nem a
ninguém! Mas você, Tom, você saberá apreciar a peça por sua história, não pelos galeões que
poderá obter com sua venda...
— Teria prazer em ver qualquer coisa que a srta. Hepzibá me mostrasse — respondeu Tom
sem ai tear a voz, e a bruxa deu mais uma risadinha juvenil.
— Mandei Hóquei buscar... Hóquei, cadê você? Quero mostrar ao Sr. Riddle o nosso mais
belo tesouro... na verdade, aproveite e traga os dois...
— Aqui estão, madame — guinchou a elfo, e Harry viu dois estojos de couro, sobrepostos,
deslocando-se pela sala como se tivessem vontade própria, embora ele soubesse que a minúscula
elfo os carregava à cabeça, contornando mesas, pufes e banquinhos.
— Agora — exclamou Hepzibá alegremente, recebendo os estojos da elfo e apoiando-os no
colo para abrir o de cima. — Acho que você vai gostar, Tom... ah, se a minha família soubesse o
que estou lhe mostrando... mal podem esperar para pôr as mãos nisso!
A bruxa abriu a tampa. Harry chegou um pouquinho à frente para poder ver melhor e
deparou com um objeto que parecia uma tacinha de ouro com duas asas finamente lavradas.
— Será que você sabe o que é isso, Tom? Pegue, dê uma boa olhada! — sussurrou Hepzibá;
Voldemort esticou seus dedos compridos e retirou a taça, pela asa, do encaixe de seda franzida.
Harry achou ter percebido um fulgor vermelho em seus olhos escuros. Sua expressão cobiçosa
refletiu-se curiosamente no rosto de Hepzibá, exceto que os olhinhos da bruxa estavam fixos nas
belas feições de Voldemort.
— Uma insígnia — murmurou Voldemort, examinando a gravação na taça. — Então isto
era...
— De Helga Huffiepuff, como você sabe muito bem, seu danadinho! — exclamou Hepzibá,
inclinando-se para a frente, produzindo fortes estalos em seu espartilho e dando um beliscão na
bochecha magra de Voldemort. — Eu não lhe disse que era uma descendente distante de Helga?
A taça vem passando de uma geração a outra em nossa família há anos. Linda, não é? E possui
vários poderes também, segundo dizem, mas não experimentei todos, me contento em guardá-la
bem segura aqui...
Ela soltou a taça do longo indicador de Voldemort e devolveu-a gentilmente ao estojo,
absorta demais em repô-la na posição correta para notar a sombra que perpassou o rosto de
Voldemort quando tirou a taça da mão dele.
— Agora — disse Hepzibá alegre —, onde foi a Hóquei? Ah, sim, aí está você... leve isto
para guardar, Hóquei...
A elfo apanhou obedientemente o estojo, e Hepzibá voltou sua atenção para a outra caixa
bem mais fina em seu colo.
— Acho que você vai gostar deste ainda mais, Tom — sussurrou ela. — Chegue mais perto,
caro rapaz, para poder vê-lo... é claro que Burke sabe que tenho isto, comprei-o na mão dele e
acho que ele adoraria recomprá-lo quando eu me for...
Ela empurrou o delicado fecho de filigrana e abriu a caixa. Ali, sobre o macio forro de
veludo vermelho, havia um pesado medalhão de ouro.
Desta vez Voldemort estendeu a mão sem esperar convite e ergueu a peça à luz para
examiná-la.
— É a marca de Slytherin — disse baixinho, quando a luz incidiu sobre um S floreado e
serpentino.
— Exatamente! — exclamou Hepzibá, revelando-se encantada com a visão de Voldemort a
admirar, fascinado, o seu medalhão. — Tive de pagar um braço e uma perna por ele, mas não
podia deixar passar a ocasião, não de adquirir um verdadeiro tesouro como este, precisava tê-lo
na minha coleção. Pelo que soube, Burke o comprou de uma mulher esfarrapada que pelo jeito o
roubara, mas não tinha a menor idéia do seu real valor...
Desta vez não havia engano: os olhos de Voldemort produziram um lampejo vermelho ao
ouvir essas palavras, e Harry viu os nós dos seus dedos, que seguravam a corrente do medalhão,
embranquecerem.
— ... acho que Burke pagou à mulher uma ninharia, mas aí o tem... bonito, não é? E como o
outro, atribuem a este todo o tipo de poder, embora eu apenas o guarde em segurança...
Ela estendeu a mão para retomar o medalhão. Por um momento, Harry pensou que
Voldemort não ia deixar, mas logo o medalhão escorregava entre seus dedos e estava de volta ao
acolchoado de veludo vermelho.
— Eis aí, Tom, querido, e espero que você tenha gostado!
A bruxa olhou-o diretamente no rosto e, pela primeira vez, Harry viu o sorriso tolo dela
vacilar.
— Você está bem, querido?
— Ah, sim — respondeu Voldemort, quieto. — Estou muito bem...
— Pensei... deve ter sido uma ilusão de ótica — disse Hepzibá, parecendo nervosa, e Harry
imaginou que a bruxa, também, vira o momentâneo brilho vermelho nos olhos de Voldemort. —
Tome aqui, Hóquei, leve e tranque-os outra vez... os feitiços de sempre...
— Hora de partir, Harry — disse Dumbledore calmamente, e, quando a pequena elfo saía
balançando o estojo na cabeça, Dumbledore mais uma vez segurou o braço de Harry e juntos
atravessaram o olvido de volta ao escritório de Dumbledore.
— Hepzibá Smith morreu dois dias depois dessa breve cena — comentou Dumbledore,
retomando seu lugar e indicando que Harry fizesse o mesmo. — Hóquei, a elfo doméstica foi
condenada pelo Ministério por ter envenenado o chocolate noturno de sua senhora, por engano.
— Nem pensar! — exclamou Harry enraivecido.
— Vejo que concordamos inteiramente. Com certeza há muitas semelhanças entre essa
morte e a dos Riddle. Nos dois casos, outra pessoa levou a culpa, alguém que tinha perfeita
lembrança de ter causado a morte...
— Hóquei confessou?
— Ela se lembrou de ter posto alguma coisa no chocolate de sua senhora, e descobriram que
não era açúcar mas um veneno letal e pouco conhecido — explicou Dumbledore. — Concluíram
que não houve intenção, mas por ser velha e confusa...
— Voldemort alterou a memória dela, exatamente como fez com Morfino!
— Foi o que concluí também — disse Dumbledore. — E tal como no caso de Morfino, o
Ministério estava predisposto a suspeitar de Hóquei...
— ... porque era uma elfo doméstica — concluiu Harry. Poucas vezes sentira tanta simpatia
pela sociedade que Hermione fundara, o F.A.L.E.
— Precisamente — disse Dumbledore. — Ela era velha, admitiu ter misturado a bebida, e
ninguém no Ministério se deu ao trabalho de indagar mais nada. Como no caso do Morfino,
quando finalmente localizei-a e consegui extrair esta lembrança, estava praticamente à morte...
mas a lembrança, é claro, não prova nada exceto que Voldemort sabia da existência da taça e do
medalhão.
"Quando finalmente Hóquei foi condenada, a família de Hepzibá já dera por falta de dois
dos seus mais valiosos tesouros. Mas os herdeiros levaram algum tempo para se certificarem,
porque a bruxa linha muitos esconderijos e sempre guardara com muito zelo sua coleção. Antes,
porém, que estivessem absolutamente seguros de que a taça e o medalhão haviam desaparecido, o
balconista que trabalhara para a Borgin & Burkes, o jovem que visitara Hepzibá com tanta regularidade
e a impressionara tão bem, tinha se demitido e se eclipsado. Seus empregadores não
faziam idéia aonde fora; ficaram tão surpresos quanto os demais, com o seu sumiço. E, durante
muito tempo, essa foi a última vez que alguém viu ou ouviu falar de Tom Riddle.
"Agora — continuou Dumbledore —, se você não se opuser, Harry, quero fazer outro
parêntese para destacar certos pontos de nossa história. Voldemort tinha cometido mais um
homicídio; se era o primeiro desde que matara os Riddle, eu não sei, mas acho que sim. Desta
vez, como você deve ter percebido, ele não matou para se vingar, mas para lucrar. Queria os dois
fabulosos troféus que aquela pobre mulher vaidosa lhe mostrou. Da mesma forma que, no passado,
roubara as outras crianças no orfanato, da mesma forma que roubara o anel de seu tio
Morfino, ele agora fugia com a taça e o medalhão de Hepzibá."
— Mas — interpôs Harry, franzindo a testa — me parece loucura... arriscar tudo, jogar o
emprego para o alto, só para obter...
— Loucura para você, talvez, mas não para Voldemort. Espero que, com o tempo, você
compreenda exatamente o que esses objetos significavam para ele, Harry, mas admita que não é
difícil imaginar que ele considerou que pelo menos o medalhão era legitimamente dele.
— O medalhão talvez, mas por que levar a taça também?
— Tinha pertencido a outro dos fundadores de Hogwarts. Acho que ele ainda sentia uma
grande atração pela escola e que não poderia resistir a um objeto tão impregnado com sua
história. Penso que havia outras razões... e espero, com o tempo, poder comprová-las a você.
"E agora vamos à última lembrança que tenho para mostrar, pelo menos até que você
consiga obter para nós a do professor Slughorn. Dez anos separam a lembrança de Hóquei desta
outra, dez anos durante os quais podemos apenas imaginar o que Lord Voldemort esteve
fazendo..."
Harry se levantou mais uma vez enquanto Dumbledore esvaziava a última lembrança na
Penseira.
— De quem é a lembrança? — perguntou ele.
— Minha — disse Dumbledore.
E Harry mergulhou depois de Dumbledore na instável massa de prata para aterrissar, em
seguida, no mesmo escritório que acabara de deixar. Lá estava Fawkes, dormindo feliz em seu
poleiro, e lá estava Dumbledore, à sua escrivaninha, muito parecido com este ao lado de Harry
embora tivesse as duas mãos sadias e o rosto talvez um pouco menos enrugado. A única diferença
entre o escritório atual e este outro era que estava nevando no da lembrança; flocos azulados
passavam flutuando pela janela escura e se acumulavam na aba externa da janela.
O Dumbledore mais jovem parecia estar à espera de alguém e, de fato, momentos depois de
chegarem, ouviram uma batida na porta.
— Entre — disse Dumbledore.
Harry deixou escapar uma exclamação imediatamente reprimida. Voldemort entrara na sala.
Suas feições não eram as que Harry vira emergir do grande caldeirão de pedra quase dois anos
antes: não eram tão ofídias, os olhos ainda não eram vermelhos, o rosto ainda não era uma
máscara, mas ele deixara de ser o bonito Tom Riddle. Era como se suas feições tivessem
queimado e embaçado; estavam macilentas e estranhamente distorcidas, e o branco dos olhos
parecia estar permanentemente injetado, embora as pupilas ainda não fossem as fendas que Harry
sabia que viriam a ser. Ele trajava uma longa capa preta, e seu rosto estava branco como a neve
que brilhava em seus ombros.
O Dumbledore à escrivaninha não demonstrou surpresa alguma. Evidentemente a visita fora
marcada com antecedência.
— Boa-noite, Tom — disse o diretor com simplicidade. — Não quer sentar?
— Obrigado — agradeceu Voldemort, e se sentou na cadeira que Dumbledore indicara: pelo
visto, a mesma que Harry acabara de deixar no presente. — Soube que se tornou diretor — sua
voz estava um pouco mais aguda e mais fria do que antes —, uma escolha merecida.
— Fico satisfeito que você aprove — disse Dumbledore sorridente. — Posso lhe oferecer
uma bebida?
— Seria bem-vinda. Vim de muito longe.
Dumbledore se levantou e foi até o armário onde agora guardava a Penseira, e que, então,
estava cheio de garrafas. Tendo dado a Voldemort uma taça de vinho, e em seguida se servido,
voltou ao seu lugar à escrivaninha.
— Então, Tom... a que devo o prazer?
Voldemort não respondeu de imediato, apenas tomou um golinho do vinho.
— Não me chamam mais de Tom. Hoje em dia sou conhecido como...
— Eu sei como você é conhecido — interrompeu-o Dumbledore com um sorriso agradável.
— Mas, para mim, receio que você sempre será o Tom Riddle. E uma das coisas irritantes nos
antigos professores, eles nunca chegam a esquecer a juventude dos seus pupilos.
Ele ergueu a taça como se brindasse a Voldemort, cujo rosto permaneceu inexpressivo.
Harry, no entanto, sentiu a atmosfera no aposento mudar sutilmente: a recusa de Dumbledore em
usar o nome escolhido por Voldemort era uma recusa a permitir que ditasse os termos do
encontro, e Harry percebeu que Voldemort assim entendera.
— Estou surpreso que tenha permanecido aqui tanto tempo — recomeçou Voldemort após
uma breve pausa. — Eu sempre me perguntei por que um bruxo como você jamais quis deixar a
escola.
— Bem — respondeu Dumbledore, ainda sorrindo —, para um bruxo como eu, não pode
haver nada mais importante do que transmitir artes antigas, ajudar a afinar a mente dos jovens. Se
me lembro corretamente, no passado você também se sentiu atraído pelo ensino.
— Ainda me sinto — disse Voldemort. — Simplesmente me perguntei por que você, a
quem tantas vezes o Ministério tem pedido conselhos, e a quem já foi oferecido duas vezes, acho,
o posto de ministro...
— Na realidade já foram três vezes. Mas o Ministério nunca me atraiu como carreira. Mais
uma coisa que temos em comum, acho.
Voldemort curvou a cabeça sem sorrir e tomou mais um golinho do vinho. Dumbledore não
quebrou o silêncio que se alongou entre .os dois, antes aguardou que Voldemort falasse primeiro
com uma expressão de cordial expectativa.
— Voltei — disse ele depois de algum tempo —, talvez mais tarde do que o professor
Dippet esperava... mas voltei, mesmo assim, para tornar a solicitar o que ele certa vez me recusou
dizendo que eu era jovem demais para ser. Vim procurá-lo para pedir que me permita retornar a
este castelo como professor. Acho que você deve saber que vi e fiz muita coisa desde que saí.
Poderia mostrar e contar coisas aos seus estudantes que não poderiam aprender com nenhum
outro bruxo.
Dumbledore fitou Vòldemort por cima de sua taça por um tempo antes de falar.
— Certamente sei que você viu e fez muita coisa desde que nos deixou — disse calmo. —
Os rumores dos seus feitos alcançaram sua antiga escola, Tom. E eu lamentaria ter de acreditar
sequer em metade deles.
A expressão de Vòldemort não se alterou ao responder:
— A grandeza inspira a inveja, a inveja engendra o despeito, o despeito produz a mentira.
Você deve saber disso, Dumbledore.
— Você chama de "grandeza" o que tem feito? — perguntou o diretor gentilmente.
— Sem dúvida. — Os olhos de Vòldemort pareciam rutilar. — Fiz experiências; levei as
possibilidades da magia a extremos a que jamais alguém levou...
— De alguns tipos de magia — corrigiu-o Dumbledore tranqüilamente. — De alguns. De
outros você continua... me desculpe dizer... lamentavelmente ignorante.
Pela primeira vez Vòldemort sorriu. Foi um esgar tenso, maligno, mais ameaçador do que
urna expressão de cólera.
— O velho argumento — disse brandamente. — Mas nada que vi no mundo respaldou as
suas famosas declarações de que o amor é mais poderoso do que o meu tipo de magia,
Dumbledore.
— Talvez você tenha procurado nos lugares errados — sugeriu o diretor.
— Bem, então que melhor lugar para começar novas pesquisas do que aqui, em Hogwarts?
— contrapôs Vòldemort. — Você me deixará voltar? Você me deixará dividir meus
conhecimentos com os seus estudantes? Coloco a minha pessoa e os meus talentos à sua disposição.
Estou às suas ordens.
Dumbledore ergueu as sobrancelhas.
— E o que acontecerá àqueles que recebem as suas ordens? Que acontecerá àqueles que se
intitulam, ou assim corre o boato, Comensais da Morte?
Harry percebeu que Voldemort não esperava que Dumbledore conhecesse esse nome; viu os
olhos do bruxo tornarem a rutilar e suas narinas finas se alargarem.
— Meus amigos — respondeu ele após breve pausa — prosseguirão sem mim, tenho
certeza.
— Fico contente em ouvir que os considera seus amigos. Tive a impressão de que eram
mais seus servos.
— Está enganado.
— Então se eu fosse ao Cabeça de Javali hoje à noite, não encontraria um grupo deles, Nott,
Rosier, Mulciber, Dolohov, aguardando a sua volta? Amigos verdadeiramente dedicados, que
fazem com você uma viagem tão longa em uma noite de nevasca, meramente para lhe desejar boa
sorte em sua tentativa de obter um cargo de professor.
Não poderia haver dúvida de que o conhecimento detalhado de Dumbledore sobre o grupo
com quem Voldemort estava viajando foi ainda mais mal recebido; ele, porém, replicou quase
imediatamente.
— Você continua onisciente como sempre, Dumbledore.
— Ah, não, apenas tenho boas relações com os donos de bares locais — respondeu ele
descontraído. — Agora, Tom...
Dumbledore pousou o copo vazio e se empertigou na cadeira, unindo as pontas dos dedos
em um gesto muito seu.
— ... vamos falar francamente. Por que veio aqui hoje, cercado de capangas, para pedir um
emprego que ambos sabemos que você não quer?
Voldemort mostrou-se friamente surpreso.
— Um emprego que não quero? Pelo contrário, Dumbledore, quero e muito.
— Ah, você quer voltar a Hogwarts, mas quer tanto ensinar aqui quanto queria aos dezoito
anos. Que é que você está procurando, Tom? Por que não experimenta pedir abertamente uma vez
na vida?
Voldemort riu com desdém.
— Se você não quiser me dar um emprego...
— Claro que não quero. E não acho nem por um minuto que você esperava outra resposta.
Contudo, você veio e pediu, logo deve ter uma razão.
Voldemort se levantou. Parecia menos que nunca o Tom Riddle, suas feições inchadas de
fúria.
— Esta é a sua resposta definitiva?
— É — disse o diretor levantando-se também.
— Então não temos mais nada a conversar.
— Não, nada. — E uma grande tristeza se espalhou pelo rosto de Dumbledore. — Já se foi o
tempo em que eu podia assustá-lo com um guarda-roupa em chamas e forçá-lo a compensar os
seus crimes. Mas quem me dera poder, Tom... quem me dera poder.
Por um segundo, Harry esteve a ponto de gritar um aviso inútil: tinha certeza de que a mão
de Voldemort tremera em direção ao bolso e à varinha; mas o momento passou, Voldemort deu as
costas, a porta foi se fechando e ele partiu.
Harry sentiu a mão de Dumbledore fechar sobre o seu braço e momentos depois estavam
parados quase no mesmo lugar, mas não havia neve se acumulando na aba da janela, e a mão do
diretor estava escura e sem vida.
— Por quê? — perguntou Harry em seguida, encarando Dumbledore no rosto. — Por que
ele voltou? O senhor chegou a descobrir?
— Tenho algumas idéias, mas não mais que idéias.
— Que idéias, senhor?
— Contarei a você quando tiver recuperado aquela lembrança do professor Slughorn.
Quando você tiver aquela última peça do quebra-cabeça, tudo ficará claro, assim espero... para
nós dois.
Harry continuava a arder de curiosidade e, embora Dumbledore tivesse ido até a porta e a
mantivesse aberta para ele, o garoto não se mexeu logo.
— Ele queria novamente o cargo de Defesa contra as Artes das Trevas, senhor? Ele não
disse...
— Ah, sem a menor dúvida ele queria o cargo de professor de Defesa contra as Artes das
Trevas. O rescaldo do nosso breve encontro comprova isso. Observe que nunca conseguimos
manter um professor de Defesa contra as Artes das Trevas por mais de um ano desde que recusei
o cargo a Lord Voldemort.



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