quarta-feira, 7 de março de 2012

Jogo Perigoso 1-5


CAPÍTULO I
Jessie podia ouvir a porta dos fundos bater levemente, erraticamente, à brisa de
outono que soprava em volta da casa. Os portais sempre empenavam nessa época do ano e
era preciso dar um puxão na porta para fechá-la. Desta vez eles tinham se esquecido. Pensou
em mandar Gerald voltar e fechar a porta antes de se absorverem muito, senão aquele batebate
ia deixá-la maluca. Então pensou que seria ridículo aquele pedido, nas presentes
circunstâncias. Estragaria o clima todo.
Que clima?
Boa pergunta. E quando Gerald girou o cilindro do segundo cadeado, e ela ouviu o
clique quase imperceptível acima do ouvido esquerdo, concluiu que, por ela, não valia a
pena preservar clima algum. Para começar, fora essa a razão de ter reparado na porta
destrancada, é claro. Para ela, a excitação sexual dos jogos sadomasoquistas não durara
muito.
O mesmo não se podia dizer de Gerald. Vestia agora apenas cueca tipo jóquei, e
nem era preciso erguer os olhos até o rosto dele para ver que seu entusiasmo continuava
inabalável.
Isso é uma idiotice, pensou, mas a palavra idiotice não dizia tudo. A coisa assustava
um pouco. Não gostava de admitir, mas era verdade.
— Gerald, por que não deixamos isso para lá?
Ele hesitou um instante, amarrou um pouco a cara, e atravessou o quarto até a
cômoda que ficava à esquerda da porta do banheiro. Seu rosto foi-se desanuviando.
Observava-o de onde estava na cama, os braços erguidos e abertos, parecendo a mocinha do
filme King Kong acorrentada à espera do gorila. Seus pulsos tinham sido presos com
algemas aos pilares de mogno da cama. As correntes permitiam a cada mão um movimento
de uns quinze centímetros. Não era muito.
Ele deixou as chaves em cima da cômoda — dois estalinhos mínimos, os ouvidos de
Jessie pareciam estar excepcionalmente aguçados para uma tarde de quarta-feira — e em
seguida voltou para a cama. Acima de sua cabeça, reflexos de sol produzidos pelo lago
dançavam e corriam pelo teto branco e alto do quarto.
— Que é que você me diz? Isto já não tem a mesma graça de antes. — E para
começar, nunca teve muita mesmo — ela não acrescentou.
Ele deu um sorriso. Tinha uma caraça rosada encimada por cabelos muito negros
que formavam um bico-de-viúva, e aquele sorriso sempre lhe despertara uma reação que
não lhe agradava muito. Não sabia precisar exatamente que reação, mas...
Ah, claro que sabia. Faz Gerald parecer idiota. Pode-se praticamente ver o QI dele
despencar dez pontos a cada centímetro que aquele sorriso se alarga. Na amplitude máxima,
o tremendo gato, advogado empresarial com quem você se casou parece um zelador
debilóide que o hospício local liberou para trabalho externo.
O pensamento era cruel embora não fosse mentira. Mas como é que alguém ia dizer
ao marido de quase vinte anos que todas as vezes que sorria lembrava um retardado mental?
A resposta era muito simples: não se dizia. Já o seu riso era um caso bem diferente. Era um
belo riso — ela achava que fora aquele riso, tão caloroso e bem-humorado, que a persuadira
a sair com ele para começar. Lembrara-lhe o riso do pai quando contava acontecimentos
engraçados do dia enquanto bebericava um gim-tônica antes do jantar.
Mas aquilo não era o riso. Era o sorriso — a versão que ele aparentemente
reservava só para essas sessões. Jessie tinha a impressão de que, para Gerald, que via a coisa
de dentro, o sorriso lhe dava um ar de conquistador. De pirata, talvez. Porém, do seu ponto
de vista, deitada ali com os braços erguidos acima da cabeça e nua, exceto pela calcinha, o
sorriso parecia apenas idiota. Não... retardado.
Afinal de contas, ele não era nenhum aventureiro irresponsável desses que
apareciam nas revistas masculinas, em que ele próprio se debruçara nas violentas
ejaculações de uma puberdade solitária e obesa; era um advogado com um rosto demasiado
grande e rosado encimado por um bico-de-viúva que afinava implacavelmente para a
calvície total. Apenas um advogado com uma ereção que lhe armava a cueca, e a
deformava. E nem a deformava tanto assim.
O tamanho da ereção, porém, não era o mais importante. O mais importante era o
sorriso. Não se alterara nadinha, o que significava que Gerald não a levara a sério. Fazia
parte do seu papel protestar; afinal essa era a regra do jogo.
— Gerald? Estou falando sério.
O sorriso se alargou. Deixou à mostra mais uns daqueles dentinhos inofensivos de
advogado; seu QI rolou mais vinte ou trinta pontos ladeira abaixo. E ele continuava a não
escutá-la.Você tem certeza disso?
Tinha. Não era capaz de adivinhar os pensamentos do marido — imaginava que
eram necessários muito mais de dezessete anos de casamento para se atingir tal ponto —
mas achava que normalmente tinha uma boa idéia do que se passava naquela cabeça.
Alguma coisa estaria fora dos eixos se não tivesse.
Se isso é verdade, boneca, então por que ele não lhe entende? Por que não percebe
que isso não é uma cena nova na farsa sexual de sempre?
Agora era sua vez de franzir ligeiramente a testa. Sempre ouvira vozes interiores —
achava que todo o mundo as ouvia, embora as pessoas normalmente não as mencionassem,
como tampouco mencionavam as funções intestinais — e a maioria eram velhas amigas com
quem sentia o mesmo conforto de chinelos macios. Esta, porém, era nova... e não a fazia
sentir-se nem um pouco confortável. Era uma voz forte, de timbre jovem e vigoroso. Soava
impaciente, também. Agora retomava a palavra, respondendo à própria pergunta.
Não é que ele não consiga entendê-la; é que às vezes, boneca, ele não quer entendêla.
— Gerald, francamente... não estou a fim. Apanhe as chaves e me solte. Fazemos
outra coisa. Fico por cima, se você quiser. Ou você pode ficar deitado com as mãos na nuca
e eu faço você gozar, sabe, do outro jeito.
Tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou a nova voz. Tem certeza de que
quer fazer sexo com esse homem?
Jessie fechou os olhos, como se assim pudesse fazer a voz calar. Quando os reabriu,
Gerald estava parado ao pé da cama, a frente da cueca enristada como a proa de um navio.
Bom... talvez um navio de brinquedo. O sorriso se ampliara ainda mais, expondo os últimos
dentes — aqueles com obturações a ouro — dos dois lados. Não era questão de não gostar
daquele sorriso burro, percebeu; desprezava-o.
— Deixo você se levantar... se for muito, mas muito boazinha mesmo. Você sabe
ser muito, muito boazinha, Jessie?
Piegas, comentou a nova voz decidida. Pieguíssimo.
Ele enganchou os polegares no cós da cueca parecendo um pistoleiro surreal. A
cueca baixou bem depressa, vencidos os seus pneus nada desprezíveis. Pronto, lá estava.
Não a formidável máquina de amor que conhecera ainda adolescente nas páginas de Fanny
Hill, mas um membro modesto, cor-de-rosa e circuncidado; doze centímetros e pouco de
ereção absolutamente comum. Há uns dois ou três anos, em uma de suas viagens pouco
freqüentes a Boston, assistira a um filme intitulado A barriga do arquiteto. Pensou, Certo. E
agora estou vendo O pênis de um advogado. Teve de morder as bochechas por dentro para
não rir. Rir numa altura dessas não seria nada político.
Ocorreu-lhe uma idéia, então, que sufocou qualquer vontade de rir. Foi a seguinte:
Gerald não sabia que estava falando sério porque para ele, Jessie Mahout Burlingame,
mulher de Gerald, irmã de Maddy e Will, filha de Tom e Sally, mãe de ninguém, não estava
realmente presente. Desaparecera dali quando as chaves produziram aquele barulhinho
metálico nas fechaduras das algemas. As revistas masculinas de aventuras da puberdade de
Gerald tinham sido substituídas por uma pilha de revistas de sacanagem guardadas na última
gaveta da escrivaninha, revistas em que mulheres, vestidas só com um colar de pérolas, se
ajoelhavam em tapetes de pele de urso e homens com equipamentos sexuais que faziam o de
Gerald parecer um brinquedinho possuíam-nas por trás. Na quarta capa dessas revistas,
entre os classificados do disque-sexo com seus 900 números, apareciam anúncios de
mulheres infláveis anatomicamente corretas, segundo diziam — o conceito mais curioso
com que Jessie já topara. Pensou naquelas bonecas de ar agora, peles rosadas, corpos lisos
de cartum e rostos sem feições, com uma espécie de assombro revelador. Não era horror —
não chegava a tanto — mas um clarão intenso lampejou em sua cabeça, e a paisagem que
mostrou foi sem dúvida mais assustadora do que esse jogo idiota, ou o fato de o jogarem
desta vez na casa de verão à beira do lago, muito depois do verão ter fugido por mais um
ano.
Mas a imagem não afetara sua audição. Agora ouvia uma motosserra, rosnando sem
parar nas matas, a uma grande distância — talvez a uns oito quilômetros. Mais perto, vindo
do lago Kashwakamak, um mergulhão que se atrasara para a migração rumo sul lançou seu
grito alucinado no ar azulado do outono. Ainda mais perto, em algum ponto ali na praia
norte um cachorro latiu. Era um som feio, de catraca, mas curiosamente Jessie achou-o
reconfortante. Significava que mais alguém estava ali, fosse meio de semana em outubro ou
não. De resto havia apenas o ruído da porta, solta como um dente velho numa gengiva
podre, batendo no portal empenado. Sentiu que se tivesse de escutar aquilo durante muito
tempo enlouqueceria.
Gerald, agora nú exceto pelos óculos, ajoelhou-se na cama e começou a engatinhar
para ela. Seus olhos continuavam a brilhar.
Tinha uma idéia de que fora aquele brilho que a levara a continuar a jogar muito
depois de saciada a curiosidade inicial. Fazia anos que não via tanto fogo no olhar de Gerald
ao fitá-la. Não era feia — conseguira se manter magra, e seu corpo não mudara muito —
mas o interesse de Gerald diminuíra do mesmo jeito. Suspeitava que a bebida era em parte
culpada pelo desinteresse — bebia muito mais agora do que no início do casamento — mas
sabia que não era só a bebida. Como era mesmo o velho ditado que a intimidade gera o
desprezo? Presumia-se que isso não afetasse homens e mulheres apaixonados, a se crer nos
poetas românticos que estudara em literatura inglesa, mas desde então descobrira que havia
realidades da vida que John Keats e Percy Shelley jamais descreveram. Mas é claro que os
dois tinham morrido muito mais jovens do que ela e Gerald eram agora.
Mas tudo isso não importava muito aqui e agora. O que talvez importasse é que
continuara a jogar mais tempo do que realmente queria, porque gostara daquele brilhozinho
de ardor nos olhos de Gerald. Fazia com que se sentisse jovem, bonita e desejável. Mas...
... mas se realmente pensou que ele estava lhe vendo quando tinha aquele brilho no
olhar, a cigana lhe enganou, boneca. Ou você mesma se enganou. E talvez agora tenha de
decidir— decidir para valer — se pretende continuar a tolerar essa humilhação. Porque, não
é isso mesmo que está sentindo? Humilhação?
Ela suspirou. É. Era isso mesmo.
— Gerald, não estou brincando. — Elevou a voz agora, e pela primeira vez o brilho
em seus olhos vacilou um instante. Ótimo. Afinal parecia que era capaz de ouvi-la. Então as
coisas talvez continuassem bem. Nada fantásticas, há muito tempo que não dava para dizer
que estivessem fantásticas, mas bem. Então o brilho reapareceu, e logo em seguida o sorriso
idiota.
— Vou aplicar-lhe um corretivo, minha altiva bela — disse. Realmente disse essas
palavras, pronunciando bela com a entonação de senhorio de melodrama vitoriano de
segunda classe.
Deixe-o trepar então. Deixe-o trepar e acabou.
Era uma voz que já conhecia bem melhor, e ela pretendia seguir seu conselho. Não
sabia se as feministas aprovariam e pouco lhe importava; o conselho tinha a atração de coisa
eminentemente prática. Deixe-o transar e acabou. Q.E.D. (Quod erat demonstrandum.)
Então ele esticou a mão — aquela mão macia, de dedos curtos e pele rosada, como
a que recobria a cabeça do pênis — e agarrou-lhe o seio, e dentro dela alguma coisa de
repente se rompeu como um tendão demasiado tenso. Ela empinou os quadris e as costas
bruscamente, sacudindo a mão para longe.
— Chega, Gerald. Abra essas algemas imbecis e me deixe levantar. Esse jogo
perdeu a graça desde março quando ainda havia neve no chão. Não me sinto sensual; me
sinto ridícula.
Desta vez ele a ouviu até o fim. Percebeu-o na maneira com que o brilho de seu
olhar apagou de repente, como a chama de uma vela sob forte rajada de vento. Imaginava
que as duas palavras que finalmente o atingiram tinham sido imbecis e ridícula. Gerald fora
um garoto gordo com óculos de lentes grossas, um garoto que não saíra com meninas até os
dezoito anos — um ano depois de entrar numa dieta rigorosa e começar a se exercitar num
esforço para sufocar as banhas que o envolviam antes que elas o sufocassem. Quando
chegou ao segundo ano da universidade podia dizer que a sua vida estava "mais ou menos
sob controle" (como se a vida — a dele, pelo menos — fosse um cavalo xucro que o
tivessem mandado domar), mas ela sabia que seus tempos de escola tinham sido um show
de horrores que lhe legara um profundo desprezo por si mesmo e uma desconfiança de
todos.
Seu sucesso como advogado empresarial (e o casamento dos dois, que acreditava
que também tivesse desempenhado um papel, quem sabe até decisivo) contribuíram para
restaurar sua segurança e amor-próprio. mas Jessie supunha que alguns pesadelos jamais
desapareciam por completo. Num recesso profundo da mente, os valentões continuavam a
dar puxões fortes e inesperados na cueca de Gerald na sala de estudo, continuavam a rir de
sua incapacidade nas aulas de ginástica onde só conseguia fazer flexões para meninas, e
havia palavras — imbecil e ridículo, por exemplo — que traziam todas aquelas lembranças
à tona como se a escola tivesse sido ontem... ou assim ela suspeitava. Os psicólogos
conseguiam ser incrivelmente burros em muita coisa, quase deliberadamente burras, era a
impressão que por vezes lhe davam, mas quando tratavam da horrível persistência de certas
lembranças, acertavam na mosca. Algumas lembranças prosperavam na mente das pessoas
como sanguessugas malignas, e certas palavras — imbecil e ridículo, por exemplo — eram
capazes de trazê-las instantaneamente a uma vida buliçosa e febril.
Ela esperou sentir uma pontada de remorso por usar um golpe baixo desses e se
alegrou — ou talvez sentisse alívio — quando a pontada não veio. Talvez esteja apenas
cansada de fingir, pensou, e essa idéia levou a outra: poderia ter uma agenda sexual só sua, e
se tivesse, essa história de algemas seria definitivamente excluída. Faziam-na se sentir
aviltada. A coisa toda a fazia se sentir aviltada. Ah, uma certa excitação contrafeita
acompanhara as primeiras experiências — aquelas com os lenços — e umas duas vezes
tivera vários orgasmos, e isso era uma raridade em seu caso. Mesmo assim sentira efeitos
colaterais de que não gostara, e a sensação de aviltamento fora apenas um deles. Tivera
pesadelos após cada uma dessas versões iniciais dos jogos de Gerald. Acordava suada e
arquejante, os punhos cerrados como se fossem esferas, metidos entre as pernas. Só se
lembrava de um desses sonhos, uma lembrança distante, difusa: estivera jogando croquet
pelada e de repente o sol se eclipsara.
Deixa para lá, Jessie: você pode pensar nessas coisas outro dia. Agora o que importa
é conseguir que ele a solte.
Verdade. Porque não era um jogo dos dois; era um jogo só dele. Ela continuara a
participar apenas porque Gerald quis que o fizesse. E isso agora já não bastava.
O mergulhão emitiu de novo o seu grito solitário lá no lago. O sorriso idiota de
expectativa no rosto de Gerald fora substituído por uma expressão mal-humorada de
desagrado. Você estragou meu brinquedo, sua sacana, dizia aquela expressão.
Jessie se viu lembrando a última vez que dera uma boa olhada naquela expressão.
Em agosto Gerald aparecera com um folheto em papel acetinado e apontara o que queria, e
ela concordara, claro que podia comprar uma Porsche se quisesse, e eles certamente tinham
dinheiro para uma Porsche, mas achou que o marido faria melhor se comprasse um título do
clube de saúde Forest Avenue, como vinha ameaçando fazer há dois anos.
— Você não está com físico para Porsche no momento — dissera-lhe, sabendo que
não estava sendo muito diplomática mas também que não era hora para diplomacias. Além
do mais, Gerald a aborrecera tanto que ela queria mais que se danassem os seus sentimentos.
O que vinha ocorrendo cada vez com maior freqüência ultimamente, e isso a desanimava,
mas não sabia como evitá-lo.
— Onde você está querendo chegar? — ele perguntara com firmeza. Ela nem se deu
o trabalho de responder; aprendera que quando Geraldo fazia essas perguntas, eram quase
sempre retóricas. A mensagem importante vinha no subtexto: Você está me aborrecendo,
Jessie. Você não está jogando direito.
Mas naquela ocasião — quem sabe não fora um despercebido ensaio para a de hoje
— ela decidira desprezar o subtexto e responder à pergunta.
— Estou dizendo que você vai fazer quarenta e seis anos de idade agora no inverno
com Porsche ou sem Porsche, Gerald, e vai continuar 14 quilos acima do seu peso ideal. —
Uma crueldade, sim, mas poderia ter feito bem pior; poderia ter mencionado a imagem que
lhe ocorrera quando viu a foto do carro esporte na capa do folheto em papel acetinado que
Gerald lhe entregara. Naquele piscar de olhos vira um garoto gorducho com o rosto rosado e
um bico-de-viúva metido na bóia de pneu que levara para a velha piscina natural.
Gerald arrancara o folheto de suas mãos e se retirara com altivez sem dizer palavra.
O assunto da Porsche nunca mais fora levantado... mas ela o vislumbrava com freqüência
naquele olhar rancoroso tipo Não Estou Achando Graça Nenhuma.
Neste instante contemplava uma versão ainda mais irada daquele olhar.
— Você disse que parecia divertido. Foram suas palavras exatas: "Parece
divertido."
Será que dissera aquilo? Provavelmente sim. Mas fora um erro. Uma mancadinha à
toa, um escorregão numa casca de banana. Claro. Mas como é que se dizia isso ao marido
quando ele armava uma tromba que mais parecia o Baby Dinossauro se aprontando para um
ataque de birra?
Não sabia, por isso baixou os olhos... e viu uma coisa que não lhe agradou nem um
pouco. A versão geraldiana do Sr. Feliz não murchara nadinha. Aparentemente o Sr. Feliz
não fora informado da mudança de planos.
— Gerald, eu simplesmente não...
— ... está a fim? Ótimo, uma surpresa e tanto, não é? Tirei o dia todo de folga. E se
passarmos a noite aqui, perco a manhã de trabalho também. — Refletiu um instante sobre o
assunto e em seguida repetiu: — Você disse que parecia divertido.
Ela começou a desfiar desculpas como uma velha parceira cansada (É, mas agora
estou com dor de cabeça: É. mas agora está me dando uma cólica pré-menstrual de lascar. É.
mas sou mulher, logo tenho o direito de mudar de idéia: É. mas agora que estamos aqui
isolados do mundo, você está me assustando, seu brutamontes maravilhoso), mentiras que
alimentavam seus equívocos ou seu ego (os dois eram em geral intercambiáveis). mas antes
que pudesse escolher uma carta, qualquer carta, a nova voz falou. Era a primeira vez que
falava alto. e Jessie ficou fascinada de descobrir que o tom era o mesmo dentro ou fora de
sua cabeça: forte, seco, decidido, seguro.
Era também curiosamente familiar.
— Tem mão... acho que disse isso, mas o que me pareceu realmente divertido foi
dar uma escapulidela com você como costumávamos fazer antes de seu nome ir parar na
porta junto aos dos chefões. Pensei que talvez pudéssemos sacudir um pouco a cama, depois
sentar no deck e curtir o sossego. Talvez jogar palavras cruzadas quando anoitecesse. Será
que isso é crime, Gerald? Que é que você acha? Diga porque eu quero realmente saber.
— Mas você disse...
Durante os últimos cinco minutos tentara lhe dizer de várias maneiras que queria se
livrar daquelas malditas algemas, e ele continuava a mantê-la presa. Sua impaciência se
transformou em fúria.
— Droga, Gerald, isso parou de ter graça para mim quase assim que começamos e
se você não fosse obtuso, teria percebido!
— Essa sua língua. Essa língua ágil e sarcástica. Às vezes me cansa tanto...
— Gerald, quando você mete uma idéia na cabeça, meiguice e humildade não
conseguem lhe sensibilizar. E de quem é a culpa?
— Não gosto de você quando fala assim, Jessie. Não gosto nadinha de você quando
fala assim. As coisas iam de mal a pior e daí para horríveis, e o que assustava era a
velocidade com que isso acontecia. De repente ela se sentiu muito cansada e lhe ocorreu um
verso de uma velha canção de Paul Simon: "Não quero nada com esse amor ensandecido."
No alvo, Paul. Você pode ser baixinho, mas não é burro...
— Sei que não gosta. E está bem que não goste, porque no momento a questão são
essas algemas e não se você gosta ou deixa de gostar de mim quando lhe digo que mudei de
idéia sobre alguma coisa. Quero que me livre dessas algemas. Está ouvindo?
Não, percebeu com desalento. Ele realmente não estava ouvindo. Continuava na
cena anterior.
— Você é tão irritantemente incoerente, tão irritantemente sarcástica. Amo você,
Jessie, mas odeio sua maldita insolência. Sempre odiei. — Passou a palma da mão esquerda
pelo beicinho rosado de aborrecimento e contemplou-a com tristeza: pobrezinho do Gerald,
encalhado com uma mulher que o atraíra para a selva primitiva e em seguida se recusava a
cumprir suas obrigações sexuais. Pobre Gerald logrado, que não fazia o menor movimento
para apanhar as chaves das algemas na cômoda junto à porta do banheiro
A apreensão de Jessie se transformara em outra coisa — enquanto mantinha as
costas viradas, por assim dizer. Transformara-se numa mistura de raiva e medo que só se
lembrava de ter sentido uma vez. Quando andava por volta dos doze anos, seu irmão Will
lhe dera uma cutucada no ânus em uma festa de aniversário. Todos os seus amigos tinham
visto, e caído na gargalhada. Ha ha. que grande piada, minha senhora. Para ela não fora
piada nenhuma.
Will era quem mais gargalhava, e com tanto exagero que chegara a se dobrar
apoiando as mãos nos joelhos, os cabelos a lhe caírem pelo rosto. Isso acontecera um ano e
pouco depois do aparecimento dos Beatles, dos Rolling Stones, dos Searchers e outros, e era
uma senhora cabeleira que caía pelo rosto de Will. Aparentemente isso bloqueara sua visão,
porque nem percebeu a intensidade da raiva de Jessie... e em circunstâncias normais
prestava muita atenção às mudanças de humor da irmã. Continuara a rir até que a espuma de
raiva subiu a tal ponto que Jessie percebeu que ou tomava alguma atitude ou simplesmente
explodiria. Então cerrou a mão delicada e mandou um soco na boca do irmão querido
quando finalmente ele levantara a cabeça para olhá-la. O soco derrubou-o como se fosse
uma garrafinha de boliche e ele chorou para valer.
Depois tentara dizer a si mesma que o irmão chorara mais de surpresa do que de
dor, mas sabia, mesmo aos doze anos, que não era verdade. Ela o machucara, e muito. O
lábio inferior de Will abrira em um ponto e o superior em dois. e ela o machucara, e muito.
E por quê? Porque ele fizera uma imbecilidade? O irmão só tinha nove anos — completaraos
naquele dia — e nessa idade todas as crianças são imbecis. Não; não fora pela
imbecilidade de Will. Fora pelo seu medo — medo de que se não fizesse alguma coisa com
aquela feia espuma de raiva e constrangimento, ela {apagaria o sol) a faria explodir. A
verdade, que descobrira naquele dia, era a seguinte: possuía no íntimo um poço de água
envenenada, e ao cutucá-la, William baixara um balde pelo poço. que subira cheio de
escória borbulhante Odiara-o por isso e achava que fora realmente o ódio que a fizera
agredir o irmão Essa coisa profunda a apavorara. Agora, tantos anos depois, estava
descobrindo que continuava a apavorá-la... e a enfurecê-la, também.
Você não vai apagar o sol. pensou sem ter a menor idéia do que isso queria dizer.
Não vai mesmo.
— Não quero discutir ninharias. Gerald. Apanhe as chaves dessas porras e me solte
Então ele disse uma coisa que a surpreendeu de tal maneira que em princípio não
conseguiu entender:
— E se eu não soltar?
O que percebeu primeiro foi a mudança na voz de Gerald. Ele normalmente falava
num tom franco, rude, cordial — Sou eu que mando aqui. e isso é uma sorte para todos nós.
não é mesmo? o tom proclamava — mas este era baixo, ronronante, um tom que ela não
conhecia. O brilho voltara aos seus olhos — aquele brilhinho afogueado que no passado a
excitara como uma bateria de refletores. Não conseguia discerni-lo muito bem — os olhos
de Gerald pareciam duas fendas estufadas por trás do óculos de aros de ouro — mas estava
presente. Sem dúvida alguma.
Havia ainda o caso do estranho Sr. Feliz. O Sr. Feliz não murchara nada. Parecia, de
fato, estar mais ereto do que em qualquer ocasião que se lembrasse... mas talvez isso fosse
apenas sua imaginação.
Você acha, boneca? Eu não.
Ela processou toda essa informação antes de finalmente retomar a última coisa que
ele falara — aquela surpreendente pergunta. E se eu não soltar? Desta vez ela desprezou o
tom e foi direto às palavras e, quando as compreendeu integralmente, sentiu a raiva e o
medo subirem um ponto. Lá dentro aquele balde descia de novo pelo poço para mergulhar
na gosma — para se encher de espuma infestada de micróbios quase tão venenosa quanto
uma cobra coral.
A porta da cozinha bateu contra o portal e o cachorro começou a latir no mato outra
vez, parecendo mais perto que nunca. Era um som estilhaçante, desesperado. Ouvir aquilo
durante muito tempo sem dúvida provocava enxaqueca.
— Olhe aqui, Gerald — ouviu a nova voz firme dizer. Tinha consciência de que a
nova voz poderia ter escolhido um momento melhor para quebrar seu silêncio — afinal
Jessie se encontrava ali numa praia deserta do lago Kashwakamak, algemada aos pilares da
cama, vestindo apenas exíguas calcinhas de náilon — mas descobria que a admirava. Quase
a contragosto admirava-a. — Você ainda está escutando? Sei que ultimamente não escuta
quando sou eu que falo, mas desta vez é muito importante que me escute. Então... está
finalmente me escutando?
Ele estava ajoelhado na cama, observando-a como a um inseto até então
desconhecido. Tinha as bochechas, em que serpeavam intrincadas redes de veiazinhas
vermelhas (imaginava-as como marcas do que Gerald bebia), quase roxas. Uma faixa
semelhante atravessava sua testa. A cor era tão escura, a forma tão delineada, que parecia
um sinal de nascença.
— Estou — respondeu, e no seu novo tom ronronante a palavra saiu essstou. —
Estou escutando, Jessie. Sem a menor dúvida.
— Ótimo. Então irá até a cômoda e apanhará as chaves. Abrirá isto — chocalhou o
pulso direito contra o espelho da cama — e depois abrirá isto — chocalhou igualmente o
pulso esquerdo. — Se fizer isso logo, poderemos ter uma relaçãozinha normal, indolor, com
orgasmo mútuo antes de regressarmos à nossa vida normal e indolor em Portland.
Sem objetivo, pensou. Deixou de incluir essa. Vida normal, indolor, sem objetivo,
em Portland Talvez fosse verdade ou talvez apenas um excesso de teatralidade (estar
algemada a uma cama fazia emergir a teatralidade de uma pessoa, começava a descobrir),
mas provavelmente fora bom não ter incluído a falta de objetivo. Indicava que a nova voz
pode parar, afinal não era tão indiscreta. Então, como se quisesse contradizê-la, ouviu a voz
— que era, afinal, a voz dela — começar a se elevar em inconfundíveis batidas e pulsações
de raiva.
— Mas se continuar a encher o saco e me aborrecer, vou daqui direto para a casa de
minha irmã, descubro quem fez o divórcio dela e ligo para a advogada. Não estou
brincando. Não quero entrar nesse jogo!
Agora algo realmente incrível estava ocorrendo, algo que ela jamais suspeitaria em
um milhão de anos: o sorriso dele reaparecia. Emergia como um submarino que finalmente
chegasse a águas amigas depois de uma longa e perigosa viagem. Mas isso não era o mais
incrível. O incrível mesmo era que o sorriso deixara de fazer Gerald parecer um retardado
inofensivo. Fazia-o parecer um louco perigoso.
A mão de Gerald se esticou outra vez, acariciou seu seio esquerdo e, em seguida,
apertou-o para provocar dor. Finalizou o gesto desagradável com um beliscão no mamilo.
coisa que jamais fizera antes.
— Ai, Gerald! Isso dói.
Ele fez um gesto solene e apreciativo com a cabeça que combinou muito
estranhamente com o horrível sorriso.
— Que ótimo, Jessie. Tudo isso, quero dizer. Você poderia ser atriz. Ou garota de
programa. Uma daquelas realmente bem pagas. — Hesitou e então acrescentou: — Isto é
um elogio.
— De que é que você está falando? — Só que tinha plena certeza de que sabia.
Estava realmente assustada agora. Alguma coisa maligna soltara-se no quarto: girava sem
parar como um pião negro.
Mas também continuava furiosa — tão furiosa quanto no dia em que Will a
cutucara. Gerald chegou a dar uma risada.
— Do que estou falando? Por um instante você me fez acreditar na sua cena. É
disso que estou falando. — Deixou cair a mão sobre a coxa direita de Jessie. Quando tornou
a falar, a voz era enérgica e curiosamente impessoal. — Bom... você vai abrir as pernas para
mim, ou terei que abri-las? Isso faz parte do jogo também?
— Deixa eu me levantar!
— Claro... depois. — Esticou a outra mão. Desta vez foi o seio direito que ele
beliscou, e desta vez o beliscão foi tão forte que produziu centelhinhas nervosas por toda a
lateral do seu corpo até o quadril. — Por ora, abra as lindas pernas, minha altiva bela!
Observou-o mais atentamente e constatou uma coisa horrível: ele sabia. Sabia que
não estava brincando ao dizer que não queria continuar com o jogo. Sabia, mas preferira
fingir que não sabia. Será que uma pessoa podia fazer isso?
Com toda certeza, disse a voz pode-parar. Quando se é mestre em chicanas na maior
firma de advocacia do norte de Boston ao sul de Montreal, acho que se é capaz de saber o
que se quer saber e desconhecer o que não se quer saber. Acho que você está metida numa
enrascada, queridinha. O tipo de enrascada que termina casamentos. É melhor cerrar os
dentes e apertar os olhos, porque acho que vai levar uma pistolada de vacina do caramba.
Aquele sorriso. Aquele sorriso perverso e mesquinho. Fingindo ignorância. E
fazendo isso com tanto empenho que mais tarde seria capaz de passar ileso por um detetor
de mentiras. Achei que fazia parte do jogo, diria ofendido, com olhar de inocência. Pensei
mesmo. E se insistisse, agredindo-o com sua raiva, ele finalmente recorreria à defesa mais
antiga do mundo... e se meteria por ela. como um lagarto numa fenda de rocha: Você bem
que gostou. Sabe que sim. Por que não admite?
Fingindo ignorar. Sabendo, mas planejando prosseguir mesmo assim. Algemara-a
aos pilares da cama. fizera-o com a sua colaboração, e agora, que merda, não vamos dourar
a pílula, agora pretendia estuprá-la, estuprá-la de verdade enquanto a porta batia e o
cachorro latia e a serra rosnava e o mergulhão alternava falsetes e graves lá no lago.
Realmente tencionava estuprá-la. Sim senhor, quá-quá-quá, você nunca comeu uma xota até
provar uma que salta debaixo de você como frango numa grelha em brasa. E se ela fosse
mesmo para a casa de Maddy quando o exercício de humilhação terminasse, ele continuaria
a insistir que a idéia de estupro nem lhe passara pela cabeça.
Ele colocou as mãos rosadas nas coxas de Jessie e começou a afastar suas pernas.
Ela não resistiu muito: no momento, pelo menos, sentia-se tão horrorizada e surpresa com o
que acontecia ali que não opôs muita resistência.
E essa é a atitude certa, afirmou a voz mais conhecida em seu íntimo. Fique deitada
aí quietinha e deixe-o dar uma bimbada. Afinal, qual é o problemas? Já fez isso no mínimo
mil vezes antes e você nunca teve náuseas. E caso tenha esquecido, já faz um bom tempo
que deixou de ser uma virgenzinha ruborizada.
E o que aconteceria se não escutasse e seguisse os conselhos daquela voz? Qual
seria a alternativa?
Como que em resposta surgiu-lhe uma imagem horrenda na mente. Viu-se
prestando depoimento numa vara de família. Não sabia se ainda existiam tais varas no
Maine, mas isso não diminuiu em nada a nitidez da visão. Viu-se metida num conservador
tailleur rosa. com uma blusa de seda pêssego por baixo. Trazia os joelhos e tornozelos
virtuosamente juntos. A pequena carteira branca, descansava no colo. Viu-se contando ao
juiz que lembrava o âncora solene que. sim. era verdade que acompanhara Gerald à casa de
verão de livre e espontânea vontade, sim. permitira que ele a amarrasse aos pilares da cama
com dois pares de algemas, também de livre e espontânea vontade, e sim, de fato tinham
praticado tais jogos antes, embora jamais o fizessem na casa do lago.
Sim, Meritíssimo. Sim.
Sim, sim, sim.
Enquanto Gerald abria suas pernas. Jessie se ouviu contando ao juiz-âncora que
tinham começado com lenços de seda. e que permitira que o jogo continuasse e progredisse
de lenços para cordas e daí para algemas, embora se cansasse muito depressa da coisa toda.
Sentira repulsa. Tanta repulsa, na realidade, que permitira que Gerald a transportasse de
carro os 133 km que separam Portland do lago Kashwakamak em um dia útil de outubro;
tão revoltada que permitira mais uma vez que ele a acorrentasse como cachorro: tão
entediada com a coisa toda que vestira apenas calcinhas de náilon tão finas que era possível
ler através delas a seção de classificados de um jornal. O juiz acreditaria em tudo e se
compadeceria profundamente. Claro que sim. Quem não se compadeceria? Podia até se ver
sentada ali no banco das testemunhas a dizer:
— Então, eu estava ali. algemada aos pilares da cama. praticamente nua a não ser
pelas calcinhas eróticas e o sorriso, mas mudei de idéia no último instante, e Gerald sabia
disso, o que configura o estupro.
Sim, senhor, isso resolveria o seu caso. Aposto.
Acordou dessa espantosa fantasia e deu com Gerald a lhe arrancar as calcinhas.
Estava ajoelhado entre suas pernas, o rosto tão compenetrado que alguém poderia até pensar
que se preparava para enfrentar os exames da Ordem dos Advogados e não a esposa
relutante. Escorria do meio de seu grosso lábio inferior um filete de saliva clara.
Deixe que a possua. Deixe que dê a sua bimbada. É a pressão no saco que está
enlouquecendo o homem, e você sabe disso. Enlouquece todos eles. Quando ele se livrar da
pressão, conseguirão conversar de novo. Poderá lidar com ele. Portanto não crie caso —
fique quietinha ai e espere até que ele se desafogue.
Um bom conselho e provavelmente ela o teria seguido não fosse aquela nova
presença em seu íntimo. A recém-chegada anônima achava sem sombra de dúvida que a
fonte normal de conselhos de Jessie — a voz que com o tempo ela passara a considerar uma
espécie de Esposa Perfeita — era uma grandessíssima boboca. Jessie talvez tivesse deixado
os acontecimentos seguirem seu curso, mas duas coisas aconteceram simultaneamente.
Primeiro, a percepção de que, embora tivesse os pulsos algemados aos pilares, seus pés e
pernas estavam livres. No instante em que percebeu isso, um filete de baba escorreu do
queixo de Gerald. Balançou um momento, alongou-se e em seguida caiu em sua barriga, ali
acima do umbigo. Havia alguma coisa familiar nessa sensação, e ela foi assaltada por uma
impressão intensíssima de déjà vu. O quarto pareceu escurecer à sua volta, como se as
janelas e a clarabóia tivessem sido substituídas por vidraças fumês.
E a ousadia dele, pensou, embora soubesse muito bem que não era. E a deslavada
ousadia dele.
Sua reação não era tanto dirigida a Gerald quanto à sensação odienta que veio
subindo como um vagalhão do fundo de sua mente. Num sentido muito real agiu sem
pensar, apenas revidou com a repugnância terrível e instintiva de uma mulher que percebe
que a coisa que se debate presa em seus cabelos é um morcego.
Encolheu as pernas, no movimento o joelho direito errou por um triz o promontório
do queixo de Gerald, e em seguida investiu os pés descalços como pistões. A sola e o arco
do pé direito se enterraram na parte convexa da barriga do marido. O calcanhar do esquerdo
bateu contra a raiz dura do pênis e os testículos que pendiam logo abaixo como frutos claros
e maduros.
Ele rolou para trás. o traseiro desceu sobre as panturrilhas gordas e lisas. Girou a
cabeça para o alto em direção à clarabóia e ao teto branco estampado de ondas luminosas, e
soltou um grito agudo e ofegante. O mergulhão no lago tornou a gritar naquela hora. em
infernal contraponto; a Jessie pareceu o grito de solidariedade de um macho para outro.
Os olhos de Gerald não pareciam fendas agora; tampouco brilhavam. Arregalavamse,
azuis como o céu perfeito daquele dia (a idéia de ver aquele céu sobre o lago despovoado
de outono fora fator decisivo quando Gerald ligara do escritório para dizer que tivera um
adiamento e lhe perguntar se gostaria de passar o dia na casa de verão e, quem sabe, a
noite), e revelaram uma expressão agônica que ela mal conseguia encarar. Os tendões
saltavam nos lados do pescoço. Jessie pensou: Não vejo isso desde o verão chuvoso em que
ele praticamente abandonou a jardinagem e adotou o uísque como passatempo favorito.
Seu grito começou a emudecer. Era como se alguém com um controle remoto
estivesse reduzindo seu volume. Não era bem o caso, naturalmente; estivera gritando
durante um tempo extraordinário, talvez há uns trinta segundos, e estava simplesmente
perdendo o fôlego. Devo tê-lo machucado muito, pensou. A redinha vermelha em suas
bochechas e a faixa que cruzava a testa começaram a arroxear.
Você conseguiu! a voz desanimada da Esposa Perfeita exclamou. Você realmente
conseguiu!
É, um direto sensacional, não foi? a nova voz comentou.
Você acertou o saco do seu marido!, a Esposa Perfeita berrou. Quem lhe deu o
direito de fazer uma coisa dessas? Quem lhe deu o direito de até mesmo brincar com uma
coisa dessas?
Sabia a resposta para essa pergunta, ou pensou que sabia: reagira porque o marido
pretendera estuprá-la e fazer parecer mais tarde que fora um mal-entendido entre cônjuges
de um casamento essencialmente harmonioso que andavam fazendo um inofensivo jogo
sexual. A culpa era do jogo. diria, dando de ombros. Do jogo e não minha. Não precisamos
jogar outra vez. Jessie, se você não quiser. Sabendo, é claro, que nada que pudesse oferecer
a levaria jamais a oferecer os pulsos para ser algemada de novo. Não, fora um caso em que a
última vez vale por todas. Gerald sabia disso, e pretendera tirar o maior proveito possível.
Aquela coisa negra que ela pressentira no quarto entrou num rodopio descontrolado,
exatamente como receara que o fizesse. Gerald ainda parecia estar gritando, embora nenhum
som (que ela pudesse ouvir) saísse de sua boca contraída em agonia. O rosto tornara-se tão
congestionado, que chegava a parecer negro em alguns pontos. A veia jugular — ou talvez
fosse a artéria carótida, se é que fazia diferença numa hora dessas — pulsava com violência
sob a pele cuidadosamente escanhoada da garganta do marido. Qualquer que fosse o nome.
parecia prestes a explodir, e Jessie sentiu uma desagradável e súbita punhalada de terror.
— Gerald? — Sua voz ecoou fraca e hesitante, a voz de uma menina que quebrou
um objeto de valor na festa de aniversário de uma amiga. — Gerald, você está bem?
Era uma pergunta imbecil, é claro, incrivelmente imbecil, mas era muito mais fácil
fazê-la do que outras que de fato tinha em mente: Gerald, você está muito machucado?
Gerald, você acha que pode morrer?
É claro que ele não vai morrer, a Esposa Perfeita respondeu nervosa. Você o
machucou, não resta dúvida, e deveria estar arrependida, mas ele não vai morrer. Ninguém
vai morrer aqui.
A boca contraída, e enrugada de Gerald continuava a tremer em silêncio, mas ele
não respondeu a pergunta. Levara uma das mãos à barriga; a outra envolvia os testículos
atingidos. Agora as duas subiram lentamente e pousaram na altura do mamilo esquerdo.
Assentaram como um par de rechonchudos passarinhos rosados, demasiado cansados para
voar além. Jessie via a marca de um pé descalço — o pé dela — aparecer na barriga rotunda
do marido. Era um vermelho vivo e acusador naquela pele rosada.
Ele exalava, ou tentava exalar, soprando uma névoa insistente que cheirava a
cebolas em decomposição. E a respiração residual, pensou. Os dez por cento inferiores de
nossos pulmões contém ar residual, não foi isso que nos ensinaram em biologia na escola
secundária? Acho que foi. Respiração residual, o famoso último arquejo dos que se afogam
ou sufocam. Depois que expelimos o ar. ou desmaiamos ou...
— Gerald! — exclamou num tom áspero de censura. — Gerald, respire! Os olhos
dele saltaram das órbitas como bolas de gude azuis num pedaço de massa de modelagem, e
ele de fato conseguiu puxar um único bocadinho de ar. Usou-o para dizer uma última
palavra, esse homem que às vezes parecia feito de palavras.
— ... coração... Foi tudo.
— Gerald! — Agora seu tom expressava choque além de censura, a professora
solteirona que surpreendesse um menininho assanhado levantando sua saia para mostrar à
turma os coelhinhos em suas calcinhas. — Gerald, pare já com isso e respire, droga!
Gerald não obedeceu. Em vez disso, seus olhos reviraram nas órbitas, revelando
córneas amareladas. A língua saltou para fora da boca produzindo um som de peido. Um
jato de urina fumegante e alaranjada saiu de seu pênis murcho e gotas escaldantes banharam
os joelhos e coxas de Jessie. Ela soltou um guincho longo e cortante. Desta vez não teve
consciência de dar puxões nas algemas, de usá-las para se afastar o máximo dele, enroscou
as pernas sob o próprio corpo nesse movimento.
— Pare com isso, Gerald! Pare se não você vai cair da c...
Tarde demais. Mesmo que ainda a ouvisse, o que sua mente racional duvidava, fora
tarde demais. As costas curvadas de Gerald arquearam a parte superior do seu corpo para
além da beirada da cama e a gravidade fez o resto. Gerald Burlingame com quem Jessie uma
vez comera picolés recheados na cama, tombou para trás, os joelhos para o alto e a cabeça
para baixo, como um garoto desajeitado tentando impressionar os amiguinhos no dia de
entrada franca na piscina da ACM. O som do crânio se chocando contra o chão de madeira
de lei fez Jessie guinchar mais uma vez. Lembrou-lhe o som de um enorme ovo se partindo
contra a borda de uma tigela de pedra. Teria dado qualquer coisa para não precisar ouvir
aquilo.
Seguiu-se o silêncio, interrompido apenas pelo ronco distante da motosserra. Uma
grande rosa cinzenta abriu-se no ar diante dos olhos arregalados de Jessie. As pétalas foram
se desdobrando sem parar, e quando tornaram a se fechar sobre ela como as asas
empoeiradas de enormes mariposas descoloridas, obliterando tudo por instantes, a única
sensação clara que teve foi de gratidão.
CAPÍTULO II
Aparentemente encontrava-se em um longo e frio corredor imerso em nevoeiro
branco, um corredor que se inclinava muito para um lado como aqueles em que as pessoas
estão sempre andando em filmes como A hora do pesadelo e seriados de TV como Além da
imaginação. Estava despida e o frio começava a afetá-la, fazendo seus músculos doerem —
principalmente nos ombros, costas e pescoço.
Tenho que sair daqui ou vou adoecer, pensou. Já estou sentindo cãibras provocadas
pela névoa e a umidade.
(Embora soubesse que não era a névoa nem a umidade.)
Além disso, há algum problema com Gerald. Não consigo me lembrar exatamente
qual. mas acho que talvez esteja doente.
(Embora soubesse que doente não era bem a palavra certa.)
Mas, e isso era curioso, uma outra parte dela realmente não queria fugir do corredor
inclinado e nevoento. Esta parte sugeria que estaria bem melhor ali. Que se saísse iria se
arrepender. Por isso continuou no corredor mais um pouco.
O que a trouxe finalmente de volta foi um cachorro latindo. Era um latido
extremamente feio, basicamente grave mas que se decompunha em frases agudas nos
registros superiores. Todas as vezes que o animal dava aquele latido, parecia que estava
vomitando uma bocada de estilhaços cortantes. Ouvira aquele latido antes, embora talvez
fosse melhor — de fato bem melhor — se conseguisse não se lembrar quando ou onde, ou o
que acontecera então.
Mas pelo menos levou-a a se movimentar — pé esquerdo, pé direito, um dois, feijão
com arroz — e de repente lhe ocorreu que veria melhor no nevoeiro se abrisse os olhos, e
assim fez. Não foi nenhum corredor mal-assombrado de Além da imaginação que viu, mas o
quarto principal de sua casa de verão no extremo norte do lago Kashwakamak — a área
conhecida por baía Notch. Imaginou que a razão do frio era que estava usando apenas uma
calcinha, e o pescoço e os ombros doíam porque, algemada aos pilares da cama, seu traseiro
escorregara cama abaixo quando desmaiara. Não havia corredor inclinado; não havia
umidade nevoenta. Só o cachorro era real e continuava se esbaldando de latir. Agora parecia
bem próximo da casa. Se Gerald ouvisse aquilo...
A lembrança de Gerald produziu um tremor, e disparou complexas espirais de
sensibilidade por seus bíceps e tríceps dormentes. As centelhas foram diminuindo até
desaparecerem nos cotovelos e Jessie percebeu, com o desânimo difuso de quem acaba de
acordar, que seus antebraços estavam praticamente insensíveis e não faria diferença se as
mãos fossem luvas estofadas com purê de batata congelado.
Isto vai doer. pensou, e então tudo voltou à lembrança... principalmente a imagem
de Gerald mergulhando de cabeça pela beirada da cama. O marido encontrava-se no chão,
morto ou inconsciente, e ela deitada ali em cima na cama. pensando na chateação que era ter
os antebraços e as mãos dormentes. Como alguém podia ser tão egoísta e egocêntrica?
Se ele está morto, a culpa é só dele, disse a voz chega-de-papo. Tentou acrescentar
outras verdades de ordem prática também, mas Jessie a amordaçou. Seu estado não-de-todo
consciente lhe oferecia uma perspectiva mais clara dos arquivos mais fundos em seus
bancos de memória e, de repente, percebeu de quem era a voz — ligeiramente anasalada.
brusca, sempre na iminência de uma risada perspassada de ironia. Pertencia à sua
companheira de quarto na universidade, Ruth Neary. Agora que sabia. Jessie descobriu que
não sentia a menor surpresa. Ruth sempre fora extremamente generosa em dar opiniões, e
seus conselhos muitas vezes escandalizaram a companheira inexperiente de dezenove anos
que viera de Falmouth Foreside... o que sem dúvida fora sua intenção, pelo menos em parte;
o coração de Ruth sempre estivera no lugar certo, e Jessie jamais duvidara que realmente
acreditasse em sessenta por cento do que dizia e realmente tivesse feito quarenta por cento
do que dizia ter feito. Quando se tratava de sexo a percentagem era provavelmente ainda
mais alta. Ruth Neary. a primeira mulher que Jessie conhecera que se recusava
terminantemente a raspar as pernas e as axilas; Ruth, que certa vez enchera a fronha de uma
orientadora chata com espuma para higiene vaginal, perfume morango; Ruth, que por
principio comparecia a toda manifestação estudantil e assistia a toda peça experimental do
campus. Se tudo falhar, boneca, algum cara bonitão provavelmente vai tirar a roupa,
confidenciara a uma perplexa, mas fascinada Jessie, quando voltaram de uma peça
estudantil intitulada O filho do papagaio de Noé. Bem, não é sempre, mas normalmente
acontece — acho que é para isso que realmente servem as peças escritas e produzidas por
estudantes — para que os rapazes e as garotas possam tirar as roupas e se bolinarem em
público.
Não pensava em Ruth há anos e agora Ruth estava dentro de sua cabeça,
dispensando pérolas de sabedoria como fizera no passado. Bem, por que não? Quem seria
mais habilitada para aconselhar os mentalmente confusos e emocionalmente perturbados do
que Ruth Neary. que saíra da Universidade de New Hampshire para três casamentos, duas
tentativas de suicídio, e quatro reabilitações por toxicomania e alcoolismo? Querida Ruth,
mais um brilhante exemplo da maneira acertada com que a antiga Geração do Amor estava
fazendo a transição para a meia-idade.
— Nossa, só faltava essa. Querida, e infernal. Conselheira — exclamou, e sua voz
arrastada e pastosa assustou-a mais do que a dormência nas mãos e nos antebraços.
Tentou içar-se de volta à posição semi-sentada que conquistara pouco antes da
exibiçãozinha de mergulho de Gerald (Será que aquele horrível ruído de ovo partindo fizera
parte do seu sonho? Rezava para que assim fosse), e os pensamentos sobre Ruth foram
engolfados por um repentino acesso de pânico quando não conseguiu se mexer nem um
milímetro. As espirais de sensibilidade perpassaram seus músculos de novo, mas foi só o
que aconteceu. Seus braços continuaram pendurados acima e ligeiramente atrás dela, tão
imóveis e insensíveis quanto gravetos de lenha para fogão. A sensação de embriaguez na
cabeça desapareceu — o pânico, estava descobrindo, dava de dez nos sais para desmaios —
e seu coração engrenou uma quarta, mas foi só. Uma imagem nítida destacada de um texto
de história antiga lampejou em sua retina por instantes: um círculo de gente que ria e
apontava para uma moça com a cabeça e as mãos metidas em troncos. A mulher curvava-se
como uma bruxa de conto de fadas e seus cabelos caíam pelo rosto lembrando uma mortalha
de penitente.
O nome dela é Esposa Perfeita Burlingame e está sendo castigada por ter ferido o
marido, pensou. Estão castigando a Esposa Perfeita porque não conseguem pegar a
verdadeira culpada pelo ferimento... a que fala como a minha antiga companheira de quarto.
Mas será que ferir era a palavra certa? Não era bem provável que estivesse
dividindo o quarto com um morto? Não era também bem provável que. com ou sem
cachorro, a área do lago em que se situava a baía Notch estivesse inteiramente deserta? Que
se começasse a gritar só obteria resposta do mergulhão? Só isso e nada mais?
Foi em princípio este pensamento, que ecoava tão estranhamente "O corvo" de
Edgar Alan Poe, que lhe trouxe a percepção exata do que estava ocorrendo, da situação em
que se metera, e um terror pleno e irracional engolfou-a de repente. Durante uns vinte
segundos (se lhe perguntassem quanto tempo durara aquele acesso de pânico, ela
provavelmente teria calculado no mínimo três minutos e provavelmente até cinco)
permaneceu totalmente em seu poder. Restou uma nesguinha de racionalidade bem lá no
fundo, mas era inútil — uma simples espectadora que observava a mulher se debater na
cama com os cabelos a esvoaçar enquanto sacudia a cabeça de um lado para outro num
gesto de negação, ouvindo seus gritos roucos e aterrorizados.
Uma dor vítrea e profunda na base do pescoço, pouco acima do ponto onde
começava o ombro esquerdo, pôs fim ao pânico. Era uma cãibra muscular, fortíssima.
Gemendo, Jessie deixou a cabeça pender para trás contra as tabuinhas de mogno que
formavam a cabeceira da cama. O músculo distendido se imobilizara numa posição forçada
e parecia uma pedra de tão duro. O fato de seu movimento violento provocar choques de
sensibilidade até os antebraços e as palmas das mãos pouco significava comparado àquela
dor excruciante, e descobriu que recostar-se na cabeceira da cama apenas sobrecarregava o
músculo dolorido.
Movendo-se instintivamente, sem ao menos pensar, Jessie plantou os calcanhares na
colcha, ergueu as nádegas, e deu impulso com os pés. Seus cotovelos dobraram e a pressão
nos ombros e braços diminuiu. Minutos depois a rigidez no seu deltóide começou a ceder.
Ela exalou um longo e rouco suspiro de alívio.
O vento — reparou que aumentara bastante desde a brisa inicial — soprava em
rajadas, rumorejando pelos pinheiros na encosta entre a casa e o lago. Na cozinha (que era
outro universo no que lhe tocava), a porta que ela e Gerald tinham deixado mal fechada
batia contra o portal empenado: uma vez, duas vezes, três vezes, quatro. Esses eram os
únicos sons; só esses e nada mais. O cachorro parara de latir, pelo menos por ora, e a
motosserra parara de roncar. Até o mergulhão parecia ter parado para um cafezinho.
A imagem de um mergulhão lacustre na hora do cafezinho, quem sabe flanando em
volta do bebedouro e passando cantadas em senhoras mergulhões, provocou um som seco e
crocitante em sua garganta. Em circunstâncias menos desagradáveis, aquele som poderia ser
considerado um riso gutural. Isso acabou de dissipar o seu pânico, deixando-a ainda
amedrontada mas. novamente, no comando de seus pensamentos e ações. Deixava-lhe
também um desagradável gosto metálico na boca.
Isso é adrenalina, boneca, ou que nome tenha a secreção glandular que o corpo
descarrega quando se cria garras e se começa a subir pelas paredes. Se alguém um dia lhe
perguntar o que é pânico, você poderá informar um vazio emocional que deixa a gente com
a sensação de estar chupando moedas.
Seus antebraços vibravam, e o centelhamento de sensibilidade se espalhara pelos
dedos também. Jessie abriu e fechou as mãos várias vezes, estremecendo ao fazê-lo. Ouvia o
som fraco das correntes das algemas chocalharem contra os pilares da cama e tirou um
tempinho para pensar se ela e Gerald teriam enlouquecido — era o que parecia agora,
embora não duvidasse que milhares de pessoas em todo o mundo faziam jogos semelhantes
todos os dias. Lera que havia até gente sexualmente livre que se pendurava em armários e se
masturbava enquanto a circulação de sangue no cérebro se estancava lentamente. Tais
notícias só serviam para aumentar sua crença de que os homens não eram abençoados com
pênis mas amaldiçoados com eles.
Mas se fora apenas um jogo (apenas isso e nada mais), por que Gerald sentira
necessidade de comprar algemas de verdade? Essa era uma pergunta bem interessante, não
era?
Talvez, mas creio que não é uma pergunta realmente importante no momento não é,
Jessie? Ruth Neary perguntou dentro de sua cabeça. Era realmente surpreendente em
quantas faixas a mente humana conseguia operar ao mesmo tempo. Em uma ela se descobria
perguntando que fim levara Ruth, a quem vira fazia dez anos. E fazia pelo menos três que
tivera notícias dela. A última comunicação fora um cartão-postal de um rapaz com um
enfeitado trajo de veludo vermelho com gola em babado. Tinha a boca aberta, e estirava a
comprida língua sugestivamente. UM DIA MEU PRÍNCIPE LAMBERÁ, dizia o cartão.
Humor da Nova Era, Jessie lembrou-se de ter pensado então. Os vitorianos tiveram Anthony
Trollope, um cronista incomparável; a Geração Perdida teve um critico mordaz em H. L.
Menken; nós ficamos entalados com cartões de felicitações pornográficos e ditos
espirituosos em pára-choques do tipo SOU O DONO DA ESTRADA, SIM
O cartão trazia um carimbo ilegível do Arizona e informava que Ruth entrara para
uma comunidade lésbica. Jessie não se surpreendera muito com a notícia; chegara até a
refletir que talvez a velha amiga, que era capaz de ser extremamente irritante e
surpreendentemente, ansiosamente, meiga (por vezes no mesmo fôlego), tinha enfim
encontrado no grande tabuleiro da vida o furo destinado a encaixar o seu pino desconforme.
Pôs o cartão de Ruth na gaveta superior esquerda da escrivaninha, aquela em que
guardava uma variedade de correspondência que provavelmente jamais responderia, e fora a
ultima vez que pensara na antiga companheira de quarto até o momento — Ruth Neary, que
cobiçava uma possante Harley-Davidson sem jamais ter conseguido dominar uma
transmissão padrão, nem mesmo uma simplezinha como a do Ford Pinto de Jessie; Ruth,
que muitas vezes se perdia no campus da Universidade de New Hampshire mesmo depois
de passar três anos lá; Ruth, que sempre chorava quando se esquecia que estava cozinhando
alguma coisa no fogareiro elétrico e estorricava tudo. Agia assim com tanta freqüência que
era realmente um milagre que não tivesse incendiado o quarto das duas — ou até o
dormitório inteiro. Estranho que a voz chega-de-papo, tão segura, pertencesse a de Ruth.
O cachorro recomeçou a latir. Não parecia mais próximo, nem tampouco parecia
mais afastado. Seu dono não andava caçando pássaros, isso era certo; nenhum caçador iria
querer conversa com um cachorro boquirroto. E se o bicho e o dono tinham saído para um
simples passeio à tarde, por que os latidos partiam do mesmo lugar nos últimos minutos?
Porque você estava com a razão, sua mente sussurrou. Não há nenhum dono. A voz
não era de Ruth, nem da Esposa Perfeita e tampouco era uma voz que pudesse considerar
sua (qualquer que fosse); era muito jovem e muito assustada. E. como a de Ruth, era
curiosamente familiar. É só um cão vira-lata. que anda vagando por conta própria. Não vai
ajudá-la. Jessie. Não vai nos ajudar.
Mas isso talvez fosse uma avaliação muito pessimista. Afinal de contas, ela não
sabia se era um cachorro vira-lata. sabia? Não com toda a certeza. E até que descobrisse,
recusava-se a acreditar na avaliação.
— Se não gostar, pode me processar — disse, a voz baixa e rouca.
E ainda havia o problema de Gerald. Em seu pânico e dor subsequente, ele quase
saíra de seus pensamentos.
— Gerald? — Sua voz continuava poeirenta, como que ausente Pigarreou e tentou
mais uma vez — Gerald!
Nada. Neris. Nenhuma resposta
Mas isto não significa que esteja morto portanto fique na sua — não vá se
descabelar outra vez.
Estava na dela, muito bem obrigada, e não tinha a menor intenção de se descabelar
outra vez Ainda assim, sentia um desânimo profundo se avolumando em suas vísceras uma
sensação que lembrava uma enorme saudade de casa A ausência de resposta de Gerald não
significava que estivesse morto. verdade, mas significava que estava no mínimo
inconsciente.
E provavelmente morto, acrescentou Ruth Neary Não quero estragar o seu desfile,
Jess — verdade — mas você está ouvindo ele respirar? Bem, em geral ouve-se as pessoas
inconscientes respirarem; aspiram grandes bocados aos roncos, falhados, de ar, não e
mesmo?
— Como e que eu vou saber, pô? — respondeu, mas era uma imbecilidade Sabia
sim porque fora uma dedicada voluntária de enfermagem durante quase todo o curso
secundário e não era preciso muito tempo para se ter uma boa idéia dos sons que um morto
produzia. nenhum Ruth sabia tudo a respeito do tempo que passara no hospital municipal de
Portland — que Jessie por vezes denominava O Tempo da Comadre — mas a voz teria
sabido mesmo que Ruth não soubesse, porque essa não era a voz de Ruth, essa voz era ela
Precisava se lembrar sempre porque curiosamente essa voz era o seu próprio eu.
Como as vozes que ouviu antes, murmurou a voz jovem. As vozes que você ouviu
depois do dia de escuridão.
Mas não queria pensar nisso Jamais queria pensar nisso. Já não tinha problemas
suficientes? Mas a voz de Ruth tinha razão, pessoas inconscientes — especialmente aquelas
que perderam os sentidos em conseqüência de uma boa pancada na moleira — em geral
roncavam mesmo. O que significava que...
— Ele provavelmente esta morto — concluiu naquela voz poeirenta. É isso ai.
Virou-se para a esquerda, mexendo-se com cuidado, consciente do músculo que
entrara tão dolorosamente em cãibra na base do pescoço daquele lado Não tinha ainda usado
toda a extensão da corrente que prendia o pulso direito quando viu um braço rosado e
gorducho e metade de uma mão — na realidade os dois dedos da ponta Era a mão direita
dele. sabia disso porque não havia aliança no anular. Dava para ver as meias-luas das unhas
Gerald sempre fora muito vaidoso com as mãos e as unhas Nunca percebera a extensão
dessa vaidade ate o momento Era engraçado corno se via pouco, às vezes Como se via
pouco mesmo depois de pensar que se vira tudo.
Suponho que sim mas vou lhe dizer uma coisa queridinha no momento pode baixar
as persianas porque não quero ter mais nada Não. nem mais uma coisinha Mas recusar-se a
ver era um luxo que não podia se dar, pelo menos por ora.
Continuou a se mexer com exagerado cuidado e. protegendo o pescoço e o ombro.
Jessie escorregou para a esquerda o máximo que a corrente permitiu Não era muito — uns
oito centímetros, se tanto — mas ampliou suficientemente o ângulo para poder ver parte do
braço de Gerald, parte do ombro direito e um pedacinho da cabeça Não tinha certeza, mas
achou que via também, gotículas de sangue nas bordas do seu cabelo ralo Supunha que era
no mínimo tecnicamente possível que fosse imaginação Esperava que sim.
— Gerald? — sussurrou — Gerald, esta me ouvindo? Por favor, diga que está.
Nenhuma resposta Nenhum movimento Sentia aquele profundo desânimo carregado
de saudade avolumar-se sempre mais, como uma fenda aberta
— Gerald? — sussurrou outra vez.
Porque esta sussurrando? Ele esta morto. O homem que uma vez lhe surpreendeu
com uma viagem de fim de semana a Aruba — Aruba, imagine só — e uma vez pendurou
seus sapatos de crocodilo nas orelhas em uma festa de Ano-Novo... esse homem está morto
Então, para que esta sussurrando, pô?
— Gerald! — Desta vez gritou o nome dele — Gerald, acorde.
O som da própria voz a gritar quase a mergulhou de novo em mais um interlúdio
convulsivo de pânico e o que assustava mais não era a incapacidade permanente de Gerald
de se mexer ou responder; era a percepção de que o pânico continuava presente, continuava
ali, incansável a sitiar sua mente consciente com a mesma paciência com que um predador
cerca a fogueira de uma mulher que por alguma razão se afastou dos amigos e se perdeu no
emaranhado escuro e profundo da mata.
Você não está perdida, disse a Esposa Perfeita, mas Jessie não confiava naquela
voz. Sua segurança soava falsa, sua racionalidade era apenas um verniz. Sabe exatamente
onde está.
Sabia, sim. Estava no fim de uma estradinha de terra, que saía de Bay Lane a uns
três quilômetros ao sul dali. A estradinha parecia um corredor atapetado de folhas amarelas
e vermelhas quando ela e Gerald passaram, e as folhas testemunharam silenciosas que o
ramal que levava à margem da baía Notch, no Kashwakamak, fora muito pouco usado, ou
até nem fora usado, nas três semanas em que as folhas tinham começado a se colorir e cair.
Esta margem do lago era quase exclusivamente o domínio de veranistas, e pelo que Jessie
sabia, a estradinha talvez não fosse usada desde o feriado do início de setembro. Eram oito
quilômetros que começavam no ramal, percorriam a Bay Lane e saíam na estrada 117, onde
havia umas poucas casas habitadas o ano inteiro.
Estou aqui sozinha, meu marido jaz morto no chão. e eu algemada à cama. Posso
gritar até ficar roxa e não vai adiantar nada: ninguém vai ouvir. O cara da motoserra é
provavelmente quem está mais próximo, e isso são no mínimo uns seis quilômetros de
distância. Talvez até esteja na outra margem do lago. O cachorro provavelmente me ouviria,
mas é quase certamente um vira-lata. Gerald está morto, o que é uma pena — nunca tive
intenção de matá-lo, se é que fiz isso — mas pelo menos foi uma morte relativamente rápida
para ele. Não será rápida para mim: se ninguém em Portland começar a se preocupar
conosco, e não há nenhuma razão para que se preocupem, pelo menos por ora...
Não deveria estar pensando assim; trazia o pânico mais perto. Se não tirasse os
pensamentos dessa rodeira, logo depararia com os olhos imbecis e aterrorizados do tal
pânico. Não, absolutamente não deveria estar pensando assim. A merda era que, uma vez
que se começava, era muito difícil parar.
Mas talvez seja o que você merece — a voz insolente e febril da Esposa Perfeita
inesperadamente se fez ouvir. Talvez seja. Porque você realmente o matou. Jessie. Deixe de
se enganar, porque eu não vou deixar. Tenho certeza de que ele não andava em grande
forma, e tenho certeza de que isso teria acontecido mais cedo ou mais tarde — um ataque
cardíaco no escritório, ou talvez na pista do pedágio a caminho de casa numa noite dessas,
ele com um cigarro na mão. tentando acendê-lo, e uma baita carreta na cola dele. buzinando
para fazê-lo voltar logo à pista da direita e deixar a passagem livre. Mas você não podia
esperar pelo mais cedo ou mais tarde, não é mesmo? Ah não. não você. não a filhinha
querida de Tom Mahout. Não podia deixar ele dar aquela trepada, não é mesmo? A menina
do Cosmo, Jessie Burlingame, diz "Nenhum homem vai me acorrentar". Tinha que acertá-lo
na barriga e no saco, não é? E tinha de fazer isso quando o termostato dele já passara muito
da linha vermelha. Vamos cortar os enfeites, querida: você assassinou Gerald. Por isso
talvez mereça estar aqui. algemada a essa cama. Talvez...
— Mas que baboseira — falou. Foi um alívio inexprimível ouvir aquela outra voz
— a de Ruth — sair de sua boca. Ela às vezes (bem... talvez muitas vezes seria mais
próximo da verdade) odiava a voz da Esposa Perfeita; odiava e temia. Era com freqüência
tola e inconstante, reconhecia isso, mas era também tão forte, tão difícil de contrariar.
A Esposinha estava sempre pressurosa para lhe dizer que comprara o vestido errado,
ou que escolhera o bufê errado para a festa de fim de verão que Gerald oferecia todo ano aos
outros sócios da firma e suas mulheres (só que na verdade era Jessie quem oferecia; Gerald
era apenas o cara que circulava e exclamava "que nada" e ganhava os elogios). Esposinha
era a tal que sempre insistia que ela precisava perder uns dois quilos ou mais. Aquela voz
não lhe dava descanso nem quando suas costelas começavam a aparecer. Esqueça as
costelas! gritava em tom de justificado horror. Olhe só os seus seios, garota! E se eles não
forem suficientes para fazê-la vomitar, olhe as suas coxas!
— Mas que baboseira — disse, tentando ser ainda mais incisiva, mas agora
percebeu um tremorzinho de nada na voz e isso não era tão bom. Não era nada bom. — Ele
sabia que eu estava falando sério... ele sabia. Então de quem foi a culpa?
Mas será que isso era realmente verdade? Por um lado era — vira quando ele
decidiu rejeitar o que lia em seu rosto e ouvia em sua voz porque isso estragaria o jogo. Mas
por outro lado — muito mais fundamental — ela sabia que isso não era nem um pingo
verdade, porque Gerald praticamente não a levava a sério em nada, nos últimos dez ou doze
anos de sua vida em comum. Fizera quase uma segunda carreira de não ouvir o que ela dizia
a não ser quando o assunto fosse comida ou o lugar em que deveria ir a tal hora em tal noite
(não se esqueça, hein, Gerald!). As outras únicas exceções às Regras de Ouvido eram os
comentários antipáticos que fazia sobre o peso dele ou o exagero na bebida. Ele ouvia o que
tinha a dizer sobre esses assuntos, e não gostava, mas os comentários eram descartáveis
porque integravam uma ordem natural mítica: o peixe tem de nadar, o passarinho tem de
voar, a mulher tem de chatear.
Então, exatamente o que esperara desse homem? Que dissesse "Sim, Querida, vou
soltá-la agora mesmo, e por falar nisso, obrigado por ampliar minha consciência"?
É, suspeitava que uma parte ingênua sua, uma parte jovenzinha, intocada, de olhos
orvalhados, esperara exatamente isso.
A motosserra que rosnara e cortara o ar de novo durante um bom tempo, de repente
emudeceu. Cachorro, mergulhão, e até o vento também emudeceram, ao menos
temporariamente, e o silêncio pareceu tão denso e palpável quanto dez anos de poeira
acumulada em uma casa vazia. Não ouvia nenhum carro nem motor de caminhão, nem
mesmo muito distante. E agora a voz que falou pertencia apenas a ela: Meu Deus, disse.
Meu Deus, estou completamente sozinha aqui. Estou completamente só.
CAPÍTULO III
Jessie fechou os olhos com força. Há seis anos passara um inútil período de cinco
meses fazendo psicoterapia, sem contar ao Gerald porque sabia que faria comentários
sarcásticos... e provavelmente se preocuparia com as histórias que ela poderia estar
contando. Declarara que seu problema era tensão e Nora Callighan, a terapeuta, lhe ensinara
uma técnica simples de relaxamento.
A maioria das pessoas associa o ato de contar até dez com o esforço de manter a
calma, dissera Nora, mas o que essa contagem realmente faz é nos dar uma chance de
reajustar os nossos marcadores emocionais... e qualquer um que não precise de um reajuste,
no mínimo uma vez por dia, provavelmente tem problemas bem mais sérios do que os seus
ou os meus.
Esta voz também era clara — suficientemente clara para produzir um sorrisinho
melancólico em seu rosto.
Eu gostava de Nora. Gostava muito dela.
Será que ela, Jessie, sabia disso à época? Ficou um pouco admirada ao descobrir
que não conseguia se lembrar disso com precisão, como também não conseguia se lembrar
com precisão por que deixara de se consultar com Nora nas tardes de terça-feira. Imaginava
que mil coisas — o Fundo Comunitário, o teto para os desabrigados da Rua do Tribunal,
talvez a campanha de fundos para a nova biblioteca — tivessem ocorrido todas ao mesmo
tempo. "Essas coisas acontecem", outro dos dizeres insossos da Nova Era que passam por
sabedoria. De qualquer modo fizera bem em suspender as consultas. Se não se impunha um
limite em algum ponto, a terapia continuava indefinidamente, até você e o terapeuta,
trôpegos. partirem juntos para a grande sessão de terapia de grupo no paraíso.
Deixa isso pra lá — faça a sua contagem, começando pelos dedos dos pés. Faça
exatamente como ela lhe ensinou.
E por que não?
Um é para os pés, são dez dedinhos, engraçadinhos, perfiladinhos.
Só que os oito estavam comicamente grudados uns nos outros e os dedões pareciam
cabeças de martelos de bola. Dois é para as pernas, um belo e longo par.
Bem, nem tão longo assim — afinal tinha apenas 1,70 m de altura e cintura baixa —
mas Gerald dizia que as pernas ainda eram seu ponto forte, pelo menos no departamento de
atração sexual. Sempre se divertira com essa afirmação que parecia perfeitamente sincera
por parte do marido. Por alguma razão ele não reparara nos joelhos, que eram feios como
nós de macieira, e nas coxas gordotas.
Três é para o meu sexo, o que é certo não pode ser errado.
Meio engraçadinho — um pouco engraçadinho demais, alguns diriam — mas não
revelava muito. Ergueu um pouco a cabeça, como se quisesse olhar o objeto em questão,
mas manteve os olhos fechados. Em todo o caso não precisava de olhos para vê-lo; vivia
com aquele determinado acessório há muito tempo. O que havia entre os ossos dos quadris
era um triângulo de pêlos ruivos muito crespos que protegia uma fenda despretensiosa com
a beleza estética de uma cicatriz mal sarada. Esta coisa — este órgão que na verdade era
pouco mais que uma prega funda de carne aninhada em uma trama de fibras musculares —
lhe parecia uma improvável fonte de mitologia, sem dúvida possuía status mítico na mente
coletiva masculina; era o vale encantado, não era? O redil onde até o mais selvagem dos
unicórnios acabava preso?
— Nossa mãe, que baboseira — disse, sorrindo brevemente mas sem abrir os olhos.
Só que não era baboseira, não de todo. Aquela fenda era o objeto do desejo de todo
homem — pelo menos dos heterossexuais — mas era também com freqüência objeto de seu
inexplicável desdém, desconfiança e ódio. Não se percebia aquela raiva remoída em todas as
piadas masculinas, mas estava presente em muitas, e bem visível por vezes, crua como uma
ferida: O que é uma mulher? Um sistema vivo de apoio para uma boceta.
Pare com isso, Jessie, falou a Esposa Perfeita. Tinha a voz alterada e desgostosa.
Pare agora mesmo.
Era uma ótima idéia, decidiu Jessie, e voltou os pensamentos para a contagem de
Nora. Quatro era para os quadris (demasiado largos), e cinco para a barriga (demasiado
gorda). Seis era para os seios, que ela achava seu ponto forte — Gerald, imaginava, ficava
desapontado com o leve traço de veias azuis sob as curvas suaves; os seios das garotas
encartadas nas revistas não mostravam essas marcas de tubulações internas. As garotas das
revistas tampouco tinham pelinhos minúsculos crescendo nas aréolas.
Sete eram os seus ombros excessivamente largos, oito, o pescoço (que costumava
ser bonito mas nos últimos anos decididamente lembrava o de uma galinha), nove era o seu
queixo recuado, e dez...
Pode parar! Pode parar aí, pô! a voz chega-de-papo interrompeu-a furiosa. Que
espécie de jogo idiota é esse?
Jessie fechou os olhos com mais força, perplexa com o nível de raiva na voz e
assustada com sua autonomia. Na raiva que expressava, a voz nem parecia saída da raiz
central de sua mente, mas uma verdadeira intrometida — um espírito alienígena que
quisesse possuí-la como o espírito de Pazuzu possuíra a garotinha em O Exorcista.
Não quer responder? Ruth Neary — dublê de Pazuzu — perguntou. Tudo bem.
talvez a pergunta seja demasiado complicada. Vamos simplificar bem a coisa para você,
Jess: quem transformou a ladainhazinha de rimas pobres que Nora Callighan inventou para
relaxar em um mantra de ódio a si mesma?
Ninguém, pensou humildemente em resposta e percebeu, no ato, que a voz chegade-
papo jamais aceitaria aquela resposta, portanto acrescentou: A Esposa Perfeita. Foi ela.
Não, não foi, não — a voz de Ruth tornou rápida. Parecia desgostosa com aquele
esforço capenga de transferir a culpa. A Esposinha é meio burra e. no momento, está
apavorada, mas no fundo é uma pessoa meiga, e suas intenções sempre foram boas. As
intenções de quem reeditou a lista de Nora foram ativamente más. Jessie. Não está
vendo?Não...
Não vejo nada, porque meus olhos estão fechados — respondeu numa voz trêmula
de criança. Quase abriu-os, mas algo lhe disse que poderia piorar a situação ao invés de
melhorá-la.
Quem foi, Jessie? Quem lhe ensinou que era feia e insignificante? Quem escolheu
Gerald Burlingame para seu companheiro espiritual e Príncipe Encantado, provavelmente
anos antes de você realmente encontrá-lo naquela festa do Partido Republicano? Quem
decidiu que ele era não só o que você precisava mas exatamente o que merecia?
Com um esforço extraordinário, Jessie afastou aquela voz — todas as vozes,
esperava fervorosamente — de sua mente. Recomeçou o mantra, desta vez em voz alta.
— Um são meus dedinhos, perfiladinhos, dois são minhas pernas, um belo e longo
par, três é o meu sexo, o que Deus fez certo não pode ser errado, quatro são meus quadris,
redondos e charmosos, cinco é minha barriga, onde armazeno o que como. Não conseguia
lembrar o resto dos versos (o que era provavelmente uma bênção; tinha uma forte suspeita
que Nora os inventara, provavelmente com idéia de publicá-los em uma das amenas e
suspirosas revistas de auto-ajuda que deixava na mesinha de sua sala de espera), por isso
continuou sem eles:
— Seis são meus seios, sete meus ombros, oito meu pescoço...
Parou para tomar fôlego e sentiu alívio em descobrir que os batimentos do seu
coração tinham passado de um galope para um trote rápido.
— ... nove é meu queixo, e dez são meus olhos. Olhos, arregalem-se!
Passou das palavras à ação e o quarto explodiu em luminosa existência à sua volta,
novo e — ao menos por ora — quase tão prazeroso quanto fora para ela quando o casal
passara o seu primeiro verão na casa. Em 1979, um ano que já ressoara a ficção científica e
agora parecia incrivelmente antiquado.
Jessie contemplou as paredes de lambris largos e cinzentos, o alto teto branco que
refletia as cintilações do lago, e as duas grandes janelas, uma de cada lado da cama. A da
esquerda que se abria para oeste e descortinava uma vista do deck, da terra ondulada que se
estendia além, e do azul forte e comovente do lago. A da direita oferecia uma vista menos
romântica — o caminho para carros e a imponente Mercedes cinzenta, que agora com oito
anos começava a revelar os primeiros pontinhos de ferrugem no painel inferior das portas.
Diretamente à sua frente viu a borboleta de batik pendurada sobre a cômoda, e
lembrou-se com uma supersticiosa ausência de surpresa que fora presente de Ruth em seu
décimo terceiro aniversário. De onde se encontrava não via a minúscula assinatura bordada
com linha vermelha, mas sabia que estava lá: Neary'83. Mais um ano de ficção científica.
Não muito longe da borboleta (e destoando absurdamente, embora ela nunca tivesse
reunido suficiente coragem para dizer isto ao marido) o canecão de cerveja da fraternidade
universitária de Gerald pendurado em um gancho gomado. A Alpha Gamma Rho não era
uma estrela muito brilhante no universo das fraternidades — os outros iniciados
costumavam chamá-la de Alfa Gadanhô — mas Gerald usava o distintivo com uma espécie
de orgulho pervertido, guardava o canecão na parede e todo ano bebia nele a primeira
cerveja do verão, quando vinham para o lago em junho. Era uma espécie de ritual que, por
vezes, a fazia pensar, muito antes das festividades de hoje, se estaria de posse de suas
faculdades mentais quando casara com Gerald.
Alguém deveria ter-me impedido, pensou melancolicamente. Alguém realmente
deveria, porque veja só no que deu.
Sobre a cadeira, do outro lado da porta do banheiro, via a elegante saia-calça e a
blusa de mangas cavadas que usara naquele dia quente, atípico no outono; o sutiã ficara
pendurado na maçaneta da porta. E cruzando a colcha e suas pernas, havia uma faixa
luminosa do sol da tarde que transformava os pelinhos macios das coxas em fios de ouro.
Não era o quadrado de luz que o sol projetava à 1 hora da tarde, nem tampouco o retângulo
que se formava às 2 horas; era uma faixa larga que logo encolheria para uma listra e,
embora uma interrupção de energia tivesse alterado a leitura do rádio-relógio digital sobre a
cômoda (ele piscava 12 horas sem parar, com a inexorabilidade de um letreiro de bar em
néon), a faixa luminosa indicava que ia dar quatro horas. Dentro em pouco, a listra
começaria a escorregar da cama e ela veria sombras nos cantos e sob a mesinha junto à
parede. E quando a listra se transformasse em um fio, que primeiro deslizaria pelo chão e
depois subiria a parede mais afastada, empalidecendo no caminho, as sombras começariam
a se esgueirar dos cantos e a se assenhorar do quarto como manchas de tinta, que engolissem
a luz ao crescer. O sol inclinava-se para oeste; dentro de uma hora, hora e meia no pior, ia se
pôr; mais ou menos quarenta e cinco minutos depois, estaria escuro.
Tal pensamento não lhe causou pânico — pelo menos por ora — mas estendeu um
véu de sombras sobre sua mente e uma atmosfera úmida de medo sobre seu coração. Viu-se
deitada ali, presa com algemas à cama, com Gerald morto no chão ao seu lado; viu-os
deitados ali no escuro muito depois que o homem da motosserra tivesse voltado para a
mulher, os filhos e a casa bem iluminada e o cachorro tivesse ido embora e só restasse
aquele maldito mergulhão lá fora no lago por companhia — só o pássaro e mais nada.
O Sr. e Sra. Gerald Burlingame passam uma última e longa noite juntos.
Ao contemplar o canecão de cerveja e a borboleta de batik, vizinhos improváveis
que só podiam ser tolerados numa casa de temporada única como esta, Jessie pensou que era
fácil refletir sobre o passado e igualmente fácil (embora bem menos agradável) sair
imaginando possíveis versões do futuro. A tarefa realmente ingrata era, ao que parecia,
permanecer no presente, mas achou melhor se esforçar o máximo para fazê-lo. Essa situação
sórdida ia ficar ainda mais sórdida se não tentasse. Não podia confiar em um deus ex
machina para tirá-la da encrenca em que se metera, uma bad trip, mas se conseguisse
resolver a coisa sozinha, haveria um prêmio: pouparia a si mesma o constrangimento de
ficar ali quase pelada enquanto um delegado qualquer abria suas algemas, perguntava que
diabo acontecera, e dava uma boa olhada no corpo branco da nova viúva, tudo ao mesmo
tempo.
Havia ainda duas outras coisas ocorrendo ao mesmo tempo. Teria dado qualquer
coisa para esquecê-las, ainda que temporariamente, mas não pôde. Precisava ir ao banheiro
e sentia sede. No momento a necessidade de desaguar era mais forte do que a necessidade
de se aguar, mas era a vontade de beber água que a preocupava. Ainda não era um problema
sério, mas isso logo mudaria se não conseguisse se livrar das algemas e chegar a uma
torneira. Mudaria de um jeito que nem queria pensar.
Teria graça se eu morresse de sede a duzentos metros do nono maior lago do Maine,
pensou, e sacudiu a cabeça. Não era o nono maior lago do Maine; onde é que andava com a
cabeça? O nono era Dark Score, aquele onde ela, os pais, o irmão e a irmã tinham ido tantos
anos. Volte antes das vozes. Volte antes...
Interrompeu-se. Difícil. Fazia muito tempo que não pensava no lago Dark Score e
não pretendia começar agora, com ou sem algemas. Era melhor pensar na sede.
Que há para pensar, boneca? É apenas uma reação psicossomática. Você sente sede
porque sabe que não pode se levantar e apanhar água. Nada mais simples.
Mas não era. Tivera uma briga com o marido e os dois chutes rápidos que lhe
mandara desencadearam uma reação em cadeia que finalmente resultará em morte. Ela
própria estava sofrendo os efeitos de uma descarga hormonal. O termo técnico para isso era
choque, e um dos sintomas mais comuns do choque era a sede. Deveria considerar-se uma
mulher de sorte por sua boca não estar mais seca, pelo menos por ora, e...
E taí uma coisa que eu talvez possa dar jeito.
Gerald era a quintessência do homem sistemático, e um dos seus hábitos era deixar
um copo d'água do seu lado na prateleira sobre a cabeceira da cama. Virou a cabeça para
cima e para a direita e lá estava um grande copo d'água com uma estrela de cubos de gelo à
superfície. O copo com certeza estava sobre um descanso para não deixar marca na
prateleira — assim era Gerald, tão cheio de consideração com os detalhinhos. Gotículas de
condensação porejavam no copo como suor.
Ao observá-las, Jessie sentiu a primeira pontada real de sede. Fez com que lambesse
os lábios. Ela escorregou para a direita até onde a corrente da algema esquerda permitia.
Eram apenas quinze centímetros, mas levou-a ao lado da cama de Gerald. O movimento
também revelou várias manchas escuras do lado esquerdo da colcha. Contemplou-as
distraída por algum tempo até que lembrou a maneira com que Gerald esvaziara a bexiga em
sua última agonia. Então desviou rapidamente os olhos para o copo d'água, ali em cima no
descanso redondo de cartão que provavelmente anunciava alguma marca de cerveja
preferida pelos executivos, muito provavelmente Beck ou Heineken.
Esticou a mão para fora e para o alto, lentamente, desejando que a extensão de seu
braço fosse suficiente. Não foi. As pontas de seus dedos pararam a uns sete centímetros do
copo. A pontada de sede — um ligeiro aperto na garganta, um ligeiro formigamento na
língua vieram e se foram.
Se ninguém aparecer ou se eu não conseguir pensar num jeito de me libertar até
amanhã de manhã, não suportarei sequer olhar para aquele copo.
A idéia trazia em si uma fria razoabilidade que aterrorizava em si e por si. Mas ela
não estaria ali amanhã de manhã, essa era a questão. A idéia era totalmente absurda.
Insensata. Uma piração. Nem valia a pena considerar. Era...
Pare, disse a voz chega-de-papo. Simplesmente pare. E ela obedeceu.
Precisava encarar que a idéia não era totalmente absurda. Recusava-se a aceitar ou
sequer considerar a possibilidade de que poderia morrer ali — era uma piração, é claro —
mas talvez tivesse de enfrentar longas e desagradáveis horas se não espanasse as teias de
aranha de sua velha máquina de pensar e a pusesse a funcionar.
Longas, desagradáveis... e talvez dolorosas, acrescentou nervosa a Esposa Perfeita.
Mas a dor seria um ato de penitência, não seria? Afinal, você provocou essa situação. Não
quero ser cansativa, mas se você tivesse deixado ele dar aquela bimbadinha...
— Você está sendo cansativa, Esposinha — interrompeu Jessie. Não se lembrava de
ter algum dia falado em voz alta com alguma voz interior. Pensou se estaria ficando doida.
Decidiu que não estava ligando a mínima, pelo menos por ora.
Jessie tornou a fechar os olhos.
CAPÍTULO IV
Desta vez não foi o próprio corpo que ela visualizou na escuridão sob as pálpebras
cerradas, mas o quarto inteiro. Naturalmente ela ainda era a peça central, sem a menor
dúvida — Jessie Mahout Burlingame, ainda não completara quarenta, ainda bastante
elegante com seu metro e setenta e cinqüenta e sete quilos, olhos cinzentos, cabelos
castanho-avermelhados (disfarçava os fios grisalhos que começaram a aparecer há uns cinco
anos com uma rinsagem luminosa e tinha quase certeza de que Gerald nunca percebera).
Jessie Mahout Burlingame, que se metera nessa enrascada sem saber muito bem como ou
por quê. Jessie Mahout Burlingame, agora presumivelmente viúva de Gerald, mãe de
ninguém e presa a essa maldita cama por dois pares de algemas policiais.
Ela fez a parte imagética da mente fazer um close nas algemas. Um sulco de
concentração surgiu entre seus olhos cerrados.
Quatro algemas ao todo, cada par separado por quinze centímetros de corrente de
aço emborrachada, cada algema com os dizeres "M-17" — um número de série, supunha —
estampada no aço da chapa da fechadura. Lembrou-se de que Gerald dissera, quando o jogo
ainda era novidade, que cada algema tinha um aro dentado que permitia ajustes. Também
era possível encurtar as correntes até que as mãos do prisioneiro ficassem dolorosamente
esmagadas, pulso contra pulso, mas Gerald lhe permitira a extensão máxima da corrente.
E por que não permitiria? pensou agora. Afinal de contas era apenas um jogo...
certo. Gerald? No entanto, a pergunta que fizera mais cedo tornou a lhe ocorrer, e mais uma
vez se pôs a pensar se algum dia teria sido realmente apenas um jogo para Gerald.
Que é uma mulher?— uma outra voz — uma voz de OVNI — sussurrou baixinho
de um poço bem escuro dentro dela. Um sistema vivo de apoio para uma boceta.
Cai fora. pensou Jessie. Cai fora. você não está ajudando nada.
Mas a voz de OVNI desprezou a ordem. Ao invés perguntou: Por que uma mulher
tem uma boca e uma boceta? Para poder urinar e gemer ao mesmo tempo. Mais alguma
pergunta, mocinha?
Não. Dada a qualidade perturbadoramente surreal das respostas, não faria mais
perguntas. Jessie girou as mãos no interior das algemas. A pele esticada de seus punhos
raspou no aço. fazendo-a estremecer, mas a dor era pequena e as mãos giraram com bastante
facilidade. Gerald poderia ou não ter acreditado que a única finalidade de uma mulher era
servir de sistema vivo de apoio para uma boceta, mas não apertara as algemas para
machucar; ela teria reclamado na primeira vez, é claro (ou foi o que disse a si mesma, e
nenhuma das vozes interiores foi suficientemente má para contradizê-la). Ainda assim,
estavam demasiado justas para poder tirá-las sem abrir.
Estariam mesmo?
Jessie puxou-as para experimentar. As algemas escorregaram pulso acima enquanto
as mãos desceram, mas as pulseiras de aço encravaram nos ossos e cartilagens das
articulações no ponto em que os pulsos fazem a complexa e maravilhosa aliança com as
mãos.
Puxou com mais força. Agora a dor era muito mais intensa.
Lembrou-se inesperadamente da vez que Papai batera a porta da velha caminhonete
na mão esquerda de Maddy, sem saber que ela estava descendo pelo lado do motorista para
variar. Como ela berrara! Quebrara um osso — Jessie não conseguia lembrar qual — mas se
lembrava que Maddy mostrava orgulhosamente o gesso ainda mole e dizia: "Também rompi
o ligamento posterior". O comentário parecera engraçado a Jess e Will, porque todos sabiam
que posterior era o nome científico de traseiro. Riram mais de surpresa que de desdém, mas
mesmo assim Maddy saíra furiosa, uma nuvem tempestuosa no rosto, para contar à Mamãe.
Ligamento posterior, pensou, aplicando deliberadamente maior pressão apesar da
dor crescente. Ligamento posterior e radioulnar-qualquer-coisa. Não faz diferença. Se puder
se livrar dessas algemas, é melhor fazer isso, boneca, e deixe os médicos se preocuparem
em juntar seus cacos depois.
Lentamente, firmemente, ela aumentou a pressão, desejando que as algemas
descessem e saíssem. Se ao menos cedessem um pouquinho — seis milímetros talvez desse,
e doze dariam com certeza — então venceriam a parte óssea mais volumosa e ela teria
tecido mais elástico para trabalhar. Ou assim esperava. Havia ossos nos polegares,
naturalmente, mas se preocuparia com eles quando, e se, chegasse a hora.
Puxou as algemas para baixo com mais força, os lábios se entreabriram e deixaram
à mostra os dentes numa careta de dor e esforço. Os músculos nos braços saltaram em arcos
rasos e brancos. O suor começou a porejar em sua testa, nas maçãs do rosto, até na ligeira
depressão sob o nariz. Ela estirou a língua e lambeu esta umidade sem nem se dar conta.
A dor era muita, mas a dor não foi o que a fez parar. Foi a simples compreensão de
que atingira a força máxima de seus músculos e não conseguira descer as algemas nem um
tiquinho mais do que já tinham descido. Sua breve esperança de conseguir extrair as mãos
das algemas oscilou e morreu.
Tem certeza de que puxou com todas as forças? Ou quem sabe está apenas se
enganando um pouquinho porque a dor foi grande demais?
— Não — respondeu ainda sem abrir os olhos. — Puxei o máximo que pude.
Verdade.Mas a outra voz continuou, na realidade mais vislumbrável do que audível: algo
semelhante a um ponto de interrogação em um desenho animado.
Havia sulcos profundos e brancos na pele dos pulsos de Jessie — sob a almofadinha
do polegar, nas costas da mão e na renda delicada de veias azuis abaixo — onde o aço
mordera, e os pulsos continuavam a latejar dolorosamente, embora ela tivesse aliviado a
pressão das algemas erguendo as mãos até agarrar uma tabuinha da cabeceira da cama.
— Legal — exclamou, a voz trêmula e desigual. A merda não pode ser maior! Será
que puxara com toda a força? Puxara mesmo?
Não importa, pensou, olhando para os reflexos luminosos no teto. Não importa e
vou lhe dizer por quê— se eu for capaz de puxar com mais força, o que aconteceu quando a
porta bateu no pulso esquerdo de Maddy vai acontecer com os meus dois pulsos: os ossos
vão se partir, os ligamentos posteriores vão romper como elásticos, e os sei-lá-o-quê do
radioulnar vão se despedaçar como pombos de barro em uma galeria de tiro. A única
alteração provável é que ao invés de ficar aqui acorrentada e sedenta, ficaria aqui
acorrentada, sedenta e com dois pulsos partidos de quebra. E. ainda por cima. inchados.
Minha opinião é a seguinte: Gerald morreu antes mesmo de ter chance de me botar sela mas
me fodeu para valer do mesmo jeito.
Muito bem; que outras opções havia?
Nenhuma, a Esposa Perfeita falou no tom aquoso de uma mulher que está a uma
lágrima do colapso.
Jessie esperou para ver se a outra voz — a de Ruth — emitiria uma opinião. Não
emitiu. Pelo que sabia, Ruth andava pelo bebedouro do escritório com o resto dos
mergulhões. Em todo caso, a abdicação de Ruth deixou a Jessie o encargo de se virar
sozinha.
Então, tudo bem, se vire. pensou. Que vai fazer com as algemas, agora que já se
certificou que é impossível simplesmente puxar as mãos? Que é que você pode fazer?
Há duas algemas em cada conjunto — falou hesitante a voz jovem, aquela para a
qual ainda não encontrara um nome. Você tentou se livrar das algemas em que suas mãos
estão presas e não conseguiu... mas e as outras? As que estão enganchadas nos pilares da
cama? ]á pensou nelas?
Jessie empurrou a cabeça contra o travesseiro e arqueou o pescoço para poder ver a
cabeceira e os pilares da cama. Mal registrou o fato de que os olhava de baixo para cima. A
cama de casal não era das mais largas mas era bem maior do que uma cama de solteiro.
Tinha um nome próprio — cama de viúva, talvez — mas achava cada vez mais difícil
guardar esses nomes à medida que envelhecia; não sabia se isso era bom senso ou senilidade
progressiva. De qualquer forma, a cama em que se encontrava agora tinha o tamanho
perfeito para trepar mas era um tanto pequena demais para os dois dormirem
confortavelmente juntos uma noite inteira. Para ela e Gerald isso não fora inconveniente,
porque nos últimos cinco anos dormiam em quartos separados, tanto aqui quanto na casa de
Portland. A decisão fora sua e não do marido; cansara-se dos seus roncos, que pareciam
piorar a cada ano. Nas raras ocasiões em que hospedavam alguém que ia passar a noite ali,
ela e Gerald dormiam juntos — sem conforto — neste quarto, mas de outro modo só
usavam esta cama para transar. E os roncos não tinham sido a verdadeira razão por que ela
se mudara; fora apenas a mais diplomática. A verdadeira razão fora olfativa. Jessie
começara a detestar e depois a sentir verdadeira repugnância pelo cheiro do suor noturno do
marido. Mesmo que ele tomasse banho pouco antes de deitar, o cheiro azedo de uísque
começava a brotar de seus poros ali pelas duas da madrugada.
Até este ano, o padrão fora fazer um sexo maquinai seguido de um cochilo (que
para ela se tornara a parte mais gostosa da história toda), após o que ele tomava um banho e
a deixava sozinha. Desde março, porém, houvera algumas mudanças. Os lenços e as
algemas — particularmente as últimas — pareciam exaurir Gerald de uma maneira que o
sexo papai-e-mamãe jamais exaurira, e muitas vezes ele caía em sono profundo ao seu lado,
ombro a ombro. Isso não a incomodava: a maioria desses encontros tinham sido matinês, e
Gerald exalava um cheiro de suor normal ao invés do cheiro de uísque aguado. Pensando
bem, também não roncava muito.
Mas todas aquelas sessões — todas aquelas matinês com lenços e algemas — eram
na casa de Portland, pensou. Passamos a maior parte de julho e alguns dias de agosto aqui,
mas nas vezes que transamos— não foram muitas, mas transamos — foram do tipo feijãocom-
arroz: Tarzan em cima, Jane embaixo. Nunca tínhamos feito jogos aqui até hoje. Por
que seria?
Provavelmente por causa das janelas, que eram demasiado altas e irregulares para
receberem cortinas. Nunca tinham chegado a trocar o vidro transparente por vidraças
espelhadas, embora Gerald continuasse a falar nisso até... bem...
Até hoje, terminou a Esposinha, e Jessie abençoou seu tato. E você está certa —
provavelmente foram as janelas, pelo menos o motivo principal. Ele não teria gostado se de
uma hora para outra Fred Laglan ou Jamie Brooks parassem para perguntar se queria jogar
nove buracos de golfe e o vissem dando uma tabacada na Sra. Burlingame, que por acaso
estava presa aos pilares da cama com um par de algemas de aço. Uma notícia dessas
provavelmente se espalharia. Fred e Jamie são uns caras decentes, acho...
Um casal de coroas nojentos, se quer saber minha opinião, interpôs Ruth com
azedume.
... mas são apenas humanos e uma história dessas seria boa demais para guardar. E
tem mais uma coisa, Jessie...
Jessie não a deixou terminar. Não era um pensamento que quisesse ouvir expresso
na voz agradável mas irremediavelmente afetada da Esposa Perfeita.
Era possível que Gerald nunca lhe tivesse pedido para jogar ali porque receara que
algum brincalhão aparecesse pelo deck. Que brincalhão? Bem, pensou, digamos que
houvesse uma parte de Gerald que realmente não acreditava que uma mulher fosse apenas
um sistema vivo de apoio para uma boceta... e que uma outra parte dele, que eu chamaria de
"O lado bom de Gerald", à falta de um termo mais objetivo, soubesse disso. Essa parte
poderia ter tido medo de que as coisas se descontrolassem. Afinal, não foi exatamente isso
que aconteceu?
Era uma idéia dura de se contra-argumentar. Se o acontecido não se enquadrasse na
definição de descontrolado, Jessie não sabia o que mais se enquadraria.
Sentiu por instantes uma tristeza ansiosa e teve de refrear o impulso de se virar para
olhar o lugar onde Gerald jazia. Não sabia se sentia ou não pesar pelo finado marido, mas
sabia que se sentia, não era hora de tratar desse assunto. Ainda assim, era bom lembrar
alguma coisa positiva do homem com quem passara tantos anos, e a maneira com que por
vezes adormecera ao seu lado depois de terem relações era uma coisa boa. Não gostara dos
lenços e passara a abominar as algemas, mas gostara de observá-lo adormecer; gostara da
maneira com que as rugas se suavizavam em sua enorme cara rosada. E, de certa forma, ele
agora estava dormindo de novo ao seu lado... não estava?
A idéia lhe gelou até a pele das coxas, onde pousava o retalho minguante de sol. Ela
afastou aquele pensamento — ou pelo menos tentou — e voltou a examinar a cabeceira da
cama.
Os pilares estavam assentados pelos lados e deixavam seus braços abertos mas com
algum conforto, particularmente com os quinze centímetros de folga que as correntes das
algemas permitiam. Havia quatro tábuas horizontais entre os pilares. Eram igualmente de
mogno com talhas em ondas simples mas agradáveis. Gerald certa vez sugerira mandar
gravar as iniciais dos dois na tábua central — conhecia um homem em Tashmore Glen que
teria prazer em vir fazer isso — mas ela pusera terra na idéia. Parecia-lhe ao mesmo tempo
pretensiosa e estranhamente infantil, como se fossem namoradinhos adolescentes gravando
corações nas carteiras da sala de estudos.
A prateleira da cama estava presa acima da última tábua, suficientemente alta para
garantir que alguém se sentando de repente não batesse a cabeça. Continha o copo dágua de
Gerald, uns livros deixados no verão e, do seu lado, um punhado de cosméticos. Também
do verão anterior, e ela supunha que a essa altura tivessem ressecado. Uma grande pena —
nada animava mais decididamente uma mulher algemada do que uma pincelada de blush
Country Morning Rose. Todas as revistas femininas anunciavam isso.
Jessie ergueu as mãos bem devagar, esticando os braços para fora em um pequeno
ângulo de modo que os punhos não prendessem na parte inferior da prateleira. Manteve a
cabeça curvada para trás, para ver o que acontecia na extremidade das correntes. As outras
algemas estavam presas nos pilares entre a segunda e terceira tábuas. Ao erguer as mãos
fechadas, parecendo uma mulher a se exercitar com uma barra de halteres invisíveis, as
algemas deslizaram pelos pilares até a tábua de cima. Se conseguisse arrancar aquela tábua,
e a outra além, poderia tirar as algemas pelas pontas dos pilares da cama com a maior
simplicidade. Voilà.
Provavelmente bom demais para ser verdade, queridinha — fácil demais para ser
verdade — mas não custa nada tentar. Pelo menos é uma maneira de passar o tempo.
Ela enganchou as mãos em torno da tábua horizontal que barrava qualquer subida
das algemas presas aos pilares. Inspirou profundamente, prendeu o ar, e puxou. Um puxão
forte foi suficiente para demonstrar que aquele caminho também estava bloqueado; era o
mesmo que tentar arrancar um vergalhão de aço de uma parede de concreto. Não conseguiu
perceber nem um milímetro de flexão.
Poderia puxar essa sacana dez anos e sequer abalá-la, quanto mais arrancá-la dos
pilares, pensou, e deixou as mãos voltarem à posição sustentada pelas correntes folgadas,
acima da cama. Deixou escapar um gritinho de desespero. Soou-lhe como o grasnido de um
corvo sedento.
— Que vou fazer? — perguntou aos reflexos no teto e, finalmente, deu vazão às
lágrimas de medo e desespero. — Que merda é que eu vou fazer?
Como se respondesse, o cachorro recomeçou a latir e desta vez estava tão próximo
que o susto lhe arrancou um grito. Parecia, de fato, que estava bem diante da janela leste, no
caminho de carros.
CAPÍTULO V
O cachorro não estava no caminho de carros; estava muito mais próximo. A sombra
que se alongava pelo asfalto quase até o pára-choque dianteiro da Mercedes indicava que se
encontrava na varanda dos fundos. Aquela sombra longa e rasteira parecia pertencer a um
cachorro torto e monstruoso de feira de horrores, e ela a odiou à primeira vista.
Não seja tão boba, ralhou consigo mesma. A sombra só tem essa aparência porque o
sol está se pondo. Agora abra a boca e faça algum barulho, mocinha — afinal não tem que
ser um vira-lata.
Era verdade; poderia haver um dono em cena em algum lugar, mas ela não
alimentava muita esperança. Imaginava que o cachorro fora atraído para o deck traseiro pela
lata de lixo telada logo à entrada da porta. Gerald por vezes chamara essa construçãozinha
jeitosa, arrematada com telhas de cedro e dois trincos na tampa, de ímã para ratos. Desta vez
atraíra um cachorro ao invés de um rato, só isso — um vira-lata, muito provavelmente. Um
mondrongo mal alimentado e sem sorte. Mesmo assim precisava tentar.
— Eh! — gritou.
— Eh! Tem alguém aí? Se tiver, preciso de ajuda! Tem alguém aí?
O cachorro parou de latir instantaneamente. Sua sombra aracnóide, distorcida
saltou, virou, começou a caminhar... e em seguida tornou a parar. Na viagem de Portland ela
e Gerald tinham comido sanduíches-polichinelo, as camadas barradas de azeite e recheadas
de salame e queijo, e a primeira coisa que fizera ao chegar fora recolher as sobras e
embalagens e jogá-las na lata de lixo. O cheiro forte de azeite e carne fora o que
provavelmente atraíra o cachorro para começar, e sem dúvida o cheiro era o que o impedia
de se embrenhar na mata ao som de sua voz. Aquele cheiro era mais poderoso do que os
impulsos do seu coração ferino.
— Socorro! — Jessie berrou e parte de sua mente tentou alertá-la que gritar era
provavelmente um erro, que só servia para arranhar a garganta e aumentar a sede, mas
aquela voz racional e prudente nunca teve a menor chance. Jessie captara o fedor do próprio
medo, tão forte e compulsivo para ela quanto o cheiro dos restos de sanduíche para o
cachorro e isto a lançou imediatamente num estado em que não havia apenas pânico, mas
uma espécie de insanidade temporária.
— SOCORRO! ALGUÉM ME AJUDE! SOCORRO! SOCORRO!
SOCOOOOOORRO!
Sua voz quebrou afinal e ela virou a cabeça o máximo que pôde para a direita, os
cabelos emplastrados nas faces e na testa em fios e emaranhados úmidos de suor, os olhos
esbugalhados. O medo de ser encontrada acorrentada e nua, com o marido caído morto no
chão ao seu lado, deixara de ser sequer um dado casual em seu pensamento. O novo acesso
de pânico parecia um estranho eclipse mental — vedava a luz clara da razão e da esperança
e lhe permitia entrever as piores possibilidades: inanição, loucura induzida por sede,
convulsões, morte. Ela não era uma estrela de Hollywood e isso não era um filme de
suspense rodado para a rede americana de TV a cabo. Não havia câmeras, nem refletores,
nem diretor para gritar "corta". Isto estava acontecendo, e se não aparecesse ajuda, poderia
muito bem continuar a acontecer até que ela cessasse de existir como forma de vida. Longe
de se preocupar com as circunstâncias de sua detenção, chegara a um ponto em que teria
dado as boas-vindas ao diretor e a toda a equipe de filmagem do programa de entrevistas
pela TV, com lágrimas de gratidão.
Mas ninguém respondeu aos seus gritos desvairados — não havia vigia ali para
verificar as casas à beira do lago, nenhum curioso das redondezas vagando com um
cachorro (quem sabe à procura de descobrir qual dos vizinhos talvez cultivasse um fuminho
entre os pinheiros rumorejantes), e certamente nenhum entrevistador de TV. Havia apenas
aquela sombra longa e singularmente desagradável, que a fazia pensar em uma aranha
canina esquisita equilibrando-se em quatro patas finas e febris. Jessie inspirou
profundamente, estremecendo, e tentou recuperar o controle de sua mente inquieta. Sentia a
garganta quente e seca, o nariz desconfortavelmente úmido e entupido de lágrimas.
E agora?
Não sabia. O desapontamento latejava em sua cabeça, demasiado grande por ora
para permitir pensamentos construtivos. A única coisa de que tinha inteira certeza era que o
cachorro não significava nada; ia apenas parar na varanda dos fundos por algum tempo e em
seguida ir embora quando percebesse que aquilo que o atraíra era inatingível. Jessie deixou
escapar uma exclamação em tom baixo e infeliz e fechou os olhos. As lágrimas brotaram
sob suas pestanas e lhe escorreram devagarinho pelas faces. No sol de fim de tarde,
pareciam gotas de ouro.
E agora? perguntou de novo. Lá fora o vento soprou em rajadas, fazendo os
pinheiros rumorejarem e a porta solta bater. E agora, Esposa Perfeita? E agora, Ruth? E
agora, vocês todos, OVNIs e parasitas? Uma de vocês — qualquer uma — tem alguma
idéia? Estou com sede, preciso fazer xixi, meu marido está morto, e minha única companhia
é um cachorro do mato cuja idéia de paraíso são os restos de um polichinelo com salame e
três queijos comprado em uma sanduicheria italiana. Não demora nada ele vai concluir que
o cheiro é o mais próximo que vai chegar do paraíso, então vai se mandar. Então... e agora?
Nenhuma resposta. Todas as vozes interiores tinham emudecido. Isso era mau —
pelo menos lhe faziam companhia — mas o pânico também desaparecera, deixando apenas
um ressaibo de metal pesado, e isso era bom.
Vou dormir um pouco, pensou, admirada de que realmente pudesse fazer isso se
quisesse. Vou dormir um pouco e quando acordar talvez tenha uma idéia. Na pior das
hipóteses, posso fugir do medo por algum tempo.
As ruguinhas de tensão nos cantos de seus olhos fechados e os dois vincos entre as
sobrancelhas foram se suavizando. Sentiu que começava a vaguear. Deixou-se impelir para
aquele refúgio das preocupações pessoais com alívio e gratidão. Desta vez, quando o vento
voltou suas rajadas pareciam estar longe, e o bate-bate incessante da porta ainda mais longe:
bam-bam, bam-bam, bam.
Sua respiração, que ia se tornando mais profunda e lenta à medida que adormecia,
repentinamente parou. Seus olhos se arregalaram. A única emoção que percebeu naquele
primeiro momento de desorientação de quem acorda bruscamente foi uma espécie de
irritação intrigada: quase conseguira, droga, então aquela maldita porta...
Que é que tem aquela maldita porta? Que é que tem?
Aquela maldita porta não terminara o duplo bam de sempre, esse era o problema. E
como se tal pensamento o materializasse, Jessie ouviu em seguida o clique-clique
inconfundível das unhas de um cachorro no chão da entrada. O vira-lata entrara pela porta
destrancada. Estava dentro de casa.
Sua reação foi imediata e inequívoca.
— Fora daqui! — gritou para o cachorro, inconsciente de que sua voz estressada
tinha se transformado num vozeirão rouco.
— Fora daqui, seu sacana! Está me ouvindo? DÊ O FORA DA MINHA CASA!
Parou, respirando depressa, olhos muito abertos. Sua pele parecia estar entremeada
de fios de cobre que conduziam eletricidade de baixa voltagem; as duas ou três camadas
mais à superfície formigavam e fervilhavam. Tinha a sensação distante de que os pelinhos
da nuca estavam em pé como as cerdas de um porco-espinho. A idéia de dormir fora riscada
do mapa.Ouviu o arranhar assustado das unhas do cachorro no piso da entrada... depois nada.
Devo tê-lo espantado. Provavelmente raspou-se porta afora de novo. Quero dizer, com
certeza tem medo de gente e casas, por ser vira-lata.
Não sei, boneca, disse a voz de Ruth. Parecia em dúvida, o que não era normal. Não
vejo a sombra dele no caminho de carros.
Claro que não. Provavelmente saiu pelo outro lado da casa e voltou para a mata. Ou
desceu para o lago. Morto de medo numa carreira desenfreada. Não faz sentido?
A voz de Ruth não respondeu. Nem a de Esposinha, embora numa altura dessas
Jessie teria gostado de ouvir qualquer das duas.
— Espantei realmente o cachorro — falou. — Tenho certeza que sim.
Mas ainda assim imobilizou-se, apurando o ouvido ao máximo, sem distinguir nada
a não ser o surdo tum-tum do sangue nos ouvidos. Pelo menos, até ali.

6-10

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