segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Harry Potter e o Enigma do Príncipe 11/15


CAPITULO ONZE
A AJUDINHA DE HERMIONE
TAL COMO HERMIONE PREVIRA, OS períodos livres do sexto ano não eram as horas de
abençoada descontração imaginadas por Rony, mas aquelas em que se tentava dar conta da vasta
quantidade de deveres que eram passados. Não somente eles estavam estudando como se
tivessem exames diariamente, mas as aulas em si estavam exigindo mais do que nunca. Harry mal
entendia metade do que a professora McGonagall dizia ultimamente; até Hermione precisava lhe
pedir para repetir as instruções uma ou duas vezes. Por incrível que pudesse parecer, e para a
raiva crescente de Hermione, de repente Poções se tornara a matéria em que Harry se saía melhor,
graças ao Príncipe Mestiço.
Agora esperavam que os alunos realizassem feitiços não-verbais, não apenas em Defesa
contra as Artes das Trevas, mas em Feitiços e Transfiguração também. Era freqüente Harry olhar
para os colegas na sala comunal, ou à hora das refeições, e constatar que o esforço os deixava
púrpura, como se tivessem exagerado em O-aperto-você-sabe-onde, embora ele soubesse que, na
realidade, estavam tentando realizar feitiços sem pronunciar os encantamentos em voz alta. Era
um alívio ir para as estufas; em Herbologia estavam lidando com plantas mais perigosas que
nunca, mas pelo menos tinham permissão de xingar em voz alta se um dos Tentáculos Venenosos
os agarrasse inesperadamente pelas costas.
Um dos resultados da enorme carga de trabalho e das horas frenéticas em que praticavam feitiços
não-verbais foi que Harry, Rony e Hermione não tinham arranjado tempo para visitar Hagrid até
aquele momento. Ele parara de fazer refeições à mesa dos professores, um mau sinal, e, nas
poucas ocasiões em que tinham se encontrado nos corredores ou nos jardins, misteriosamente ele
não os vira nem ouvira seus cumprimentos.
— Precisamos ir nos explicar — disse Hermione, olhando para a enorme cadeira vazia de
Hagrid, à mesa dos professores, ao café da manha do sábado seguinte.
— Hoje de manhã temos os testes de quadribol! — lembrou Rony. — E devíamos estar
praticando o Feitiço Âguamenti para o Flitwick! Mas, afinal, explicar o quê? Como é que vamos
dizer a ele que detestávamos aquela matéria idiota?
— Não detestávamos! — protestou Hermione.
— Fale por você, eu ainda não me esqueci dos explosivins — replicou Rony de mau humor.
— E vou dizer uma coisa, escapamos por pouco. Você não ouviu Hagrid falando daquele irmão
retardado dele: se tivéssemos ficado, íamos acabar ensinando o Grope a amarrar os cordões dos
sapatos.
— Odeio essa história de não falar com o Hagrid — exclamou Hermione aborrecida.
— Iremos até lá depois dos testes de quadribol — Harry tranqüilizou-a. Ele também sentia
falta de Hagrid, embora, como Rony, achasse que estavam melhor sem o Grope em suas vidas. —
Mas, pelo número de pessoas que se inscreveram, os testes podem levar a manhã toda. — Sentiase
ligeiramente nervoso com a idéia de enfrentar sua primeira tarefa como capitão. — Não sei por
que de repente a equipe ficou tão popular.
— Ah, fala sério, Harry — impacientou-se Hermione. — Não foi o Quadribol que ficou
popular, foi você! Você nunca foi tão interessante e, para ser sincera, nunca foi tão desejável.
Rony engasgou com um pedaço grande demais de peixe salgado. Hermione lançou-lhe um
olhar de desprezo e retomou a conversa com Harry.
— Agora todo o mundo sabe que você esteve dizendo a verdade, não é? O mundo bruxo
teve de admitir que você estava certo sobre o retorno de Voldemort e que realmente o enfrentou
duas vezes nos últimos dois anos, e sobreviveu às duas. E agora estão chamando você de "o
Eleito": bem, fala sério, você não entende por que as pessoas estão fascinadas por você?
De repente Harry começou a achar o Salão Principal muito quente, embora o teto ainda se
apresentasse frio e chuvoso.
— E sofreu toda aquela perseguição do Ministério que tentou passar a imagem de que você
era instável e mentiroso. Ainda dá para ver as marcas das detenções em que aquela mulher
maligna fez você escrever com o próprio sangue, mas você sustentou sua história...
— Ainda dá para ver as marcas deixadas pelos miolos que me agarraram no Ministério, olhe
— disse Rony, sacudindo as mangas para cima.
— E não foi nada mal você ter crescido uns trinta centímetros no verão — concluiu
Hermione, sem dar atenção a Rony.
— Eu sou alto — insistiu Rony ilogicamente.
O correio-coruja chegou, as aves mergulharam pelas janelas salpicadas de chuva,
espalhando pingos de água em todo o mundo. A maioria dos alunos estava recebendo mais
correspondência que o normal; pais ansiosos queriam saber notícias dos filhos e, por sua vez,
tranqüilizá-los de que tudo corria bem em casa. Harry não recebera nada desde o início do
trimestre; seu único correspondente habitual agora estava morto e, embora ele tivesse alimentado
esperanças de que Lupin fosse lhe escrever ocasionalmente, até ali tinha se desapontado. Ficou,
portanto, muito surpreso, ao ver a alvíssima Edwiges circular entre as corujas castanhas e
cinzentas. A ave pousou diante dele trazendo um embrulho grande e quadrado. Um instante
depois, um embrulho idêntico foi deixado à frente de Rony, esmagando sob o seu peso sua coruja
minúscula e exausta, Pichitinho.
— Ah! — exclamou Harry abrindo o embrulho e encontrando um exemplar novo de
Estudos avançados no preparo de poções enviado pela Floreios e Borrões.
— Que bom — disse Hermione, satisfeita. — Agora você pode devolver aquele exemplar
rabiscado.
— Ficou maluca? Não vou devolver nada! Olhe, estive pensando... Harry tirou o exemplar
velho de dentro da mochila e deu um toque de varinha na capa, murmurando: "Diffindo!" A capa
se soltou. Ele fez o mesmo com o exemplar novo (Hermione ficou escandalizada). Trocou então
as capas, deu um toque de varinha em cada uma e disse: "Reparo!"
Ali estava o exemplar do Príncipe, disfarçado de livro novo, e o exemplar novo da Floreios
e Borrões, parecendo de segunda mão.
— Vou devolver o novo a Slughorn. Ele não pode se queixar, custou nove galeões.
Hermione comprimiu os lábios, expressando sua raiva e desaprovação, mas foi distraída por uma
terceira coruja que pousou à sua frente trazendo o exemplar do Profeta Diário. Abriu-o depressa e
correu os olhos pela primeira página.
— Morreu alguém conhecido? — perguntou Rony num tom deliberadamente displicente;
fazia a mesma pergunta toda vez que a amiga abria o jornal.
— Não, mas houve novos ataques de dementadores. E uma prisão.
— Excelente, de quem? — perguntou Harry, pensando em Belatriz Lestrange.
— Stanislau Shunpike — informou Hermione.
— Quê? — exclamou Harry pasmo.
— "Stanislau Shunpike, condutor do popular transporte bruxo Nôitibus, foi preso sob
suspeita de atividades ligadas aos Comensais da Morte. O Sr. Shunpike, 21 anos, foi detido ontem
à noite após uma blitz na casa dos Clapham..."
— O Lalau, Comensal da Morte? — admirou-se Harry lembrando o rapaz espinhento que
conhecera três anos antes. — Nem pensar!
— Ele podia estar dominado por uma Maldição Imperius — argumentou Rony. — Nunca se
sabe.
— Parece que não — replicou Hermione, que continuava lendo. — Diz aqui que ele foi
preso depois que o ouviram conversar sobre os planos secretos dos Comensais da Morte em um
bar. — Ela ergueu a cabeça com uma expressão perturbada no rosto. — Se estivesse mesmo
dominado por uma Maldição Imperius, ele jamais ficaria por aí fofocando sobre os planos deles,
não é?
— Pelo jeito, ele estava tentando fingir que sabia mais do que realmente sabia — falou
Rony. — Não foi ele que disse que ia ser ministro da Magia quando estava paquerando aquelas
veelas?
— É, foi — respondeu Harry. — Não sei que brincadeira é essa de levarem o Lalau a sério.
— Provavelmente o Ministério quer mostrar serviço — comentou Hermione franzindo a
testa. — As pessoas estão aterrorizadas: você soube que os pais das gêmeas Patil querem que elas
voltem para casa? E já tiraram Heloísa Midgeon da escola. O pai a levou ontem à noite.
— Quê! — exclamou Rony arregalando os olhos para Hermione. — Mas Hogwarts é mais
segura do que a casa dos alunos, tem de ser! Temos aurores e todos aqueles feitiços de proteção a
mais, e temos Dumbledore!
— Acho que não temos Dumbledore o tempo todo — replicou Hermione muito baixinho,
olhando para a mesa dos professores por cima do Profeta. — Você ainda não reparou? Na semana
passada a cadeira dele esteve vazia tantas vezes quanto a de Hagrid.
Harry e Rony olharam para a mesa dos professores. A cadeira do diretor estava de fato
desocupada. Agora que parava para pensar, Harry não via Dumbledore desde a aula particular da
semana anterior.
— Acho que ele saiu para resolver algum assunto na Ordem — arriscou Hermione em voz
baixa. — Quero dizer... as coisas parecem bem sérias, não é?
Harry e Rony não responderam, mas Harry sabia que estavam pensando a mesma coisa.
Acontecera um incidente horrível na véspera: tinham chamado Ana Abbott na aula de Herbologia
para lhe informar que a mãe fora encontrada morta. Desde então, não tinham mais visto a colega.
Quando deixaram a mesa da Grifinória, cinco minutos depois, para ir ao campo de
quadribol, passaram por Lilá Brown e Parvati Patil. Harry, lembrando o comentário de Hermione
de que os pais das gêmeas Patil queriam tirá-las de Hogwarts, não se surpreendeu ao ver as duas
grandes amigas cochichando, aflitas. O que o surpreendeu foi ver Parvati de repente cutucar Lilá,
quando Rony emparelhou com elas, e Lilá se virar e dar um enorme sorriso para o garoto. Rony
piscou e, hesitante, retribuiu o sorriso. Instantaneamente, mudou o seu modo de andar,
empertigando-se como um pavão. Harry resistiu à tentação de rir, lembrando que o amigo
também se controlara quando Malfoy lhe quebrara o nariz; Hermione, no entanto, assumiu um ar
frio e distante durante a descida para o estádio sob a chuva fria e nevoenta, e saiu para procurar
um lugar nas arquibancadas, sem desejar boa sorte a Rony.
Conforme Harry previra, os testes ocuparam a maior parte da manhã. Metade dos alunos da
Grifinória parecia ter comparecido, desde os do primeiro ano, que seguravam nervosos uma
seleção de horríveis vassouras velhas de escola, até os do sétimo, que, por serem muito mais altos
que os demais, aparentavam um ar tranqüilo e superior. Este último grupo incluía um rapaz
robusto de cabelos duros que Harry imediatamente reconheceu do Expresso de Hogwarts.
— A gente se encontrou no trem, no compartimento do velho Slugue — disse ele, confiante,
destacando-se da multidão para apertar a mão de Harry. — Córmaco McLaggen, goleiro.
— Você não fez teste o ano passado, fez? — perguntou Harry, notando a corpulência de
McLaggen e considerando que ele provável mente bloquearia os três aros de gol sem sequer se
mexer.
— Eu estava na ala hospitalar quando fizeram os testes — disse McLaggen, expressando
segurança. — Comi meio quilo de ovos de fada mordente para ganhar uma aposta.
— Certo — disse Harry. — Bem... se puder esperar lá...
Ele apontou para a lateral do campo, perto do lugar em que Hermione estava sentada.
Pensou ter visto uma ligeira contrariedade perpassar a fisionomia de McLaggen, e ficou
imaginando se o colega esperava um tratamento preferencial pelo fato de serem ambos favoritos
do "velho Sluguinho".
Harry resolveu começar por um teste básico, pedindo aos candidatos para se dividirem em
grupos de dez e voarem uma vez em volta do campo. Foi uma boa decisão: os dez primeiros eram
calouros e não poderia ter ficado mais claro que não estavam habituados a voar. Apenas um dos
garotos conseguiu se manter no ar por mais de alguns segundos, e foi tal a sua surpresa que ele
em seguida bateu em uma das balizas.
O segundo grupo era formado por dez das garotas mais bobas que Harry já encontrara na
vida e que, quando ele apitou, simplesmente ficaram rindo demais e se agarrando umas nas
outras. Entre elas, Romilda Vane. Quando mandou-as sair do campo, obedeceram muito
contentes e foram sentar nas arquibancadas, de onde ficaram perturbando todo o mundo.
O terceiro grupo engavetou na metade da volta em torno do campo. A maior parte do quarto
grupo não tinha trazido vassouras. O quinto grupo era formado por alunos da Lufa-Lufa.
— Se tiver mais alguém aqui que não seja da Grifinória — berrou Harry, que estava
começando a se sentir seriamente aborrecido —, por favor, se retire agora!
Fez-se silêncio e logo dois aluninhos da Corvinal saíram correndo do campo, abafando
risadinhas.
Depois de duas horas, muitas reclamações e vários acessos de raiva, um deles envolvendo
uma Comet 260 acidentada e vários dentes partidos, Harry descobrira três artilheiros: Cátia Bell,
que voltava ao time após um excelente teste, uma novata, Demelza Robins, particularmente ágil
em se desviar de balaços, e Gina Weasley, que voara melhor que todos os candidatos e, de
quebra, marcara dezessete gols. Harry, embora satisfeito com suas escolhas, ficara rouco de tanto
gritar com os muitos descontentes, e agora estava enfrentando batalha semelhante com os
batedores recusados.
— Esta é a minha decisão final, e se não desimpedirem o campo para os goleiros, vou azarar
todos vocês — urrou ele.
Nenhum dos batedores selecionados possuía a antiga genialidade de Fred e Jorge, mas
Harry ficou razoavelmente satisfeito: Jaquito Peakes, um terceiranista baixo, mas de peito largo
que conseguira fazer um galo do tamanho de um ovo na nuca de Harry batendo um balaço com
ferocidade, e Cadu Coote, que parecia franzino mas tinha boa pontaria. Eles agora tinham ido se
reunir aos outros nas arquibancadas para acompanhar a seleção do último membro da equipe.
De propósito, Harry deixara o teste dos goleiros para o fim, na esperança de ter um estádio
menos cheio e menos pressão sobre os envolvidos. Infelizmente, porém, todos os candidatos
recusados e um bom número de pessoas que aparecera para assistir aos testes depois de um
demorado café da manhã tinham engrossado a multidão, agora maior que nunca. Quando um
goleiro voava até as balizas, a multidão incentivava ou vaiava com igual disposição. Harry olhou
para Rony, que não conseguia controlar seu nervosismo: tivera esperança de que a vitória na
partida decisiva do semestre anterior o curasse, mas agora via que não: um delicado tom de verde
coloria o rosto do amigo.
Nenhum dos primeiros cinco candidatos pegou mais de dois gols cada. Para grande
desapontamento de Harry, Córmaco McLaggen defendeu quatro dos cinco lançamentos. No
último, no entanto, voou exatamente na direção oposta; a multidão riu e vaiou, e o rapaz voltou
para o chão rangendo os dentes.
Rony parecia prestes a desmaiar, quando montou a sua Cleansweep Onze.
— Boa sorte! — gritou uma voz das arquibancadas. Harry se virou esperando ver
Hermione, mas era Lilá Brown. Ele teria gostado muito de tapar o rosto com as mãos, como fez a
garota pouco depois, mas achou que, como capitão, devia demonstrar um pouco mais de coragem,
e preparou-se para assistir ao teste de Rony.
Não precisava ter se preocupado: o amigo defendeu uma, duas, três, quatro, cinco
penalidades seguidas. Feliz e se contendo a custo para não fazer coro aos gritos da multidão,
Harry se voltou para McLaggen para lhe comunicar que, infelizmente, Rony o vencera, mas
deparou com a cara vermelha do rapaz a centímetros da sua. Recuou rápido.
— A irmã dele não se empenhou de verdade — disse McLaggen em tom de ameaça. Havia
uma veia latejando em sua têmpora como a que Harry muitas vezes admirara no tio Válter. — Ela
facilitou para o irmão.
— Besteira — replicou Harry friamente. — Esse foi o que ele quase perdeu.
McLaggen chegou mais perto de Harry, que desta vez enfrentou-o.
— Me dá outra chance.
— Não, você teve a sua chance. Defendeu quatro. Rony defendeu cinco. Rony é o goleiro, ele
conquistou o lugar honestamente. Saia da minha frente.
Harry pensou por um momento que o rapaz fosse lhe dar um soco, mas ele se contentou em
fazer uma careta e se afastou, enfurecido, aparentemente vociferando ameaças para o ar.
Quando Harry se virou, encontrou a nova equipe sorrindo para ele.
— Parabéns — disse rouco. — Vocês voaram realmente bem...
— Você foi genial, Rony!
Desta vez era realmente Hermione que vinha correndo das arquibancadas; Harry viu Lilá
sair do campo com Parvati, com uma expressão mal-humorada no rosto. Rony parecia
extremamente prosa e até mais alto do que o normal ao se virar sorrindo para a equipe e para
Hermione.
Depois de marcar o primeiro treino para a quinta-feira seguinte, Harry, Rony e Hermione se
despediram do resto da equipe e se dirigiram à casa de Hagrid. Um sol aguado tentava romper as
nuvens, agora que finalmente parará de chuviscar. Harry sentia muita fome; esperava que
houvesse alguma coisa para comer na casa de Hagrid.
— Pensei que ia perder o quarto pênalti — comentou Rony contente. — Foi um arremesso
esperto da Demelza, você viu, com um ligeiro efeito...
— Foi, foi, você foi magnífico — disse Hermione, parecendo achar graça.
— Fui melhor que o McLaggen — disse ele em tom muito satisfeito. — Vocês viram ele
saindo na direção oposta no quinto? Parecia que tinha sido confundido...
Para surpresa de Harry, Hermione ficou muito vermelha ao ouvir isso. Rony não notou;
estava ocupado demais descrevendo carinhosamente cada uma das penalidades em detalhe.
O enorme hipogrifo cinzento, Bicuço, estava amarrado à frente da cabana de Hagrid. Bateu
o afiadíssimo bico quando os garotos se aproximaram virando a cabeçorra para eles.
— Nossa! — exclamou Hermione nervosa. — Ele ainda dá medo, não acham?
— Fala sério, você já montou nele! — disse Rony.
Harry se adiantou e fez uma profunda reverência para o hipogrifo, mantendo o contato
visual com o animal, sem piscar. Segundos depois, Bicuço se curvou também.
— Como vai indo? — perguntou Harry em voz baixa, aproximando-se para acariciar as
penas de sua cabeça. — Sente falta dele? Mas você está bem aqui com o Hagrid, não é verdade?
— Oi! — gritou uma voz.
Hagrid saíra de um canto da cabana usando um grande avental florido e trazendo um saco
de batatas na mão. Seu enorme cão, Canino, que o acompanhava de perto, deu um tremendo
latido e avançou para os garotos.
— Para trás! Ele vai comer seus dedos... ah, são vocês.
Canino cumprimentava Hermione e Rony aos pulos, tentando lamber suas orelhas. Hagrid
parou, olhou-os por uma fração de segundo, e depois virou as costas e entrou na cabana batendo a
porta.
— Ah, não! — exclamou Hermione, apreensiva.
— Não se preocupem — disse Harry mal-humorado, indo até a porta e batendo com força.
— Hagrid! Abre, queremos falar com você! Não houve resposta dentro da casa.
— Se você não abrir a porta, vamos arrombá-la! — ameaçou Harry puxando a varinha.
— Harry! — exclamou Hermione chocada. — Não é possível...
— É, sim! — retrucou Harry. — Cheguem para trás...
Mas, antes que pudesse continuar a falar, a porta se escancarou e Hagrid surgiu com um ar
agressivo e, apesar do avental florido, decididamente assustador.
— Sou um professor! — urrou para Harry. — Um professor, Potter! Como se atreve a
ameaçar arrombar minha porta!
— Peço desculpas, senhor — disse Harry, sublinhando a última palavra enquanto guardava
a varinha no bolso interno das vestes.
Hagrid pareceu confuso.
— Desde quando você me chama de "senhor"?
— Desde quando você me chama de "Potter"?
— Ah, muito esperto — rosnou Hagrid. — Muito engraçado. Ganhou, não é? Muito bem,
então entrem, seus ingratinhos...
Resmungando sombriamente, ele recuou para deixá-los passar. Hermione entrou depressa
atrás de Harry, muito assustada.
— Então — disse Hagrid rabugento, enquanto Harry, Rony e Hermione se sentavam à sua
enorme mesa de madeira. Canino descansou imediatamente a cabeça no joelho de Harry,
babando-lhe as vestes. — Que foi? Sentiram pena de mim? Concluíram que eu estava solitário ou
outra coisa qualquer?
— Não — retorquiu Harry. — Queríamos ver você.
— Sentimos saudades de você — disse Hermione, trêmula.
— Sentiram saudades, foi? — perguntou Hagrid, bufando. — Tá. Tá bem.
Ele andou pisando forte pela casa, preparando o chá em sua enorme chaleira de cobre, entre
resmungos. Por fim, bateu na mesa, diante dos garotos, três canecas, verdadeiros baldes, cheias
de chá escuro, e um prato de bolinhos duros com frutas secas. A fome de Harry era suficiente até
para encarar a comida de Hagrid, e ele se serviu logo.
— Hagrid — arriscou Hermione timidamente, quando ele veio se sentar à mesa e começou a
descascar batatas com uma violência tal que sugeria que cada uma lhe fizera uma grande afronta
—, nós queríamos continuar a estudar Trato das Criaturas Mágicas, sabe.
Hagrid deu outro enorme bufo pelo nariz. Harry pensou ter visto algumas melecas irem
parar nas batatas e intimamente agradeceu que não fosse ficar para jantar.
— Queríamos, sim! — insistiu Hermione. — Mas não conseguimos encaixar sua matéria
nos nossos horários!
— É, sei — tornou a concordar Hagrid.
Houve um estranho ruído de sucção e todos se viraram para olhar: Hermione deixou escapar
um gritinho, e Rony saltou da cadeira, deu a volta à mesa e foi examinar uma barrica a um canto,
em que tinham acabado de reparar. Estava cheia de bichos que se contorciam e lembravam
larvas de trinta centímetros de comprimento, brancas e viscosas.
— Que é isso, Hagrid? — perguntou Harry, tentando parecer interessado em vez de
enojado, mas largando o seu bolinho.
— Vermes gigantes — respondeu ele.
— E quando eles crescem viram...? — indagou Rony, apreensivo.
— Não viram nada, comprei esses para alimentar Aragogue. E, inesperadamente, ele caiu no
choro.
— Hagrid! — exclamou Hermione, levantando-se e contornando a mesa para evitar a
barrica e abraçar o amigo pelos ombros trêmulos. — Que aconteceu?
— Ele... — Hagrid engoliu em seco, seus olhos de besouro vertendo lágrimas ao mesmo
tempo que enxugava o rosto com o avental. — ... Aragogue... acho que está morrendo... ficou
doente no verão e não melhorou... Não sei o que vou fazer se ele... se ele... estamos juntos há
tanto tempo...
Hermione deu palmadinhas carinhosas no ombro de Hagrid, parecendo completamente
perdida, sem saber o que dizer. Harry sabia como ela estava se sentindo. Já tinha visto Hagrid
presentear um dragão-bebê feroz com um ursinho de pelúcia, já o tinha visto ninar enormes
escorpiões com sugadores e ferrões, tentar argumentar com o brutamontes estúpido que era seu
irmão, mas esta agora talvez fosse a sua fantasia com monstros mais incompreensível: Aragogue,
a gigantesca aranha falante que morava no âmago da Floresta Proibida e da qual ele e Rony
tinham escapado por um triz fazia quatro anos.
— Tem alguma... tem alguma coisa que a gente possa fazer? — perguntou Hermione,
desconsiderando os frenéticos acenos de cabeça e caretas de Rony.
— Acho que não, Hermione — respondeu Hagrid com a voz sufocada, tentando conter o
dilúvio de lágrimas. — Sabe, o resto da tribo... da família de Aragogue... está ficando meio
esquisita, agora que ele está doente... meio intratável...
— Sei, acho que conhecemos um pouco esse lado deles — insinuou Rony.
— ... acho que não seria seguro para ninguém, a não ser eu, se aproximar da colônia neste
momento — concluiu Hagrid, assoando o nariz com força no avental e levantando a cabeça. —
Mas obrigado pelo oferecimento, Hermione... significa muito...
Depois disso a atmosfera ficou bem mais leve, porque ainda que Harry e Rony não tivessem
manifestado a menor disposição de levar os gigantescos vermes para a aranha assassina e
gargantuélica, Hagrid pareceu acreditar que teriam gostado de fazê-lo, e voltou ao seu natural.
— Ãh, eu sempre soube que vocês teriam dificuldade em me encaixar nos seus horários —
disse rouco, servindo-os de mais um pouco de chá. — Mesmo que requisitassem Vira-tempos...
— O que não poderíamos ter feito — explicou Hermione. — Destruímos o estoque inteiro
de Vira-tempos do Ministério quando estivemos lá no verão. Deu no Profeta Diário.
— Ah, então. Não tinha jeito de encaixar... Desculpe eu ter sido... entendem... andei muito
preocupado com Aragogue... e me passou pela cabeça que se o professor fosse a Grubbly-Plank...
Ao que os três afirmaram categórica e mentirosamente que a professora Grubbly-Plank, que
substituíra Hagrid algumas vezes, era uma péssima professora; em conseqüência, quando se
despediram, ao anoitecer, Hagrid parecia muito contente.
— Estou morto de fome — disse Harry depois que a porta se fechou e eles saíram
apressados pelos jardins escuros e desertos; ele largara o bolinho duro quando ouviu um ruído
agourento de rachadura em um dente molar. — E tenho aquela detenção com o Snape hoje à
noite. Não vai sobrar muito tempo para jantar.
Quando chegaram ao castelo viram Córmaco McLaggen entrando no Salão Principal. O
garoto fez duas tentativas de passar pelas portas; na primeira, ricocheteou no portal. Rony
meramente riu, pretensioso, e entrou no salão atrás do colega, mas Harry pegou Hermione pelo
braço e a fez parar.
— Que foi? — exclamou ela em tom defensivo.
— Se alguém me perguntasse — disse ele em voz baixa —, eu diria que pelo visto
McLaggen foi confundido. E ele estava bem diante do lugar em que você se sentou.
Hermione corou.
— Ah, tudo bem, fiz isso, sim — sussurrou ela. — Mas você devia ter ouvido o que ele
estava falando de Rony e Gina! De qualquer modo, ele é genioso, você viu a reação dele quando
não entrou para a equipe: você não ia querer um jogador assim.
— Não. Não, suponho que não. Mas não foi uma desonestidade, Hermione? Quero dizer,
você é monitora, não é?
— Ah, calado! — protestou ela, fazendo-o rir.
— Que é que vocês dois estão fazendo? — quis saber Rony, reaparecendo à porta do Salão
Principal, desconfiado.
— Nada — responderam os dois juntos apressando-se a seguir Rony. O cheiro do rosbife
fez o estômago de Harry doer de fome, mas não tinham chegado a dar três passos em direção à
mesa da Grifinória quando o professor Slughorn apareceu, bloqueando o seu caminho.
— Harry, Harry, exatamente a pessoa que eu queria ver — cumprimentou o professor
cordialmente com o seu vozeirão, enrolando as pontas dos bigodes de leão-marinho e empinando
a enorme barriga. — Eu estava na esperança de encontrá-lo antes do jantar! Que é que você me
diz de fazer uma pequena ceia nos meus aposentos? Vamos dar uma festinha com meia dúzia de
astros e estrelas em ascensão. Estarão lá o McLaggen, o Zabini e a encantadora Melinda Bobbin,
não sei se você a conhece. A família é proprietária de uma grande cadeia de farmácias; e,
naturalmente, gostaria muito que a srta. Granger me desse o prazer de comparecer também.
Slughorn fez uma breve reverência para Hermione ao concluir. Era como se Rony não
estivesse presente; o professor nem olhou para ele.
— Não posso ir — apressou-se a dizer Harry. — Tenho de cumprir uma detenção com o
professor Snape.
— Ai, ai, ai! — exclamou Slughorn com uma cômica expressão de desapontamento. — Que
pena, eu estava contando com você! Bom, então vou dar uma palavrinha com o Snape explicando
a situação, tenho certeza de que conseguirei convencê-lo a adiar a detenção. É, vejo vocês dois
mais tarde!
E saiu rápido do salão.
— Ele não tem a menor chance de convencer Snape — comentou Harry, assim que o
professor se afastou o suficiente para não ouvir. —Essa detenção já foi adiada uma vez; Snape fez
um favor a Dumbledore, mas não fará a mais ninguém.
— Ah, eu gostaria que você fosse. Não quero ir sozinha! — disse Hermione ansiosa. Harry
sabia que ela estava pensando em McLaggen.
— Duvido que você fique sozinha. Gina provavelmente será convidada — retorquiu Rony,
que não aceitou de boa vontade o fato de ter sido ignorado por Slughorn.
Depois do jantar, os três voltaram à Torre da Grifinória. A sala comunal estava apinhada,
porque a maioria dos alunos já terminara o jantar, mas os garotos conseguiram arranjar uma mesa
desocupada e se sentaram; Rony, que ficara mal-humorado desde o encontro com Slughorn,
cruzou os braços e ficou olhando para o teto de testa franzida. Hermione apanhou um exemplar
do Profeta Vespertino que alguém largara em uma cadeira.
— Alguma notícia nova? — perguntou Harry.
— Nova mesmo, não... — Hermione abriu o jornal e passou os olhos pelas páginas internas.
— Ah, olhe, o seu pai está aqui, Rony, mas não é nada de ruim! — acrescentou depressa, porque
o garoto olhara assustado. — Só diz que ele foi visitar a casa dos Malfoy. "A segunda busca na
residência dos Comensais da Morte aparentemente não produziu resultados. Arthur Weasley, da
Seção para Detecção e Confisco de Feitiços Defensivos e Objetos de Proteção Forjados diz que
sua equipe agiu em função de uma informação confidencial."
— Foi minha! — disse Harry. — Contei a ele na estação de King's Cross sobre o Malfoy e
aquela coisa que ele estava tentando fazer o Borgin consertar! Bom, se não está na casa deles,
então o Malfoy deve ter trazido o tal objeto para Hogwarts...
— Mas como poderia ter feito isso, Harry? — perguntou Hermione, baixando o jornal,
surpresa. — Todos fomos revistados quando chegamos, não é?
— Você foi? — admirou-se Harry. — Eu não!
— Claro que você não foi, esqueci que chegou mais tarde... bem, Filch fez uma varredura
em todos nós com sensores de segredos quando pisamos no Saguão de Entrada. Qualquer objeto
das Trevas teria sido encontrado, sei que ele confiscou uma cabeça mumificada do Crabbe. Então,
Malfoy não pode ter trazido nada perigoso!
Momentaneamente desarmado, Harry ficou apreciando Gina brincar com Arnaldo, o Mini-
Pufe, até poder contornar aquela objeção.
— Então alguém mandou o objeto por correio-coruja. A mãe ou outra pessoa qualquer.
— Todas as corujas estão sendo verificadas também — replicou Hermione. — Foi o que
Filch nos disse quando estava enfiando aqueles sensores em todo lugar ao seu alcance.
Realmente atordoado, Harry não encontrou o que dizer. Parecia não haver meios de Malfoy
ter trazido um objeto perigoso ou das
Trevas para a escola. Ele olhou esperançoso para Rony, que estava sentado de braços
cruzados, olhando para Lilá Brown.
— Você consegue pensar em algum meio de Malfoy...?
— Ah, esquece, Harry — disse Rony.
— Escute aqui, não é minha culpa que Slughorn só tenha convidado nós dois para essa
festinha idiota, nem queríamos ir, sabe! — exclamou Harry se irritando.
— Bom, como não sou convidado para festa nenhuma — retrucou Rony se levantando —,
acho que vou dormir.
E saiu mal-humorado em direção à porta do dormitório dos garotos, deixando Harry e
Hermione de olhos arregalados.
— Harry? — chamou a nova artilheira Demelza Robins, aparecendo de repente ao seu lado.
— Tenho um recado para você.
— Do professor Slughorn? — perguntou Harry, esticando-se esperançoso.
— Não. Do professor Snape. — Harry desapontou-se. — Ele manda dizer para você ir ao
escritório dele às oito e meia para cumprir sua detenção... ah... não interessa quantos convites
para festas você tenha recebido. E ele quer que você saiba que vai separar vermes bons dos
podres para serem usados na aula de Poções, e... e diz também que não precisa levar luvas de
proteção.
— Certo — disse Harry chateado. — Muito obrigado, Demelza.
CAPÍTULO DOZE
PRATAS E OPALAS
ONDE ESTAVA DUMBLEDORE e o que andava fazendo? Nas semanas seguintes, Harry
avistou o diretor apenas duas vezes. Agora era raro ele comparecer às refeições, e Harry acreditou
que Hermione tivera razão ao afirmar que Dumbledore se ausentava da escola por vários dias de
cada vez. Será que ele se esquecera das aulas que Harry esperava que desse? Dumbledore dissera
que as aulas teriam uma ligação com a profecia; Harry se sentira mais confiante, reconfortado,
mas agora se sentia posto de lado.
Em meados de outubro, aconteceu o primeiro passeio do trimestre a Hogsmeade. Harry se
perguntara se ainda seriam permitidos, dadas as medidas cada vez mais rigorosas em torno da
escola, e ficou contente em saber que continuariam; era sempre bom sair dos terrenos do castelo
por algumas horas.
Harry acordou cedo no dia do passeio, que amanhecera tempestuoso, e matou o tempo até a
hora do café da manhã lendo o seu exemplar de Estudos avançados no preparo de poções. Não
tinha o hábito de ficar na cama lendo livros escolares; tal comportamento, dizia Rony com toda a
razão, seria indecoroso em qualquer pessoa exceto Hermione, que era mesmo esquisita. Harry,
porém, tinha a sensação de que o exemplar de Estudos avançados no preparo de poções do
Príncipe Mestiço não era bem um livro escolar. Quanto mais o lia, mais se conscientizava da
quantidade de informações que havia ali; não somente dicas providenciais e atalhos para o
preparo de poções que lhe conquistavam uma reputação tão brilhante com Slughorn, como
também pequenos feitiços e azarações anotadas à margem que Harry tinha certeza, a julgar pelos
cortes e revisões, o próprio Príncipe inventara.
Harry já tentara realizar alguns desses feitiços inventados. Havia um que fazia as unhas do
pé crescerem com assustadora rapidez (experimentara esse em Crabbe, quando ele passara no
corredor, com resultados divertidos); outro que colava a língua no céu da boca (usara duas vezes,
sob aplausos gerais, no incauto Filch); e, talvez, o mais útil deles, o Abaffiato, um feitiço que
invadia os ouvidos de quem estivesse próximo com um zumbido indefinível, permitindo que se
pudesse conversar longamente em aula sem ser ouvido. A única pessoa que não achava graça em
nada disso era Hermione, que fazia uma cara de rígida desaprovação durante as demonstrações e
se recusava sequer a falar quando Harry usava o Abaffiato em alguém por perto.
Harry sentou-se na cama e virou o livro de lado para poder examinar mais atentamente as
anotações referentes a um feitiço que parecia ter dado trabalho ao Príncipe. Havia muitos cortes e
alterações, mas, finalmente, espremido em um canto da página, ele encontrou o rabisco:
Levicorpus (n-vbl)
Enquanto o vento e o granizo martelavam incessantemente as janelas e Neville dormia
dando fortes roncos, Harry fitava as letras entre parênteses. N-vbl... isso tinha de significar nãoverbal.
Harry duvidava um pouco que pudesse executá-lo; ainda encontrava dificuldade com
feitiços não-verbais, coisa que Snape se apressava em comentar a cada aula de DCAT. Em
compensação, o Príncipe tinha se mostrado um professor mais eficiente do que Snape fora até
aquele momento.
Apontando a varinha a esmo, Harry fez um curto gesto para o alto e disse mentalmente:
Levicorpus!
— Aaaaaaaarre!
Houve um lampejo e o quarto se encheu de vozes: todos acordaram com o berro de Rony.
Em pânico, Harry varejou longe o Estudos avançados no preparo de poções; seu amigo estava
pendurado no ar de cabeça para baixo, como se tivesse sido guindado pelo tornozelo por um
gancho invisível.
— Desculpe! — gritou Harry, enquanto Dino e Simas davam grandes gargalhadas, e Neville
se levantava do chão pois caíra da cama. —Calma aí... vou fazer você descer...
Ele catou o livro de poções e folheou-o, em pânico, tentando encontrar a página certa; por
fim, localizou-a e decifrou a palavra apertadinha sob o feitiço: rezando para que fosse o
contrafeitiço, mentalizou: Liberacorpus!, com toda a concentração.
Houve um segundo lampejo e Rony despencou no colchão.
— Desculpe — repetiu Harry tolamente, enquanto Dino e Simas continuavam a dar
gargalhadas.
— Amanhã — disse Rony com a voz abafada —, eu prefiro que você use o despertador.
Quando eles finalmente terminaram de se vestir, protegendo-se com vários dos suéteres
tricotados pela Sra. Weasley e levando capas, cachecóis e luvas, o susto de Rony se abrandara e
ele concluíra que o novo feitiço do amigo era engraçadíssimo; tão engraçado, de fato, que ele não
perdeu tempo em brindar Hermione com o episódio à mesa do café da manhã.
— ... aí houve um segundo lampejo e eu aterrissei de novo na cama! — contou ele rindo,
enquanto se servia de salsichas.
Hermione não dera um único sorriso durante a narrativa, e agora assumia uma expressão de
gélida censura a Harry.
— Por acaso, esse foi mais um feitiço daquele seu livro de poções? — perguntou.
Harry fechou a cara para a amiga.
— Você sempre tira a pior conclusão, não é?
— Foi?
— Bem... foi, mas e daí?
— Então você simplesmente resolveu experimentar um encantamento desconhecido, escrito
a mão, e ver o que acontecia?
— Que diferença faz se está escrito a mão? — retrucou Harry, preferindo não responder à
pergunta.
— Porque provavelmente não é aprovado pelo Ministério da Magia — tornou Hermione. —
E mais — continuou, enquanto Harry e Rony olhavam para o teto —, estou começando a achar
que esse tal Príncipe era meio suspeito.
Os dois garotos abafaram aos gritos os protestos de Hermione.
— Foi só uma brincadeira! — disse Rony, virando um vidro de ketchup nas salsichas. — Só
uma brincadeira, Hermione, nada mais!
— Pendurar gente de cabeça para baixo pelo tornozelo? — replicou Hermione. — Quem é
que gasta tempo e energia para inventar feitiços como esse?
— Fred e Jorge — respondeu Rony, encolhendo os ombros —, é bem a cara deles. E, ãh...
— Meu pai — disse Harry, que acabara de se lembrar.
— Quê? — exclamaram Rony e Hermione juntos.
— Meu pai usou esse feitiço. Eu... Lupin me contou.
A segunda parte não era verdade; de fato, Harry vira o pai usar o feitiço contra Snape, mas
jamais contara aos amigos sua rápida excursão pela Penseira. Agora, no entanto, ocorria-lhe uma
possibilidade fantástica. Seria possível que o Príncipe Mestiço fosse...?
— Talvez o seu pai tenha usado, Harry — contrapôs Hermione —, mas não foi o único. Já
vimos muita gente usar esse feitiço, caso você tenha esquecido. Pendurar gente no ar. Fazer gente
flutuar, adormecida, indefesa.
Harry arregalou os olhos para ela. Com uma sensação de desânimo, ele, também, se
lembrou do comportamento dos Comensais da Morte na Copa Mundial de Quadribol. Rony veio
em seu auxílio.
— Lá foi diferente — disse com firmeza. — Estavam abusando. Harry e o pai dele só
estavam brincando. Você não gosta do Príncipe, Hermione — acrescentou Rony, apontando uma
salsicha para a amiga, sério —, porque ele é melhor do que você em Poções.
— Não tem nada a ver! — retrucou Hermione corando. — Só acho que é muito
irresponsável ficar realizando feitiços sem nem saber para que servem, e pare de falar em "o
Príncipe" como se fosse um título, aposto que é só um apelido idiota e acho que, pelo jeito, ele
nem era uma pessoa muito legal!
— Não sei como você chegou a essa conclusão — contestou Harry inflamado. — Se ele
tivesse sido um futuro Comensal da Morte, não estaria se gabando de ser mestiço e sim de ser
puro, não é?
Ao dizer isso, Harry se lembrou de que seu pai tinha sangue puro, mas afastou o
pensamento da mente; mais tarde se preocuparia com isso...
— Não é possível que todos os Comensais da Morte tenham sangue puro, não existem mais
tantos bruxos de sangue puro — insistiu Hermione. — Imagino que a maioria seja mestiça e finja
ser pura. Só odeiam os que nasceram trouxas, e ficariam muito felizes em deixar você e Rony se
alistarem.
— Nunca me deixariam ser um Comensal da Morte! — respondeu Rony indignado,
brandindo um garfo para Hermione e arremessando no ar um pedaço de salsicha que foi bater na
cabeça de Ernesto Macmillan. — Toda a minha família é traidora do sangue! Para os Comensais
da Morte, isto é tão ruim quanto ter nascido trouxa!
— E eles adorariam que eu me alistasse — comentou Harry, sarcástico. — Seríamos
grandes companheiros se eles não insistissem em me liquidar.
O comentário fez Rony rir; até Hermione sorriu de má vontade, mas foram interrompidos
pela chegada de Gina.
— Ei, Harry, me mandaram lhe entregar isso. — Era um rolo de pergaminho com o seu
nome escrito em uma caligrafia conhecida, fina e inclinada.
— Obrigado, Gina... é a próxima aula de Dumbledore! — disse Harry a Rony e Hermione,
abrindo o pergaminho e lendo-o em silêncio. — Segunda à noite! — Sentiu-se de repente leve e
feliz. — Quer se encontrar com a gente em Hogsmeade, Gina?
— Estou indo com o Dino, talvez a gente se veja lá — respondeu Gina, acenando para os
três ao se afastar.
Filch estava parado às portas de carvalho, como sempre, verificando os nomes dos alunos
que tinham permissão de ir a Hogsmeade. O processo demorou ainda mais do que o normal porque
o zelador estava verificando todo o mundo três vezes com o seu sensor de segredos.
— Que diferença faz se estamos contrabandeando objetos das Trevas para FORA da escola?
— quis saber Rony olhando apreensivo para o sensor de segredos. — Deviam era verificar o que
trazemos para DENTRO, não?
O atrevimento lhe custou umas cutucadas a mais do sensor, e ele ainda fazia caretas de dor
quando saíram para enfrentar o vento e o granizo.
A caminhada até Hogsmeade não foi agradável. Harry cobriu o maxilar com o cachecol; as
partes expostas do corpo logo ficaram ardidas e dormentes. A estrada para a aldeia estava repleta
de estudantes curvados contra o vento cortante. Mais de uma vez, Harry se perguntou se não
teriam se divertido mais na sala comunal aquecida; e quando, por fim, chegaram a Hogsmeade e
encontraram a Zonko's — Logros e Brincadeiras fechada com tábuas, ele achou que era uma
confirmação de que o passeio não seria divertido. Rony apontou com a mão protegida por urna
grossa luva para a Dedosdemel, que felizmente estava aberta, e Harry e Hermione entraram em
sua esteira na loja apinhada de gente.
— Graças a Deus — estremeceu Rony, quando foram envolvidos pelo ar quente recendendo
a caramelos. — Vamos passar a tarde inteira aqui.
— Harry, meu rapaz! — trovejou uma voz às suas costas.
— Ah, não — murmurou Harry. Os três se viraram e deram com o professor Slughorn, com
um enorme gorro de peles e um sobretudo com uma gola igual; o professor ocupava, no mínimo,
um quarto da loja e segurava uma sacola de abacaxi cristalizado.
— Harry, você já faltou a três dos meus pequenos jantares! — disse Slughorn, dando-lhe
um cutucão cordial no peito, com o dedo. — Não vai adiantar, meu rapaz, estou decidido a fazêlo
comparecer. A srta. Granger adora os jantares, não é verdade?
— É — concordou Hermione indefesa —, são realmente...
— Então por que você não vem também, Harry? — quis saber Slughorn.
— Bem, tenho tido treino de quadribol, professor — respondeu Harry, que, na verdade,
andava marcando treinos todas as vezes que Slughorn lhe enviava o pequeno convite com a fita
roxa. Com essa estratégia, Rony não se sentia excluído e, em geral, eles davam boas risadas com
Gina, imaginando Hermione trancada com McLaggen e Zabini.
E ficou observando-os cruzar a entrada do Três Vassouras. No instante em que entrou,
Harry explodiu:
— Ele estava afanando as coisas de Sirius!
— Eu sei, Harry, mas, por favor, não grite, as pessoas estão olhando — sussurrou
Hermione. — Vai sentar, eu apanho uma bebida para você.
Harry ainda espumava quando Hermione voltou à mesa alguns minutos depois, trazendo
três garrafas de cerveja amanteigada.
— Será que a Ordem não pode controlar o Mundungo? — Harry perguntou aos outros dois,
num sussurro enfurecido. — Não podem ao menos impedi-lo de roubar tudo que não está pregado
quando ele está na sede?
— Psiu! — exclamou Hermione desesperada, virando-se para os lados a ver se ninguém os
escutava; havia uns bruxos sentados perto que observavam Harry com grande interesse, e Zabini
estava encostado em uma coluna, à toa, à pequena distância.
— Harry, eu também me zangaria, sei que são as suas coisas que ele está roubando...
Harry engasgou com a cerveja; momentaneamente esquecera que era o dono da casa doze
do largo Grimmauld.
— É, são as minhas coisas! Não admira que ele não tenha gostado de me ver! Bem, vou
contar ao Dumbledore o que está acontecendo, ele é o único que mete medo em Mundungo.
— Boa idéia — sussurrou Hermione, visivelmente satisfeita que Harry estivesse se
acalmando. — Rony, que é que você está olhando tanto?
— Nada — respondeu Rony, desviando depressa o olhar do balcão do bar, mas Harry sabia
que ele estava tentando atrair a atenção de Madame Rosmerta, a sedutora e curvilínea dona do
Três Vassouras, por quem tinha uma queda, havia muito tempo.
— Presumo que "nada" esteja lá nos fundos apanhando mais uísque de fogo — ironizou
Hermione.
Rony fingiu não ouvir a alfinetada, e continuou a beber sua cerveja em um silêncio que ele
evidentemente considerou digno. Harry ficou se lembrando de Sirius e de como o padrinho
detestava aquelas taças de prata. Hermione tamborilava na mesa, seus olhos correndo de Rony
para o bar.
No instante em que Harry tomou os últimos goles de sua cerveja, a amiga disse:
— Então, vamos encerrar o dia e voltar para a escola?
Os outros dois concordaram; não tinha sido um passeio divertido, e quanto mais se
demoravam, pior ficava o tempo. Mais uma vez eles se enrolaram bem nas capas, ajeitaram os
cachecóis, calçaram as luvas; saíram do bar em seguida a Cátia Bell e uma amiga, e tornaram a
subir a rua principal. Os pensamentos de Harry se desviaram para Gina enquanto avançavam pela
estrada de Hogwarts em meio à lama congelada. Com certeza não tinham encontrado a garota,
concluiu Harry, porque ela e Dino deviam estar aconchegados no salão de chá de Madame
Puddifoot, aquele refúgio de casais felizes. De cara amarrada, ele baixou a cabeça para enfrentar
o torvelinho de granizo e continuou andando.
Levou algum tempo para perceber que as vozes de Cátia Bell e sua amiga, que o vento
trazia até ele, tinham se tornado mais altas e esga-niçadas. Harry apertou os olhos para ver melhor
seus vultos indistintos. As duas discutiam a respeito de alguma coisa que Cátia segurava na mão.
— Não é da sua conta, Liane! — Harry ouviu Cátia dizer.
Eles contornaram a curva da estrada, o granizo caía denso e rápido, embaçando os óculos de
Harry. No instante em que ele ergueu a mão enluvada para limpá-los, Liane tentou agarrar o
pacote que Cátia levava; esta resistiu, e o pacote caiu no chão.
Na mesma hora, a garota se ergueu no ar, não como Rony fizera, suspenso comicamente
pelo tornozelo, mas graciosamente, com os braços estendidos como se fosse voar. Contudo, havia
alguma coisa errada, alguma coisa esquisita... o vento forte fazia seus cabelos chicotearem, mas
seus olhos estavam fechados e o rosto, vidrado. Harry, Rony, Hermione e Liane pararam
instantaneamente para observar.
Então, a quase dois metros do chão, Cátia soltou um grito pavoroso. Seus olhos estavam
arregalados, e o que quer que estivesse vendo ou sentindo causou-lhe visivelmente uma terrível
angústia. Ela gritava sem parar; Liane começou a gritar também e agarrou Cátia pelos tornozelos,
tentando puxá-la para o chão. Harry, Rony e Hermione correram para ajudar, mas, na hora em
que a agarraram pelas pernas, a garota desabou em cima deles; Harry e Rony conseguiram aparála,
mas ela se contorcia de tal modo que mal conseguiam contê-la. Por isso, deitaram-na no chão
onde ela ficou se debatendo e gritando, aparentemente incapaz de reconhecê-los.
Harry olhou para os lados; a paisagem parecia deserta.
— Fiquem aí! — gritou para que o ouvissem naquela ventania. —Vou buscar ajuda!
Ele começou a correr em direção à escola; nunca vira ninguém agir como Cátia, e não
conseguia imaginar o que podia ter desencadeado aquilo; arremessou-se por uma curva da estrada
e colidiu com um obstáculo que parecia um enorme urso apoiado nas pernas traseiras.
— Hagrid! — ofegou, desvencilhando-se da cerca viva em que caíra.
— Harry! — exclamou Hagrid, cujas sobrancelhas e barba estavam duras de granizo;
trajava seu espesso casacão de pele de castor. — Acabei de visitar o Grope, está progredindo
tanto que você não...
— Hagrid, tem uma garota passando mal lá atrás, ou enfeitiçada ou sei lá...
— Quê? — perguntou Hagrid, curvando-se para ouvir o que Harry estava dizendo naquela
ventania enfurecida.
— Alguém foi enfeitiçado! — berrou Harry.
— Enfeitiçado? Quem foi enfeitiçado... não foi o Rony? A Hermione?
— Não, não foram eles, a Cátia Bell... por aqui...
Juntos, eles voltaram correndo pela estrada. Sem demora, encontraram o grupinho de
pessoas em volta da garota, que continuava a se contorcer e a gritar no chão; Rony, Hermione e
Liane tentavam acalmá-la.
— Para trás! — gritou Hagrid. — Me deixem ver a garota!
— Aconteceu alguma coisa com ela! — soluçou Liane. — Não sei o quê.
Hagrid olhou para Cátia por um segundo, então, sem dizer uma palavra, abaixou-se,
apanhou-a nos braços e correu em direção ao castelo. Segundos depois, os gritos lancinantes de
Cátia morriam ao longe e eles ouviam apenas o rugido do vento.
Hermione correu para a amiga de Cátia em prantos e abraçou a garota pelos ombros.
— Você é a Liane, não é? A garota confirmou.
— Aconteceu de repente ou...?
— Foi quando aquele embrulho rasgou — soluçou Liane, apontando para o embrulho de
papel pardo agora empapado no chão, que se abrira revelando um brilho esverdeado. Rony se
abaixou com a mão estendida, mas Harry agarrou-o pelo braço e puxou-o para trás.
— Não mexe nisso!
Ele se agachou. Pelo rasgão, via-se um requintado colar de opalas.
— Já vi esse colar antes — disse Harry, olhando-o com atenção. — Esteve exposto na
Borgin & Burkes há séculos. Estava escrito na etiqueta que era amaldiçoado. Cátia deve ter
tocado nele. — Ele olhou para Liane, que começara a tremer descontroladamente. — Como foi
que Cátia arranjou isso?
— Bem, era por isso que estávamos discutindo — explicou Liane. — Ela voltou'do banheiro
do Três Vassouras trazendo o colar, disse que era uma surpresa para alguém em Hogwarts que
precisava entregar. Estava muito esquisita quando falou isso... ah, não, ah, não, aposto como foi
amaldiçoada com a Imperius e eu nem percebi!
Liane foi sacudida por novos soluços. Hermione deu palmadinhas gentis em seu ombro.
— Ela não contou quem tinha lhe dado o embrulho, Liane?
— Não... não quis me contar... e eu disse que estava sendo burra, que não levasse aquilo
para a escola, mas ela não quis me escutar... então tentei tirar o embrulho da mão dela... e... e... —
Liane soltou um grito de desespero.
— É melhor irmos para a escola — disse Hermione, ainda abraçando Liane —, poderemos
saber como ela está. Vamos...
Harry hesitou um instante, então, puxando o cachecol que protegia seu rosto e ignorando a
exclamação de Rony, cobriu cuidadosamente o colar e apanhou-o.
— Precisaremos mostrar isso a Madame Pomfrey.
Enquanto seguiam Hermione e Liane pela estrada, Harry pensava freneticamente. Tinham
acabado de penetrar os terrenos da escola quando ele falou, incapaz de calar os seus pensamentos
por mais tempo.
— Malfoy conhece esse colar. Estava em um estojo na Borgin & Burkes há quatro anos, vi
Malfoy dando uma boa olhada no colar enquanto eu estava escondido dele e do pai. Era isso que
ele estava comprando naquele dia em que o seguimos! Ele se lembrou do colar e voltou para
buscá-lo.
— Nã... não sei, Harry — disse Rony hesitante. — Um monte de gente vai à Borgin &
Burkes... e aquela garota não disse que Cátia pegou o colar no banheiro?
— Ela disse que a Cátia voltou do banheiro trazendo o colar, o que não significa
necessariamente que tenha apanhado o embrulho lá...
— McGonagall! — alertou-os Rony.
Harry levantou a cabeça. De fato, a professora vinha ao seu encontro descendo, ligeira, os
degraus de pedra da entrada em um redemoinho de granizo.
— Hagrid diz que vocês quatro viram o que aconteceu com a Cátia Bell... já para a minha
sala, por favor! Que é isso que você está levando, Potter?
— É a coisa que ela segurou.
— Santo Deus! — exclamou a professora, parecendo alarmada ao tomar o colar de Harry.
— Não, não, Filch, eles estão comigo! — acrescentou rapidamente ao ver o zelador atravessar
pressuroso o saguão de entrada empunhando o seu sensor de segredos. — Leve este colar ao
professor Snape agora, mas tenha cuidado para não tocá-lo, deixe-o embrulhado no cachecol!
Harry e os outros acompanharam a professora à sua sala no primeiro andar. As janelas
respingadas de cristais de gelo sacudiam ruidosamente em suas molduras e a sala estava gélida,
apesar do fogo que crepitava na lareira. McGonagall fechou a porta e contornou a escrivaninha
para ficar de frente para Harry, Rony, Hermione e a soluçante Liane.
— Então? — disse com rispidez. — Que aconteceu?
Vacilante, fazendo muitas pausas nas quais tentava controlar o choro, Liane contou à
professora que Cátia tinha ido ao banheiro no Três Vassouras e voltara trazendo um embrulho
sem identificação, que a amiga parecera meio esquisita e que tinham discutido sobre a sensatez de
aceitar entregar objetos desconhecidos, que a discussão culminara em uma luta em que o
embrulho se rasgou. Nessa altura, Liane estava tão emocionada que não foi possível arrancar
mais nenhuma palavra dela.
— Muito bem — disse a professora McGonagall, quase bondosamente —, suba à ala
hospitalar, por favor, Liane, e peça a Madame Pomfrey para lhe dar alguma coisa para o choque.
Quando a garota se retirou, a professora McGonagall voltou sua atenção para Harry, Rony e
Hermione.
— Que aconteceu quando Cátia tocou o colar?
— Ela subiu no ar — respondeu Harry, antes que os outros dois pudessem falar. — E então
começou a berrar e perdeu os sentidos. Professora, posso ver o professor Dumbledore, por favor?
— O diretor estará ausente até segunda-feira, Potter — informou ela, parecendo surpresa.
— Fora? — repetiu ele com raiva.
— E, Potter, fora! — enfatizou a professora com sarcasmo. — Mas qualquer coisa que você
tenha a dizer sobre este horrível incidente certamente poderá ser dito a mim!
Por uma fração de segundo, Harry hesitou. A professora McGonagall não inspirava
confidencias; embora Dumbledore fosse, sob muitos aspectos, assustador, parecia menos
inclinado a desprezar uma teoria, por mais mirabolante que fosse. Mas era uma questão de vida
ou morte, e não era hora de se preocupar que rissem dele.
— Acho que Draco Malfoy deu aquele colar à Cátia, professora.
A um lado dele, Rony cocou o nariz visivelmente constrangido; do outro, Hermione
arrastou os pés como se quisesse dar distância entre ela e Harry.
— É uma acusação muito séria, Potter — disse a professora McGonagall, depois de uma
pausa escandalizada. — Você tem alguma prova?
— Não, mas... — e ele contou que seguira Malfoy à Borgin & Burkes e escutara a conversa
entre o garoto e Borgin.
Quando terminou de falar, a professora McGonagall parecia estar ligeiramente confusa.
— Malfoy levou alguma coisa para consertar na Borgin & Burkes?
— Não, professora, ele queria que Borgin o ensinasse a consertar alguma coisa que não
tinha levado com ele. Mas isso não é importante, o fato é que ele comprou alguma coisa naquela
hora, e acho que foi o colar...
— Você viu Malfoy sair da loja com um embrulho igual?
— Não, professora, ele mandou Borgin guardar a compra na loja.
— Mas Harry — interrompeu-o Hermione. — Borgin perguntou se queria levar com ele e
Malfoy disse "não"...
— Porque não queria tocar no colar, é óbvio! — contrapôs Harry, aborrecido.
— O que Malfoy realmente disse foi: "Como é que eu ficaria carregando isso pela rua?" —
contou Hermione.
— Bem, ele iria parecer meio retardado levando um colar — interpôs Rony.
— Ah, Rony — disse Hermione com desespero —, o colar estaria embrulhado para ele não
precisar tocar e seria fácil esconder embaixo da capa, e ninguém veria nada! Acho que o que ele
deixou reservado na Borgin & Burkes era barulhento ou volumoso; alguma coisa que Malfoy
sabia que chamaria atenção se saísse carregando pela rua, e, seja como for — continuou
Hermione alteando a voz para impedir que Harry a interrompesse —, eu perguntei ao Borgin
sobre o colar, não se lembra? Quando entrei para tentar descobrir o que Malfoy tinha pedido para
reservar, eu o vi. E Borgin só me disse quanto custava, não falou que já estava vendido nem
nada...
— Ora, você foi muito óbvia, ele percebeu qual era a sua jogada em cinco segundos, claro
que não ia lhe dizer, mas Malfoy poderia ter mandado buscar uma vez que...
— Já chega — disse a professora McGonagall, quando Hermione abriu a boca para
retorquir, furiosa. — Potter, eu agradeço ter me contado isso, mas não podemos acusar Malfoy
simplesmente porque ele visitou a loja onde o colar poderia ser comprado. Isto provavelmente se
aplicaria a centenas de pessoas...
— ... foi o que eu falei — murmurou Rony.
— ... e, seja como for, este ano implantamos medidas de segurança rigorosas na escola, não
creio que o colar pudesse ter entrado sem o nosso conhecimento...
— ... mas...
— ... e além disso — disse a professora McGonagall com um ar inabalável —, o Sr. Malfoy
não esteve em Hogsmeade hoje.
Harry olhou-a boquiaberto e menos seguro.
— Como é que a senhora sabe, professora?
— Porque ele estava cumprindo uma detenção comigo. É a segunda vez seguida que não
termina os deveres de casa. Portanto, obrigada por ter me contado suas suspeitas, Potter —
concluiu passando decidida pelos três —, mas preciso ir à ala hospitalar me informar sobre Cátia
Bell. Bom-dia para todos.
Ela segurou aberta a porta da sala. Os garotos não tiveram escolha senão sair calados.
Harry ficou zangado com os outros dois por se aliarem a McGonagall; no entanto, sentiu-se
compelido a entrar na conversa quando começaram a discutir o que acontecera.
— Então, a quem vocês acham que a Cátia tinha de entregar o colar? — perguntou Rony,
enquanto subiam as escadas para a sala comunal.
— Só Deus sabe — exclamou Hermione. — Mas quem quer que tenha sido escapou por
pouco. Ninguém poderia ter aberto aquele embrulho sem tocar nele.
— A um monte de gente — disse Harry. — Dumbledore: os Comensais da Morte teriam
adorado se livrar dele, deve ser um dos seus alvos preferidos. Ou Slughorn: Dumbledore acha que
Voldemort realmente o queria, e os Comensais não devem ter ficado satisfeitos quando ele se
aliou a Dumbledore. Ou...
— Ou você — lembrou Hermione, perturbando-se.
— Não podia ter sido ou, na estrada, a Cátia simplesmente se viraria e o entregaria a mim,
não é? Eu estava atrás dela o tempo todo desde que saímos do Três Vassouras. Faria muito mais
sentido entregar o embrulho fora da escola, já que o Filch está revistando todo o mundo que entra
e sai. Por que será que o Malfoy a mandou levar o embrulho para o castelo?
— Harry, Malfoy não esteve em Hogsmeade! — lembrou Hermione, dessa vez batendo o pé
de frustração.
— Então deve ter usado um cúmplice, Crabbe ou Goyle... ou, pensando bem, até outro
Comensal da Morte, deve ter um montão de companheiros melhores que Crabbe e Goyle agora
que se alistou...
Rony e Hermione trocaram olhares que diziam claramente "não adianta discutir com ele".
— Sopa da coroação — disse Hermione com firmeza ao chegarem à Mulher Gorda.
O retrato girou, admitindo-os à sala comunal. Estava repleta e cheirava a roupas úmidas;
muitas pessoas pareciam ter regressado a Hogwarts cedo por causa do mau tempo. Mas não havia
burburinho de medo nem de especulação: obviamente, a notícia do que acontecera a Cátia ainda
não tinha se espalhado.
— Mas, quando a gente pára e pensa, rufo foi um ataque muito inteligente — comentou
Rony, arrancando com displicência um calouro de uma das confortáveis poltronas junto à lareira,
para poder se sentar. — O feitiço nem chegou ao castelo. Não é o que a gente poderia chamar de
infalível.
— Tem razão — concordou Hermione, empurrando Rony para fora da poltrona e tornando a
oferecê-la ao calouro. — Não foi muito bem pensado.
— E desde quando Malfoy é um dos grandes pensadores do mundo? — perguntou Harry.
Nem Rony nem Hermione lhe responderam.
CAPITULO TREZE
RIDDLE, O ENIGMA
CÁTIA FOI REMOVIDA NO DIA SEGUINTE para o Hospital St. Mungus para Doenças e
Acidentes Mágicos, altura em que já havia se espalhado por toda a escola a notícia do feitiço que
a atingira, embora os detalhes fossem confusos e ninguém, exceto Harry, Rony, Hermione e
Liane, parecesse saber que Cátia não fora o alvo visado.
— Ah, e naturalmente Malfoy sabe — disse Harry a Rony e Hermione, que continuaram
sua nova política de fingir surdez sempre que o amigo mencionava a sua teoria de que Malfoy era
um Comensal da Morte.
Harry se perguntava se Dumbledore voltaria, de onde quer que estivesse, em tempo para a
aula de segunda-feira à noite, mas, não tendo recebido notícia em contrário, apresentou-se à porta
do escritório às oito horas, bateu e Dumbledore mandou-o entrar. Ali estava o diretor com um ar
anormalmente cansado; sua mão estava mais escura e queimada que nunca, mas ele sorriu quando
convidou Harry a sentar. A Penseira encontrava-se, mais uma vez, em cima da mesa, projetando
reflexos prateados no teto.
— Você andou muito ocupado enquanto estive fora — disse Dumbledore. — Creio que
presenciou o acidente com a Cátia.
— Presenciei, senhor. Como vai ela?
— Ainda bem mal, embora tenha tido sorte. Parece que roçou no colar apenas uma parte
ínfima da pele: havia um buraco em sua luva. Se tivesse usado ou se tivesse segurado o colar com
a mão desprotegida, teria morrido, talvez instantaneamente. Por sorte, o professor Snape pôde
tomar providências para impedir que o feitiço se espalhasse...
— Por que ele? — perguntou Harry imediatamente. — Por que não Madame Pomfrey?
— Impertinente — disse uma voz branda que vinha de um dos retratos na parede; Fineus
Nigellus Black, bisavô de Sirius, ergueu a cabeça dos braços onde parecia estar dormindo. — No
meu tempo, eu não teria permitido a um aluno questionar o funcionamento de Hogwarts.
— Muito obrigado, Fineus — replicou Dumbledore acalmando-o. — O professor Snape
conhece muito mais sobre as Artes das Trevas do que Madame Pomfrey, Harry. Em todo caso, a
equipe do hospital St. Mungus está me enviando um boletim de hora em hora, e tenho esperança
de que, com o tempo, Cátia irá se recuperar plenamente.
— Onde é que o senhor esteve esse fim de semana, senhor? — perguntou Harry,
desprezando uma forte sensação de que estava abusando e que, pelo visto, era partilhada por
Fineus Nigellus, que assobiou baixinho.
— Eu preferia não revelar neste momento — respondeu Dumbledore. — Mas lhe contarei
no devido tempo.
— Contará? — admirou-se Harry.
— Espero que sim — disse o diretor, tirando de dentro das vestes um novo frasco de
lembranças prateadas e desarrolhando-o com um toque de varinha.
— Senhor — começou Harry hesitante —, encontrei Mundungo em Hogsmeade.
— Ah, sim, já estou ciente de que Mundungo andou tratando sua herança com dedos leves e
pouco respeito — disse Dumbledore enrugando ligeiramente a testa. — Ele se escondeu depois
que você o abordou à porta do Três Vassouras; creio que está cora medo de me enfrentar. Mas
fique tranqüilo que ele não vai mais tirar o que pertenceu a Sirius.
— Aquele mestiço velho e sarnento anda roubando objetos da família Black? — perguntou
Fineus indignado; e saiu silenciosamente da moldura, sem dúvida para visitar o seu quadro no
número doze do largo Grimmauld.
— Professor — recomeçou Harry depois de uma breve pausa —, a professora McGonagall
lhe contou o que falei depois que a Cátia foi enfeitiçada? Sobre Draco Malfoy?
— Ela me contou suas suspeitas.
— E o senhor...
— Tomarei as medidas adequadas para investigar qualquer um que possa ter participado do
acidente com Cátia. Mas o que me interessa agora, Harry, é a nossa aula.
Harry não gostou muito da resposta: se as aulas eram tão importantes, então por que tinha
havido um intervalo tão grande entre a primeira e a segunda? Contudo, não falou mais em Draco
Malfoy, e ficou observando Dumbledore despejar lembranças frescas na Penseira e começar a
girar a bacia de pedra nas mãos longas.
— Você certamente se lembra de que deixamos a história dos primeiros tempos de Lord
Voldemort no ponto em que o trouxa bonitão, Tom Riddle, abandonou a esposa bruxa, Mérope, e
retornou à casa da família em Little Hangleton. Mérope foi abandonada sozinha em Londres,
esperando o filho que um dia se tornaria Lord Voldemort.
— Como sabe que ela estava em Londres, senhor?
— Pelo testemunho de um tal Carataco Burke que, por uma estranha coincidência, ajudou a
fundar a mesmíssima loja de onde veio o colar de que acabamos de falar.
Dumbledore girou o conteúdo da Penseira como Harry já o vira fazer antes, como um
garimpeiro peneirando à procura de ouro. Do redemoinho prateado, emergiu um velhinho que
girou lentamente na Penseira, prateado como um fantasma, porém muito mais sólido, com uma
cabeleira que encobria totalmente os seus olhos.
— Sim, adquirimos o medalhão em circunstâncias curiosas. Foi trazido por uma jovem
bruxa pouco antes do Natal, ah, há muitos anos. Ela disse que precisava urgentemente de ouro, o
que era visível. Bonita e coberta de trapos, em adiantado... estado de gravidez, entende. Disse
ainda que o medalhão tinha pertencido à família Slytherin. Bem, sempre ouvimos este tipo de
história. "Ah, isto pertenceu a Merlim, era o seu bule de chá favorito", e quando eu ia examinar,
tinha realmente o sinete dele, mas alguns feitiços simples bastavam para me revelar a verdade. É
claro que aquela circunstância tornava o medalhão quase inestimável. A moça não parecia ter
idéia do seu valor. Ficou feliz em receber dez galeões pelo objeto. A melhor pechincha que já
fizemos!
Dumbledore deu à Penseira uma sacudida mais vigorosa e Carataco Burke foi reabsorvido
pela massa espiralante de memórias de onde saíra.
— Ele deu à bruxa apenas dez galeões? — comentou Harry indignado.
— Carataco Burke não ficou famoso por sua generosidade. Sabemos, então, que, próximo
ao fim da gravidez, Mérope estava sozinha em
Londres precisando desesperadamente de ouro, desesperada o bastante para vender seu
único bem com valor, o medalhão que era uma preciosa herança da família.
— Mas ela podia usar a magia! — exclamou Harry impaciente. — Podia arranjar comida e
tudo de que precisasse usando a magia, não podia?
— Ah, talvez pudesse. Mas acredito, e novamente estou imaginando, embora seja quase
uma certeza, que, quando foi abandonada pelo marido, Mérope parou de recorrer à magia. Acho
que não quis mais ser bruxa. Claro que também é possível que o seu amor não correspondido e o
conseqüente desespero tenham minado seus poderes, isto pode acontecer. De qualquer modo, e
você está prestes a ver, Mérope se recusou a empunhar a varinha até mesmo para salvar a própria
vida.
— Não quis viver nem para o filho? Dumbledore ergueu as sobrancelhas.
— Será possível que você estej/sentindo pena de Lord Voldemort?
— Não — apressou-se Harry a negar —, mas ela teve escolha, não é, não foi como a minha
mãe...
— Sua mãe também teve escolha — disse Dumbledore, gentilmente. — Mérope Riddle
preferiu morrer apesar do filho que precisava dela, mas não a julgue com tanta severidade, Harry.
Ela estava enfraquecida pelo longo sofrimento e nunca teve a coragem de sua mãe. E, agora, se
você ficar de pé...
— Aonde vamos? — perguntou Harry, quando Dumbledore se juntou a ele à frente da
escrivaninha.
— Desta vez, vamos entrar na minha memória. Penso que lhe parecerá ao mesmo tempo
rica em detalhes e satisfatoriamente exata. Primeiro você...
Harry se inclinou para a Penseira; seu rosto cortou a fresca superfície das lembranças e ele
se viu mais uma vez caindo pela escuridão... segundos depois, seus pés bateram no chão firme,
ele abriu os olhos e viu que estavam parados em uma antiga e movimentada rua de Londres.
— Aquele sou eu — disse Dumbledore, animado, apontando para um vulto que atravessava
a rua à frente de uma carroça de leite puxada por um cavalo.
A barba e os cabelos longos do jovem Alvo Dumbledore eram acaju. Ao chegar do lado
oposto da rua, seguiu pela calçada, atraindo muitos olhares curiosos por causa do vistoso terno de
veludo cor de ameixa que estava usando.
— Belo terno, senhor — comentou Harry sem conseguir se conter, mas Dumbledore
simplesmente riu e os dois foram acompanhando o seu eu mais jovem, a curta distância, até um
pátio vazio defronte a um prédio quadrado e sinistro cercado por altas grades. Ele subiu uma
pequena escada que levava à porta de entrada e bateu uma vez. Passado um momento, a porta foi
aberta por uma moça desleixada, de avental.
— Boa-tarde. Tenho hora marcada com uma Sra. Cole, que acredito ser a governanta daqui.
— Ah — exclamou a moça de ar espantado, registrando a excêntrica aparência de
Dumbledore. — Hum... um momentinho... SRA. COLE! — berrou por cima do ombro.
Harry ouviu uma voz distante gritando alguma coisa em resposta. A moça tornou a falar
com Dumbledore.
— Entre, ela está vindo.
Dumbledore entrou por um corredor azulejado de preto e branco; o lugar era pobre, mas
imaculadamente limpo. Harry e o velho Dumbledore o seguiram. Antes que a porta se fechasse,
às suas costas, uma mulher muito magra e aflita veio caminhando depressa em sua direção. Tinha
um rosto bem delineado, que parecia mais ansioso do que mau, e, enquanto ia ao encontro de
Dumbledore, falava por cima do ombro com outra ajudante de avental.
— ... e leve o iodo para Marta lá em cima, Carlinhos Stubbs andou descascando as perebas
outra vez e Erico Whalley está se esvaindo nos lençóis, e ainda por cima com catapora —
comentou, sem se dirigir a ninguém em particular, e então o seu olhar recaiu em Dumbledore e
ela parou instantaneamente, admirada, como se uma girafa tivesse acabado de cruzar a entrada da
casa.
— Boa-tarde — disse Dumbledore, estendendo a mão. A Sra. Cole simplesmente
boquiabriu-se.
— Meu nome é Alvo Dumbledore. Enviei uma carta pedindo para marcar uma hora, e a
senhora gentilmente me convidou para vir aqui hoje.
A senhora piscou os olhos. Com jeito de quem procurava decidir se Dumbledore não seria
uma alucinação, ela disse com voz fraquinha:
— Ah, sim. Bem... bem, então, é melhor vir à minha sala. É.
Ela conduziu Dumbledore a uma salinha que aparentemente se dividia em sala e escritório.
Era tão pobre quanto o hall, e a mobília era velha e desparelhada. A senhora convidou, então,
Dumbledore a sentar em uma cadeira bamba e se acomodou à escrivaninha atravancada,
observando-o nervosamente.
— Estou aqui, conforme disse em minha carta, para discutir sobre o menino Tom Riddle e
as providências para o seu futuro — começou Dumbledore.
— O senhor é da família? — perguntou a Sra. Cole.
— Não, sou professor. Vim oferecer a Tom uma vaga em minha escola.
— E que escola é essa?
— Chama-se Hogwarts.
— E por que se interessou por Tom?
— Acreditamos que tenha qualidades que procuramos.
— O senhor quer dizer que ele ganhou uma bolsa? Como pode ter ganhado? Nunca pedimos
uma bolsa para ele.
— Bem, o nome dele está inscrito em nossa escola desde que nasceu.
— Quem o inscreveu? Os pais?
Não havia dúvidas de que a Sra. Cole era uma mulher inconvenientemente astuta. E, pelo
visto, Dumbledore teve a mesma opinião, porque Harry o viu tirar discretamente a varinha do
bolso do terno de veludo, ao mesmo tempo que apanhava uma folha de papel em branco da
escrivaninha da Sra. Cole.
— Veja — disse Dumbledore fazendo um aceno com a varinha e passando o papel à
senhora. — Acho que isto esclarecerá tudo.
Os olhos da Sra. Cole saíram de foco e tornaram a entrar enquanto examinava, atenta, a
folha de papel por um momento.
— Parece perfeitamente em ordem — disse calma, devolvendo o papel. Então seu olhar
recaiu sobre uma garrafa de gim e dois copos, que com certeza não estavam ali alguns segundos
antes.
— Ah... o senhor aceita um cálice de gim? — perguntou a mulher em tom elegante.
— Muito obrigado — aceitou Dumbledore sorridente.
Logo se tornou claro que a Sra. Cole não era nenhuma principiante quando se tratava de
beber gim. Servindo para ambos uma generosa dose, ela bebeu o seu cálice de um gole. Estalando
os lábios sem constrangimento, sorriu para Dumbledore pela primeira vez, e ele não hesitou em
aproveitar a vantagem.
— Eu estava imaginando se a senhora não poderia me contar alguma coisa da história de
Tom Riddle? Creio que ele nasceu aqui no orfanato, não?
— Certo — confirmou a Sra. Cole, servindo-se de mais gim. — Lembro muito claramente,
porque estava começando a trabalhar aqui. Era véspera de Ano-Novo, fazia muito frio, nevava,
sabe. Uma noite tempestuosa. E essa moça, que não era muito mais velha do que eu, chegou com
dificuldade à nossa porta. Bem, ela não foi a primeira. Nós a acolhemos e ela teve o bebê em
menos de uma hora. E na hora seguinte morreu.
A Sra. Cole acenou a cabeça solenemente e tomou mais um gole de gim.
— Ela disse alguma coisa antes de morrer? — perguntou Dumbledore. — Alguma coisa
sobre o pai do garoto, por exemplo?
— Por acaso, disse — confirmou a Sra. Cole, que parecia estar se divertindo, com o gim na
mão e uma platéia ansiosa para ouvir sua história.
"Lembro que ela me disse: 'Espero que ele pareça com o pai', e não vou mentir, a moça
tinha razão em desejar isso, porque ela não era nenhuma beleza... e então me falou que o bebê
deveria receber o nome de Tom em homenagem ao pai e Servolo em homenagem ao pai dela... é,
eu sei, é um nome engraçado, não é? Ficamos imaginando que tivesse vindo de um circo... e ela
disse que o sobrenome do garoto era Riddle. E sem dizer mais nada, morreu pouco depois.
"Bem, demos ao bebê o nome que a mãe tinha pedido, parecia tão importante para a coitada,
mas nunca nenhum Tom nem Servolo nem Riddle veio procurar a criança, nem família nenhuma
apareceu, então ele ficou no orfanato e está aqui desde aquela época."
A Sra. Cole serviu-se, quase sem se dar conta, de mais uma saudável dose de gim. Duas
manchas rosadas apareceram nas maçãs do seu rosto. E então ela continuou:
— É um garoto engraçado.
— Sei — disse Dumbledore. — Achei que fosse.
— Foi um bebê engraçado também. Quase nunca chorava, sabe. Depois, quando foi
crescendo ficou... esquisito.
— Esquisito, como? — perguntou Dumbledore gentilmente.
— Bem, ele...
Mas a Sra. Cole se calou, e não havia nada confuso ou vago no olhar inquisitivo que lançou
a Dumbledore por cima do cálice de gim.
— O senhor diz que ele tem vaga garantida em sua escola?
— Certamente.
— E nada que eu disser pode mudar isso?
— Nada.
— O senhor o levará seja qual for a informação que lhe dê?
— Seja qual for a informação — respondeu Dumbledore solenemente.
A mulher encarou-o apertando os olhos como se decidisse se podia ou não confiar nele.
Aparentemente, achou que podia, porque disse apressada:
— Ele mete medo às outras crianças.
— A senhora quer dizer que ele as intimida?
— Acho que deve intimidar — respondeu a Sra. Cole, franzindo ligeiramente a testa —,
mas é muito difícil pegá-lo em flagrante. Tem havido incidentes... bem desagradáveis...
Dumbledore não a pressionou, embora Harry percebesse que estava interessado. A mulher
tomou mais um gole de gim e suas bochechas rosadas ficaram ainda mais rosadas.
— O coelho de Carlinhos Stubbs... bem, Tom disse que não fez nada e não vejo como
poderia ter feito, mas o bicho não se enforcou nas traves do teto sozinho, não é?
— Eu diria que não — concordou Dumbledore em voz baixa.
— Mas o diabo é saber como foi que ele subiu lá no alto para fazer isso. O que sei é que
Tom e Carlinhos tinham discutido no dia anterior. — E então, a Sra. Cole tomou mais um gole,
que desta vez escorreu um pouco pelo seu queixo. — No passeio do verão... saímos com eles,
sabe, uma vez por ano, vamos ao campo ou à praia... bem, Amada Benson e Dênis Bishop nunca
tiveram muita certeza, e só o que conseguimos extrair deles foi que tinham ido a uma caverna
com Tom Riddle. Ele jurou que só foram explorar o lugar, mas alguma coisa aconteceu lá dentro,
tenho certeza. E, bem, têm acontecido muitas coisas, coisas engraçadas...
Ela tornou a encarar Dumbledore, e, embora seu rosto estivesse corado, o olhar era firme.
— Acho que muito pouca gente vai lamentar ver este garoto pelas costas.
— Estou certo de que a senhora compreende que não vamos mantê-lo na escola o ano
inteiro, não? — lembrou Dumbledore. — Ele terá de voltar para aqui, no mínimo, a cada verão.
— Ah, bem, isso é menos ruim do que levar uma pancada no nariz com um ferro
enferrujado — respondeu a mulher com um leve soluço. Ela se levantou e Harry ficou
impressionado de ver que estava bem firme, embora dois terços do gim tivessem desaparecido. —
Presumo que o senhor gostaria de ver o garoto, não?
— Muito — disse Dumbledore se erguendo.
A Sra. Cole saiu com o diretor da sala, subiu uma escada de pedra, dando ordens e
chamando a atenção dos seus auxiliares e das crianças que passavam. Todos os órfãos, Harry
notou, usavam o mesmo tipo de bata acinzentada. Pareciam razoavelmente bem cuidados, mas
não havia como negar que era um lugar sinistro para educar uma criança.
— É aqui — anunciou a Sra. Cole, ao virarem no segundo patamar e pararem à primeira
porta de um comprido corredor. Ela bateu duas vezes e entrou. — Tom? Tem uma visita para
você. Este é o Sr. Dumberton... desculpe, Dunderbore. Ele veio lhe dizer... bem, vou deixar que
ele mesmo diga.
Harry e os dois Dumbledore entraram no quarto, e a Sra. Cole fechou a porta. Era um
pequeno cômodo vazio exceto por um guarda-roupa velho e uma cama de ferro. Um garoto
estava sentado em cima dos cobertores cinzentos, as pernas esticadas à frente, segurando um
livro.
Não havia traços dos Gaunt no rosto de Tom Riddle. Mérope realizara o seu último desejo:
ele era uma miniatura do pai bonitão, alto para os seus onze anos, pálido e de cabelos escuros.
Seus olhos se estreitaram ligeiramente ao registrar a excêntrica aparência de Dumbledore. Houve
um momento de silêncio.
— Como vai, Tom? — perguntou Dumbledore adiantando-se e estendendo a mão.
O garoto hesitou, aceitou a mão e se cumprimentaram. Dumbledore puxou uma cadeira de
madeira para junto de Riddle, fazendo-os parecer um paciente e a sua visita em um hospital.
— Sou o professor Dumbledore.
— Professor? — repetiu Riddle. Mostrou-se preocupado. — E como um "doutor"? Por que
está aqui? Ela trouxe o senhor para me examinar?
O garoto apontava para a porta pela qual a Sra. Cole acabara de sair.
— Não, não — respondeu Dumbledore sorrindo.
— Não acredito no senhor. Ela quer que me examine, não é? Fale a verdade!
O garoto disse as três últimas palavras com uma força tão altissonante que era quase
assustadora. Era uma ordem, e, pelo jeito, ele já a dera muitas vezes antes. Seus olhos tinham se
esbugalhado e fixavam, sérios, Dumbledore, cuja única reação foi continuar sorrindo
agradavelmente. Decorridos alguns segundos, Riddle parou de encarar o professor, embora
parecesse ainda mais desconfiado.
— Quem é o senhor?
— Eu já lhe disse. Meu nome é Dumbledore, e trabalho em uma escola chamada Hogwarts.
Vim lhe oferecer uma vaga em minha escola, sua nova escola, se quiser ir.
A reação de Riddle ao ouvir isso foi surpreendente. Ele pulou da cama e se afastou de
Dumbledore, furioso.
— O senhor não me engana! O hospício, é de lá que o senhor é, não é? "Professor", claro,
pois eu não vou, entende? Aquela gata velha é que deveria estar no hospício. Nunca fiz nada a
Amadinha nem ao Dênis Bishop, e o senhor pode perguntar, eles dirão ao senhor!
— Eu não sou do hospício — replicou Dumbledore pacientemente. — Sou professor e, se
você sentar e se acalmar, posso lhe falar sobre Hogwarts. É claro que se você preferir não ir,
ninguém irá forçá-lo...
— Gostaria de ver alguém tentar — desdenhou Riddle.
— Hogwarts — continuou Dumbledore, como se não tivesse ouvido as últimas palavras do
garoto — é uma escola para pessoas com talentos especiais...
— Eu não sou louco!
— Sei que não é. Hogwarts não é uma escola para loucos. E uma escola de magia.
Fez-se silêncio. Riddle congelara, seu rosto vazio de expressão, mas o olhar correndo de um
olho de Dumbledore para o outro, como se tentasse apanhar um deles mentindo.
— Magia? — repetiu num sussurro.
— Exato.
— É... é magia, o que eu sei fazer?
— Que é que você sabe fazer?
— Muita coisa — sussurrou. Um rubor de excitação subiu do seu pescoço para as faces
encovadas; parecia febril. — Sei fazer as coisas se mexerem sem tocar nelas. Sei fazer os bichos
me obedecerem sem treinamento. Sei fazer coisas ruins acontecerem a quem me aborrece. Sei
fazer as pessoas sentirem dor, se quiser.
Suas pernas tremiam. Ele se adiantou cambaleando e tornou a se sentar na cama, olhando
para as mãos, a cabeça baixa como se rezasse.
— Eu sabia que era diferente — murmurou para os seus dedos trêmulos. — Sabia que era
especial. Sempre soube que havia alguma coisa.
— Bem, você estava certo — disse Dumbledore, que já não sorria, mas observava Riddle
com atenção. — Você é um bruxo.
Riddle ergueu a cabeça. Seu rosto se transfigurou: havia nele uma felicidade irreprimível,
mas por alguma razão isso não o tornava mais bonito; pelo contrário, suas feições finas pareciam
mais brutas, sua expressão quase bestial.
— O senhor também é bruxo?
— Sou.
— Prove — replicou Riddle imediatamente, no mesmo tom de comando que usara quando
dissera "fale a verdade".
Dumbledore ergueu as sobrancelhas.
— Se, como imagino, você estiver aceitando a vaga em Hogwarts...
— Claro que estou!
— Então, vai se dirigir a mim, chamando-me de "professor" ou de "senhor".
As feições de Riddle endureceram por um instante fugaz antes que ele respondesse, em um
tom irreconhecivelmente educado:
— Desculpe, senhor. Eu quis dizer: por favor, professor, pode me mostrar...?
Harry estava certo de que Dumbledore ia recusar, que ia responder a Riddle que haveria
muito tempo para demonstrações práticas em Hogwarts, que naquele momento estavam em um
prédio cheio de trouxas e, portanto, precisavam tomar cuidado. Para sua grande surpresa, porém,
Dumbledore tirou a varinha do bolso interno do paletó, apontou-a para o guarda-roupa velho a
um canto e fez um aceno displicente.
O guarda-roupa pegou fogo.
O garoto pulou da cama. Harry não podia censurá-lo por urrar de choque e fúria; todos os
seus bens deviam estar ali dentro; mas, quando Riddle avançou para Dumbledore, as chamas
desapareceram, deixando o guarda-roupa intacto.
Riddle olhou do móvel para Dumbledore, então, com uma expressão cobiçosa, apontou para
a varinha.
— Onde posso arranjar uma dessas?
— Tudo a seu tempo — respondeu Dumbledore. — Acho que tem alguma coisa querendo
sair do seu guarda-roupa.
De fato, ouvia-se alguma coisa chocalhando baixinho. Pela primeira vez, Riddle pareceu
amedrontado.
— Abra a porta — ordenou Dumbledore.
Riddle hesitou, mas atravessou o quarto e escancarou a porta do armário. Na prateleira mais
alta, acima de um trilho com umas poucas roupas, uma caixinha sacudia e chocalhava como se
contivesse ratinhos frenéticos.
— Tire-a daí — disse Dumbledore.
Riddle apanhou a caixa trepidante. Pareceu nervoso.
— Tem alguma coisa nessa caixa que você não deveria ter? — perguntou Dumbledore.
Riddle lançou a Dumbledore um olhar demorado, penetrante e astuto.
— Suponho que sim, senhor — disse finalmente com uma voz inexpressiva.
— Abra-a.
Riddle tirou a tampa e virou o conteúdo em cima da cama, sem olhar. Harry, que esperara
alguma coisa mais excitante, viu uma confusão de pequenos objetos comuns: um ioiô, um dedal
de prata e uma gaita-de-boca oxidada. Uma vez fora da caixa, eles pararam de tremer e mexer
sobre os cobertores finos.
— Você os devolverá aos donos com suas desculpas — disse Dumbledore calmamente,
tornando a guardar a varinha no paletó. — Saberei se fez isso. — E alertou: — Em Hogwarts, não
toleramos roubos.
Riddle não pareceu sequer remotamente envergonhado; continuou a encarar Dumbledore
com um olhar frio e avaliador. Por fim, disse com uma voz monótona:
— Sim, senhor.
— Em Hogwarts — continuou Dumbledore —, ensinamos não apenas a usar a magia, mas a
controlá-la. Você tem usado os seus poderes, decerto sem saber, de um modo que não é ensinado
nem tolerado em nossa escola. Você não é o primeiro nem será o último a deixar que a sua magia
fuja ao seu controle. Mas é preciso que saiba que Hogwarts pode expulsar alunos e o Ministério
da Magia, porque existe um Ministério, castiga os que desrespeitam as leis, ainda mais severamente.
Todos os novos bruxos têm de aceitar que, ao entrar em nosso mundo, se submetem às
nossas leis.
— Sim, senhor — repetiu o garoto.
Era impossível saber o que ele estava pensando; manteve o rosto impassível ao tornar a
guardar os objetos roubados na caixa de papelão. Quando terminou, virou-se para Dumbledore e
disse com atrevimento:
— Não tenho dinheiro.
— Isto é facilmente remediável — disse Dumbledore, tirando uma bolsa de couro do bolso.
— Há um fundo em Hogwarts para os que precisam de ajuda para comprar livros e vestes. Você
talvez tenha de comprar alguns livros de feitiços e outras coisas de segunda mão, mas...
— Onde se compram livros de feitiços? — interrompeu-o Riddle, que tinha apanhado a
pesada bolsa de dinheiro sem agradecer, e agora examinava um maciço galeão de ouro.
— No beco Diagonal. Trouxe a sua lista de livros e materiais escolares. Posso ajudá-lo a
encontrar tudo...
— O senhor vai me acompanhar? — perguntou Riddle erguendo a cabeça.
— Certamente, se você...
— Não preciso do senhor — retrucou Riddle. — Estou acostumado a fazer tudo sozinho.
Ando por toda a Londres desacompanhado. Como se chega a esse beco Diagonal... senhor? —
acrescentou ele, ao surpreender o olhar de Dumbledore.
Harry achou que Dumbledore fosse insistir em acompanhar Riddle, mas surpreendeu-se
outra vez. Dumbledore lhe entregou o envelope contendo a lista de materiais e, depois de orientar
o garoto exatamente como ir do orfanato ao Caldeirão Furado, acrescentou:
— Você o verá, embora à sua volta os trouxas, as pessoas que não são bruxas, não o vejam.
Pergunte por Tom, o dono do bar, é fácil lembrar, porque tem o mesmo nome que você...
Riddle fez um movimento de irritação, como se tentasse espantar uma mosca insistente.
— Você não gosta do nome "Tom" ?
— Tem muita gente com esse nome — murmurou. Então, como se não conseguisse se
conter, como se a pergunta escapasse de sua boca involuntariamente: — Meu pai era bruxo? Ele
também se chamava Tom Riddle, me disseram.
— Receio não saber dizer — respondeu Dumbledore em tom gentil.
— Minha mãe não deve ter sido bruxa ou não teria morrido — disse o garoto mais para si
mesmo do que para Dumbledore. — Deve ter sido ele. Muito bem, depois de comprar o que
preciso, quando vou para essa tal Hogwarts?
— Todos os detalhes estão na segunda folha de pergaminho no seu envelope — informou
Dumbledore. — Você embarcará na estação de King's Cross no primeiro dia de setembro. Há
também um bilhete de trem aí dentro.
Riddle assentiu. Dumbledore se levantou e estendeu mais uma vez a mão. Segurando-a,
Riddle disse:
— Posso falar com as cobras. Descobri isso quando fui ao campo, nos passeios, elas me
acham, sussurram para mim. Isto é normal nos bruxos?
Harry entendeu que ele evitara mencionar o mais estranho dos seus poderes até aquele
momento, com a intenção de impressionar.
— Não é normal — respondeu Dumbledore, após breve hesitação —, mas há ocorrências.
Seu tom era displicente, mas os olhos estudaram curiosos o rosto de Riddle. Homem e
garoto se encararam por um momento. Então, o aperto de mão se desfez. Dumbledore estava à
porta.
— Até mais, Tom. Verei você em Hogwarts.
— Acho que já basta — anunciou o Dumbledore de cabelos brancos ao lado de Harry e,
segundos depois, estavam voando mais uma vez, imponderáveis, pela escuridão, antes de
aterrissarem com firmeza no escritório atual,
— Sente-se — disse Dumbledore, descendo ao lado de Harry.
O garoto obedeceu, sua mente ainda ocupada com o que acabara de presenciar.
— Ele acreditou muito mais depressa que eu, quero dizer, quando o senhor o informou de
que era um bruxo — disse Harry. — Não acreditei era Hagrid, a princípio, quando ele me contou.
— É, Riddle estava absolutamente pronto para acreditar que era, para usar as palavras dele,
"especial".
— O senhor sabia... na época? — perguntou Harry.
— Se eu sabia que acabara de conhecer o bruxo das Trevas mais perigoso de todos os
tempos? Não, eu não fazia idéia de que ele iria crescer e se tornar o que é. Mas fiquei certamente
intrigado com ele. Voltei a Hogwarts com a intenção de vigiá-lo, coisa que, de qualquer modo,
era minha obrigação, uma vez que ele não tinha família nem amigos, mas que, já então, eu sentia
que devia fazer não somente por ele, mas pelos outros.
"Seus poderes, como você mesmo ouviu, eram surpreendentemente bem desenvolvidos para
um bruxo tão jovem e, o que é mais curioso e ameaçador, ele já havia descoberto que conseguia
controlá-los até certo ponto, e começou a usá-los de forma consciente. E como você viu, não
eram as experiências aleatórias típicas de um bruxo jovem. Ele já estava usando a magia contra
outras pessoas, para amedrontar, castigar e dominar. Os episódios do coelho enforcado e do
garoto e da garota atraídos para uma caverna foram muito sugestivos... Sei fazer as pessoas
sentirem dor, se quiser..."
— E ele era ofidioglota — interpôs Harry.
— É verdade, um talento raro e supostamente ligado às Artes das Trevas, embora, como já
sabemos, também haja ofidioglotas entre os bruxos grandes e bons. De fato, sua capacidade para
falar com as cobras me deixou tão preocupado quanto os seus instintos óbvios para a crueldade, o
sigilo e a dominação.
"O tempo está nos enganando outra vez — comentou Dumbledore, indicando o céu escuro
fora das janelas. — Mas, antes de nos despedirmos, quero chamar sua atenção para certos
detalhes da cena que acabamos de presenciar, porque têm muita pertinência para os assuntos que
iremos discutir nas próximas reuniões.
"Primeiro, espero que tenha reparado na reação de Riddle quando mencionei que outra
pessoa tinha o mesmo nome que ele, 'Tom'."
Harry confirmou.
— Ali ele mostrou seu desprezo por qualquer coisa que o ligasse a outra pessoa, qualquer
coisa que o tornasse comum. Já então ele queria ser diferente, isolado, famoso. Ele abandonou o
nome próprio, conforme você sabe, poucos anos depois daquela conversa, e criou a máscara de
"Lord Voldemort" por trás da qual se esconde há tanto tempo.
"Confio que você também tenha notado que Tom Riddle já era muito auto-suficiente, cheio
de segredos e aparentemente sem amigos. Não quis ajuda nem companhia para ir ao beco
Diagonal. Preferiu agir sozinho. O Voldemort adulto é igual. Você ouvirá muitos Comensais da
Morte dizerem que gozam de sua confiança, que somente eles são íntimos e até que o
compreendem. Estão iludidos. Lord Voldemort nunca teve amigos e creio que jamais quis ter um.
"E, por último, e espero que não esteja sonolento demais para prestar atenção ao que vou
dizer, Harry: o jovem Tom Riddle gostava de colecionar troféus. Você viu a caixa de objetos
roubados que tinha escondido no quarto. Foram tirados das vítimas de sua intimidação, suvenires
de momentos de magia particularmente desagradáveis. Não se esqueça dessa mania de
apropriação, porque, mais tarde, ela será particularmente importante.
"E, agora, está realmente na hora de ir dormir."
Harry se levantou. Ao atravessar o aposento, o seu olhar recaiu sobre a mesinha sobre a qual
estivera o anel de Servolo Gaunt na aula anterior, mas o anel não estava mais ali.
— Sim, Harry? — indagou Dumbledore, ao ver Harry parar de repente.
— O anel desapareceu — disse ele olhando à sua volta. — Mas achei que talvez tivesse a
gaita-de-boca ou outro objeto.
Dumbledore abriu um largo sorriso para ele, mirando-o por cima dos oclinhos de meia-lua.
— Muito sagaz, Harry, mas a gaita-de-boca era apenas uma gaita-de-boca.
E, com essa nota enigmática, ele acenou para Harry, que entendeu que o diretor o
dispensara.
CAPÍTULO CATORZE
FELIX FELICIS
HERBOLOGIA FOI A PRIMEIRA aula de Harry na manhã seguinte. No café da manhã não
pudera comentar com Rony e Hermione a aula com Dumbledore, com medo de ser ouvido, mas
foi contando enquanto caminhavam pela horta em direção às estufas. A ventania violenta do fim
de semana finalmente cessara; a estranha névoa tinha voltado, e gastaram mais tempo do que o
habitual para encontrar a estufa certa.
— Uau, que pensamento apavorante, esse garoto Você-Sabe-Quem — disse Rony baixinho,
quando tomaram seus lugares ao redor de um dos tocos nodosos de Arapucosos, que faziam parte
do programa do trimestre, e começaram a calçar as luvas de proteção. — Mas continuo a não
entender por que Dumbledore está lhe mostrando tudo isso. Quero dizer, é muito interessante e
tudo o mais, mas para que serve?
— Não sei — respondeu Harry, encaixando um protetor de gengivas. — Mas ele diz que é
importantíssimo e vai me ajudar a sobreviver.
— Acho fascinante — opinou Hermione séria. — Faz todo sentido conhecer o que for sobre
o Voldemort. De que outro modo você vai descobrir os pontos fracos dele?
— Então, como foi a última festinha de Slughorn? — perguntou Harry com voz pastosa por
causa do protetor de gengivas.
— Ah, foi até divertida — respondeu Hermione, colocando os óculos protetores. — Quero
dizer, ele fala um pouco sobre os ex-alunos famosos, e simplesmente baba em cima do McLaggen
porque ele é bem relacionado, mas nos serviu uma comida realmente gostosa e nos apresentou a
Guga Jones.
— Guga Jones? — admirou-se Rony, arregalando os olhos por baixo dos óculos protetores.
— A Guga Jones, capita das Harpias de Holyhead?
— A própria — confirmou Hermione. — Pessoalmente, achei que ela é um pouco metida,
mas...
— Chega de conversa aí! — disse a professora Sprout, em tom enérgico, aproximando-se
com ar severo. — Vocês estão se atrasando, todos já começaram e Neville já colheu a primeira
vagem!
Eles se viraram para olhar; de fato, lá estava Neville com os lábios ensangüentados e vários
arranhões feios na bochecha, mas apertando um objeto verde, do tamanho aproximado de uma
toranja, que pulsava hostilmente.
— Certo, professora, já estamos começando! — disse Rony, acrescentando baixinho,
quando ela se afastou: — Devíamos ter usado o Abaffiato, Harry.
— Não, não devíamos! — discordou Hermione na mesma hora, parecendo, como sempre,
aborrecidíssima só de pensar no Príncipe Mestiço e nos seus feitiços. — Ora, vamos... é melhor
nos apressarmos...
Ela lançou aos outros dois um olhar preocupado: os três tomaram fôlego e atacaram o toco
nodoso.
A planta imediatamente ganhou vida; galhos longos, urticantes e espinhosos saíram do toco
e chicotearam o ar. Um deles se enganchou nos cabelos de Hermione, e Rony o repeliu com uma
tesoura de poda; Harry conseguiu conter uns dois galhos e prendê-los com um nó; abriu-se um
buraco no meio desses tentáculos; Hermione enfiou o braço corajosamente no buraco, que fechou
como uma armadilha em torno do seu cotovelo; Harry e Rony puxaram e torceram os galhos,
obrigando o buraco a reabrir, e Hermione desvencilhou o braço, trazendo entre os dedos uma
vagem igualzinha à de Neville. Na mesma hora, os galhos urticantes tornaram a se recolher e o
toco nodoso se imobilizou, parecendo um inocente pedaço de madeira seca.
— Sabe, acho que não vou querer essa planta no jardim quando tiver a minha casa —
comentou Rony, empurrando os óculos para a testa e enxugando o suor do rosto.
— Me passa uma tigela — pediu Hermione, segurando a vagem pulsante com o braço
estendido; foi o que Harry fez e ela largou a vagem dentro da vasilha com cara de nojo.
— Não seja supersensível, esprema a vagem, é melhor quando está fresca! — falou a
professora Sprout.
— Como eu ia dizendo — Hermione retomou a conversa interrompida como se não
tivessem sido atacados pelo toco de madeira —, Slughorn vai dar uma festa de Natal, Harry, e
dessa você não vai ter jeito de escapar, porque ele me pediu para verificar as suas noites livres, e
vai marcar a festa numa noite em que você possa ir.
Harry gemeu. Nesse meio tempo, Rony, que estava em pé tentando abrir a vagem na tigela,
segurando-a com as duas mãos e apertando-a com toda a força, disse aborrecido:
— E essa é mais uma festa para os favoritos de Slughorn?
— É só para o Clube do Slugue — respondeu Hermione.
A vagem voou para longe dos dedos de Rony, atingiu o vidro da estufa, ricocheteou e foi
bater na nuca da professora, derrubando seu velho chapéu remendado. Harry foi recuperar a
vagem; quando voltou, Hermione estava dizendo:
— Olhe aqui, não fui eu que inventei o nome "Clube do Slugue"...
— Clube do Slugue — repetiu Rony com um desprezo digno de Malfoy. — É patético. Ora,
eu espero que você se divirta na festa. Por que não experimenta namorar o McLaggen, aí o
Slughorn pode proclamar vocês dois Rei e Rainha do Clu...
— Ele nos deu permissão para levar convidados — disse Hermione, que, por alguma razão,
ficara escarlate escaldante —, e eu ia convidar você, mas, se acha que é bobeira, então nem vou
me incomodar!
Harry de repente desejou que a vagem tivesse voado mais longe, para não precisar ficar
sentado ali com aqueles dois. Sem que percebessem, ele agarrou a tigela com a vagem e tentou
abri-la da maneira mais barulhenta e enérgica que pôde pensar: infelizmente, continuou ouvindo
cada palavra que eles diziam.
— Você ia me convidar? — perguntou Rony, em um tom completamente diferente.
— Ia — respondeu Hermione zangada. — Mas é óbvio que se você prefere que eu namore o
McLaggen...
Houve uma pausa em que Harry continuou a bater na vagem resistente com uma colher de
jardineiro.
— Não, não prefiro — retrucou Rony, em voz muito baixa. Harry errou o alvo e bateu na
tigela, quebrando-a.
— Reparo — disse depressa, empurrando os cacos com a varinha, e a tigela se recompôs. O
barulho, porém, pareceu ter despertado Rony e Hermione para a presença de Harry. A garota
parecia embaraçada, e começou a consultar o seu exemplar de Árvores do mundo que se
alimentam de carne, para descobrir o modo correto de espremer as vagens de Arapucosos. Rony,
por sua vez, parecia envergonhado, mas, ao mesmo tempo, muito satisfeito consigo mesmo.
— Me dá isso, Harry — disse Hermione apressada —, diz aqui que precisamos furá-las com
uma coisa afiada...
Harry passou-lhe a vagem e a tigela, ele e Rony tornaram a baixar os óculos sobre os olhos e
mergulharam mais uma vez no toco.
Não é que estivesse realmente surpreso, pensou Harry, enquanto lutava com um galho
espinhoso decidido a esganá-lo; tinha uma intuição de que aquilo poderia acontecer mais cedo ou
mais tarde. Mas não sabia como se sentia a esse respeito... ele e Cho agora estavam constrangidos
demais para se olhar, quanto mais para se falar; e se Rony e Hermione começassem a sair juntos e
depois acabassem o namoro? Será que a amizade deles sobreviveria? Harry se lembrou das
poucas semanas em que tinham deixado de se falar no terceiro ano; não gostara de ficar tentando
reaproximar os dois. Mas e se não acabassem o namoro? E se acabassem como o Gui e a Fleur, e
ficar em companhia deles se tornasse extremamente constrangedor, e, desse modo, Harry fosse
excluído para sempre?
— Peguei! — berrou Rony, puxando uma segunda vagem do toco na hora em que Hermione
conseguia partir a primeira, fazendo a tigela se encher de tubérculos que se torciam como vermes
verde-claros.
O restante da aula passou sem que se mencionasse a festa de Slughorn. Embora nos dias
seguintes Harry observasse seus dois amigos com mais atenção, Rony e Hermione não pareciam
diferentes, exceto que se tratavam com mais gentileza do que o normal. Harry presumiu que teria
de esperar para ver o que aconteceria sob a influência da cerveja amanteigada na penumbra da
sala de Slughorn, na noite da festa. Até lá, porém, ele tinha preocupações mais urgentes.
Cátia Bell continuava no Hospital St. Mungus sem perspectiva de alta, o que significava que
a promissora equipe da Grifinória que Harry andara treinando com tanto carinho desde setembro
perdera um artilheiro. Ele adiava a substituição da garota na esperança de que ela voltasse, mas a
partida de abertura contra a Sonserina se aproximava, e ele finalmente teve de admitir que a
garota não voltaria em tempo de jogar.
Harry achava que não agüentaria outro teste geral. Com uma sensação de desânimo que não
combinava com o quadribol, ele encurralou Dino Thomas depois de uma aula de Transfiguração.
A maior parte da turma já havia saído, embora vários passarinhos amarelos pipilantes ainda
voassem pela sala, todos criações de Hermione; ninguém mais conseguira conjurar coisa alguma
além de uma pena.
— Você está interessado em jogar como artilheiro?
— Quê...? Claro que estou! — exclamou Dino agitado. Por cima do ombro do garoto, Harry
viu Simas Finnigan enfiar violentamente os livros na mochila, de mau humor. Uma das razões
por que Harry teria preferido não convidar Dino para jogar é que sabia que Simas não ia gostar.
Por outro lado, precisava fazer o que era melhor para a equipe, e Dino tinha voado melhor que
Simas nos testes.
— Bem, então você está na equipe — disse Harry. — Temos um treino hoje à noite, às sete
horas.
— Certo. Valeu, Harry! Caramba, nem posso esperar para contar a Gina.
Ele saiu correndo da sala, deixando Harry e Simas sozinhos, um momento de mal-estar que
não ficou melhor quando um dos passarinhos de Hermione sobrevoou os dois e deixou cair uma
titica na cabeça de Simas.
Simas não foi o único descontente por Harry ter escolhido dois colegas da própria série para
a equipe. Já tendo suportado falatórios muito piores em sua carreira escolar, Harry não se sentiu
particularmente incomodado, mas, ainda assim, crescia a pressão para ganharem a partida contra
a Sonserina dali a alguns dias. Se a Grifmória ganhasse, Harry sabia que a casa inteira esqueceria
as críticas e juraria que sempre acreditara que tinham uma grande equipe. Se perdesse... bem,
Harry concluiu ironicamente, ele já tinha suportado falatórios piores...
Harry não teve razão para se arrepender de sua escolha quando viu Dino voando naquela
noite; ele se entrosou bem com Gina e Demelza. Os batedores, Peakes e Coote, melhoravam a
cada treino. O único problema era Rony.
Harry sempre soubera que o amigo era um jogador irregular, que sofria dos nervos e de falta
de confiança e, infelizmente, a perspectiva iminente do jogo que abria a temporada parecia
acentuar todas as velhas inseguranças. Depois de deixar entrar meia dúzia de gols, a maioria deles
marcados por Gina, sua técnica foi piorando, e por fim ele meteu um soco na boca de Demelza
Robins quando ela se aproximou.
— Foi um acidente, lamento, Demelza, eu realmente lamento! — Rony gritou para a garota
que ziguezagueava de volta ao chão, pingando sangue pelo caminho. — Foi só que eu...
— Entrou em pânico — disse Gina com raiva, aterrissando ao lado de Demelza e
examinando seus lábios carnudos. — Seu retardado, olhe só o que você fez!
— Posso dar um jeito nisso. — Harry pousou ao lado das duas garotas, e apontando a
varinha para a boca de Demelza, disse: — Episkey. E, Gina, não xingue o Rony de retardado,
você não é o capitão da equipe...
— Bem, pelo visto você estava ocupado demais para xingá-lo de retardado, então achei que
alguém devia...
Harry fez força para não rir.
— Voando, todo o mundo, vamos...
De um modo geral, foi um dos piores treinos que fizeram naquele trimestre, embora Harry
não achasse que a franqueza fosse a melhor política quando estavam tão próximos da partida.
— Bom treino, pessoal, vamos arrasar a Sonserina — disse para incentivá-los, e os
artilheiros e batedores saíram do vestiário parecendo razoavelmente felizes consigo mesmos.
— Joguei como uma saca de bosta de dragão — exclamou Rony com a voz sumida quando
Gina saiu e a porta se fechou.
— Não, não jogou — retrucou Harry com firmeza. — Você é o melhor goleiro que testei,
Rony. Seu único problema são os nervos.
Harry sustentou um fluxo incansável de encorajamento a caminho do castelo e, quando
finalmente chegaram ao segundo andar, Rony estava parecendo um pouco mais animado. Mas
quando Harry afastou a tapeçaria para tomar o atalho habitual para a Torre da Grifinória,
depararam com Dino e Gina, enlaçados em um apertado abraço, se beijando vorazmente como se
estivessem colados.
Foi como se uma coisa grande e escamosa tivesse despertado no estômago de Harry, e
enterrado as garras em suas entranhas: um aflu-xo de sangue quente pareceu inundar seu cérebro,
extinguindo todo o pensamento e substituindo-o pelo impulso selvagem de azarar Dino,
transformando-o em geléia. Lutando contra esta súbita loucura, ele ouviu a voz de Rony muito
longe.
— Oi!
Dino e Gina se separaram e viraram para olhar.
— Que foi? — perguntou Gina.
— Não quero encontrar a minha irmã se agarrando em público!
— Estávamos em um corredor deserto até você se intrometer! —retrucou Gina.
Dino pareceu constrangido. Lançou um sorriso evasivo a Harry, que não o retribuiu, porque
o monstro recém-nascido dentro dele urrava, pedindo imediatamente a exclusão de Dino da
equipe.
— Ah... vamos, Gina — convidou Dino —, vamos voltar para a sala comunal...
— Vai indo! — respondeu Gina. — Quero dar uma palavrinha com o meu querido irmão!
Dino foi embora, parecendo não lamentar sua saída de cena.
— Certo — disse Gina, jogando os longos cabelos ruivos para trás e encarando Rony,
aborrecida —, vamos entender de uma vez por todas. Não é da sua conta com quem eu saio e o
que faço, Rony...
— É, sim! — retrucou Rony no mesmo tom zangado. — Você acha que eu quero que as
pessoas digam que minha irmã é uma...
— Uma o quê? — gritou a garota, puxando a varinha. — Uma o quê, exatamente?
— Ele não quis dizer nada, Gina — interpôs Harry automaticamente, embora o monstro
estivesse rugindo sua aprovação às palavras de Rony.
— Ah, quis, sim! — explodiu ela com Harry. — Só porque ele ainda não se agarrou com
ninguém na vida, só porque o melhor beijo que ele já ganhou foi da tia Muriel...
— Cala essa boca! — berrou Rony, o rosto passando de rosado direto para o castanhoavermelhado.
— Não calo, não! — gritou Gina, fora de si. — Vejo você com a Fleuma, esperando que ela
lhe dê um beijo na bochecha toda vez que a vê, é patético! Se você saísse por aí dando uns
amassos, não iria se importar tanto que os outros fizessem isso!
Rony também puxara a varinha; Harry se meteu rapidamente entre os dois.
— Você não sabe o que está dizendo! — rugiu Rony, tentando acertar em Gina pelos lados
de Harry, que agora se interpunha aos dois de braços abertos. — Só porque não faço isso em
público...!
Gina gargalhou debochadamente, tentando tirar Harry do caminho.
— Andou beijando o Pichitinho, foi? Ou tem uma foto da tia Muriel guardada embaixo do
travesseiro?
— Sua...
Um lampejo laranja voou por baixo do braço esquerdo de Harry e por centímetros não
atingiu Gina; Harry empurrou Rony contra a parede.
— Não seja burro...
— Harry deu uns amassos na Cho Chang! — berrou Gina, que parecia à beira das lágrimas
agora. — E, Hermione, no Vítor Krum; só você se comporta como se isso fosse feio, Rony,
porque você tem a experiência de um garotinho de doze anos!
E, dizendo isso, retirou-se enfurecida. Harry soltou depressa Rony, que tinha no rosto uma
expressão homicida. Os dois ficaram parados ali, arquejando, até que Madame Nora, a gata de
Filch, entrou no corredor, rompendo a tensão.
— Vamos — disse Harry, ao ouvirem os passos arrastados de Filch. Eles subiram,
apressados, as escadas e seguiram pelo corredor do sétimo andar.
— Oi, sai da frente! — falou Rony com rispidez para uma garotinha que se assustou e
deixou cair no chão um vidro de ovas de sapo.
Harry mal escutou o barulho do vidro partindo; sentia-se desorientado, tonto; ser atingido
por um raio deveria ser parecido. Só porque ela é irmã do Rony, pensou. Você não gostou de ver
Gina beijando o Dino porque ela é irmã do Rony...
Involuntariamente, porém, sua mente foi invadida pela imagem daquele mesmo corredor
deserto, e ele beijando Gina em vez de... o monstro em seu peito ronronou... então viu Rony
rasgando a tapeçaria e puxando a varinha contra ele, gritando coisas como "traiu a confiança"...
"acreditei que era meu amigo"...
— Você acha que Hermione deu uns amassos no Krum? — perguntou Rony, subitamente,
ao se aproximarem da Mulher Gorda. Harry teve um sobressalto de remorso e arrancou sua
imaginação do corredor onde Rony não entrara, onde ele e Gina estavam sozinhos...
— Quê... — exclamou confuso. — Ah... ãh...
A resposta franca seria "acho", mas não quis dá-la. Rony, contudo, pareceu ter entendido o
pior, pela expressão no rosto de Harry.
— Sopa da coroação — disse mal-humorado à Mulher Gorda, e eles passaram pelo retrato e
entraram na sala comunal.
Nenhum dos dois tornou a mencionar Gina nem Hermione; de fato, quase não se falaram
aquela noite e foram dormir em silêncio, cada um absorto nos próprios pensamentos.
Harry ficou acordado durante muito tempo, contemplando o dossel da cama e tentando se
convencer de que seus sentimentos por Gina eram inteiramente fraternais. Tinham vivido, não
tinham, como irmão e irmã o verão todo, jogando quadribol, implicando com Rony e rindo de
Gui e Fleuma. Conhecia Gina havia anos... era natural que quisesse protegê-la... natural que
prestasse atenção nela... quisesse despedaçar Dino por tê-la beijado... não... teria de controlar
particularmente este sentimento fraternal...
Rony soltou um ronco gutural.
Ela é irmã de Rony, disse a si mesmo com firmeza. Irmã de Rony. É fruto proibido... Ele
não arriscaria sua amizade com Rony por nada. Deu uns socos no travesseiro para deixá-lo mais
confortável e esperou o sono chegar, fazendo o possível para não deixar seus pensamentos
vagarem nem próximo de Gina.
Harry acordou na manhã seguinte se sentindo meio tonto e confuso em conseqüência de
uma série de sonhos em que Rony o perseguira com um bastão de quadribol. Mas, por volta do
meio-dia, ele teria trocado de boa vontade o Rony do sonho pelo amigo, que não somente estava
dando um gelo em Gina e Dino, como ainda estava tratando Hermione, magoada e perplexa, com
uma indiferença mortal e desdenhosa. E mais, Rony parecia ter se tornado, da noite para o dia,
sensível e pronto para agredir como um explosivim. Harry passou o dia tentando manter a paz
entre Rony e Hermione sem sucesso: por fim, a garota foi dormir amuada, e Rony se retirou para
o dormitório dos garotos depois de xingar enraivecido uns calouros apavorados, só porque
olharam para ele.
Para desânimo de Harry, a nova agressividade de Rony não abrandou nos dias seguintes. E,
pior, coincidiu com uma queda no seu desempenho como goleiro, o que o deixou ainda mais
agressivo, fazendo com que, no último treino de quadribol antes do jogo de sábado, ele não
conseguisse defender um único dos gols que os artilheiros lançaram contra ele, e berrasse tanto
com todos que reduziu Demelza Robins às lágrimas.
— Cala a boca e deixa a garota em paz! — gritou Peakes, que tinha dois terços da altura de
Rony, embora fosse incontestável que segurava um pesado bastão.
— CHEGA! — berrou Harry, que vira o olhar feio de Gina para Rony e, lembrando-se de
sua reputação de talentosa azaradora de bichos-papões, voou até lá para intervir, antes que as
coisas fugissem ao seu controle. — Peakes, vai encaixotar os balaços. Demelza, não fique
nervosa, você jogou realmente bem hoje. Rony... — Ele esperou os demais jogadores se
afastarem o suficiente antes de continuar: —você é o meu melhor amigo, mas continue a tratar os
outros assim e vou expulsá-lo da equipe.
Harry realmente pensou, por um instante, que Rony fosse bater nele, mas aconteceu coisa
muito pior: Rony pareceu murchar em cima da vassoura; toda a agressividade abandonou-o, e ele
disse:
— Estou fora. Sou patético.
— Você não é patético nem vai desistir de nada! — contestou Harry ferozmente, agarrando
Rony pela frente das vestes. — Você é capaz de defender qualquer coisa quando está em forma,
você tem é um problema mental!
— Você está me chamando de maluco?
— É, talvez esteja!
Eles se enfrentaram por um momento, então Rony balançou a cabeça, deprimido.
— Sei que você não tem tempo para arranjar outro goleiro, por isso vou jogar amanhã, mas
se perdermos, e vamos perder, vou me retirar da equipe.
Nada que Harry dissesse faria a menor diferença. Ele tentou reforçar a confiança do amigo
durante todo o jantar, mas Rony estava ocupado demais fazendo desfeitas a Hermione para notar.
A noite, na sala comunal, Harry insistiu, mas sua afirmação de que a equipe inteira ficaria
arrasada se Rony saísse foi prejudicada pelo fato de que os demais jogadores ficaram agrupados a
um canto distante, visivelmente cochichando sobre Rony e lhe lançando olhares irritados. Finalmente,
Harry tentou se enfurecer mais uma vez na esperança de instigar Rony a adotar uma
atitude de desafio que redundasse na defesa de gols, mas sua estratégia pareceu não dar melhor
resultado do que a de encorajamento; Rony foi se deitar mais abatido e desesperançado que
nunca.
Deitado no escuro, Harry ficou acordado um longo tempo. Não queria perder a partida que
se avizinhava; não somente era a sua primeira como capitão, como também ele estava decidido a
vencer
Draco Malfoy no quadribol, ainda que não conseguisse comprovar suas desconfianças a
respeito do colega. Contudo, se Rony jogasse como nos últimos treinos, as chances de vencerem
seriam mínimas.
Se ao menos ele pudesse fazer alguma coisa para Rony se reanimar... para fazê-lo jogar em
sua melhor forma... alguma coisa que garantisse a Rony um dia realmente bom...
E a resposta ocorreu a Harry em um súbito e glorioso acesso de inspiração.
Na manhã seguinte, o café da manhã foi aquela excitação de sempre; os alunos da Sonserina
assoviavam e vaiavam alto cada jogador da Grifinória que entrava no Salão Principal. Harry
olhou para o teto e viu um céu claro e azulado: um bom sinal.
A mesa da Grifinória, uma mancha compacta vermelha e ouro, aplaudiu quando Harry e
Rony se aproximaram. Harry sorriu e acenou; Rony fez uma espécie de careta e agradeceu com a
cabeça.
— Anime-se, Rony! — gritou Lilá. — Sei que você vai ser genial! Rony fingiu não ouvir.
— Chá? — ofereceu-lhe Harry. — Café? Suco de abóbora?
— Qualquer coisa — respondeu Rony, infeliz, mordendo a torrada de mau humor.
Alguns minutos depois, Hermione, que, de tão cansada com a antipatia de Rony nos últimos
dias, nem descera para tomar café com eles, parou a caminho da mesa.
— Como é que vocês dois estão se sentindo? — perguntou, hesitante, com os olhos na nuca
de Rony.
— Ótimos — respondeu Harry, que estava se concentrando em passar para Rony um copo
de suco de abóbora. — Pronto, Rony. Beba.
Rony tinha acabado de levar o copo à boca quando Hermione falou com rispidez.
— Não beba isso, Rony! Os dois olharam para ela.
— Por que não? — perguntou Rony.
Hermione agora encarava Harry como se não conseguisse acreditar no que via.
— Você acabou de pôr alguma coisa nesse suco.
— Que foi que você disse?
— Você me ouviu. Eu vi. Você acabou de virar alguma coisa no copo de Rony. O frasco
ainda está em suas mãos!
— Não sei do que você está falando — disse Harry, guardando depressa o frasquinho no
bolso.
— Rony, estou avisando-o, não beba isso! — repetiu Hermione, alarmada, mas Rony
apanhou o copo, virou-o de um gole e disse:
— Pare de ficar mandando em mim, Hermione.
A garota se escandalizou. Abaixando-se de modo que somente Harry a ouvisse, sibilou:
— Você poderia ser expulso por isso, eu nunca pensei que fosse capaz, Harry!
— Veja só quem está falando — sussurrou ele em resposta. — Tem confundido alguém
recentemente?
Hermione afastou-se bruscamente para a outra ponta da mesa. Harry observou-a ir sem
lamentar. Hermione jamais entendera realmente que quadribol era um assunto sério. Virou-se,
então, para Rony, que estalava os lábios.
— Quase na hora — comentou, descontraído.
Na descida para o estádio, a grama congelada rangia sob seus pés.
— Que sorte o tempo estar bom, eh? — falou Harry.
— É — concordou Rony, que parecia pálido e nauseado.
Gina e Demelza já tinham vestido os uniformes de quadribol e aguardavam no vestiário.
— As condições parecem ideais — comentou Gina, ignorando o irmão. — E sabem da
última? Aquele artilheiro da Sonserina, Vaisey, levou um balaço na cabeça ontem durante o
treino, e está machucado demais para jogar! E melhor ainda: Malfoy também não vai jogar, está
doente!
— Quê! — exclamou Harry, virando-se para olhar para Gina. — Está doente? Que é que ele
tem?
— Não tenho a menor idéia, mas é ótimo para nós — respondeu ela animada. — Vão jogar
com o Harper; ele está no mesmo ano que eu, e é um idiota.
Harry retribuiu com um sorriso distante, mas, ao vestir o uniforme vermelho, seus
pensamentos estavam longe do quadribol. Uma vez Malfoy alegara que não podia jogar por causa
de um ferimento, mas naquela ocasião conseguira que a partida fosse remarcada para uma data
mais conveniente à equipe da Sonserina. Por que agora estava deixando um substituto jogar?
Estaria mesmo doente ou era fingimento?
— Suspeito, não é? — comentou em voz baixa para Rony. — Malfoy não jogar?
— Chamo isso de sorte — respondeu Rony, parecendo ligeiramente mais animado. — E
Vaisey está fora também, é o melhor artilheiro da equipe, eu não queria... ei! — exclamou de
repente, parando de calçar as luvas de goleiro e olhando espantado para Harry.
— Que foi?
— Eu... você... — Rony baixou a voz; ele parecia sentir ao mesmo tempo medo e excitação.
— Minha bebida... meu suco de abóbora... você não...
Harry ergueu as sobrancelhas, mas disse apenas:
— Vamos começar em cinco minutos, é melhor calçar suas botas. Eles entraram em campo
sob gritos e vaias. Uma parte do estádio era totalmente vermelho e ouro; a outra, um mar verde e
prata. Muitos alunos da Corvinal e da Lufa-Lufa também tinham tomado partido; entre berros e
palmas, Harry podia distinguir o rugido do famoso chapéu-leão de Luna Lovegood.
Ele se dirigiu a Madame Hooch, a arbitra, que estava em posição para soltar as bolas do
caixote.
— Capitães, apertem as mãos — disse ela, e Harry sentiu a mão esmagada pelo novo
capitão da Sonserina, Urquhart. — Montem suas vassouras. Quando eu apitar... três... dois... um...
Soou o apito, Harry e os outros deram impulso do chão congelado, e partiram.
Harry sobrevoou o perímetro do campo procurando o pomo, de olho em Harper, que
ziguezagueava muito abaixo dele. E então ouviu uma voz de locutor que destoava da que estavam
habituados.
— Ora, começou a partida e acho que todos estamos surpresos com a equipe que Potter
reuniu este ano. Muitos acharam que, pelo desempenho desigual do goleiro Rony Weasley no ano
passado, ele não retornaria à equipe, mas é claro que uma forte amizade pessoal com o capitão
ajuda...
Essas palavras foram recebidas com vaias e aplausos do lado do estádio ocupado pela
Sonserina. Harry se esticou na vassoura para ver o pódio de transmissão. Um rapaz alto,
magricela e louro, de nariz arrebitado, estava em pé ali, falando para o megafone mágico que no
passado fora de Lino Jordan; Harry reconheceu Zacarias Smith, um jogador da Lufa-Lufa por
quem sentia grande antipatia.
— Ah, e aí vem a Sonserina em sua primeira tentativa de marcar um gol, é Urquhart que
mergulha em direção ao campo e...
O estômago de Harry embrulhou.
— ... Weasley defende bem, todo o mundo tem o seu dia de sorte, suponho...
— Isso mesmo, Smith, hoje é o dia dele — resmungou Harry com um sorriso, mergulhando
entre os artilheiros com os olhos atentos à procura de um sinal do ilusório pomo.
Decorrida meia hora de jogo, a Grifmória estava ganhando por sessenta pontos a zero, Rony
tendo feito defesas verdadeiramente espetaculares, algumas com as pontas das luvas, e Gina
tendo marcado quatro dos seis gols da equipe. Isto realmente fez Zacarias parar de perguntar em
voz alta se os dois Weasley estavam ali porque Harry gostava deles, e passar a implicar com
Peakes e Coote.
— É óbvio que Coote não tem realmente o físico de um batedor —comentou Zacarias com
arrogância —, em geral eles têm mais força muscular...
— Manda um balaço nele! — gritou Harry quando Coote passou disparado, mas o garoto,
dando um largo sorriso, preferiu mirar o balaço seguinte em Harper, que ia cruzando com o
capitão. Harry ficou satisfeito ao ouvir o baque surdo indicando que o balaço atingira o alvo.
Parecia que a Grifmória não podia errar. Repetidamente a equipe goleava, e repetidamente,
no extremo oposto do campo, Rony defendia com visível facilidade. Estava até sorrindo agora, e
quando a multidão saudou uma defesa particularmente boa com um coro crescente daquele velho
refrão Weasley é o nosso rei, ele fingiu regê-los do alto.
— Ele está se achando muito especial hoje, não é? — disse uma voz debochada a Harry, que
quase foi derrubado da vassoura quando Harper se chocou violenta e intencionalmente com ele.
— O seu amigo traidor do sangue...
Madame Hooch estava de costas, e, embora a torcida da Grifinória nas arquibancadas
gritasse enraivecida, quando ela finalmente se virou, Harper já tinha se afastado velozmente. Com
o ombro doendo, Harry saiu no encalço dele, decidido a revidar...
— E acho que Harper da Sonserina avistou o pomo! — anunciou Zacarias Smith pelo
megafone. — Sim, senhores, ele decididamente viu alguma coisa que Potter não viu!
Smith era realmente um idiota, pensou Harry, será que não tinha reparado que os dois
tinham colidido? Mas, no momento seguinte, sentiu seu estômago desabar das nuvens — Smith
estava certo e ele errado; Harper não disparara para o alto à toa; vira o que Harry não vira: o
pomo estava voando em alta velocidade acima deles, brilhando intensamente contra o claro céu
azul.
Harry acelerou; o vento assobiava em seus ouvidos abafando o som do comentário de Smith
e o da multidão, mas Harper continuava à frente, e a Grifinória tinha apenas cem pontos de
vantagem; se Harper chegasse ao pomo primeiro, Grifinória perderia... e agora Harper estava bem
perto, com a mão estendida...
— Oi, Harper! — berrou Harry desesperado. — Quanto Malfoy lhe pagou para jogar no
lugar dele?
Não sabia o que o fizera dizer isso, mas Harper deu uma parada; se atrapalhou com o pomo,
deixou-o escorregar entre os dedos e, na velocidade em que estava, ultrapassou-o: Harry abriu o
braço em direção à bolinha esvoaçante e agarrou-a.
— PEGUEI! — berrou Harry. Fazendo a volta, mergulhou em direção ao solo, erguendo o
pomo no alto. Quando a multidão percebeu o que acontecera, subiu um grito das arquibancadas
que quase abafou o som do apito sinalizando o fim da partida.
— Gina, aonde você está indo? — berrou Harry, que se viu preso, ainda no ar, por um
abraço coletivo dos jogadores da equipe, mas Gina passou veloz por eles, indo colidir, com um
baita estrondo, contra o pódio do locutor. Entre gritos e risos da multidão, a equipe da Grifinória
aterrissou ao lado dos destroços de madeira sob os quais Zacarias se mexia debilmente; Harry
ouviu Gina dizer descaradamente à furiosa professora McGonagall:
— Me esqueci de frear, professora, desculpe.
Rindo, Harry se desvencilhou da equipe e abraçou Gina, mas muito rápido soltou-a. Não
olhou mais para ela, em vez disso deu tapinhas nas costas de um Rony aos gritos; esquecendo as
desavenças, a equipe da Grifinória deixou o campo de braços dados, dando socos no ar e
acenando para a torcida. A atmosfera no vestiário era de intensa alegria.
— Comemoração na sala comunal, o Simas falou! — berrou Dino exuberante. — Vamos,
Gina, Demelza!
Rony e Harry foram os últimos no vestiário. Quando estavam prestes a sair, Hermione
entrou. Torcia o lenço da Grifinória nas mãos e parecia transtornada, mas decidida.
— Quero dar uma palavrinha com você, Harry. — Ela tomou fôlego. — Você não devia ter
feito isso. Você ouviu o que Slughorn disse, é ilegal.
— Que é que você vai fazer, nos denunciar? — quis saber Rony.
— Do que é que vocês estão falando? — indagou Harry, virando-se de costas para pendurar
as vestes para que os dois não o vissem rindo.
— Você sabe perfeitamente do que estamos falando! — esganiçou-se Hermione. — Você
incrementou o suco de Rony no café da manhã com a poção da felicidade! Felix Felicis!
— Não, não fiz isso — respondeu Harry, desvirando-se para encarar os dois.
— Fez, sim, Harry, e foi por isso que tudo deu certo, jogadores da Sonserina faltaram e
Rony defendeu todas as bolas!
— Não pus nada no suco! — retrucou Harry, agora rindo abertamente. Ele meteu a mão no
bolso do paletó e tirou o frasquinho que Hermione vira em sua mão naquela manhã. Estava cheio
de uma poção dourada, e a rolha continuava lacrada com cera. — Eu queria que Rony pensasse
que eu tinha posto, por isso fingi quando percebi que você estava olhando. — E, dirigindo-se a
Rony: — Você defendeu tudo porque se sentiu sortudo. Você fez tudo sozinho. — Harry tornou a
guardar a poção no bolso.
— Não havia realmente nada no meu suco de abóbora? — perguntou ele, pasmo. — Mas o
tempo está bom,., e Vaisey não pôde jogar... Sinceramente você não me deu a poção da sorte?
Harry sacudiu a cabeça. Rony olhou-o boquiaberto por um momento, então ele se voltou
contra Hermione, imitando sua voz.
— Você pôs Felix Felicis no suco do Rony hoje de manhã, foi por isso que ele defendeu
tudo! Está vendo! Consigo pegar bolas sem ajuda, Hermione!
— Eu nunca disse que você não conseguia... Rony, você também achou que tinha bebido!
Mas Rony já tinha passado por ela decidido e saía pela porta com a vassoura no ombro.
— Ah — exclamou Harry no repentino silêncio; não imaginara que o seu plano saísse às
avessas —, vamos... vamos andando para a festa, então?
— Vai você! — disse Hermione, tentando conter as lágrimas. — Estou farta do Rony, no
momento, não sei o que ele pensa que eu fiz...
E ela também saiu bruscamente do vestiário.
Harry foi subindo lentamente em direção ao castelo em meio à multidão, muita gente lhe
deu os parabéns, mas ele teve uma grande sensação de desapontamento; tivera a certeza de que,
se Rony ganhasse a partida, ele e Hermione voltariam imediatamente a ser amigos. Não via como
poderia explicar a Hermione que a ofensa feita a Rony tinha sido beijar o Vítor Krum,
considerando que isto acontecera havia tanto tempo.
Harry não viu Hermione na comemoração da Grifinória, que estava no auge quando ele
chegou. Novos gritos e palmas saudaram sua chegada, e logo ele foi cercado por uma multidão
que o cumprimentava. Na tentativa de se desvencilhar dos irmãos Creevey, que queriam uma
análise da partida, lance a lance, e o numeroso grupo de garotas que o rodeava, pestanejando e
rindo até dos seus comentários menos engraçados, transcorreu algum tempo antes que ele pudesse
procurar Rony. Por fim, Harry se livrou de Romilda Vane, que insinuava abertamente que
gostaria de ir com ele à festa de Natal de Slughorn. Quando ia se esquivando em direção à mesa
de bebidas, deparou com Gina, com Amoldo, o Mini-Pufe encaixado no ombro, e Bichento,
raiando esperançoso aos seus calcanhares.
— Procurando Rony? — perguntou ela, rindo bobamente. — Está ali adiante, o hipócrita
nojento.
Harry olhou para o lado que ela apontava. Lá, à vista de toda a sala, estava Rony enroscado
de tal forma em Lilá Brown que era difícil dizer que mãos eram de quem.
— Parece que está devorando a cara dela, não é? — disse Gina sem emoção. — Mas
presumo que precise aprimorar a técnica. Boa partida, Harry.
Ela lhe deu uma palmadinha no braço; Harry sentiu um abalo no estômago, mas em seguida
ela se afastou para se servir de mais cerveja amanteigada. Bichento saiu atrás, seus olhos
amarelos fixos em Amoldo.
Harry deu as costas para Rony, que aparentemente não ia voltar à superfície tão cedo, bem
em tempo de ver o buraco do retrato se fechando. Desanimado, ele julgou ter visto uma juba de
cabelos castanhos desaparecendo por ali.
Correu, então, desviando-se mais uma vez de Romilda Vane, e empurrou o retrato da
Mulher Gorda. O corredor parecia deserto.
— Hermione?
Harry a encontrou na primeira sala de aula destrancada que experimentou abrir. Estava
sentada em cima da escrivaninha do professor, sozinha, exceto por um pequeno círculo de
passarinhos amarelos que piavam em torno de sua cabeça e que visivelmente ela acabara de
conjurar. Harry não pôde deixar de sentir admiração por sua capacidade de realizar feitiços numa
hora daquela.
— Oh, olá, Harry — disse ela com a voz dura. — Eu estava praticando.
— Estou vendo... são... ãh... realmente bons... — disse Harry.
Não tinha idéia do que dizer à amiga. Perguntava-se se haveria uma chance de Hermione
não ter visto Rony, de ter simplesmente saído da sala porque a comemoração estava muito
barulhenta, quando ela comentou, em um tom anormalmente estridente:
— Rony parece estar se divertindo na comemoração. —Ah... está?
— Não finja que não viu. Ele não estava bem se escondendo, estava... A porta às costas dos
dois se escancarou. Para horror de Harry,
Rony entrou, rindo e puxando Lilá pela mão.
— Ah — exclamou ele, parando imediatamente ao ver Harry e Hermione.
— Opa! — disse Lilá, recuando com um acesso de risinhos. A porta tornou a se fechar.
Houve um silêncio horrível, que se avolumou como um vagalhão. Hermione encarou Rony,
que se recusou a retribuir o olhar, mas disse com uma estranha mistura de bravata e
constrangimento:
— Oi, Harry! Estava me perguntando aonde você teria ido!
Hermione desceu da escrivaninha. O bando de passarinhos dourados continuou a pipilar
rodeando sua cabeça, fazendo-a parecer uma estranha maquete do sistema solar com penas.
— Você não devia deixar a Lilá esperando lá fora — disse baixinho. — Ela vai se perguntar
aonde você terá ido.
Ela foi andando muito devagar e ereta em direção à porta. Harry olhou para Rony, que
parecia aliviado por não ter acontecido nada pior.
— Oppugno! — veio um grito da porta.
Harry se virou e viu Hermione apontando a varinha para Rony, uma expressão alucinada no
rosto: o pequeno bando de passarinhos voou como uma saraivada de grossas balas douradas
contra Rony, que ganiu e cobriu o rosto com as mãos, mas os pássaros atacaram, bicando e
arranhando cada pedaço do corpo dele que puderam alcançar.
— Melivradisso! — berrou ele, mas, com um último olhar de fúria vingativa, Hermione
escancarou a porta e desapareceu. Harry pensou ter ouvido um soluço antes de a porta bater.
CAPITULO QUINZE
O VOTO PERPÉTUO
MAIS UMA VEZ, AS ESPIRAIS DE NEVE batiam nas janelas geladas; o Natal estava se
aproximando. Hagrid, sozinho, já tinha feito a entrega das habituais doze árvores de Natal para o
Salão Principal; guirlandas de azevinho e franjas metálicas enfeitavam os balaústres das escadas;
velas perpétuas brilhavam por dentro dos elmos das armaduras e a intervalos grandes ramos de
visgo pendiam do teto, nos corredores. Grupos de garotas convergiam para baixo dos ramos de
visgo quando Harry passava, o que causava engarrafamento nas passagens; mas, por sorte, seus
freqüentes passeios noturnos tinham lhe dado um conhecimento excepcional dos atalhos secretos
do castelo, e faziam com que pudesse, sem muita dificuldade, navegar entre as aulas por rotas em
que não havia visgos.
Rony, que em tempos passados poderia ter achado a necessidade desses desvios uma razão
para ciúmes em vez de hilaridade, simplesmente rolava de rir com tudo isso. Harry, embora
preferisse esse novo amigo risonho e brincalhão ao Rony cismado e agressivo que vinha aturando
nas últimas semanas, pagava um alto preço por tal melhora. Primeiro, Harry tinha de tolerar a
presença assídua de Lilá Brown, que parecia achar cada momento em que não estivesse beijando
Rony um momento perdido; e segundo, Harry se encontrava mais uma vez na posição de melhor
amigo de duas pessoas com pouca probabilidade de voltarem a se falar.
Rony, cujos braços e mãos ainda exibiam os arranhões e cortes do ataque dos passarinhos de
Hermione, adotava um tom defensivo e rancoroso.
— Ela não pode reclamar — disse a Harry. — Andou aos beijos com o Krum. Agora achou
alguém que quer andar aos beijos comigo. Bem, estamos em um país livre. Não estou fazendo
nada de mais.
Harry não respondeu, fingiu estar concentrado no livro que deveriam ler para a aula de
Feitiços na manhã seguinte (Quintessência: uma busca). Decidido como estava a continuar amigo
de ambos, Rony e Hermione, ele passava grande parte do tempo muito calado.
— Nunca prometi nada a Hermione — resmungou Rony. — Quero dizer, tudo bem, eu ia à
festa de Natal do Slughorn com ela, mas ela nunca disse... era só como amigo... não tenho
compromisso...
Harry virou uma página do Quintessência, consciente de que o amigo o observava. A voz de
Rony foi se tornando quase inaudível, abafada pelos fortes estalos do fogo na lareira, embora
Harry pensasse ter ouvido as palavras "Krum" e "não pode reclamar" mais de uma vez.
O horário de Hermione era tão apertado que Harry só conseguia falar direito com a amiga à
noite, quando Rony ficava tão grudado em Lilá que nem notava o que Harry estava fazendo.
Hermione se recusava a sentar na sala comunal enquanto Rony ali estivesse, então Harry, em
geral, ia ao seu encontro na biblioteca, o que significava que conversavam aos sussurros.
— Ele tem toda liberdade de beijar quem quiser — disse Hermione enquanto a bibliotecária,
Madame Pince, rondava pelas estantes às suas costas. — Não estou nem aí.
Ergueu a pena e pôs um pingo no "i" com tanta ferocidade que perfurou o pergaminho.
Harry ficou calado, e refletiu que logo sua voz desapareceria por falta de uso. Curvou-se um
pouco mais para o Estudos avançados no preparo de poções e continuou a tomar notas sobre os
Elixires Perenes, parando de vez em quando para decifrar os adendos tão úteis do Príncipe ao
texto de Libatius Borage.
— E por falar nisso — lembrou Hermione passado algum tempo —, você precisa se cuidar.
— Pela última vez — respondeu Harry, num sussurro ligeiramente rouco depois de quarenta
e cinco minutos de silêncio —, não vou devolver este livro, aprendi mais com o Príncipe Mestiço
do que Snape e Slughorn me ensinaram em...
— Não estou falando desse idiota que se intitula Príncipe — replicou Hermione, lançando
um olhar irritado ao livro como se ele lhe tivesse feito uma grosseria. — Estou falando de hoje
mais cedo. Entrei no banheiro pouco antes de vir para cá e tinha umas doze garotas lá, inclusive
aquela Romilda Vane, discutindo meios de dar a você uma poção de amor. Todas têm esperança
de fazer você levá-las à festa do Slughorn, e todas parecem ter comprado as poções de amor de
Fred e Jorge, que, lamento dizer, provavelmente funcionam...
— Por que você não as confiscou? — quis saber Harry. Parecia extraordinário que a mania
de Hermione de defender o regulamento pudesse tê-la abandonado nesse momento crítico.
— Elas não tinham levado as poções para o banheiro — respondeu com desdém. —
Estavam apenas discutindo táticas. E, como duvido que mesmo o Príncipe Mestiço — ela lançou
outro olhar irritado ao livro — pudesse inventar um antídoto que neutralizasse doze poções diferentes,
se eu fosse você convidaria alguém para acompanhá-lo: isto faria as outras pararem de
pensar que têm chance. É amanhã à noite, e as garotas estão ficando desesperadas.
— Não tem ninguém que eu queira convidar — murmurou Harry, que ainda tentava não
pensar em Gina mais do que era inevitável, ainda que a garota não parasse de aparecer em seus
sonhos em tais situações que ele agradecia aos céus que Rony não fosse apto em Legilimência.
— Bem, tenha cuidado com o que beber, porque, pelo jeito, a Romilda Vane não estava
brincando — disse Hermione séria.
Ela puxou para cima da mesa um longo pergaminho em que estava fazendo o trabalho de
Aritmancia, e continuou a arranhá-lo com a pena. Harry a observava com o pensamento muito
distante.
— Calma aí um instante — disse ele lentamente. — Pensei que Filch tivesse proibido
artigos comprados na Gemialidades Weasley.
— E algum dia alguém ligou para o que Filch proíbe? — perguntou Hermione, ainda
concentrada no seu trabalho.
— Mas pensei que todas as corujas estivessem sendo revistadas. Como é que essas garotas
conseguem trazer poções de amor para a escola?
— Fred e Jorge despacham as poções camufladas de perfume ou xarope para tosse. Faz
parte do seu Serviço de Encomenda-Coruja.
— Você está por dentro, hein?
Hermione lhe lançou o mesmo olhar irritado que acabara de dar ao livro de Estudos
avançados no preparo de poções.
— Estava tudo impresso no verso das garrafas que eles mostraram a Gina e a mim no verão
— informou ela com frieza. — Não ando por aí pondo poções nas bebidas das pessoas... nem
fingindo que ponho, o que é igualmente sério...
— É, bem, deixa isso para lá — disse Harry depressa. — A questão é que estão enganando o
Filch. Essas garotas estão trazendo artigos para a escola camuflados de outra coisa! Então por que
Malfoy não poderia ter trazido o colar...?
— Ah, Harry... outra vez...?
— Responde por que não, vai?
— Olha — suspirou Hermione —, sensores de segredos detectam feitiços, maldições e
azarações lançados para ocultar, não é? São usados para descobrir magia das Trevas e objetos das
Trevas. Teriam apanhado em segundos uma maldição poderosa como a daquele colar. Mas não
registrariam uma coisa que foi posta em um frasco diferente... e, de qualquer modo, as poções de
amor não são das Trevas nem perigosas...
— Para você é fácil falar — murmurou Harry, pensando em Romilda Vane.
— ... então Filch é quem teria de perceber se era ou não era um xarope para tosse, e ele não
é um bruxo muito competente, duvido que saiba diferenciar uma poção de...
Hermione parou de repente; Harry pressentiu também. Alguém se aproximara entre as
estantes escuras. Eles aguardaram e, um momento depois, o rosto rapineiro de Madame Pince
surgiu no fim da estante, as faces encovadas, a pele de pergaminho e o longo nariz curvo iluminados
desfavoravelmente pelo lampião que ela segurava.
— A biblioteca acabou de fechar — anunciou ela. — Cuide de devolver o que apanhou
emprestado à prateleira corret... que é que você andou fazendo com esse livro, seu garoto
depravado?
— Não é da biblioteca, é meu! — apressou-se a explicar Harry, arrebatando o Estudos
avançados no preparo de poções quando ela estendeu para o livro a mão que lembrava uma garra.
— Espoliado! — sibilou Madame Pince. — Profanado! Conspurcado!
— É só um livro em que alguém escreveu! — disse Harry, arrancando-o das mãos dela.
A bruxa parecia que ia ter uma apoplexia; Hermione, que recolhera apressadamente suas
coisas, agarrou Harry pelo braço e arrastou-o à força para longe dali.
— Ela expulsa você da biblioteca, se não se cuidar. Por que foi trazer esse livro idiota?
— Não é minha culpa que ela seja doida de pedra, Hermione. Ou será que ela ouviu você
falando mal do Filch? Sempre achei que houvesse alguma coisa entre os dois...
— Oh, ah, ah...
Aproveitando que podiam falar normalmente outra vez, eles voltaram à sala comunal pelos
corredores desertos e iluminados por lampiões, discutindo se Filch e Madame Pince estariam
secretamente apaixonados.
— Bolas Festivas — Harry disse à Mulher Gorda a nova senha natalina.
— Igualmente — respondeu a Mulher Gorda com uma risadinha marota e girando para
admitir os dois.
— Oi, Harry! — exclamou Romilda Vane, no instante em que ele entrou pelo buraco do
retrato. — Quer tomar uma água de gilly?
Hermione lançou ao amigo um olhar "Que-foi-que-eu-disse?", por cima do ombro.
— Não, obrigado — respondeu Harry ligeiro. — Não gosto muito.
— Bem, então aceite uns bombons — disse a garota, empurrando em suas mãos caldeirões
de chocolate recheados com uísque de fogo. — Minha avó mandou para mim, mas não gosto.
— Ah, tá, muito obrigado — agradeceu Harry, que não conseguia pensar em nada mais para
dizer. — Ah... vou um instante ali com...
Deixando a frase morrer, ele correu atrás de Hermione.
— Eu falei — resumiu ela. — Quanto mais cedo convidar alguém, mais cedo elas vão
deixar você em paz e então vai poder...
Mas seu rosto repentinamente vidrou; acabara de ver Rony e Lilá, entrelaçados na mesma
poltrona.
— Bem, boa-noite, Harry — disse, embora fossem apenas sete horas da noite, e seguiu para
o dormitório das garotas sem dizer mais nada.
Harry foi se deitar, consolando-se com o pensamento de que faltava agüentar apenas um dia
de aulas e a festa de Slughorn, depois do que ele e Rony poderiam viajar para A Toca. Parecia
agora impossível que Rony e Hermione fizessem as pazes antes do início das férias, mas, quem
sabe, o intervalo desse para eles se acalmarem, refletirem sobre sua maneira de agir...
Mas sua esperança não era grande, e se tornou ainda menor depois de aturar uma aula de
Transfiguração com os dois, no dia seguinte. A turma tinha acabado de entrar no tópico
extremamente difícil da transfiguração humana; trabalhando diante de espelhos, deviam mudar a
cor das próprias sobrancelhas. Hermione riu sem piedade dos insucessos iniciais de Rony, durante
os quais ele conseguiu se presentear com um espetacular bigode em forma de guidão; Rony
retaliou, fazendo uma imitação cruel, mas exata, de Hermione levantando e sentando sem parar
cada vez que a professora McGonagall fazia uma pergunta, coisa que Lilá e Parvati acharam
engraçadíssima e que, mais uma vez, levou Hermione quase às lágrimas. Ela saiu correndo da
sala quando ouviram a sineta, largando metade do material; Harry decidiu que, naquele momento,
Hermione precisava mais dele do que Rony. Então, recolheu as coisas da amiga e seguiu-a.
Alcançou-a finalmente quando ela saía do banheiro das garotas um andar abaixo. Vinha em
companhia de Luna Lovegood, que lhe dava palmadinhas distraídas nas costas.
— Ah, olá, Harry — disse Luna. — Você está sabendo que uma de suas sobrancelhas está
amarelona?
— Oi, Luna. Hermione, você deixou seu material... E estendeu-lhe os livros.
— Ah, sim — falou Hermione com a voz embargada, apanhando as coisas e dando as costas
depressa para esconder que estava secando os olhos com o estojo de lápis. — Obrigada, Harry.
Bem, é melhor eu ir andando...
E se afastou ligeiro, sem dar a Harry tempo para dizer umas palavrinhas de consolo, embora
ele tivesse que admitir que não conseguia pensar em nenhuma.
— Ela está meio chateada — disse Luna. — A princípio, pensei que fosse a Murta-Que-
Geme no banheiro, mas era a Hermione. Ela falou alguma coisa sobre aquele Rony Weasley...
— É, eles brigaram.
— Ele às vezes diz coisas muitos engraçadas, não acha? — comentou Luna, quando saíram
juntos pelo corredor. — Mas sabe ser grosseiro. Reparei isso no ano passado.
— Suponho que sim — disse Harry. Luna estava manifestando o seu talento para dizer
verdades incômodas; Harry jamais conhecera alguém como ela. — Então, teve um bom
trimestre?
— Ah, foi bom. Um pouco solitário sem a AD. Gina tem sido legal. Outro dia ela fez dois
garotos pararem de me chamar de Di-lua na aula de Transfiguração...
— Você gostaria de ir comigo à festa de Slughorn hoje à noite? As palavras escaparam da
boca de Harry antes que pudesse contê-las; ouviu-as como se um desconhecido as falasse.
Luna virou aqueles seus olhos saltados para ele, surpresa.
— A festa de Slughorn? Com você?
— É. Ele pediu para levarmos convidados, então achei que você talvez... quero dizer... —
Ele queria deixar suas intenções perfeitamente claras. — Quero dizer, como amigos, sabe. Mas se
você não quiser...
Ele já estava desejando que ela não quisesse.
— Ah, não, adoraria ir com você como amiga! — respondeu Luna, sorrindo como ele
jamais a vira fazer. — Ninguém nunca me convidou para uma festa antes, como amiga! Foi por
isso que você tingiu a sobrancelha, para a festa? Devo tingir a minha também?
— Não — replicou Harry com firmeza —, foi um engano, vou pedir a Hermione para
consertar para mim. Então, encontro você no saguão de entrada às oito horas.
— AH-AH! — berrou uma voz do alto, e eles se sobressaltaram; sem perceber, tinham
passado bem embaixo de Pirraça, que estava pendurado de cabeça para baixo em um lustre e
sorria maliciosamente para os dois.
— Pirado convidou Luna para ir a festa! Pirado ama Di-lua! Pirado aaaaama Di-luuuuuua!
E afastou-se, veloz, gargalhando e gritando: "Pirado ama Di-lua!"
— É legal ter privacidade — comentou Harry. E, de fato, em pouco tempo a escola inteira
parecia saber que Harry Potter ia levar Luna Lovegood à festa de Slughorn.
— Você podia ter levado qualquer garota! — disse Rony, incrédulo, ao jantar. — Qualquer
garota! E você escolheu a Di-lua Lovegood?
— Não chame a Luna assim, Rony — falou Gina asperamente, parando atrás de Harry
quando ia se reunir aos seus amigos. — Fico realmente feliz que você esteja levando a Luna,
Harry, ela está tão animada!
E continuou andando ao longo da mesa, para se sentar com o Dino. Harry tentou se alegrar
que Gina tivesse gostado do seu convite à Luna, mas não conseguiu. A uma boa distância,
Hermione estava sozinha à mesa, brincando com o picadinho no prato. Harry percebeu que Rony
lhe dava olhadelas furtivas.
— Você podia pedir desculpas — sugeriu ele bruscamente.
— Quê, para ser atacado por outro bando de canários? — murmurou Rony.
— Para que você foi imitar Hermione?
— Ela riu do meu bigode!
— Eu também ri, foi a coisa mais burra que eu já vi.
Mas Rony não pareceu ter ouvido; Lilá acabara de chegar com Parvati. Apertando-se entre
Harry e Rony, Lilá atirou os braços no pescoço de Rony.
— Oi, Harry — cumprimentou Parvati, que, como ele, parecia meio constrangida e chateada
com o comportamento dos dois amigos.
— Oi — respondeu Harry. — Como vai? Vai ficar em Hogwarts, então? Soube que seus
pais queriam que você saísse da escola.
— Por ora, consegui convencê-los a desistir — respondeu Parvati. — Aquela coisa com a
Cátia deixou os dois apavorados, mas como não aconteceu mais nada... ah, oi, Hermione!
Parvati sem dúvida sorria. Harry achou que estava sentindo remorsos por ter rido de
Hermione na aula de Transfiguração. Virou-se e viu que sua amiga retribuía o sorriso, se é que
isso era possível, ainda mais animadamente. As garotas às vezes eram muito estranhas.
— Oi, Parvati! — respondeu Hermione, ignorando totalmente Rony e Lilá. — Você vai à
festa do Slughorn hoje à noite?
— Nenhum convite — resumiu Parvati tristemente. — Mas adoraria ir, parece que vai ser
realmente boa... você vai, não é?
— Vou, marquei com Córmaco às oito, e nós...
Houve um ruído semelhante ao de alguém puxando um desentupidor de uma pia entupida, e
Rony voltou à tona. Hermione agiu como se não tivesse visto nem ouvido nada.
— ... vamos à festa juntos.
— Córmaco? — repetiu Parvati. — Você quer dizer o Córmaco McLaggen?
— O próprio — disse Hermione com meiguice. — Aquele que quase — ela deu grande
ênfase à palavra — foi goleiro da Grifinória.
— Então vocês estão namorando? — perguntou Parvati, de olhos arregalados.
— Ah... estamos... você não sabia? — falou Hermione, com uma risadinha que não parecia
sua.
— Não! — exclamou Parvati, manifestando curiosidade pela fofoca.
— Uau, você gosta mesmo de jogadores de quadribol, não é? Primeiro o Krum, agora o
McLaggen...
— Eu gosto de jogadores de quadribol muito bons — corrigiu-a Hermione, ainda sorrindo.
— Bem, a gente se vê... tenho de me arrumar para a festa...
Ela saiu. Na mesma hora, Lilá e Parvati juntaram as cabeças para discutir o novo
acontecimento, repassando tudo que já tinham ouvido falar de McLaggen e tudo que tinham
imaginado sobre Hermione. Rony pareceu estranhamente inexpressivo, e nada disse. Harry viu-se
refletindo em silêncio sobre as profundezas a que descem as garotas para se vingar.
Quando ele chegou ao saguão de entrada às oito horas, encontrou um número anormal de
garotas por ali, todas olhando-o com visível ressentimento quando se aproximou de Luna. Ela
estava usando vestes prateadas com estrelas que atraíram risinhos das outras, mas, afora isto,
estava bem bonita. De qualquer forma, Harry ficou contente que ela não estivesse usando os
brincos de nabos, o colar de rolhas de cerveja amanteigada e os espectrocs.
— Oi — cumprimentou ele. — Vamos andando, então?
— Ah, vamos — respondeu ela feliz. — Onde é a festa?
— Na sala de Slughorn — disse ele, conduzindo-a para longe dos olhares e cochichos pela
escadaria de mármore. — Você ouviu falar que deve ir um vampiro?
— Rufo Scrimgeour?
— ... quê? — exclamou Harry desconcertado. — Você quer dizer o ministro da Magia?
— É, ele é um vampiro — disse Luna banalmente. — Papai escreveu um artigo bem longo
sobre isso quando Rufo Scrimgeour assumiu o cargo de Cornélio Fudge, mas foi obrigado por
alguém do Ministério a não publicar. Obviamente eles não gostariam que a verdade fosse
revelada!
Harry, que achava muito improvável que Rufo Scrimgeour fosse um vampiro, mas estava
acostumado ao hábito de Luna de repetir as bizarras opiniões do pai como se fossem fatos, não
respondeu; já estavam se aproximando da sala de Slughorn e os sons de risos, música e conversas
em voz alta aumentavam a cada passo.
Fosse porque tivesse sido construída assim, fosse porque ele tivesse usado a magia para
deixá-la assim, a sala de Slughorn era muito maior do que o escritório normal de um professor. O
teto e as paredes tinham sido forrados com panos esmeralda, carmim e dourado, para dar a
impressão de que se encontravam no interior de uma vasta tenda. A sala estava cheia e abafada,
imersa na luz vermelha que o ornamentado lampião dourado projetava do centro do teto, onde
esvoaçavam fadinhas de verdade, cada qual um pontinho brilhante de luz. Uma cantoria,
aparentemente acompanhada por bandolins, subia de um canto distante; uma névoa de fumaça de
cachimbo pairava sobre vários bruxos idosos absortos em conversa, e numerosos elfos
domésticos se deslocavam entre uma floresta de joelhos, sombreados pelas pesadas travessas de
prata com comida que seguravam, parecendo mesinhas móveis.
— Harry, meu rapaz! — trovejou Slughorn, quase na mesma hora em que Harry e Luna
espremiam-se pela porta para entrar. — Entre, entre, há tanta gente que eu gostaria que você
conhecesse!
Slughorn usava um chapéu de veludo com borlas combinando com o smoking. Apertando o
braço de Harry com tanta força que parecia querer desaparatar com ele, Slughorn o conduziu,
decidido para a festa; Harry agarrou a mão de Luna e arrastou-a com ele.
— Harry, gostaria que você conhecesse Eldred Worple, um ex-aluno meu, autor de Irmãos
de sangue: minha vida entre os vampiros... e, é claro, seu amigo Sanguini.
Worple, que era um homem pequeno, de óculos, agarrou a mão de Harry e sacudiu-a com
entusiasmo; o vampiro Sanguini, alto e emaciado, com escuras olheiras sob os olhos, fez apenas
um aceno com a cabeça. Parecia entediado. Havia um bando de garotas por perto, demonstrando
curiosidade e excitação.
— Harry Potter, estou simplesmente encantado! — exclamou Worple, fitando miopemente
o rosto de Harry. — Ainda outro dia comentei com o professor Slughorn: "Onde está a biografia
de Harry Potter pela qual todos estamos esperando?"
— Ãh — atrapalhou-se Harry —, o senhor está?
— Modesto como Horácio o descreveu! — comentou Worple. — Mas falando seriamente...
— e sua atitude mudou, de repente, tornando-se objetiva —, eu teria prazer de escrevê-la... as
pessoas estão ansiosas por conhecer você melhor, meu caro rapaz, ansiosas! Se você se
dispusesse a me conceder algumas entrevistas, digamos, quatro ou cinco sessões, ora, poderíamos
concluir o livro em poucos meses. E isso com muito pouco esforço de sua parte, posso lhe
assegurar; pergunte a Sanguini aqui se não é... Sanguini, fique aqui! — acrescentou Worple, com
súbita severidade, porque o vampiro estava se esgueirando em direção ao grupo de garotas
próximo, com uma certa voracidade no olhar. — Tome aqui uma empadinha — disse Worple,
apanhando uma da travessa de um elfo que passava e metendo-a na mão de Sanguini antes de
voltar sua atenção a Harry.
— Meu caro rapaz, o ouro que poderia ganhar, você nem faz idéia...
— Decididamente não estou interessado — respondeu Harry com firmeza —, e acabei de
ver uma amiga minha, lamento.
Ele puxou Luna pela multidão; acabara realmente de ver uma longa juba de cabelos
castanhos desaparecer, entre dois componentes do grupo As Esquisitonas, ou assim lhe pareceu.
— Hermione! Hermione!
— Harry! Aí está você, que bom! Oi, Luna!
— Que aconteceu com você? — perguntou Harry, porque Hermione parecia visivelmente
desarrumada, como se tivesse acabado de lutar para se livrar de uma moita de visgo-do-diabo.
— Ah, acabei de fugir... quero dizer, acabei de deixar o Córmaco. Debaixo do visgo —
acrescentou, à guisa de explicação, porque Harry continuava a fitá-la com um ar de curiosidade.
— Bem feito por ter vindo com ele — disse ele severamente.
— Achei que era quem mais aborreceria o Rony — disse Hermione, sem emoção. — Fiquei
um instante em dúvida se convidaria o Zacarias Smith, mas achei que, de modo geral...
— Você pensou em vir com o Smith? — exclamou Harry revoltado.
— Pensei, e estou começando a desejar que tivesse vindo; McLaggen faz Grope parecer um
cavalheiro. Vamos por aqui, poderemos ver quando ele vier, é tão alto...
Os três se dirigiram ao lado oposto da sala, apanhando taças de hidromel no caminho, mas
perceberam, tarde demais, que a professora Trelawney estava parada ali sozinha.
— Olá — Luna cumprimentou-a gentilmente.
— Boa-noite, minha querida — disse a professora, focalizando a garota com alguma
dificuldade. Novamente Harry sentiu cheiro de xerez culinário. — Não tenho visto você nas
minhas aulas ultimamente...
— Não, fiquei com Firenze este ano — disse Luna.
— Ah, é claro — replicou a professora, com raiva, dando uma risadinha bêbada. — Ou
Dobbin, como prefiro imaginá-lo. Seria de pensar, não é mesmo, que, agora que voltei para a
escola, o professor Dumbledore se livrasse do cavalo. Mas não... dividimos as turmas... é um
insulto, francamente, um insulto. Você sabe que...
A professora Trelawney parecia tonta demais para reconhecer Harry. Aproveitando as
furiosas críticas a Firenze, ele chegou mais perto de Hermione e disse:
— Vamos nos entender. Você está pretendendo dizer ao Rony que interferiu nos testes para
goleiro?
Hermione ergueu as sobrancelhas.
— Você realmente acha que eu me rebaixaria a tanto? Harry lançou-lhe um olhar astuto.
— Hermione, se você tem coragem de convidar McLaggen...
— Há uma diferença — respondeu ela com dignidade. — Não tenho a menor intenção de
contar a Rony o que poderia ou não ter acontecido nos testes.
— Ótimo — replicou Harry com fervor. — Porque ele ficaria arrasado de novo, e
perderíamos o próximo jogo...
— Quadribol! — exclamou Hermione zangada. — É só nisso que vocês garotos pensam?
Córmaco não fez uma única pergunta sobre mim, não, me brindou com Cem Grandes Defesas
Feitas por Córmaco McLaggen sem intervalos... ah, não, lá vem ele!
Ela se mexeu com tanta rapidez que parecia ter desaparatado; num momento estava ali e no
momento seguinte se espremera entre duas bruxas às gargalhadas e sumira.
— Viram Hermione? — perguntou McLaggen um minuto depois, forçando caminho por um
grupo compacto.
— Não, lamento — disse Harry, e virou-se depressa para participar da conversa de Luna,
esquecendo-se, por uma fração de segundo, de com quem ela estava conversando.
— Harry Potter! — exclamou a professora em tons graves e vibrantes, reparando nele pela
primeira vez.
— Oh, olá — respondeu ele sem entusiasmo.
— Meu querido rapaz! — disse Trelawney, com um sussurro muito audível. — Os boatos!
As histórias! O Eleito! É claro que sei disso há muito tempo... os augúrios nunca foram
favoráveis, Harry... mas por que você não voltou às aulas de Adivinhação? Para você, mais do
que para os demais, a matéria é da máxima importância!
— Ah, Sibila, todos achamos que a nossa matéria é da máxima importância! — disse uma
voz alta, e Slughorn apareceu ao lado da professora Trelawney, o rosto muito vermelho, o chapéu
de veludo um pouco enviesado na cabeça, um copo de hidromel em uma das mãos e uma enorme
torta de frutas secas e especiarias na outra. — Mas acho que jamais conheci alguém com tanto
talento para Poções! —comentou o professor, lançando a Harry um olhar carinhoso, embora com
os olhos injetados. — Instintivo, sabe, como a mãe! Poucas vezes na vida tive alunos com tal
habilidade, posso lhe afirmar, Sibila... ora, nem Severo...
E, para horror de Harry, Slughorn fez um gesto amplo com o braço e pareceu materializar
Snape, que veio em sua direção.
— Pare de se esquivar e venha se reunir a nós, Severo! — disse, alegre, Slughorn entre
soluços. — Eu estava justamente falando sobre a excepcional preparação de Poções de Harry!
Parte do crédito é seu, naturalmente, já que foi seu professor durante cinco anos!
Preso pelo braço de Slughorn em seus ombros, Snape olhou do alto do seu nariz curvo para
Harry, apertando seus olhos negros.
— Engraçado, jamais tive a impressão de ter conseguido ensinar alguma coisa a Potter.
— Então é uma habilidade natural! — gritou Slughorn. — Você devia ter visto o que ele me
entregou na primeira aula, a Poção do Morto-Vivo, nunca um estudante se saiu melhor na
primeira tentativa, acho que nem mesmo você, Severo...
— Sério? — admirou-se Snape em voz baixa, seus olhos perfurando Harry, que sentiu uma
certa inquietação. A última coisa que queria no mundo era Snape investigando a fonte de sua
recém-descoberta genialidade em Poções.
— Que outras matérias você está estudando mesmo, Harry? — perguntou Slughorn.
— Defesa contra as Artes das Trevas, Feitiços, Transfiguração, Herbologia...
— Em suma, todas as exigidas para ser auror — concluiu Snape, com leve desdém.
— É, bem, é o que eu gostaria de ser — respondeu Harry em tom de desafio.
— E dará um grande auror! — trovejou Slughorn.
— Acho que você não deveria ser auror, Harry — interpôs Luna, inesperadamente. Todos
olharam para ela. — Os aurores fazem parte da Conspiração Dentepodre. Pensei que todo o
mundo soubesse. Estão trabalhando por dentro para derrubar o Ministério da Magia, usando uma
combinação de Artes das Trevas e gomose.
Harry inalou metade do seu hidromel pelo nariz quando começou a rir. Sem dúvida, valera a
pena trazer Luna só por aquilo.
Tirando o rosto da taça, tossindo e molhado, mas ainda rindo, ele viu algo que era certo
elevar sua animação às nuvens: Argo Filch vinha em direção ao grupo arrastando Draco Malfoy
pela orelha.
— Professor Slughorn — chiou o zelador, as bochechas tremendo e nos olhos saltados o
brilho maníaco ao descobrir malfeitos. — Encontrei este rapaz se esgueirando por um corredor lá
de cima. Ele diz que foi convidado para a sua festa e se atrasou na saída. O senhor lhe mandou
convite?
Malfoy se desvencilhou do aperto de Filch, furioso.
— Está bem, não fui convidado — respondeu com raiva. — Eu estava tentando penetrar na
festa, satisfeito?
— Não, não estou! — retrucou Filch, uma afirmação em total desacordo com a alegria em
seu rosto. — Você está encrencado, ora se está! O diretor não avisou que não queria ninguém nos
corredores à noite, a não ser que a pessoa tivesse permissão, não avisou, eh?
— Tudo bem, Argo, tudo bem — disse Slughorn, com um aceno de mão. — Hoje é Natal, e
não é crime ter vontade de ir a uma festa. Só desta vez, vamos esquecer o castigo; você pode
ficar, Draco.
A expressão de indignação e desapontamento de Filch era perfeitamente previsível, mas por
que, perguntou-se Harry, observando o colega, Malfoy pareceu igualmente infeliz? E por que
Snape estava olhando para Malfoy como se sentisse ao mesmo tempo raiva... e seria possível?...
um pouco de receio?
Mas, antes que Harry registrasse o que vira, Filch deu as costas e se afastou, arrastando os
pés, resmungando baixinho; Malfoy conseguiu produzir um sorriso e agradeceu a Slughorn por
sua generosidade, a expressão de Snape suavemente retomou sua impenetrabilidade.
— De nada, de nada — disse Slughorn, dispensando os agradecimentos de Malfoy. —
Afinal, eu conheci o seu avô...
— Ele sempre o elogiou muito, senhor — apressou-se em dizer Malfoy. — Dizia que o
senhor era o melhor preparador de poções que ele tinha conhecido...
Harry encarou Malfoy. Não era o puxa-saquismo que o intrigava; vira-o fazer isso com
Snape durante anos. Era o fato de que Malfoy parecia doente. Era a primeira vez em muito tempo
que via o colega bem de perto; e notava que apresentava olheiras escuras sob os olhos e um nítido
tom acinzentado na pele.
— Gostaria de dar uma palavra com você, Draco — disse Snape subitamente.
— Ora, vamos Severo — falou Slughorn, com mais soluços. — É Natal, não seja tão duro...
— Sou o diretor da Casa dele e cabe a mim decidir se devo ou não ser duro — retrucou
rispidamente. — Venha comigo, Draco.
Os dois se retiraram, Snape à frente, Malfoy parecia ressentido. Harry hesitou um momento,
então disse:
— Volto em um instante, Luna... ã... banheiro.
— Tudo bem — respondeu Luna, animada, e Harry, ao sair ligeiro entre os convidados,
pensou tê-la ouvido retomar a Conspiração Dentepodre com a professora Trelawney, que parecia
sinceramente interessada.
Foi fácil, uma vez fora da festa, tirar do bolso a Capa da Invisibilidade e se cobrir, porque o
corredor estava deserto. O mais difícil foi encontrar Snape e Malfoy. Harry saiu correndo, o ruído
de seus passos mascarado pela música e as conversas altas que vinham da sala de Slughorn.
Talvez Snape o tivesse levado à sua sala nas masmorras... ou talvez o acompanhasse de volta à
sala comunal da Sonserina... Harry encostou o ouvido a cada porta do corredor pela qual passou
apressado até que, muito surpreso e excitado, curvou-se para o buraco da fechadura da última sala
e ouviu vozes.
— ... não pode se dar ao luxo de errar, Draco, porque se você for expulso...
— Não tive nada a ver com isso, está bem?
— Espero que esteja dizendo a verdade, porque foi malfeito e tolo. Já suspeitam que você
tenha um dedo no incidente.
— Quem suspeita de mim? — perguntou Malfoy com raiva. — Pela última vez, não fui eu,
entende? Aquela garota, Bell, deve ter um inimigo que ninguém conhece... não me olhe assim!
Sei o que você está fazendo. Não sou burro, mas não vai funcionar... posso impedi-lo!
Houve uma pausa, e então Snape disse baixinho:
— Ah... tia Belatriz tem lhe ensinado Oclumência, entendo. Que pensamentos você está
tentando esconder do seu senhor, Draco?
— Não estou tentando esconder nada dele, só não quero que você penetre a minha mente!
Harry comprimiu mais o ouvido no buraco da fechadura... que acontecera para Malfoy falar
desse jeito com Snape, o professor que ele sempre demonstrara respeitar e até gostar?
— Então é por isso que você tem me evitado este trimestre? Tem medo da minha
interferência? Você percebe que se outro aluno não fosse à minha sala quando eu mandasse, e
mais de uma vez, Draco...
— Então me dê uma detenção! Dê queixa de mim ao Dumbledore! — caçoou Malfoy.
Houve outra pausa. Então Snape falou:
— Você sabe perfeitamente que não quero fazer nenhuma das duas coisas.
— Então é melhor parar de me mandar ir à sua sala!
— Escute aqui — disse Snape, a voz tão baixa que Harry teve de comprimir o ouvido com
força contra o buraco para ouvir. — Estou tentando ajudá-lo. Jurei a sua mãe que o protegeria.
Fiz um Voto Perpétuo, Draco...
— Pois parece que vai ter de quebrá-lo, porque não preciso da sua proteção! A tarefa é
minha, eu a recebi dele e estou cumprindo-a. Tenho um plano que vai dar resultado, só está
levando um pouco mais de tempo do que pensei!
— Qual é o seu plano?
— Não é da sua conta!
— Se me contar o que está tentando fazer, posso ajudá-lo...
— Tenho toda a ajuda de que preciso, obrigado, não estou sozinho!
— Mas certamente estava hoje à noite, no que foi extremamente tolo, andar pelos
corredores sem vigias nem cobertura. São erros elementares...
— Eu teria Crabbe e Goyle comigo, se você não tivesse detido os dois!
— Fale baixo! — disse Snape com violência, porque Malfoy alteara a voz agitado. — Se os
seus amigos Crabbe e Goyle pretendem passar no N.O.M. de Defesa contra as Artes das Trevas
desta vez, terão de se esforçar mais do que estão fazendo no momen...
— Que diferença faz isso? — interrompeu-o Malfoy. — Defesa contra as Artes das Trevas é
uma piada, não é, uma encenação? Como se algum de nós precisasse se proteger contra as Artes
das Trevas...
— É uma encenação decisiva para o sucesso, Draco! — lembrou Snape. — Onde é que
você pensa que eu estaria todos esses anos se eu não soubesse como representar? Agora me
escute! Você está sendo imprudente, andando pela escola à noite e sendo apanhado, e se está
confiando na ajuda de Crabbe e Goyle...
— Eles não são os únicos. Tenho mais gente do meu lado, gente melhor!
— Então por que não confiar em mim, posso...
— Sei o que está pretendendo! Você quer roubar a minha glória! Houve mais uma pausa,
então Snape disse com frieza:
— Você está falando como uma criança. Compreendo que a captura e a prisão do seu pai o
tenham deixado perturbado, mas...
Harry teve menos de um segundo de aviso; ouviu os passos de Malfoy do outro lado da
porta e se atirou para fora do caminho na hora em que a porta se escancarava; Malfoy afastou-se
em passos largos pelo corredor, passou pela porta aberta da sala de Slughorn, contornou um canto
distante e desapareceu de vista.
Mal ousando respirar, Harry continuou agachado vendo Snape sair lentamente da sala de
aula. Com uma expressão insondável, ele voltou à festa. Harry permaneceu ali, oculto pela capa
com os pensamentos em disparada.

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