quarta-feira, 7 de março de 2012

Jogos Perigosos 6-10

CAPÍTULO VI
Ela não o espantara.
Tinha medo de gente e casas, Jessie acertara, mas subestimara sua condição de
desespero. Seu nome antigo — Príncipe — era espantosamente irônico agora. Deparara com
uma quantidade de latas de lixo iguais às dos Burlingame no seu longo circuito de fome
pelo lago Kashwakamak neste outono, e rapidamente se desinteressara pelo cheiro de
salame, queijo e azeite que a lata exalava. O aroma era torturante, mas a amarga experiência
ensinara ao ex-Príncipe que a fonte que o produzia estava fora do seu alcance.
Havia outros cheiros, porém; o cachorro sentia uma baforada cada vez que o vento
escancarava a porta dos fundos. Os cheiros eram mais fracos do que os que vinham da lata e
sua fonte situava-se dentro da casa, mas eram demasiado bons para serem desprezados. O
cachorro sabia que provavelmente seria escorraçado pelos donos esbravejantes que
perseguiam e chutavam com estranhos pés duros, mas os cheiros eram mais fortes do que o
seu medo. Uma coisa poderia ter detido sua terrível fome, mas ele ainda não conhecia
armas. Isso iria mudar se vivesse até a temporada de caça aos veados, mas ainda faltavam
duas semanas e os donos esbravejantes com seus dolorosos pés duros eram a pior coisa que
poderia imaginar até o momento.
Esgueirou-se pela porta quando o vento a abriu e ensaiou um trote pela entrada...
mas não foi muito longe. Preparou-se para bater rapidamente em retirada assim que
houvesse uma ameaça de perigo.
Seus ouvidos lhe informaram que a habitante da casa era uma dona fêmea, que
estava muito consciente da presença do cachorro porque gritara com ele, mas o que o viralata
ouvira na voz alterada da dona fêmea fora medo e não raiva. Após o estremeção inicial
de susto, o cachorro resistiu. Esperou que outro dono reforçasse os gritos da dona fêmea ou
viesse correndo, mas quando isso não aconteceu, o cachorro esticou o pescoço para a frente
e farejou o ar ligeiramente abafado da casa.
Primeiro virou-se para a direita, em direção à cozinha. Era dali que vinham as
baforadas de aromas que se dispersavam pela porta solta. Os cheiros eram secos mas
agradáveis: manteiga de amendoim, flocos de centeio, bolachas, passas, cereal (este vinha
de uma caixa em um dos armários — um rato faminto roera um buraco no fundo da caixa).
O cachorro deu um passo naquela direção, então virou a cabeça para se certificar
que nenhum dono se aproximava sorrateiro — geralmente os donos gritavam, mas também
sabiam ser ardilosos. Não havia ninguém no corredor que saía para a esquerda, mas o
cachorro farejou um odor muito mais forte vindo dali, um odor que deu cãibras no estômago
de tanta saudade.
O cachorro espiou o corredor, os olhos cintilando numa louca mistura de medo e
desejo, focinho enrugado para trás como um tapetinho amarfanhado, o longo lábio superior
subindo e descendo em um esgar nervoso e espasmódico que deixava seus dentes à mostra
em lampejos brancos. A ansiedade fez esguichar um fluxo de urina que tamborilou pelo
chão, marcando o corredor da frente — e, com isso, toda a casa — como seu território. O
ruído foi demasiado discreto e breve até para os ouvidos apurados de Jessie.
O que o cachorro farejou foi sangue. O cheiro era ao mesmo tempo forte e
discordante. No final, sua extrema fome desequilibrou a balança; precisava comer logo ou
morrer. O ex-Príncipe começou a caminhar devagar pelo corredor em direção ao quarto. O
cheiro se tornou mais forte à medida que ele foi avançando. Era sangue, sim, senhor, mas
era o sangue errado. Era sangue de dono. Ainda assim, aquele cheiro, demasiado rico e
arrebatador, penetrara seu pequeno e desesperado cérebro. O cachorro continuou a andar e,
quando se aproximou da porta do quarto, desatou a rosnar.
CAPÍTULO VII
Jessie ouviu o clique-clique das unhas do cachorro e percebeu que ele continuava de
fato dentro de casa e caminhava em sua direção. Começou a gritar. Sabia que
provavelmente era a pior coisa que alguém podia fazer — contrariava todos os conselhos
que até ali ouvira de jamais revelar a um animal potencialmente perigoso que sentia medo
— mas não conseguiu se conter. Tinha uma idéia demasiado clara do que estava atraindo o
vira-lata para o quarto.
Encolheu as pernas usando, ao mesmo tempo, as algemas para se aprumar contra a
cabeceira. Entrementes seus olhos nunca se desviaram da porta do corredor. Agora ouvia o
cachorro rosnar. O som fez seus intestinos se sentirem solto:, quentes e líquidos.
O cachorro parou à porta. Ali as sombras já tinham começado a cair e para Jessie o
bicho era apenas uma forma vaga próxima ao chão — não era grande, nem um poodle
miniatura nem tampouco um chihuahua. Duas meias-luas amarelo-alaranjadas que refletiam
o sol marcavam seus olhos.
— Passa fora! — Jessie berrou. — Passa fora! Fora daqui. Você... você não é bemvindo
aqui! — Que frase mais ridícula... mas nas circunstâncias, o que não era? Daqui a
pouco vou estar pedindo a ele que apanhe as chaves em cima da cômoda para mim, pensou.
Havia um movimento que vinha da parte traseira da forma sombria à porta: ele
começara a abanar o rabo. Em um romance sentimental para mocinhas, o gesto
provavelmente significaria que o vira-lata confundira a voz da mulher na cama com a voz de
alguma dona que amara e perdera há muito tempo. Jessie não tinha ilusões. Cachorros não
abanavam o rabo apenas quando estavam contentes; eles — como os gatos — também o
abanavam quando estavam indecisos, quando tentavam avaliar a situação. O cachorro mal
se encolhera ao som de sua voz, mas tampouco confiava na penumbra do quarto. Pelo
menos, por enquanto.
O ex-Príncipe ainda não travara conhecimento com as armas, mas aprendera muitas
outras lições espinhosas nas seis semanas ou pouco mais desde o último dia de agosto.
Nessa data o Sr. Charles Sutlin, um advogado de Braintree, Massachusetts, abandonara-o na
mata para morrer ao invés de levá-lo de volta para casa e pagar os setenta dólares do
imposto municipal-estadual sobre cães. Setenta dólares por um canino de araque era uma
grana muito alta, na opinião de Charles Sutlin. Um pouco alta demais. Comprara um barco a
motor para seu uso ainda em junho, verdade que fora uma compra de cinco algarismos, e só
podia concluir que o governo andava maluco quando comparava o custo do barco e o
imposto sobre cachorros — claro que podia, qualquer um podia, mas a questão não era bem
essa. A questão é que o barco fora uma compra planejada. Uma aquisição que passara dois
anos ou mais na prancheta do velho Sutlin. Já o cachorro, fora uma compra impulsiva numa
barraca de hortaliças de beira de estrada em Harlow. Jamais o teria comprado se sua filha
não estivesse junto e não se apaixonasse pelo filhote.
— Aquele, Papai! — dissera apontando. — Aquele com a mancha branca no
focinho — aquele que está de pé sozinho como um príncipe. Então comprara o cachorrinho
para ela — ninguém podia dizer que não sabia fazer a filhinha feliz — mas setenta paus
(talvez até cem se Príncipe fosse enquadrado na Classe B, cães de grande porte) era uma
grana muito alta por um vira-lata que viera sem nem um atestadozinho. Grana demais,
decidira o Sr. Charles Sutlin quando se aproximou a hora de fechar o chalé no lago até o ano
seguinte. Levá-lo de volta a Braintree no banco traseiro do Saab também seria uma
aporrinhação — ia largar pêlo no carro, talvez até vomitasse ou fizesse cocô no tapete.
Sutlin poderia comprar uma casinha para transporte, mas aquelas belezas custavam mais de
trinta dólares. De todo modo um cachorro como Príncipe não seria feliz em um canil. Seria
muito mais feliz em liberdade, tendo toda a mata por reino. É, Sutlin dissera a si mesmo
naquele último dia de agosto ao estacionar num trecho deserto de Bay Lane e em seguida
convencer o cachorro a descer do banco traseiro. O velho Príncipe tinha o coração de um
vagabundo feliz — era só dar uma boa olhada nele para perceber isso. Sutlin não era nada
burro e parte dele sabia que aquilo era uma baboseira conveniente, mas a outra parte
também se animara com a idéia da coisa, e quando embarcou no carro e se foi, deixando
Príncipe na beira da estrada a segui-lo com o olhar, ia assoviando o tema de A história de
Elza, a leoazinha, que entrecortava aqui e ali com um trecho da letra: ''Naaasci liiivre... para
seguir o meu coraçãããooo!" Sutlin dormiu bem aquela noite, sem sequer pensar no Príncipe
(em breve, ex-Príncipe), o qual passara a noite enrascado sob uma árvore caída, tremendo de
frio, insone e faminto, ganindo de medo cada vez que uma coruja piava ou um animal se
mexia na mata.
Agora, o cachorro que Charles Sutlin abandonara ao tema de A história de Elza
achava-se parado à porta da suíte da casa de verão dos Burlingame (o chalé dos Sutlin era
no extremo do lago e as duas famílias não se conheciam, embora tivessem trocado informais
acenos de cabeça no cais da cidadezinha nos últimos três ou quatro verões). Príncipe trazia a
cabeça baixa, os olhos bem abertos, e os pêlos eriçados. Não tinha consciência do seu
rosnido contínuo; concentrava toda a sua atenção no quarto. Compreendia de forma
profunda e instintiva que o cheiro de sangue breve venceria qualquer cautela.
Antes que isso acontecesse, precisava se certificar o melhor que pudesse de que
aquilo não era uma armadilha. Não queria ser apanhado pelos donos de pés duros e
dolorosos ou pelos outros que arremessavam os torrões de terra que apanhavam.
— Passa fora! — Jessie tentou gritar, mas a voz saiu fraca e trêmula. Não ia fazer o
cachorro ir embora com gritos; o filho da mãe pressentira de alguma maneira que ela não
podia se levantar da cama para machucá-lo.
Isso não pode estar acontecendo, pensou. Como poderia, se há apenas três horas eu
estava sentada do lado direito da Mercedes, com o cinto passado, escutando os Rainmakers
no toca-fitas enquanto anotava mentalmente que precisava ver o que estava passando nos
cinemas próximos, caso decidíssemos passar a noite no lago? Como pode meu marido estar
morto se estávamos cantando juntos com Bob Walkenhorst? "Mais um verão", cantamos,
"mais uma chance, mais uma tentativa de romance." Os dois sabemos a letra completa,
porque é uma grande canção, e sendo assim, como é possível Gerald estar morto? Como é
possível as coisas terem mudado tanto? Desculpe, pessoal, mas isso tem que ser um sonho.
É absurdo demais para ser realidade.
O vira-lata começou a entrar lentamente no quarto, as pernas contraídas de cautela,
o rabo caído, os olhos abertos e negros, o focinho arreganhado revelando todo o
complemento dentário. Nada. Sabia de conceitos que definem o absurdo.
O ex-Príncipe, com quem Catherine Sutlin de oito anos em tempos brincara
alegremente (pelo menos até ganhar de aniversário uma boneca caipira chamada Marnie e
temporariamente perder o interesse nele), era parte labrador e parte collie... um mestiço, mas
estava muito longe de ser um vira-lata. Quando Sutlin o abandonara em Bay Lane no final
de agosto, ele pesava uns trinta e seis quilos e tinha o pêlo macio e brilhante de saúde, uma
mistura até bonita de castanho e negro (com a franja branca característica dos colhes no
peito e na garganta). Agora mal alcançava dezoito quilos, e se alguém passasse a mão por
suas ilhargas sentiria cada costela esticada, para não falar na pulsação rápida e febril de seu
coração. Uma orelha trazia um corte feio. A pelagem estava baça, enlameada e cheia de
bardanas. Uma cicatriz rosa quase fechada, lembrança de uma corrida por baixo de uma
cerca de arame farpado, ziguezagueava por uma anca, e umas cerdas de porco-espinho
projetavam-se do seu focinho como bigodes tortos. Encontrara o bicho morto debaixo de um
tronco há uns dez dias, mas desistira depois de encher o focinho de espinhos. Sentira fome
então, mas não desespero.
Agora sentia os dois. Sua última refeição fora uns restos cheios de gusanos que
extraíra de uma saca de lixo em uma vala que corria paralela à Estrada 117, e isso fora há
dois dias. O cachorro, que aprendera rápido a trazer para Catherine Sutlin a bola vermelha
que ela atirava pelo piso da sala de estar ou do corredor, literalmente mal se agüentava em
pé de inanição.
É, mas ali — bem ali, no chão, à vista havia quilos e quilos de carne fresca, gordura
e ossos cheios de tutano. Parecia uma dádiva do deus dos vira-latas.
O antigo queridinho de Catherine Sutlin continuou a avançar para o corpo de Gerald
Burlingame.
CAPÍTULO VIII
Isto não vai acontecer, Jessie disse a si mesma. Nem pensar, por isso relaxe. Ela
continuou a repetir isso até o momento em que a parte de cima do vira-lata desapareceu do
seu ângulo de visão junto ao lado esquerdo da cama. Seu rabo começou a abanar mais
depressa que nunca, e ela ouviu um som que reconheceu — o som de um cachorro bebendo
água de uma poça em um dia quente de verão. Só que não era exatamente igual. Esse som
era mais áspero, não era tanto o som de um cão que sorve mas que lambe. Jessie observou o
rabo que abanava rápido e sua imaginação imediatamente lhe mostrou o que o ângulo da
cama ocultava de seus olhos. Esse vira-lata sem eira nem beira com o pêlo emaranhado de
bardanas e os olhos cansados e desconfiados estava lambendo o sangue dos cabelos ralos de
seu marido.
— NÃO! — Ergueu as nádegas da cama e girou as pernas para a esquerda. — SE
AFASTE DELE! SE AFASTE JÁ! — Impeliu-as com força e um dos calcanhares passou de
raspão pelos nós da espinha dorsal do cachorro.
Ele recuou instantaneamente e ergueu o focinho, os olhos tão arregalados que
mostravam delicados círculos brancos. Os dentes se arreganharam e na luz falecente da
tarde os fios de saliva muito tênues, que se estendiam dos incisivos superiores aos inferiores
lembravam fios de ouro. Ele avançou para o seu pé nú. Jessie puxou-o de volta com um
grito, sentindo a umidade quente da respiração do cachorro em sua pele mas salvando os
dedos dos pés. Enroscou novamente as pernas sob o corpo sem perceber ó que fazia, sem
ouvir os gritos de indignação dos músculos nos ombros distendidos, sem sentir as juntas
girarem relutantes nos berços ósseos.
O cachorro fitou-a mais um instante, continuando a rosnar, ameaçando-a com os
olhos. Vamos fazer um acordo, minha senhora, diziam os olhos. A senhora cuida do que é
seu e eu cuido do que é meu. Esse é o acordo. Parece-lhe bem? É melhor que pareça, porque
se a senhora atravessar o meu caminho, vou lhe ferrar. Além do mais, ele está morto — a
senhora sabe disso tão bem quanto eu, e por que desperdiçá-lo se estou faminto? A senhora
faria o mesmo. Duvido que compreenda isso agora, mas talvez acabe pensando como eu, e
mais cedo do que imagina.
— FORA! — gritou. Então sentou-se nos calcanhares com os braços esticados um
para cada lado, parecendo mais que nunca a heroína de King Kong deitada no altar de
sacrifícios.
Sua postura — a cabeça erguida, o peito estofado para fora, os ombros tão jogados
para trás que empalideceram nas extremidades de tanto esforço, profundos triângulos de
sombra na base do pescoço — era a de uma gata escaldante numa revista de garotas.
Faltava, porém, o beicinho obrigatório sensualmente convidativo; a expressão em seu rosto
era a de uma mulher muito próxima à fronteira entre o país dos sãos e o dos loucos. —
FORA DAQUI!
O cachorro continuou a fitá-la e a rosnar por um momento. Então, quando
aparentemente se certificara de que o pontapé não se repetiria, desinteressou-se dela e
baixou de novo a cabeça. Não houve sorvida nem lambida desta vez. Ao invés Jessie ouviu
um estalo alto. Lembrou-lhe os beijos entusiásticos que seu irmão Will costumava sapecar
na bochecha da vó Joan quando a visitavam.
O rosnido continuou durante alguns segundos, mas agora estranhamente abafado,
como se alguém tivesse enfiado uma fronha na cabeça do vira-lata. De sua nova posição
sentada, em que os cabelos quase tocavam o fundo da prateleira acima, Jessie conseguia ver
um dos pés gorduchos de Gerald e, também, a mão e o braço direitos. O pé balançava para
diante e para trás, como se Gerald estivesse acompanhando um suingue daqueles — o "One
More Summer" dos Rainmakers, por exemplo.
Do seu novo ponto de observação podia ver melhor o cachorro; seu corpo agora
achava-se visível até a raiz do pescoço. Teria podido ver a cabeça, também, se estivesse
levantada. Não estava. O vira-lata tinha a cabeça baixa e as pernas traseiras bem fincadas no
chão. De repente ouviu um som grave de rasgamento — um som repulsivo, como se alguém
muito gripado tentasse pigarrear. Ela gemeu.
— Pare... ah, por favor, será que não pode parar?
O cachorro não lhe deu atenção. Houve tempo em que se sentara à espera de sobras
da mesa, os olhos parecendo rir, a boca aberta simulando um sorriso, mas esse tempo, como
o seu antigo nome, há muito acabara e seria difícil reencontrá-lo. Isto agora era o presente e
as coisas eram o que eram. A sobrevivência não era uma questão de polidez ou justificativa.
Fazia dois dias que não comia, havia comida aqui, e embora houvesse um dono aqui que
não queria deixá-lo comer (o tempo em que os donos riam, lhe davam tapinhas na cabeça,
chamavam-no de BOM CACHORRO e lhe atiravam sobras de comida pelo seu pequeno
repertório de gracinhas fora-se), os pés desse dono eram pequenos e macios aos invés de
duros e dolorosos, e sua voz indicava que estava impotente.
Os rosnidos do ex-Príncipe se transformaram em arquejos abafados devido ao
esforço e, enquanto Jessie observava, o resto do corpo de Gerald começou a balançar ao
ritmo do pé, primeiro um simples balanço de um lado para o outro e em seguida começando
mesmo a deslizar, como se ele tivesse se lançado de corpo e alma à dança, estivesse morto
ou não.
Arrasa, Gerald Pé-de-valsa! Jessie pensou alucinada. Esqueça a dança da galinha e
o shag — dance a do cachorro!
O vira-lata não poderia tê-lo arrastado se o tapete ainda estivesse no chão, mas
Jessie mandara encerar o chão uma semana depois do feriado do início de setembro. Bill
Dunn, o vigia, abrira a porta para os homens da firma de faxina e eles tinham feito um ótimo
trabalho. E querendo que a madame apreciasse devidamente o seu trabalho da próxima vez
que viesse, deixaram o tapete do quarto enrolado no armário da entrada, e uma vez que o
vira-lata começou a puxar Gerald Pé-de-valsa pelo chão lustroso, ele deslizava quase com a
mesma vontade de John Travolta nos Embalos de sábado à noite. O único problema do
cachorro era manter a força de tração. Suas unhas longas e sujas ajudavam a tarefa,
cravando e inscrevendo marcas curtas e denteadas na cera macia, à medida que recuava com
os dentes enterrados até as gengivas no braço flácido de Gerald.
Eu não estou vendo isso, sabe? Nada disso está realmente acontecendo. Ainda
agorinha estávamos escutando os Rainmakers, e Gerald reduziu o volume o tempo
suficiente para me falar que andava pensando em dar uma chegada em Orono para o jogo de
futebol de sábado. Universidade de Massachusetts contra Universidade de Boston. Lembrome
de vê-lo coçar o lóbulo da orelha direita enquanto falava. Então como pode estar morto
com um cachorro a arrastá-lo pelo braço quarto afora?
O bico-de-viúva de Gerald estava desalinhado — provavelmente porque o cachorro
lambera o sangue que havia ali — mas os óculos continuavam firmes no lugar. Jessie via
seus olhos, semi-abertos e vidrados nas órbitas inchadas espiando fixamente as ondulações
agora desmaiadas que o sol produzia no teto. O rosto de Gerald ainda era uma máscara de
feias manchas vermelhas e roxas, como se nem a morte tivesse podido aplacar a raiva que
sentira por sua repentina e caprichosa (será que ele a entendera como um capricho? Claro
que sim) mudança de idéia.
— Largue-o — ela ordenou ao cachorro, mas sua voz agora soava humilde, triste e
débil. O cachorro mal mexeu as orelhas àquela voz e sequer parou. Continuou a puxar a
coisa com o bico-de-viúva em desalinho e o rosto malhado. A coisa já não parecia o Gerald
Pé-de-valsa — nem um pouquinho. Agora era apenas o Gerald Defunto, deslizando pelo
chão do quarto, com os dentes de um cachorro enterrados em seu bíceps flácido.
Uma aba de pele esfarrapada cobria o focinho do cachorro. Jessie tentou dizer a si
mesma que aquilo parecia papel de parede, mas papel de parede não vinha — que ela
soubesse — com sinais e marcas de vacina. Agora já podia ver a barriga carnuda e rosada de
Gerald, marcada apenas pelo umbigo, um furinho de bala de pequeno calibre. O pênis
balançava molemente em um ninho de negros pêlos púbicos. As nádegas roçavam
suavemente pelas tábuas de madeira de lei com espantosa ausência de atrito. Bruscamente a
atmosfera sufocante de terror foi cortada por um raio de cólera tão vivido que pareceu uma
tempestade magnética em sua cabeça. Jessie foi além na aceitação dessa nova emoção;
considerou-a bem-vinda. A fúria poderia não ajudá-la a sair desse pesadelo, mas sentiu que
poderia servir de antídoto contra sua impressão de chocante e crescente irrealidade.
— Seu filho da puta — xingou em voz baixa e trêmula. — Seu filho da puta
traiçoeiro e covarde. Embora não conseguisse alcançar nada na prateleira da cama do lado
do Gerald, Jessie descobriu que, se girasse o pulso esquerdo dentro da algema de modo a
apontar a mão por sobre o ombro, ela podia caminhar com os dedos por um pequeno trecho
do seu lado da prateleira. Não conseguia virar a cabeça o suficiente para ver as coisas que
tocava — estavam um pouco além do ponto difuso que as pessoas chamam de canto do olho
— mas isso realmente não importava. Tinha uma boa idéia do que havia ali em cima.
Apalpou para diante e para trás, correu as pontas dos dedos levemente sobre tubos de
cosméticos, empurrando uns para o fundo da prateleira e derrubando outros para fora.
Alguns desses últimos caíram na colcha; outros bateram na cama ou em sua coxa esquerda e
foram parar no chão. Nenhum deles sequer parecia com o tipo de coisa que procurava. Seus
dedos agarraram um pote de creme facial e, por um momento, ela se permitiu pensar que
serviria, mas era apenas um pote de amostra, demasiado pequeno e leve para machucar o
cachorro, mesmo que fosse feito de vidro ao invés de plástico. Largou-o de volta na
prateleira e retomou a busca cega.
Na extensão máxima, seus dedos exploradores encontraram a borda redonda de um
objeto de vidro que até ali era a maior coisa que tocara. Por um momento não conseguiu
identificá-lo, mas em seguida lembrou. O canecão pendurado na parede era apenas uma
lembrança dos tempos da Alfa Gadanhô; estava tocando em outra. Era um cinzeiro, e a
única razão de não reconhecê-lo prontamente é que pertencia ao lado de Gerald da
prateleira, ao lado do copo d'água com gelo. Alguém, possivelmente a Sra. Dahl, a faxineira,
possivelmente o próprio Gerald — mudara-o para o seu lado da cama, talvez na hora em que
espanava a prateleira, ou talvez para abrir espaço para outra coisa qualquer. A razão não
importava. Estava ali, e no momento era o que interessava.
Jessie fechou os dedos na borda redonda, sentindo dois sulcos no objeto — os
encaixes para apoiar cigarros. Agarrou com força o cinzeiro, recuou a mão o máximo que
pôde, e em seguida lançou para a frente. Estava com sorte e virou o pulso no instante em
que a corrente da algema deu um esticão, como um arremessador de beisebol da primeira
divisão ao interromper uma curva. Agiu por puro impulso, procurou o míssil, encontrou-o e
arremessou-o sem se dar tempo para fracassar no arremesso, refletindo 'sobre a
probabilidade mínima de uma mulher, que na universidade recebera nota D em manejo de
arco nos dois anos de educação física obrigatória, atingir um cachorro com um cinzeiro,
principalmente porque o bicho se encontrava a quase cinco metros e meio de distância e a
mão que fazia o arremesso por acaso estava algemada ao pilar da cama.
Contudo, ela atingiu o alvo. O cinzeiro deu uma cambalhota no ar, revelando
brevemente o lema da Alpha Gamma Rho. Não conseguiu lê-lo de onde se achava e nem
precisava; as palavras em latim para serviço, crescimento e coragem circunscreviam uma
tocha. O cinzeiro começou a dar nova cambalhota mas colidiu com os ombros ossudos e
tensos do cachorro antes de poder completar o giro.
O vira-lata deu um ganido de surpresa e dor e Jessie sentiu um instante de violento e
primitivo triunfo. Sua boca se abriu de um canto a outro numa expressão que tinha sabor de
sorriso mas parecia um berro. Uivou delirantemente ao mesmo tempo que arqueava as
costas e estirava as pernas. Mais uma vez perdia a consciência da dor nos ombros enquanto
as cartilagens se distendiam e as juntas que há muito tempo tinham esquecido a agilidade
dos vinte e um anos eram forçadas quase ao ponto de se deslocar. Ela sentiria tudo isso mais
tarde — cada movimento, sacudidela e torção que experimentara — mas por ora estava
arrebatada de selvagem prazer com o sucesso do seu arremesso, e achava que se não
expressasse de alguma forma esse delírio de triunfo poderia explodir. Sapateou os pés na
colcha e balançou o corpo de um lado para outro, os cabelos suados fustigaram as
bochechas e as têmporas, os tendões no pescoço saltaram como grossos arames.
— HAH!— exclamou. — ACERTEI... VOCÊÊÊ!HAH!
O cachorro virou-se bruscamente para trás quando o cinzeiro o acertou, e mais uma
vez quando o cinzeiro quicou e se espatifou no chão. Suas orelhas se achataram com a
mudança na voz da dona fêmea. O que ouvia agora não era medo, mas triunfo. Logo
levantaria da cama e começaria a distribuir chutes com seus pés estranhos, que afinal não
seriam macios mas duros. O cachorro percebeu que seria machucado de novo como fora
machucado antes se permanecesse ali; precisava correr.
Virou a cabeça para se certificar de que o caminho da retirada continuava aberto e,
ao fazê-lo, o cheiro extasiante de carne e sangue frescos atingiu-o de novo. O estômago do
cachorro contraiu-se, azedo e exigente de fome, e ele ganiu inquieto. Ficou imobilizado, em
perfeito equilíbrio entre dois impulsos opostos e, na ansiedade, expeliu um novo fio de
urina. O cheiro da própria secreção — um odor que denunciava doença e fraqueza ao invés
de força e confiança — aumentou sua frustração e aturdimento, e ele recomeçou a latir.
Jessie encolheu-se fugindo daquele som desagradável, estilhaçante — teria tapado
os ouvidos se pudesse — e o cachorro percebeu outra mudança no quarto. Alguma coisa no
cheiro da dona fêmea mudara. Seu cheiro-alfa estava desaparecendo enquanto ainda era
novo e fresco, e o cachorro começou a sentir que quem sabe o golpe que levara nos ombros
afinal não significava que outros golpes se seguiriam. De qualquer modo o primeiro golpe
assustara mais do que doera. O cachorro experimentou dar um passo em direção ao braço
mole que largara... em direção ao fedor forte e delicioso de carne e sangue misturados.
Observou atentamente a dona fêmea enquanto se movia. Sua avaliação inicial de que a dona
fêmea era inofensiva, impotente, ou as duas coisas, talvez estivesse errada. Teria que tomar
muito cuidado.
Jessie continuava na cama, agora ligeiramente consciente que os ombros latejavam,
mais consciente que a garganta agora realmente doía, e mais consciente ainda de que, com
ou sem cinzeiro, o cachorro continuava ali. No primeiro assomo caloroso de triunfo
concluíra que inevitavelmente o cachorro fugiria, mas por alguma razão ele resistira. Pior,
começava a avançar de novo. Cautelosa e sorrateiramente, verdade, mas avançava Ela sentiu
um saco verde inchado de peçonha pulsando em algum lugar dentro dela — uma secreção
amarga, repelente como uma cicuta Receava que se o saco arrebentasse, engasgaria com a
própria cólera frustrada
— Fora, seu merda — ordenou ao cachorro com a voz rouca que começara a ruir
nas bordas
— Fora ou vou lhe matar Não sei como, mas juro por Deus que vou.
O cachorro parou de novo, fitando-a com uma expressão profundamente inquieta
— E isso mesmo, é bom prestar atenção em mim — Jessie falou — É bom, porque
falei serio Cada palavra que disse — Então sua voz alteou de novo num grito, embora saísse
aos sussurros aqui e ali a medida que a voz forçada começava a falhar — Vou lhe matar,
vou, juro que vou, portanto FORA DAQUI'
O cachorro que um dia fora o Príncipe da pequena Catherine Sutlin olhou da dona
fêmea para a carne, da carne para a dona fêmea, mais uma vez da dona fêmea para a carne
Chegou ao tipo de decisão que o pai de Catherine teria chamado de conciliadora. Curvou-se
para a frente, ao mesmo tempo que revirava os olhos para vigiar Jessie atentamente, e
abocanhou a aba do tendão dilacerado, gordo e cartilaginoso que fora o bíceps direito de
Gerald Burlingame Rosnando, deu-lhe um safanão O braço de Gerald se levantou, seus
dedos inertes pareciam apontar pela janela leste para a Mercedes parada no caminho de
carros
— Pare com isso! — Jessie gritou com estridência Sua voz prejudicada agora
falhava mais freqüentemente no registro agudo em que os gritos se transformavam em
sussurros arfados em falsete
— Já não fez o bastante? Deixe ele em paz!
O vira-lata não atendeu Sacudiu a cabeça rapidamente de um lado para outro, como
fizera muitas vezes quando ele e Cathy Sutlin brincavam de cabo-de-guerra com seus
brinquedos de borracha Isto, porem, não era brincadeira Coalhos de espuma voavam das
mandíbulas do vira lata enquanto ele trabalhava para soltar a carne do osso A mão
cuidadosamente manicurada de Gerald agitava-se violentamente para diante e para trás no ar
Agora ele lembrava um maestro pedindo aos músicos que acelerassem o compasso da
musica
Jessie ouviu outra vez aquele som grave de pigarro e de repente percebeu que tinha
de vomitar
Não, Jessie! Era a voz de Ruth, e soava alarmada. Não, você não pode fazer isso! O
cheiro pode atrai-lo para você, trazê-lo para cima de você!
O rosto de Jessie se contraiu numa careta tensa enquanto lutava para controlar a
ânsia de vômito Ouviu novamente o ruído de dilaceramento e deu uma rápida olhada no
cachorro — mais uma vez tinha as patas dianteiras tensas e firmes, e parecia estar parado na
ponta de uma tira grossa e escura de borracha da cor da vedação de um pote de conservas —
antes de fechar os olhos Ela tentou cobrir o rosto com as mãos, na aflição esquecendo
temporariamente que estava algemada Suas mãos se imobilizaram a uns setenta centímetros
uma da outra, e as correntes tilintaram Jessie gemeu Era um som que passava da
desesperança ao desespero Um som de desistência
Mais uma vez ela ouviu aquele som úmido e repulsivo de dilaceramento Terminou
com outra beijoca de felicidade Jessie não abriu os olhos
O vira-lata começou a recuar em direção à porta do corredor, os olhos fixos na dona
fêmea em cima da cama Nas mandíbulas levava um grande naco luzidio de Gerald
Burlingame Se a dona na cama pretendia tentar retoma-lo, ela faria sua jogada agora O
cachorro não sabia pensar — pelo menos não na acepção que os homens dão a essa palavra
— mas a sua complexa rede de instintos lhe oferecia uma eficiente alternativa para o
pensamento e ele sabia que aquilo que fizera — e o que estava prestes a fazer — constituía
uma espécie de danação Mas sentira fome durante muito tempo Fora abandonado na mata
por um homem que voltara para casa assoviando o tema de A história de Elza, e estava
famélico Se a dona fêmea tentasse lhe tomar a carne agora, ele lutaria
Lançou-lhe um olhar final, viu que não fazia nenhum movimento para sair da cama,
e virou-lhe as costas Levou a carne para a entrada e acomodou-se prendendo-a firmemente
entre as patas O vento soprou em rajadas, primeiro abrindo a porta e, em seguida, batendo-a
de volta O vira-lata olhou brevemente naquela direção e certificou-se, à sua maneira canina
semipensante, que poderia abrir a porta empurrando-a com o focinho e fugir imediatamente
se precisasse Depois de resolver esse ultimo problema, começou a comer
CAPÍTULO IX
A ânsia de vomitar passou muito devagar, mas passou. Jessie, deitada, os olhos
fechados com força, agora começava realmente a sentir o doloroso latejamento nos ombros
Vinha em lentas ondas espasmódicas e ela teve a impressão desalentadora de que isto era
apenas o começo.
Quero dormir, pensou Era a voz da criança de novo Expressava choque e medo Não
tinha nenhum interesse em lógica, nem paciência para o que podia ou não podia fazer
Estava quase dormindo quando o cachorro mau entrou, e só quero uma coisa agora —
dormir.
Jessie se solidarizava sinceramente. O único problema era que perdera a vontade de
dormir Acabara de ver um cachorro arrancar um naco do marido e não sentia sono algum.
Sentia sede, isso sim
Jessie abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi Gerald, deitado no próprio
reflexo no chão muito lustroso do quarto, como um grotesco atol humano. Os olhos
continuavam abertos, continuavam a fitar intensamente o teto, mas os óculos agora estavam
tortos com uma das pernas enfiada na orelha ao invés de contorna-la por cima Tinha a
cabeça tombada num ângulo FAO fechado que a gorda bochecha esquerda quase
descansava no ombro Entre o ombro e o cotovelo direito não havia nada exceto um esgar
vermelho-escuro com farrapos brancos nas bordas
— Meu Deus! — murmurou Jessie. Desviou rapidamente o olhar para a janela
oeste. A luz dourada — agora quase uma luz crepuscular — ofuscou a e ela tornou a fechar
os olhos, reparando que ocorriam fluxos e refluxos, vermelhos e pretos, à medida que o
coração bombeava sangue em suas pálpebras cerradas Decorridos alguns instantes notou
que os mesmos padrões dardejantes se repetiam indefinidamente. Era quase o mesmo que
observar protozoários ao microscópio, protozoários numa lâmina tinta de vermelho Achou
esse padrão que se repetia tanto curioso quanto calmante. Supunha que não era preciso ser
gênio, para compreender a atração que essas formas repetitivas exerciam em determinadas
circunstâncias Quando todos os padrões e rotinas normais da vida desmoronavam — e com
chocante subitaneidade — era preciso encontrar alguma coisa a que se agarrar, alguma coisa
normal e previsível. Se o espiralamento regular do sangue nas camadas finas de pele, que
protegiam os olhos dos últimos raios de sol de um dia de outubro, era a única opção que
havia, então a pessoa a aceitava e dizia muitíssimo obrigada Porque se não conseguisse
encontrar alguma coisa a que se agarrar, alguma coisa que fizesse algum sentido, os
elementos desconhecidos da nova ordem mundial poderiam leva-la à loucura.
Elementos como os sons que agora vinham da entrada, por exemplo Os sons que
significavam um vira-lata imundo e faminto comendo parte do homem que a levara para ver
o seu primeiro filme de Bergman, o homem que a levara ao parque de diversões na praia
Old Orchard, convencera-a a subir num enorme barco viking que balançava para lá e para cá
no ar, como um pêndulo, e depois rira até as lágrimas saltarem dos olhos quando ela lhe
disse que queria dar mais uma volta O homem que uma vez transara com ela na banheira ate
fazê-la literalmente gritar de prazer O homem que agora estava descendo pela garganta
daquele cachorro em tiras e nacos
Elementos alheios desse tipo
— Dias estranhos, mãezinha — disse — Dias realmente estranhos — Sua voz se
transformara num gemido seco e doloroso Imaginou que seria bom calar a boca e dar um
descanso à voz, mas quando o quarto ficou silencioso ouviu o pânico, que continuava ali,
continuava se esgueirando sobre os almofadões macios das patas, à espreita de uma
oportunidade, a espera de que ela baixasse a guarda. Além do mais, não havia realmente
silêncio O cara da motosserra encerrara o dia, mas o mergulhão ainda soltava um grito
ocasional e o vento aumentava com a aproximação da noite, batendo a porta com maior
ruído — e maior freqüência — que nunca.
E mais, é claro, o som do cachorro que jantava seu marido Enquanto Gerald
esperara para receber e pagar os sanduíches na Amato, Jessie tinha dado uma chegada no
Michaud's Market ao lado. O peixe no Michaud's era sempre bom — tão fresco que chegava
quase a pular, como diria sua avó.
Comprara uns bonitos filés de linguado, pensando em grelhá-los, caso decidissem
passar a noite no lago. Linguado era uma boa opção porque Gerald, se ninguém cuidasse,
viveria numa dieta em que só entravam rosbife e frango frito (com uma ocasional porção de
cogumelos fritos à guisa de complemento dietético), dizia que gostava de linguado.
Comprara o peixe sem a menor premonição de que o marido seria comido antes de poder
comê-lo.
— Lá fora é uma selva, menina — comentou Jessie com a voz seca de corvo e
percebeu que estava fazendo mais do que pensar na voz de Ruth Neary; na verdade estava
falando com a voz de Ruth, que nos tempos de universidade, se ninguém cuidasse, viveria
só de uísque e cigarros.
Aquela voz dura chega-de-papo manifestou-se, como se Jessie tivesse esfregado
uma lamparina mágica. Lembra daquela canção de Nick Lowe que você ouviu no rádio
quando voltava da aula de cerâmica no inverno passado? Aquela que fez você rir?
Lembrava. Não queria lembrar, mas lembrava. Fora uma musiquinha de Nick Lowe
que se chamava, tinha a impressão, "Ela costumava ser uma campeã (hoje é apenas comida
de cachorro)", uma meditação pop cínica e divertida sobre a solidão cantada ao ritmo de
uma música incoerentemente alegre. Engraçadíssima no inverno passado, verdade, Ruth
tinha razão, mas bem menos engraçada agora.
— Pare com isso, Ruth — gemeu ela. — Se você vai ficar como parasita na minha
cabeça, ao menos tenha a decência de parar de me gozar.
Gozar você? Puxa, boneca. Não estou gozando você; estou tentando acordá-la!
— Eu estou acordada! — retrucou ranzinza. No lago o mergulhão gritou de novo,
como se secundasse sua afirmação. — Em parte graças a você!
Não, não está não. Não anda acordada—realmente desperta— há muito tempo.
Quando alguma coisa ruim acontece, Jess, sabe o que você faz? Diz a si mesma: "Ah, por
que me preocupar, é apenas um sonho mau. Tenho esses sonhos de vez em quando, são
muito comuns, e assim que voltar a me deitar de costas a coisa passa." E isso é o que você
faz, babaca. Isso é o que você faz.
Jessie abriu a boca para responder — acusações assim não deveriam passar em
branco, estivesse ou não com a boca seca e a garganta inflamada — mas a Esposa Perfeita
ergueu as muralhas de defesa antes mesmo que a própria Jessie pudesse começar a organizar
os pensamentos.
Como pode dizer coisas tão espantosas? Você é horrível! Vá embora!
A voz chega-de-papo de Ruth soltou outra daquelas gargalhadas cínicas que mais
pareciam um latido, e Jessie refletiu que era inquietante — barbaramente inquietante —
ouvir parte da própria mente rir imitando a voz de uma velha conhecida que sumira há
tempos, só Deus sabia aonde.
Ir embora? Você bem que gostaria, não é?Bonequinha engraçadinha, Filhinha do
Papai. Sempre que a verdade chega muito perto, sempre que começa a suspeitar que o sonho
talvez não seja apenas sonho, você foge.
Isso é ridículo.
É mesmo? Então que aconteceu com Nora Callighan?
Por um momento o choque fez a voz da Esposinha — e a sua própria, aquela que
normalmente falava alto e mentalmente como "Eu" — silenciar, mas no silêncio formou-se
a curiosa imagem conhecida: uma roda de gente — na maioria mulheres — que ria e
apontava para uma moça ao centro, com a cabeça e as mãos metidas em troncos. Era difícil
vê-la por causa da grande escuridão — deveria ser pleno dia, mas, por alguma razão, estava
escuríssimo — mas o rosto da moça se conservaria oculto mesmo em dia claro. Os cabelos
caíam-lhe pelo rosto como a mortalha de um penitente, embora fosse difícil crer que ela
pudesse ter feito alguma coisa tão horrível assim; visivelmente não teria mais de doze anos,
se tanto. Qualquer que fosse a razão do seu castigo, não poderia ter sido por ferir o marido.
Essa filha de Eva era demasiado jovem até para ter regras mensais, quanto mais um marido.
Não, não ê verdade, manifestou-se inesperadamente a voz vinda dos níveis mais
profundos de sua mente. Era uma voz musical e ao mesmo tempo assustadoramente forte,
como o grito de uma baleia. As regras começaram quando tinha apenas dez anos e meio.
Talvez fosse esse o problema. Talvez ele farejasse o sangue, como fez aquele cachorro na
entrada. Talvez isso o deixasse alucinado.
Cala a boca! exclamou Jessie. Ela própria sentia-se inesperadamente alucinada.
Cala a boca, não se fala nesse assunto!
E por falar em cheiros, qual era aquele outro? Ruth perguntou. Agora a voz mental
era áspera e ansiosa... a voz de um garimpeiro que finalmente topou com um veio de
minério, que há muito tempo suspeitava existir, mas nunca fora capaz de localizar. Aquele
cheiro mineral, uma mistura de sal e moedinhas velhas...
Não se fala nesse assunto, já não disse?
Ela estava deitada sobre a colcha, com os músculos tensos sob a pele fria, o
cativeiro e a morte do marido esquecidos — pelo menos por ora — diante dessa nova
ameaça. Sentia Ruth, ou alguma parte isolada sua pela qual Ruth falava, ponderar se devia
ou não continuar no assunto. Quando decidiu que não (pelo menos diretamente), Jessie e a
Esposa Perfeita suspiraram aliviadas.
Tudo bem — vamos falar então sobre a Nora, propôs Ruth. Nora, sua
psicoterapeuta? Nora, sua conselheira? Aquela que você começou a consultar na época em
que deixou de pintar porque algumas de suas cerâmicas estavam lhe apavorando? Que foi a
mesma época, coincidência ou não, que o interesse sexual de Gerald por você pareceu
evaporar e você começou a cheirar o colarinho das camisas dele à procura de vestígios de
perfume? Lembra-se da Nora, não lembra?
Nora Callighan era uma vaca bisbilhoteira!, a Esposa Perfeita rosnou.
— Não — Jessie murmurou. — Ela era bem-intencionada, não tenho a menor
dúvida, só que queria sempre ir mais além. Sempre fazer uma pergunta a mais.
Você disse que gostava dela à beça. Será que não a ouvi dizer isso?
— Quero parar de pensar — retorquiu Jessie. Tinha a voz trêmula e insegura. — E
principalmente quero parar de ouvir vozes e de ter de responder ao que dizem, também. Isso
é uma piração.
Bom, é melhor escutar assim mesmo, disse Ruth séria, porque não vai poder fugir
disso como fugiu de Nora... aliás, do mesmo jeito que fugiu de mim.
Nunca fugi de você, Ruth! Uma negativa chocada, mas pouco convincente. Fora
exatamente o que fizera, claro. Simplesmente arrumara as malas e se mudara do
apartamento, feioso mas agradável, que ela e Ruth dividiam no alojamento universitário.
Não tomara essa atitude porque Ruth começara a fazer muitas perguntas inconvenientes —
perguntas sobre a infância de Jessie, perguntas sobre o lago Dark Score, perguntas sobre o
que poderia ter acontecido lá durante o verão, logo depois que Jessie começou a menstruar.
Não, somente uma falsa amiga teria se mudado por essas razões. Jessie não se mudara
porque Ruth começara a fazer perguntas; mudara-se porque Ruth não parara de fazê-las
quando Jessie pediu. Isso, na opinião de Jessie, fazia de Ruth uma falsa amiga. Ruth
entendera os limites que Jessie traçara... e deliberadamente os ultrapassara. Nora Callighan
fizera o mesmo, anos depois.
Além do mais, a idéia de fugir nas presentes condições era bem risível, não era?
Afinal de contas estava algemada à cama.
Não insulte minha inteligência, engraçadinha, disse Ruth. Sua mente não está
algemada à cama, e nós duas sabemos disso. Você ainda pode fugir se quiser, mas a minha
sugestão — minha sugestão enfática — é que não faça isso, porque sou a sua única opção.
Se ficar deitada aí fingindo que está tendo um sonho mau porque dormiu do lado esquerdo,
vai morrer algemada. É isso que você quer? É esse o seu prêmio por viver a vida toda em
algemas, desde...
— Não quero pensar nisso! — Jessie berrou para o quarto vazio.
Por um momento Ruth guardou silêncio, mas antes que Jessie pudesse sequer
alimentar esperanças de que se fora, Ruth voltou... a acossá-la, mordendo-a como um terrier
morde um trapo.
Vamos, Jess— você provavelmente prefere pensar que está maluca para não ter de
escavar aquele velho túmulo, mas sabe que não está. Eu sou você, a Esposa Perfeita é
você... aliás, todas somos você. Tenho uma boa idéia do que aconteceu naquele dia em Dark
Score, quando o resto da família saiu, e a minha curiosidade não se prende aos
acontecimentos em si. Minha curiosidade é a seguinte: há uma parte de você — que não
conheço — que quer dividir com Gerald o espaço na barriga do cachorro amanhã por essas
horas? Só pergunto, porque isto não me parece lealdade; me parece insanidade.
As lágrimas correram pelo rosto de Jessie de novo, mas ela não sabia se estava
chorando por causa da possibilidade — finalmente enunciada — de que podia realmente
morrer ali ou porque, pela primeira vez, em pelo menos quatro anos, quase pensara naquela
outra casa de verão, a do lago Dark Score, e no que acontecera ali, no dia em que o sol
desapareceu.
Há muito tempo, quase deixara escapar aquele segredo num grupo feminino de
conscientização... no início dos anos setenta, e naturalmente a ida àquela reunião fora idéia
de sua companheira de quarto, mas Jessie a acompanhara de boa vontade, pelo menos no
início; parecera-lhe bastante inofensiva, mais uma atração do assombroso parque de
diversões que era a universidade então. Para Jessie, aqueles
primeiros dois anos de universidade — particularmente com uma guia turística
como Ruth Neary que a levava a jogos, passeios e exposições — tinham sido, no conjunto,
maravilhosos, um tempo em que o destemor parecia normal e o sucesso inevitável. Um
tempo em que nenhum quarto do alojamento universitário estava completo sem um pôster
psícodélico, e se alguém se cansasse dos Beatles — não que isso acontecesse — sapecava
um Hot Tuna ou um MC5 no toca-discos. Fora um tempo radioso demais para ser real,
como as coisas que se vê durante uma febre que não é suficientemente alta para ameaçar a
vida. Na verdade, aqueles dois primeiros anos tinham sido um estouro.
O estouro acabara naquela primeira reunião do grupo de conscientização feminino.
Ali, Jessie descobrira um espinhoso mundo cinzento que parecia, simultaneamente, prever o
futuro adulto que a esperava nos anos oitenta e murmurar sombrios segredos de infância que
enterrara vivos na década de sessenta... mas não queriam ficar lá. Havia vinte mulheres na
sala de estar de uma casa anexa à Capela Interconfessional de Neuworth, algumas
encarapitadas no velho sofá, outras espiando das sombras projetadas pelas orelhas dos
enormes e maciços cadeirões paroquiais, a maioria sentada de pernas cruzadas no chão
formando um círculo irregular — vinte mulheres entre dezoito e quarenta e poucos anos de
idade. Tinham se dado as mãos e guardado um momento de silêncio no início da sessão.
Depois, Jessie fora assaltada por terríveis histórias de estupro, incesto, tortura física. Ainda
que vivesse cem anos jamais esqueceria a loura bonita e tranqüila que levantara o suéter
para mostrar cicatrizes antigas de queimaduras de cigarro sob os seios.
Foi quando o parque de diversões acabou para Jessie Mahout.
Acabou? Não, não foi bem assim. Foi como se lhe tivessem permitido um vislumbre
dos bastidores da cena; tivessem permitido ver os campos cinzentos e vazios de outono que
constituíam realmente a verdade: apenas maços secos de cigarros, camisinhas usadas e um
punhado de prêmios baratos e quebrados enganchados no capim alto, à espera que o vento
os levasse ou a neve de inverno os cobrisse. Ela viu aquele mundo estéril, estúpido e
silencioso aguardando atrás da fina lona remendada, a única coisa que o separava da
claridade espetacular do centro do parque de diversões, do vozerio dos anunciantes de
atrações, do glamour cintilante dos brinquedos, e isso a aterrorizou. Pensar que seu futuro
era apenas isso, apenas isso e nada mais, era terrível; pensar que deixara isso também no
passado, mal disfarçado pela lona remendada e berrante de suas próprias lembranças
adulteradas, era insuportável.
Depois de mostrar a todas os seios, a moça loura e bonita baixou o suéter e explicou
que não podia contar aos pais o que os amigos do irmão tinham-lhe feito no fim de semana
que os pais viajaram a Montreal, porque poderia vir à tona o que o irmão andara fazendo
com ela, embora sem regularidade, durante todo o ano anterior, e os pais jamais teriam
acreditado naquilo.
A voz da loura expressava a mesma tranqüilidade que o rosto, o tom perfeitamente
racional. Quando terminou, houve uma pausa de estupefação — um momento em que Jessie
sentiu alguma coisa se rasgar e soltar por dentro e ouviu uma centena de vozes
fantasmagóricas berrando em seu íntimo, numa mistura de esperança e terror — e então
Ruth se manifestara.
— Por que seus pais não iriam acreditar em você? — perguntou. — Nossa, Liv, os
rapazes a queimaram com cigarros em brasa! Você tinha as queimaduras para provar! Por
que não iriam acreditar em você? Eles não a amavam?
Amavam, Jessie pensou. Eles a amavam. Mas...
— Amavam — respondeu a loura. — Eles me amavam, sim. Ainda me amam. Mas
idolatravam meu irmão Barry.
Sentada ao lado de Ruth, o punho não muito firme apoiando a testa, Jessie se
lembrava de ter murmurado:
— Além do mais isto a teria matado. Ruth virou-se para ela e ia perguntando:
— Que...? — mas a loura, ainda com os olhos secos, ainda estranhamente tranqüila
continuou:
— Além do mais, descobrir uma coisa dessas teria matado minha mãe.
E então Jessie sentiu que ia explodir se não saísse dali. Por isso levantou-se, saltou
do cadeirão com tal pressa que quase derrubou a peça feia e maciça. Precipitou-se para fora
da sala, sabendo que todas a olhavam, mas não se importou. O que elas pensavam não fazia
diferença. O que importava era que o sol desaparecera, o sol em si, e se ela contasse, só não
acreditariam em sua história se Deus fosse bom. Se Deus estivesse de mau humor, elas
acreditariam em Jessie... e mesmo que isto não matasse sua mãe, destruiria a família como
uma banana de dinamite explode uma abóbora podre.
Então saíra correndo da sala, atravessara a cozinha e teria fugido pela porta dos
fundos, se não a encontrasse trancada. Ruth correu atrás dela, gritando-lhe que parasse,
Jessie pára. Parara, mas somente porque aquela maldita porta trancada a impedira de
continuar. Encostara o rosto no vidro escuro e frio, na verdade, pensando — embora por um
momento — enfiar a cabeça no vidro e cortar o pescoço, ou qualquer coisa que apagasse
aquela horrível visão cinzenta do futuro e do passado, mas por fim simplesmente se virou,
deixou-se escorregar até o chão, segurando as pernas nuas abaixo da saia curta que usava,
descansou a testa nos joelhos erguidos e fechou os olhos. Ruth sentou-se a seu lado e
abraçou-a pelos ombros, ninando-a, cantando para ela, alisando seus cabelos, encorajando-a
a falar, a se livrar do problema, a vomitá-los para esquecê-los de vez.
Agora, deitada ali na casa à beira do lago Kashwakamak, pôs-se a imaginar que fim
teria levado a loura de olhos secos, estranhamente tranqüila, que lhes contara a história do
irmão Barry e seus amigos — rapazes que obviamente pensavam que uma mulher era
apenas um sistema vivo de apoio para uma boceta e que marcar uma moça a fogo era um
castigo perfeitamente justo quando ela achava errado trepar com os colegas do irmão, mas
não com o irmão. Mais precisamente, Jessie pôs-se a pensar o que dissera a Ruth quando se
sentaram abraçadas com as costas apoiadas na porta da cozinha. A única coisa que
conseguia lembrar com certeza era uma frase do tipo "Ele nunca me queimou, ele nunca me
queimou, ele nunca me machucou". Mas devia ter contado muito mais, porque as perguntas
que Ruth se recusava a parar de fazer apontavam claramente em uma única direção: o lago
Dark Score e o dia que o sol desaparecera.
No fim preferira abandonar Ruth a contar... do mesmo jeito que preferira parar de
ver Nora para não contar. Correra o mais rápido que as pernas lhe permitiram — Jessie
Mahout Burlingame, também conhecida por A Ruiva Fantástica, a última maravilha de uma
era ambígua, sobrevivente do dia em que o sol desaparecera, agora algemada à cama e
incapaz de correr.
— Me ajude — disse para o quarto vazio. Agora que se lembrara da loura de rosto
e voz estranhamente tranqüilos e as marcas de velhas cicatrizes redondas naqueles seios de
outra forma bonitos, Jessie não conseguia tirá-la da cabeça, nem tampouco o conhecimento
de que não era tranqüilidade, de jeito nenhum, mas um alheamento fundamental do episódio
terrível por que passara. Seja como for, o rosto da loura se transformara no seu rosto, e
quando Jessie falou, falou na voz trêmula e humilde do ateu que perdeu tudo exceto a última
oração. — Por favor, me ajude.
Não foi Deus quem respondeu mas aquela sua parte que aparentemente só
conseguia falar mascarada de Ruth Neary. A voz agora soava gentil... mas pouco
esperançosa. Vou tentar, mas você tem que me ajudar. Sei que está disposta a gestos
dolorosos, mas talvez tenha que repensar lembranças dolorosas, também. Está preparada
para isso?
— Não estamos falando de pensar — Jessie disse vacilante, e pensou: Então essa é
a voz da Esposa Perfeita quando fala alto.
— Estamos falando de... bem... de fugir.
E você talvez tenha que amordaçá-la, disse Ruth. Ela é uma parte válida de você,
Jessie — de nós — e na realidade não é má pessoa, só que dirigiu todo o espetáculo sozinha
durante um tempo demasiado longo, e numa situação dessas, seu jeito de enfrentar o mundo
não é grande coisa. Quer discutir a questão?
Jessie não queria discutir nem essa nem nenhuma outra questão. Estava demasiado
cansada. A luz que entrava pela janela oeste tornava-se cada vez mais quente e vermelha
anunciando o pôr-do-sol. O vento soprava em rajadas, empurrando as folhas ruidosamente
pelo deck na fachada do lago, agora vazio; toda a mobília fora empilhada na sala de estar.
Os pinheiros ramalhavam; a porta dos fundos batia; o cachorro fez uma pausa e em seguida
recomeçou a estalar a língua, a dilacerar e a mastigar.
— Estou com tanta sede — lamentou-se.
Muito bem, então— é por aí que devemos começar.
Ela virou a cabeça para o outro lado até sentir o último calorzinho do sol sobre o
pescoço e os cabelos úmidos grudados no rosto, e em seguida reabriu os olhos. Viu diante
de si o copo d'água de Gerald, e sua garganta imediatamente emitiu um grito ressequido e
imperativo.
Vamos iniciar essa fase das operações esquecendo o cachorro, disse Ruth. O
cachorro está fazendo apenas o que tem de fazer para viver, e você precisa fazer o mesmo.
— Não sei se posso esquecê-lo — respondeu Jessie.
Acho que pode, boneca — tenho certeza. Se você conseguiu varrer para debaixo do
tapete o que aconteceu no dia em que o sol desapareceu, acho que consegue varrer qualquer
coisa para debaixo do tapete.
Por um instante quase se lembrou de tudo, e compreendeu que era capaz de lembrar
de tudo, se realmente quisesse. O segredo daquele dia nunca se afundara completamente no
subconsciente, como ocorria com segredos desse gênero nas novelas de televisão e nos
melodramas de cinema; na melhor das hipóteses fora enterrado em uma cova rasa. Ocorrera
uma amnésia seletiva, mas de tipo inteiramente voluntário. Se quisesse se lembrar do que
acontecera no dia que o sol sumiu, achava que provavelmente conseguiria.
Como se tal idéia fosse um convite, imediatamente teve uma visão mental de uma
claridade dilacerante: um pedaço de vidro de janela seguro com uma pinça de churrasco.
Uma mão protegida por uma luva pega-panelas virava-o para cá e para lá na fumaça de um
foguinho de turfa.
Jessie se enrijeceu na cama e fez a imagem desaparecer.
Vamos esclarecer bem uma coisa, pensou. Supunha que estava se dirigindo à voz de
Ruth, mas não tinha certeza absoluta; na realidade não tinha mais certeza de nada. Não
quero me lembrar. Entendeu? Os acontecimentos daquele dia não têm a menor relação com
os acontecimentos de hoje. São como laranjas e bananas. É bastante fácil entender as
correspondências — dois lagos, duas casas de veraneio, dois casos de (os segredos calam a
dor do ferimento) relações sexuais aberrantes — mas lembrar do que me aconteceu em 1963
não pode fazer nada por mim a não ser aumentar minha infelicidade. Vamos parar de falar
nesse assunto, está bem? Vamos esquecer o lago Dark Score.
— Que me diz, Ruth? perguntou em voz baixa, e desviou o olhar para a borboleta
de batik do outro lado do quarto. Por um breve instante surgiu outra imagem — uma
menininha, a Bobrinha fofinha de alguém que cheirava um perfume gostoso de loção pósbarba
e espiava o céu através de um pedaço de vidro esfumaçado — e então
misericordiosamente a imagem desapareceu.
Ela contemplou a borboleta por mais algum tempo, querendo se certificar de que
aquelas velhas lembranças iam permanecer esquecidas, e então voltou os olhos para o copo
d'água de Gerald. Parecia inacreditável, mas ainda havia uns pedacinhos de gelo flutuando
na superfície, embora a penumbra do quarto ainda conservasse o calor do sol da tarde e
ainda fosse mantê-lo algum tempo.
Jessie deixou o olhar vagar pelo copo, deixou-o abarcar as bolhinhas geladas de
condensação que o cobriam. Não conseguia realmente ver o descanso sob o copo — a
prateleira o escondia — mas não precisava vê-lo para imaginar o anel de umidade que se
formava no descanso à medida que as gotículas de condensação escorriam pelas paredes do
copo e iam empoçando à sua volta.
Ela estirou a língua e lambeu o lábio superior, sem conseguir umedecê-lo.
Quero água! a voz amedrontada e exigente da criança — da Bobrinha fofinha de
alguém — gritou. Quero água e quero... AGORA MESMO!
Mas ela não alcançava o copo. Era um caso óbvio de uma coisa tão perto e, no
entanto, tão longe.
Ruth: Não desista tão depressa — se você conseguiu atingir o maldito cachorro com
um cinzeiro, boneca, talvez possa pegar o copo. Talvez possa.
Jessie ergueu a mão direita de novo, forçando-a o máximo que o ombro latejante
permitia, e ainda assim ficaram faltando uns seis centímetros. Engoliu em seco, fazendo
uma careta após a contração espasmódica e áspera da garganta.
— Viu? — perguntou. — Está satisfeita agora?
Ruth não respondeu, mas Esposinha, sim. Falou com brandura e quase a se
desculpar, na cabeça de Jessie. Ela disse pegue o copo e, não, estenda a mão para o copo.
Talvez... não sejam a mesma coisa. Esposinha riu meio constrangida como quem diz quemsou-
eu-para-meter-minha-colher, e Jessie parou para pensar mais uma vez como era
extraordinariamente curioso sentir uma parte da gente rir daquele jeito, como se fosse
realmente uma entidade independente. Se eu tivesse mais algumas vozes, poderíamos
organizar um torneio de bridge aqui dentro.
Contemplou mais algum tempo o copo, e se deixou afundar nos travesseiros de
modo a poder estudar a parte inferior da prateleira. Descobriu que não estava pregada à
parede; apoiava-se em quatro suportes de aço com a forma de eles maiúsculos invertidos. E
a prateleira não estava pregada neles, tinha certeza disso. Lembrava-se de uma vez em que
Gerald falava ao telefone e distraidamente tentara descansar a mão na prateleira. O lado
oposto começara a levantar, levitando como a ponta de uma gangorra, e se Gerald não
tivesse retirado imediatamente a mão, a prateleira teria dado uma cambalhota no ar com a
leveza de uma ficha de jogo da pulga.
A lembrança do telefone distraiu-a por um instante, mas apenas por um instante. O
aparelho descansava numa mesa baixa diante da janela leste, a da vista panorâmica onde
havia o caminho de carros e a Mercedes, mas por ela poderia estar em outro planeta, porque
não tinha qualquer serventia na situação atual. Seus olhos voltaram a observar a parte
inferior da prateleira e, primeiro, estudou a prancha em si, depois reexaminou os suportes.
Quando Gerald se apoiara do lado dele, o dela levantara. Se ela exercesse suficiente
pressão do lado dela para levantar o dele, o copo de água...
— Talvez deslize — disse numa voz rouca e pensativa. — Talvez deslize para o
meu lado. — Naturalmente também poderia passar alegremente por ela e se espatifar no
chão, ou bater em algum obstáculo oculto na prateleira e tombar antes de chegar até ela, mas
valia a pena tentar, não valia?
Claro, acho que sim, pensou. Quero dizer, eu estava planejando pegar o meu Learjet
para Nova York — jantar no Four Seasons, dançara noite inteira na Birdland— mas com
Gerald morto acho que seria um tanto impróprio. E considerando que todos os bons livros
estão presentemente fora do meu alcance — e aliás, todos os ruins também — acho que
seria melhor tentar o prêmio de consolação.
Muito bem; como deveria agir?
— Com muito cuidado — disse. — Claro.
Usou as algemas para se içar mais uma vez e se deteve a estudar melhor o copo. A
impossibilidade de ver realmente a superfície da prateleira agora lhe parecia uma
desvantagem. Tinha uma boa idéia do que havia do seu lado, mas não tinha muita certeza
quanto ao lado de Gerald e a terra de ninguém entre os dois. O que não era surpresa
nenhuma; a não ser alguém dotado de uma memória eidética, quem mais poderia desfiar um
inventário completo dos objetos numa prateleira de quarto? Quem pensaria que isso pudesse
interessar?
Bem, interessa agora. Estou vivendo em um mundo onde todas as perspectivas
mudaram.
Sem dúvida alguma. Neste mundo um vira-lata consegue apavorar mais do que
Freddy Krueger, o monstro de Sexta-feira 13, o telefone se encontrava Além da imaginação,
o oásis buscado por milhares de velhos legionários curtidos, em uma centena de romances
passados no deserto, era um copo d'água com as últimas lasquinhas de gelo flutuando à
superfície. Na ordem desse novo mundo, a prateleira do quarto de dormir se transformara
numa via marítima tão vital quanto o canal do Panamá e um velho romance de faroeste ou
de mistério no lugar errado poderia se transformar numa barreira mortífera.
Não acha que está exagerando um pouco? perguntou a si mesma sem graça, mas na
verdade não exagerava. Seria uma operação cheia de percalços na melhor das hipóteses, mas
se houvesse uma obstrução na pista, nada feito. Um único e magrinho Agatha Christie — ou
uma das aventuras da jornada nas Estrelas que Gerald lia e depois largava como um
guardanapo usado — não seria visto na prateleira, mas seria suficiente para paralisar ou
derrubar o copo d'água. Não, não estava exagerando. As perspectivas deste mundo tinham
realmente mudado, e o suficiente para fazê-la pensar naquele filme de ficção científica em
que o herói começava a encolher e ia ficando cada vez menor até passar a morar na casa de
bonecas da filha e morrer de medo do gato da família. Ela ia aprender as novas regras
depressa... aprendê-las e respeitá-las.
Não perca a coragem, Jessie, a voz de Ruth sussurrou.
— Não se preocupe — respondeu. — Vou tentar — juro que vou. Mas às vezes é
bom conhecer as dificuldades a enfrentar. Acho que, às vezes, faz diferença.
Ela girou o pulso direito para fora o máximo que pôde, em seguida levantou o
braço. Nessa Posição parecia uma figura de mulher numa carreira de hieróglifos egípcios.
Mais uma vez apalpou a Prateleira com os dedos, procurando obstruções no trecho em que
esperava que o copo pararia.
Tocou numa folha de papel grosso e sentiu-o com o polegar, tentando adivinhar o
que era. Seu Primeiro palpite foi uma folha do bloco de papel que em geral ficava submerso
na bagunça da mesa do telefone, mas não era suficientemente fino. Por acaso seu olhar
bateu numa revista — Time ou Newsweek, Gerald trouxera as duas — largada com a capa
para baixo junto ao telefone.
Lembrou-se de vê-lo folheando rapidamente uma das revistas enquanto tirava as
meias e desabotoava a camisa. O pedaço de papel na prateleira era provavelmente uma
dessas antipáticas ofertas de assinatura que sempre enchem os exemplares das revistas
compradas nas bancas. Gerald, muitas vezes separava os cartões para usá-los como
marcadores de livros. Poderia ser outra coisa, mas Jessie concluiu que, de todo modo, não
interessava aos seus planos. Não era bastante grosso para deter o copo nem derrubá-lo. Não
havia mais nada ali, pelo menos ao alcance de seus dedos que se encolhiam e esticavam.
— Muito bem — Jessie falou. Seu coração começara a bater com força. Uma rádio
pirata e sádica, em sua mente, tentava transmitir a imagem de um copo rolando da
prateleira, mas ela bloqueou imediatamente a cena. — Calma; vamos com calma. Devagar
se vai ao longe, espero.
Mantendo a mão direita na mesma posição, embora dobrar a mão para mantê-la
afastada do corpo naquela direção não funcionasse muito bem e doesse para danar, Jessie
levantou a mão esquerda (a mão-de-arremessar-cinzeiro, pensou com um sombrio lampejo
de humor) e agarrou a prateleira bem além do último suporte do seu lado da cama.
Lá vamos nós, pensou, e começou a pressionar a prateleira para baixo com a mão
esquerda. Nada aconteceu.
Provavelmente estou puxando muito perto do último suporte para conseguir
suficiente alavancagem. O problema é a maldita corrente da algema. Não tenho a folga que
precisaria para chegar ao ponto certo da prateleira.
Provavelmente é verdade, mas essa percepção não alterava o fato de que não estava
deslocando a prateleira com a mão esquerda na posição em que estava. Teria que espalhar
os dedos mais para fora como uma aranha — isto é, se pudesse — e esperar que
funcionasse. Era física de revista em quadrinhos, simples mas certeira. A ironia era que
podia tocar a parte inferior da prateleira e empurrá-la para cima quando quisesse. Havia um
pequeno problema, porém — desequilibraria o copo para a ponta errada, a de Gerald, e daí
para o chão. Quando se examinava o problema com atenção, via-se que a situação realmente
possuía um lado cômico; era como um segmento das videocassetadas mais engraçadas
selecionadas pelo diabo.
Inesperadamente o vento amainou e os ruídos da entrada ganharam um volume
inusitado.
— Está gostando do jantar, seu trapalhão? — Jessie berrou. A dor dilacerou sua
garganta, mas ela não parou — não pôde parar. — Espero que sim, porque a primeira coisa
que vou fazer quando me livrar dessas algemas é estourar seus miolos!
Está falando grosso, pensou. Está falando muito grosso para uma mulher que nem
se lembra se a velha espingarda de Gerald — aquela que pertencia ao pai — está aqui ou no
sótão da casa de Portland.
Ainda assim, houve um prazeroso momento de silêncio no mundo sombrio para
além da porta da suíte. Era quase como se o cachorro estivesse dedicando à sua ameaça a
mais sóbria e atenta consideração.
Então os estalos e a mastigação recomeçaram.
O pulso direito de Jessie rangiu um alerta, ameaçando entrar em cãibra, avisando
que era melhor continuar a cuidar do seu problema depressinha... se é que havia algum
problema a cuidar.
Ela se inclinou para a esquerda e estendeu a mão o máximo que a corrente lhe
permitiu. Em seguida recomeçou a pressionar a prateleira. Em princípio não aconteceu nada.
Ela puxou com mais força, os olhos quase fechados, os cantos da boca voltados para baixo.
Era o rosto de uma criança que espera uma dose de remédio ruim. E, pouco antes de atingir
a pressão máxima para baixo que os músculos doloridos do braço podiam produzir, sentiu
um movimento mínimo na tábua, uma mudança na ação uniforme da gravidade tão ínfima
que intuiu-a mais do que sentiu.
Você confundiu o desejo com a realidade, Jess — foi isso que aconteceu. Só isso e
nada mais.
Não. Talvez fosse a contribuição dos sentidos que tinham ido parar na estratosfera
em conseqüência do terror, mas não era uma confusão do desejo com a realidade.
Largou a prateleira e acomodou-se por algum tempo, inspirando profunda e
lentamente para deixar os músculos se recuperarem. Não queria que entrassem em espasmos
nem cãibras na hora H; já tinha problemas suficientes, obrigada. Quando achou que estava
pronta, enrascou frouxamente o pulso esquerdo no pilar da cama e deslizou-o para cima e
para baixo até secar o suor na palma da mão e o mogno rangir. Então esticou o braço e
agarrou de novo a prateleira. Estava na hora.
Preciso ter cuidado, porém. A prateleira mexeu, não havia dúvida, e vai mexer ainda
mais, mas vai exigir toda a minha força para pôr o copo em movimento... isto é, se é que
vou conseguir fazer isso. E quando alguém chega próximo do fim de suas forças, o controle
se torna desigual.
Isso era verdade, mas não era o problema. O problema era o seguinte: não tinha
idéia do ponto em que a prateleira desequilibrava. Nem sonhava.
Jessie lembrou-se do verão em que andou de gangorra com a irmã Maddy no
playground atrás da escola primária de Falmouth — a família voltara mais cedo do lago e
Jessie tinha a impressão que passara o mês de agosto inteiro gangorreando naquelas
pranchas descascadas tendo Maddy por companheira — e a maneira com que elas
mantinham um equilíbrio perfeito sempre que queriam. Só precisava Maddy, que pesava um
pouquinho mais, chegar a medida de um traseiro para o centro. Longas tardes quentes de
treinamento, cantando músicas infantis enquanto subiam e desciam, tinham permitido às
duas descobrir o ponto em que cada gangorra desequilibrava com uma exatidão quase
científica; aquela meia dúzia de pranchas verdes empenadas que se enfileiravam no pátio
escaldante pareciam às duas quase ter vida. Não sentia essa vida sob os dedos agora.
Simplesmente teria de fazer o melhor que soubesse e rezar para dar certo.
E apesar do que a Bíblia possa dizer em contrário, não deixe a mão esquerda
esquecer o que a direita deve fazer. A esquerda pode ser a mão-de-arremessar-cinzeiros mas
é melhor que a direita seja a mão-de-apanhar-copos, Jessie. Há apenas uns poucos
centímetros de prateleira em que terá a chance de apanhá-lo. Se o copo passar desse ponto,
não vai fazer diferença continuar em pé ou não — estará tão fora do seu alcance quanto
agora.
Jessie não pensava que podia esquecer o que a mão direita fazia — doía demais. Se
iria corresponder ao que precisava que fizesse era outro caso. Aumentou então a pressão
sobre o lado esquerdo da prateleira aos pouquinhos e com a firmeza que pôde. Uma gota
ardida de suor entrou no canto do olho e Jessie piscou para expulsá-la. Longe, a porta dos
fundos batia novamente, mas juntara-se ao telefone naquele outro universo. Neste havia
apenas o copo, a prateleira e Jessie. Parte dela esperava que a prateleira levantasse de um
salto como um boneco de mola, e catapultasse tudo para o alto, e ela tentava se fortalecer
contra um possível desapontamento.
Preocupe-se com isso quando acontecer, boneca. Entrementes, não se desconcentre.
Acho que há alguma coisa acontecendo.
E havia. Ela sentiu aquele movimento mínimo outra vez — aquela sensação que, em
algum ponto do lado de Gerald, a prateleira começava a soltar as amarras. Desta vez Jessie
não diminuiu a pressão, pelo contrário, aumentou-a, os músculos de seu braço esquerdo
saltando em arquinhos duros que estremeciam ao esforço. Ela deixou escapar uma série de
sílabas explosivas. A impressão de que a prateleira se desprendia foi aumentando cada vez
mais.
E, de repente, a superfície da água no copo de Gerald transformou-se num plano
inclinado e ela ouviu as últimas lasquinhas de gelo chocalharem levemente quando a ponta
direita da tábua realmente se ergueu. O copo em si não se mexeu, porém, e lhe ocorreu um
pensamento terrível: e se o pouco de água que escorreu pela parede do copo tivesse se
infiltrado sob o descanso de papelão? E se tivesse formado uma sucção e colado o copo à
prateleira?—
Não, isso não pode acontecer. — As palavras escaparam num único sussurro,
como a oração maquinal de uma criança cansada. Ela puxou o lado esquerdo da prateleira
para baixo com mais empenho, usando toda a força. Requisitou até o último cavalo: o
estábulo se esvaziara. — Por favor não deixe isso acontecer. Por favor.
A prateleira do lado de Gerald continuou a se erguer, a ponta oscilando livre. Um
tubo de blush Max Factor correu pelo lado de Jessie e foi aterrissar no chão próximo ao
lugar onde repousara a cabeça de Gerald antes do cachorro aparecer e arrastá-lo para longe
da cama. E agora uma nova possibilidade — na verdade, uma probabilidade — lhe ocorreu.
Se aumentasse demais o ângulo da prateleira, ela simplesmente escorregaria pela fileira de
suportes, com copo e tudo, como um tobogã que desce uma montanha nevada. Pensar na
prateleira como uma gangorra poderia metê-la numa fria. Não era uma gangorra; não havia
um ponto de apoio central a que estivesse presa.
— Escorregue, filho da mãe! — gritou para o copo numa voz alta e fina. Esquecera
Gerald; esquecera a sede; esquecera tudo exceto o copo, agora inclinado em um ângulo tão
agudo que a água quase transbordava e era difícil entender por que ele simplesmente não
caia. Mas o fato é que não caiu; continuou de pé onde estivera o tempo todo. como que
colado à prateleira. — Escorregue!
De repente ele escorregou.
O movimento contrariou de tal modo as piores expectativas de Jessie que ela se viu
quase incapaz de compreender o que estava acontecendo. Mais tarde lhe ocorreria que a
aventura do copo deslizante indicava algo pouco elogiável no seu modo de pensar: de certa
forma ela fora condicionada para o fracasso. O sucesso é que a deixava chocada e
boquiaberta.
A viagem curta e suave do copo. prateleira abaixo, até sua mão direita de tal forma
a espantou, que Jessie quase aumentou a força da esquerda, um movimento que certamente
teria desequilibrado a prateleira precariamente inclinada, fazendo-a despencar no chão.
Então seus dedos tocaram o copo, e ela gritou de novo. Era um berro, sem palavras, que
expressava o prazer de uma mulher ao saber que ganhara na loteria.
A prateleira oscilou, começou a deslizar, e parou, como se tivesse uma mente
rudimentar autônoma e pudesse refletir se realmente queria ou não fazer aquilo.
O tempo é curto, boneca, avisou Ruth. Agarre a droga do copo enquanto pode.
Jessie tentou, mas as almofadinhas dos dedos apenas derrapavam na superfície
escorregadia do maldito copo úmido. A água esparrinhou em sua mão, e agora ela sentia que
ainda que a prateleira se firmasse, o copo não tardaria a virar.
Imaginação, boneca — aquela velha idéia de que uma Bobrinha triste como você
jamais consegue fazer nada certo.
Não estava muito longe da verdade — próximo demais para o seu sossego — mas
não a atingira em cheio, não desta vez. O copo estava se preparando para virar, de fato
estava, e ela não tinha a menor idéia do que fazer para evitar que isso acontecesse. Por que
tinha de ter dedos tão curtos, grossos e feios? Por quê? Se ao menos conseguisse esticá-los
um pouco mais para abarcar o copo...
Ocorreu-lhe uma imagem de pesadelo de um comercial de TV: uma mulher
sorridente, penteada à moda dos anos cinqüenta, usava um par de luvas de borracha azuis.
Tão flexíveis que você pode apanhar uma moedinha! a mulher gritava entre sorrisos. Que
pena você não ter um par de luvas assim, Bobrinha, ou Esposa Perfeita, ou quem diabo seja'
Talvez pudesse pegar aquela porra do copo antes que tudo que está em cima da maldita
prateleira tome o elevador expresso!
Jessie de repente percebeu que a mulher que gritava entre sorrisos e usava luvas
Playtex era sua mãe, e deixou escapar um soluço seco.
Não desista, Jessie! gritou Ruth. Ainda não! Você está quase conseguindo! Juro que
está!
Ela usou o restinho das forças para pressionar o lado esquerdo da prateleira, rezando
incoerentemente para que não escorregasse — ainda não. Por favor, meu Deus. ou seja
quem for. não deixe a prateleira escorregar, agora não. ainda não.
A tábua realmente deslizou... mas apenas um pouquinho. Então parou de novo.
talvez momentaneamente presa numa lasca ou numa farpa da madeira. O copo escorregou
um pouquinho mais para a concha de sua mão. e agora — a loucura ia piorando — parecia
que o maldito copo estava falando também. Lembrava um daqueles grisalhos taxistas de
cidade grande, que têm um permanente tesão contra o mundo: Caramba, madame. que mais
quer que eu faça? Que deixe crescer uma asa e me transforme na porra de uma jarra para a
senhora? Outro filete de água escorreu pela tensa mão direita de Jessie. Agora o copo cairia:
agora era inevitável. Mentalmente já conseguia sentir o friozinho da água gelada banhando
sua nuca.
— Não!
Ela torceu o ombro direito um pouquinho mais, abriu os dedos um tiquinho mais.
deixou o copo escorregar um tantinho mais para a concha tensa de sua mão. A algema ia se
cravando nas costas da mão. provocando pontadas de dor que chegavam aos cotovelos, mas
Jessie não ligou. Os músculos do braço esquerdo vibravam violentamente, agora, e os
tremores se comunicavam à prateleira empinada e instável. Mais um tubo de cosmético
rolou para o chão. As últimas lasquinhas de gelo tilintaram levemente. Acima da prateleira,
ela via a sombra do copo na parede. À luz inclinada do poente parecia mais um silo de grãos
inclinado por um forte vento de planície.
Mais... só mais um pouquinho...
Não HÁ nenhum mais!
E melhor haver. Tem que haver.
Ela esticou a mão direita até quase romper o tendão e sentiu o copo escorregar um
pouquinho mais pela prateleira abaixo. Então tornou a fechar os dedos, rezando para que
finalmente fossem suficientes, porque agora não havia realmente mais nada — usara todos
os seus recursos até os limites absolutos. Quase não foram suficientes; ainda sentia o copo
molhado tentando escapar. Ele começara a parecer um corpo vivo, um ser sensível com um
traço de perversidade da largura de uma auto-estrada. Seu objetivo era flertar com Jessie e,
em seguida, negocear até que sua sanidade se rompesse e ela ficasse ali no lusco-fusco
algemada e delirante.
Não o deixe escapar Jessie, não se atreva. NÃO SE ATREVA A DEIXAR A
PORRA DO COPO ESCAPAR...
E embora não restasse mais nada. nem meio quilo de força, nem um milímetro de
extensão, ela conseguiu reunir mais alguma coisa, girando o pulso direito um último
bocadinho para o lado da tábua. E desta vez quando fechou os dedos em torno do copo. ele
não escapuliu.
Acho que talvez tenha conseguido. Não tenho muita certeza, mas quem sabe.
Talvez.
Ou talvez tivesse finalmente chegado ao desejo e, não à sua realização. Não
importava. O talvez isso e o talvez aquilo e todos os talvezes não importavam mais e isso
era realmente um alívio. Havia apenas uma certeza: não podia continuar a segurar a
prateleira. Erguera-a uns dez centímetros, treze no máximo, mas tinha a sensação de que se
agachara e levantara a casa inteira pelo canto. Essa era a certeza.
Pensou: Tudo é perspectiva. ...e a narração que as vozes fazem do mundo para a
gente, suponho. Elas importam. As vozes dentro da cabeça.
Com uma oração incoerente pedindo que o copo continuasse seguro quando já não
tivesse a prateleira como apoio, ela soltou a mão esquerda. A prateleira bateu nos suportes
com estrondo, apenas ligeiramente de banda, deslocada uns cinco centímetros para a
esquerda. O copo continuou de fato em sua mão, e agora ela via o descanso. Achava-se
grudado ao fundo do copo como um disco voador.
Por favor, meu Deus, não me deixe largá-lo agora. Não me deixe larg...
Uma cãibra torceu seu braço esquerdo, fazendo-a recuar num movimento brusco de
encontro à cabeceira. Seu rosto se contraiu para dentro até os lábios virarem uma cicatriz
branca e, os olhos, duas fendas de agonia.
Espere, isso vai passar... vai passar...
Claro que ia. Já tivera suficientes cãibras musculares na vida para saber, mas
entrementes, puxa, como doía. Se pudesse tocar o bíceps do braço esquerdo com a mão
direita, sabia que a pele ali pareceria esticada sobre um punhado de pedrinhas lisas que
alguém costurara com uma linha invisível. A sensação não era de uma rigidez muscular; a
sensação era de uma puta rigidez cadavérica.
Não. é apenas uma rigidez muscular. Jessie. Como a que teve há pouco. Dê um
tempo que passa. Dê um tempo e pelo amor de Deus não deixe o copo dágua cair.
Ela esperou, e transcorridas uma ou duas eternidades, os músculos do braço
começaram a relaxar e a dor a diminuir. Jessie soltou um longo e áspero suspiro de alívio,
em seguida se preparou para beber a recompensa. Beber, sim, pensou Esposinha, mas acho
que você merece um pouco mais do que um bom copo dágua fresca, minha querida.
Aproveite a recompensa... mas aproveite-a com dignidade. Nada de engolir a água como
uma porquinha!
Esposinha, você não muda nunca, pensou, mas quando ergueu o copo exibiu a
calma solene de um comensal na corte, sem tomar conhecimento da secura alcalina no céu
da boca e do latejamento amargo na garganta que a sede produzira. Porque pode-se
menosprezar Esposinha o quanto se quiser — às vezes ela praticamente suplica que alguém
faça isso — mas a idéia de se comportar com um pouquinho de dignidade nas circunstâncias
(particularmente nessas circunstâncias) não era nada má. Esforçara-se para conseguir a
água: por que não gastar tempo para se aplaudir, saboreando a água? Quando o primeiro
golinho frio passasse por seus lábios e serpeasse pela superfície quente da língua, ia ter
gosto de vitória... e depois da maré de azar que acabara de atravessar, aquele gosto, sem
dúvida, merecia ser saboreado.
Jessie aproximou o copo da boca. concentrando-se na doçura úmida que a esperava,
no aguaceiro que encharca. Suas pupilas se contraíram de expectativa, os dedos dos pés se
encolheram, e sentiu uma pulsação furiosa sob o ângulo do queixo. Percebeu que seus
mamilos tinham endurecido, como faziam às vezes quando se excitava. Segredos da
sexualidade feminina com que você jamais sonhou. Gerald, pensou Jessie. Me algeme aos
pilares da cama e nada acontece. Me mostre um copo de água, e me transformo numa
delirante ninfomaníaca.
O pensamento a fez sorrir e quando o copo parou abruptamente a um palmo e meio
do rosto, derramando água em sua coxa nua e provocando uma onda de arrepios, o sorriso
em princípio não desapareceu. Ela não sentiu nada naqueles primeiros segundos a não ser
uma espécie de estupefação e (hum?) incompreensão. Qual era o problema? Que problema
poderia haver?
Você sabe muito bem qual, respondeu uma das vozes OVNIs. Falou com
tranqüilidade e segurança que Jessie achou apavorantes. É. supunha que realmente sabia,
bem no íntimo, mas não queria deixar aquele conhecimento entrar no círculo iluminado da
consciência. Algumas verdades eram demasiado duras para serem aceitas. Demasiado
injustas.
Infelizmente, algumas verdades eram também evidentes por si mesmas. Quando
Jessie olhou para o copo, seus olhos injetados e inchados foram se enchendo de horrorizada
compreensão. A corrente era a razão por que não conseguia beber. A porra da corrente da
algema era curta demais. O fato era tão óbvio que ela absolutamente não o percebera.
Jessie de repente viu-se lembrando a noite em que George Bush se elegera
presidente. Ela e Gerald tinham sido convidados a uma grande comemoração no restaurante
de cobertura do Hotel Sonesta. O senador William Cohen era o convidado de honra, e
esperava-se que o presidente eleito, o Solitário George em pessoa, desse um "telefonema
televisivo" em circuito fechado, pouco antes da meia-noite. Gerald alugara uma limusine
cinza-nevoeiro para a ocasião, que o motorista estacionou no caminho de carros às sete
horas em ponto, mas dez minutos depois ela continuava sentada na cama com o melhor
vestido preto, revirando a caixa de jóias e xingando à procura de um determinado par de
brincos de ouro. Gerald metera a cabeça no quarto, impaciente, para ver o que retinha a
mulher, escutou-a com aquela expressão no rosto "Por que vocês, mulheres, são tão tolas?"
que ela decididamente odiava, então falou que não tinha certeza, mas achava que os brincos
que ela procurava estavam em suas orelhas. Era verdade. Isso a fizera se sentir pequena e
burra, uma justificativa perfeita para a expressão de superioridade de Gerald. Também deralhe
vontade de avançar nele e quebrar aqueles belos dentes restaurados com jaquetas com os
saltos finos dos sapatos requintadamente desconfortáveis que estava usando. O que sentira
então era pouco comparado ao que sentia agora, e se alguém merecia ter os dentes
quebrados era ela própria.
Projetou então a cabeça para a frente o máximo que pôde, fazendo um biquinho
com os lábios como a heroína de um daqueles filmes antigos, melosamente românticos, em
preto e branco. Chegou tão perto do copo que distinguiu até as bolhinhas de ar presas nas
últimas lascas de gelo, tão perto que sentiu o cheiro dos minerais na água de poço (ou
imaginou que sentia), mas não conseguiu chegar o suficiente perto para beber do copo.
Quando atingiu o ponto em que simplesmente não havia mais o que esticar, os lábios me-dáum-
beijo ainda estavam a meio palmo do copo. Era quase suficiente, mas quase, como
Gerald (e, pensando bem, seu pai) gostavam de dizer, era palavra que. em inglês, só se
aplicava a ferraduras.
— Não acredito — ela se ouviu dizer na nova voz rouca tipo uísque-com-
Marlboros. — Simplesmente não acredito.
A raiva subitamente irrompeu dentro dela e lhe gritou na voz de Ruth Neary para
atirar o copo do outro lado do quarto: se não podia beber a água. a voz de Ruth anunciava
áspera, deveria castigar o copo; se não podia satisfazer a sede, podia ao menos satisfazer a
mente com o ruído do copo se despedaçando em milhares de caquinhos contra a parede.
Apertou o copo com mais força e a corrente de aço arqueou-se frouxamente quando
ela recuou a mão para fazer exatamente o que Ruth sugerira. Que injustiça! Que enorme
injustiça!A voz que a deteve foi a voz meiga e hesitante da Esposa Perfeita.
Talvez haja um jeito. Jessie. Não desista — talvez ainda haja um jeito.
Ruth não verbalizou nenhuma resposta à ponderação, mas não havia equívoco no
seu incrédulo desdém; tinha o peso do ferro e o azedume do limão. Ruth continuava
querendo que ela atirasse o copo. Nora Callighan teria, sem dúvida, dito que Ruth estava
fortemente motivada pelo conceito da desforra.
Não dê atenção à Ruth, falou a Esposa Perfeita. Sua voz perdera a extraordinária
hesitação; parecia quase animada agora. Ponha o copo de volta na prateleira, Jessie.
E aí? Ruth indagou. E aí. ó Grande Guru Branco, ó Deusa dos utensílios de plástico
e Santa Padroeira da Igreja das Compras-pelo-Reembolso Postal?
Esposinha explicou e a voz de Ruth calou-se, enquanto Jessie e as outras vozes a
escutavam com atenção.
CAPÍTULO X
Cuidadosamente ela repôs o copo na prateleira, cuidando para não deixá-lo em
balanço fora da borda. Tinha agora a sensação de que sua língua se transformara numa lixa
nr. 5 e a garganta chegava a parecer infeccionada de tanta sede. Lembrou-lhe o que sentira
no outono em que completara dez anos, quando uma combinação de gripe e bronquite a
impedira de freqüentar a escola um mês e meio. Tinha havido longas noites durante aquele
cerco em que despertava de pesadelos confusos e destemperados de que não recordava
muito bem (recorda, sim, Jessie, você sonhava com aquele vidro esfumaçado; você sonhava
com o sol desaparecendo; você sonhava com o cheiro choco e acre de minerais em água de
poço; você sonhava com as mãos dele) empapada de suor, mas demasiado fraca para esticar
o braço e apanhar a jarra d'água na mesa-de-cabeceira. Lembrava de ficar deitada ali,
molhada, pegajosa, recendendo à febre por fora, ressequida e assombrada de fantasmas por
dentro; deitada ali, refletia que sua verdadeira doença não era bronquite, mas sede. Agora,
tantos anos depois, se sentia exatamente igual.
Sua mente continuava a querer voltar ao momento terrível em que percebeu que
seria incapaz de vencer os últimos centimetrinhos entre o copo e a boca. Continuava a ver as
bolhinhas de ar no gelo que se derretia, continuava a sentir o leve aroma de minerais
depositados no lençol de água muito abaixo do lago. Essas imagens a atormentavam como
uma coceira inatingível entre as omoplatas.
Ainda assim, forçou-se a esperar. Sua parte Esposinha Perfeita disse que ela
precisava dar um tempo, apesar das imagens de tormento e do latejo da garganta. Precisava
esperar o coração desacelerar, os músculos pararem de tremer, as emoções se amainarem.
La fora, a última réstia de cor desapareceu do ar; o mundo adquiriu um tom
cinzento solene e melancólico. No lago, o mergulhão lançou seu grito estridente no
crepúsculo noturno.
— Feche essa matraca. Sr. Mergulhão — disse Jessie e riu. A risadinha tinha o som
de uma dobradiça enferrujada.
Muito bem. querida, disse a Esposa Perfeita. Acho que está na hora. Antes que
escureça. Mas primeiro é bom secar as mãos novamente.
Ela fechou as mãos em torno dos pilares da cama. desta vez esfregou-as para baixo
e para cima até rangirem. Ergueu a mão direita e sacudiu-a diante dos olhos. Eles riam
quando eu me sentava ao piano, pensou. Então, com muito cuidado, esticou a mão um
pouco além do ponto em que se encontrava o copo na beirada da prateleira. Recomeçou a
apalpar a madeira com os dedos. A algema retiniu contra o copo e ela gelou, esperando que
ele virasse. Como isso não aconteceu, retomou a cautelosa exploração.
Quase concluíra que o objeto que procurava escorregara pela prateleira — ou para
fora dela — quando finalmente tocou na aresta do cartão-resposta. Pinçou-o com o
indicador e o dedo médio da mão direita e, cuidadosamente, ergueu e puxou o cartão para
afastá-lo da prateleira e do copo. Jessie usou o polegar para firmar o cartão na mão e
examinou-o com curiosidade.
Era roxo vivo, com cometas e apitos enviesados na borda superior como se
dançassem. Confetes e serpentinas desciam pelos dizeres. A Newsweek estava
comemorando DESCONTOS MUITO ESPECIAIS,
anunciava o cartão, e convidava-o a participar da festa. Os redatores da Newsweek
manteriam a leitora em dia com os acontecimentos mundiais, mostrariam os bastidores das
lideranças mundiais e ofereceriam uma ampla cobertura dos esportes, artes e política.
Embora o cartão não dissesse isso abertamente, insinuava que a Newsweek ajudaria Jessie a
entender todo o universo. E o melhor era que aqueles simpáticos malucos do departamento
de assinaturas da Newsweek ofereciam um negócio tão espantoso que era capaz de fazer sua
urina fumegar e a cabeça explodir: se ela usasse AQUELE CARTÃO para fazer uma
assinatura por três anos da revista, receberia o exemplar por POR MENOS DA METADE
DO PREÇO DAS BANCAS! Problemas com o pagamento? Decididamente não! Pagaria
depois.
Quem sabe eles também têm um Serviço de Quarto Direto para senhoras algemadas,
pensou Jessie. Talvez venha com um comentarista conservador ou outro merdinha pomposo
qualquer para virar as páginas da revista para nós — sabe, as algemas atrapalham demais.
Contudo, sob o sarcasmo, sentia uma espécie de singular assombro nervoso e,
aparentemente, não conseguia parar de estudar o cartão roxo gênero vamos-dar-uma-festa,
os espaços em branco para preencher com nome e endereço, e os quadradinhos com as
siglas dos cartões de crédito. Passei a vida toda xingando esses cartões — particularmente
quando preciso me abaixar para apanhar uma dessas porcarias ou me transformarem mais
uma sujismunda— sem jamais desconfiar que a minha sanidade, e talvez até a minha vida,
pudessem algum dia depender de um cartão desses.
Sua vida? Será que isto era mesmo possível? Será que precisava realmente admitir
uma idéia tão radical em seus cálculos? Com relutância, Jessie começava a acreditar que
sim. Provavelmente ficaria ali por muito tempo até que alguém a encontrasse, e claro, era
bem possível que a diferença entre a vida e a morte viesse a se resumir num único gole
d'água. A idéia era surreal mas já não parecia obviamente ridícula.
O mesmo que antes, querida — devagar se vai ao longe.
Sei... mas quem teria acreditado que iam estabelecer a linha de chegada nesse fim
de mundo?
Movimentou-se devagar e com atenção, porém, e sentiu alívio em descobrir que
manusear o cartão-resposta com uma mão não era tão difícil quanto receara. O que se devia,
na realidade, às dimensões do cartão, 15 cm x 10 cm — quase o tamanho de duas cartas de
baralho lado a lado — mas, principalmente, a não estar tentando fazer nada complicado com
o cartão.
Segurou o cartão no sentido do comprimento, entre o indicador e o médio, depois
usou o polegar para dobrar para baixo um centímetro e meio da borda. A dobra não ficou
uniforme, mas ela achava que serviria, além do mais, não ia aparecer ninguém para avaliar o
seu trabalho; a Hora de Trabalhos Manuais das Bandeirantes, nas noites de quinta-feira, na
Primeira Igreja Metodista de Falmouth, era coisa do passado.
Novamente pinçou com firmeza o cartão roxo entre os dedos e dobrou mais outro
centímetro e meio. Gastou quase três minutos e sete dobras para chegar ao fim do cartão.
Quando finalmente terminou, tinha na mão uma coisa que lembrava um baseado gigante
toscamente enrolado em vistoso papel roxo.
Ou se forçarmos um pouquinho a imaginação, um canudinho.
Jessie meteu-o na boca, tentando manter unidas com os dentes as dobras tortas.
Quando conseguiu firmar o canudo o melhor que pôde, começou a apalpar de novo à
procura do copo.
Continue a ser cautelosa, Jessie. Não estrague tudo por impaciência!
Obrigada pelo aviso. E também pela idéia. Foi maravilhosa — falo com sinceridade.
Mas, agora, gostaria que ficasse calada um tempinho para eu tentar a sorte. Está bem?
Quando as pontas de seus dedos tocaram a superfície lisa do copo, ela o envolveu
com a delicadeza e a cautela de uma jovem amante escorregando a mão pela braguilha do
namorado pela primeira vez.
Agarrar o copo na nova posição foi uma questão relativamente simples. Girou o
copo e ergueu-o o máximo que a corrente permitiu. As últimas lasquinhas de gelo tinham se
derretido, observou; o tempo andara fugitindo alegremente apesar da impressão de que
estacara na altura em que o cachorro apareceu em sua vida. Mas não ia pensar no cachorro.
Na verdade, ia fazer força para acreditar que nenhum cachorro estivera ali.
Você é boa em fazer desacontecer as coisas, não é, bonequinha?
Eh, Ruth — estou tentando me controlar e ao mesmo tempo controlar este maldito
copo, caso não tenha reparado. Se uns joguinhos mentais me ajudam, não vejo qual é o
problema. Cala a boca por um tempo, está bem? Dá um descanso à língua e me deixa cuidar
da vida.
Aparentemente, porém, Ruth não tinha a menor intenção de dar descanso à língua.
Cala a boca! admirou-se. Puxa, como isso traz o passado de volta — é mais eficaz que um
sucesso antigo dos Beach Boys tocando no rádio. Você sempre foi boa em mandar calar a
boca, Jessie— lembra daquela noite no alojamento quando voltamos da sua primeira e
última sessão de conscientização em Neuworth?
Não quero me lembrar, Ruth.
Tenho certeza de que não quer, por isso vou lembrar por nós duas, que tal? Você
não parava de repetir que a moça com cicatrizes nos seios tinha lhe perturbado, só ela e nada
mais, e quando tentei lhe recordar o que me contara na cozinha — que seu pai e você tinham
ficado sozinhos na casa do lago Dark Score quando o sol desapareceu em 1963, e que ele
fizera uma coisa a você— você me mandou calar a boca. Como não calei, você tentou me
estapear. E como insisti, agarrou o casaco, saiu casa afora, e passou a noite em outro lugar
— provavelmente na cabaninha pulguenta da Susie Timmel junto ao rio, aquela que
costumávamos chamar de Susie's Lez Hotel. Até o fim da semana, você já encontrara umas
garotas que alugavam um apartamento no centro da cidade e precisavam de mais uma
companheira. Bum, num abrir e fechar de olhos... mas tenho que reconhecer que você
sempre foi capaz de se mexer com rapidez quando se decide, Jess. E como disse, sempre foi
boa em mandar calar a boca.
Cal...
Está vendo? Que foi que eu disse?
Me deixe em paz!
Também conheço essa muito bem. Sabe o que foi que mais me magoou, Jessie?
Não foi o problema da confiança — eu sabia, mesmo à época, que não era nada pessoal, que
você achava que não podia confiar a ninguém, nem mesmo a você, a história do que
acontecera naquele dia. O que me magoou foi saber que chegara tão perto de desembuchar
tudo, ali na cozinha da casa paroquial de Neuworth. Estávamos sentadas com as costas
apoiadas na porta, abraçadas uma ã outra e você começou a falar. Você disse:
— Eu jamais poderia contar, aquilo teria matado minha mãe, e mesmo se não
matasse, ela o teria largado e eu o amava. Nós todos o amávamos, todos precisávamos dele,
teriam posto a culpa em mim, e ele de fato não tinha feito nada.
Perguntei a você quem não tinha feito nada e você falou tão depressa que parecia
que passara os últimos nove anos esperando que alguém lhe fizesse essa pergunta.
— Meu pai — você falou. — Estávamos no lago Dark Score no dia em que o sol
desapareceu. Você teria me contado o resto — sei que teria — mas aquela vaca burra entrou
e perguntou "Ela está bem?" Como se aquilo fosse cara de quem está bem. entende o que
quero dizer? Nossa, às vezes não consigo acreditar na vastidão da burrice das pessoas.
Devia haver uma lei obrigando as pessoas a tirarem uma carteira, ou pelo menos uma
licença de aprendizagem, antes de poderem falar. Até passarem no Teste de Conversa,
teriam que ficar mudas. Isto resolveria um bocado de problemas. Mas as coisas não são bem
assim e tão logo o computador falante respondeu à Irmã Paula, você se fechou como uma
ostra. Não houve maneira de fazer você se abrir outra vez, embora Deus seja testemunha do
quanto eu tentei. Você devia ter me deixado em paz! Jessie respondeu. O copo d'água estava
começando a sacudir em sua mão, e o arremedo de canudinho tremia entre os lábios. Você
devia ter parado de bisbilhotar! Não era da sua conta!
As vezes os amigos não podem evitar se preocupar, Jessie, disse a voz interior, e
expressava tanta bondade que Jessie não teve resposta. Pesquisei, sabe. Deduzi ao que
deveria estar se referindo e pesquisei. Não me lembrava de um eclipse no início dos anos
sessenta, mas naturalmente morava na Flórida na ocasião, e andava muito mais interessada
em pesca submarina e no guarda-vidas Delray— tinha uma Paixonite incrível por ele — do
que por fenômenos astronômicos. Acho que quis me certificar de que a coisa toda não era
uma fantasia maluca — talvez desencadeada pela moça com as horríveis queimaduras nos
seios. Não era fantasia. Tinha havido um eclipse total do sol no estado de Maine, e sua casa
de veraneio no lago Dark Score estaria situada bem na faixa de sombra. Julho de 1963. Só a
menina e o Papai, observando o eclipse. Você não me contou o que seu paizinho lhe fez,
mas eu sabia duas coisas, Jessie: que ele era seu pai, o que era mau. e que você ia fazer onze
anos. o limite entre a infância e a puberdade... e isso era ainda pior.
Ruth. por favor pare. Você não poderia ter escolhido um momento pior para
começar a escarafunchar toda essa velha...
Mas Ruth não queria calar. A Ruth companheira de quarto de Jessie sempre estivera
disposta a dizer o que pensava — ate a ultima palavra — e a Ruth que agora era
companheira de cabeça de Jessie aparentemente não mudara nada.
Quando me dei conta, você estava morando fora do campus universitário com três
Sorority Susies —princesas dos suéteres e blusas colantes. cada qual dona de uma coleção
daquelas calcinhas bordadas com os dias da semana. Acho que por aquela época você tomou
a decisão consciente de treinar para a equipe de Espanadoras e Enceradeiras Olímpicas.
Você desaconteceu aquela noite na casa paroquial de Neuworth, você desaconteceu as
lágrimas, a mágoa e a raiva, você me desaconteceu. Ah. ainda nos víamos de vez em quando
— dividíamos uma pizza ocasional e uma jarra de vinho em uma cantina — mas a nossa
amizade realmente terminou, não foi? Quando chegou a hora de escolher entre mim e o que
lhe aconteceu em julho de 1963, você escolheu o eclipse.
O copo dágua tremia com mais força.
— Por que agora. Ruth?— perguntou, inconsciente de que estava enunciando
claramente aquelas palavras no quarto que escurecia. — Por que agora é o que eu gostaria
de saber, uma vez que nesta encarnação você é realmente parte de mim. por que agora? Por
que no momento exato em que menos posso me dar o luxo de me perturbar ou me distrair?
A resposta mais óbvia a essa pergunta era também a menos convidativa: porque
havia em seu íntimo uma inimiga, uma vaca triste e má que gostava que ela fosse daquele
jeito — algemada, dolorida, sedenta, apavorada e infeliz — perfeito. Que não queria ver o
menor alívio nessa situação. Que se rebaixaria a qualquer coisa para garantir que nada
mudasse.O eclipse total do sol durou pouco mais de um minuto naquele dia. Jessie... exceto
em sua mente. Ali. o eclipse ainda não acabou, não é mesmo?
Jessie fechou os olhos e concentrou todo o pensamento e a vontade em firmar o
copo na mão. Agora falou mentalmente à voz de Ruth sem a menor inibição, como se de
fato estivesse falando com outra pessoa e não com uma parte de seu cérebro que
inesperadamente decidira que aquela era a melhor hora para fazer um trabalhinho de
conscientização, como diria Nora Callighan.
Me deixe em paz. Ruth. Se ainda quiser discutir esse assunto, depois de eu tentar
arranjar um gole dágua, tudo bem. Mas por ora, por favor, quer...
— Calar essa matraca — terminou num murmúrio baixinho.
Está bem. Ruth respondeu imediatamente. Sei que há alguma coisa, ou alguém
dentro de você. que tenta jogar terra nas engrenagens, e sei que às vezes usa a minha voz—
é uma grande ventríloqua. não há dúvida nenhuma — mas não sou eu. Amei você no
passado e a amo agora. Por isso é que tentei prolongar o nosso contato por tanto tempo...
porque amava você. E. suponho, porque nós mulheres metidas a sebo temos que nos unir.
Jessie com o arremedo de canudo na boca deu um sorrisinho, ou pelo menos tentou.
Agora manda ver, Jessie, e sem vacilo.
Jessie esperou um tempinho, mas nada mais aconteceu. Ruth se fora. pelo menos
por ora. Reabriu os olhos, e então, lentamente curvou a cabeça para a frente, o cilindro de
cartão espetado na boca como a piteira do presidente Franklin Roosevelt.
Por favor, meu Deus. estou te suplicando... faça isto dar certo.
Seu arremedo de canudo mergulhou na água. Jessie fechou os olhos e chupou. Por
um instante nada aconteceu, puro desespero invadiu sua mente. Então a água chegou à boca,
fresca, doce e concreta, provocando nela um surpreendente êxtase. Teria soluçado de
gratidão se a boca não estivesse tão contraída apertando a ponta do cartão de assinatura
enrolado; nas circunstâncias, só conseguiu produzir um apito pelo nariz.
Engoliu a água, sentindo-a molhar sua garganta como cetim líquido, e em seguida
recomeçou a chupar. Chupou ardente e irrefletidamente como uma bezerra faminta
mamando na teta da mãe. O canudinho estava muito longe da perfeição, canalizava apenas
pequenos sorvos e filetes. ao invés de um fluxo contínuo, e a maior parte do que aspirava
pelo canudo vazava, devido à vedação imperfeita e às dobras tortas. Em algum nível da
consciência ela sabia disso, ouvia a água pingando na colcha como gotas de chuva, mas sua
mente agradecida continuava a acreditar piamente que aquele canudo era uma das maiores
invenções já idealizadas pela inteligência de uma mulher e que. neste momento, beber a
água do copo do finado marido, era o apogeu de sua vida.
Não beba tudo, Jess — guarde um pouco para depois.
Ela não soube dizer qual das fantasmas falara desta vez, e não importava. Era um
ótimo conselho, mas era o mesmo que dizer a um menino de dezoito anos, quase
ensandecido ao fim de seis meses de altas bolinações, que o que importava não era se a
garota finalmente cedera; se não tivesse camisinha, não devia transar. Estava descobrindo
que, às vezes, era impossível seguir o conselho da mente, por melhor que fosse. Às vezes o
corpo simplesmente se rebelava e engavetava todos os bons conselhos. Estava descobrindo
outra coisa — que se render às simples necessidades físicas podia trazer um inexprimível
alívio.
Jessie continuou a chupar o cartão enrolado, inclinando o copo para manter o nível
da água acima da ponta do cartão roxo empapado e deformado, consciente, bem no
fundinho da cabeça, que o cartão vazava mais que nunca e que era loucura não parar e
esperar que secasse, mas continuava a chupar assim mesmo.
O que finalmente a fez parar foi a percepção de que estava chupando apenas ar, e já
há alguns segundos. Ainda havia água no copo de Gerald, mas a ponta do arremedo de
canudo não chegava lá. A colcha sob o canudo de cartão escurecera de tanta umidade.
Mas eu poderia beber o restinho. Poderia. Se conseguisse tirara mão um pouco
mais. forçando-a para trás. como na hora em que precisei apanhar essa droga de copo. acho
que posso esticar o pescoço um pouco mais para a frente e beber os últimos golinhos de
água. Acho que posso? Sei que posso.
Sabia realmente e mais tarde poderia testar a idéia. mas. por ora. os caras de
colarinho branco no ultimo andar — aqueles que ficam com todas as vistas panorâmicas —
tinham retomado o controle dos operários diaristas e especializados que tocavam o
maquináno: o motim terminara. Faltava muito para saciar inteiramente sua sede. mas a
garganta parara de latejar e já se sentia bem melhor... mental e fisicamente. Tinha os
pensamentos mais aguçados e a sua visão do mundo marginalmente mais clara.
Descobriu que ficara satisfeita de ter deixado aquele restinho no copo. Dois
pequenos goles de água tomados com um canudo roto provavelmente não fariam diferença
entre permanecer algemada à cama e descobrir sozinha uma maneira de se livrar dessa
complicação — muito menos entre viver e morrer — mas resgatar aqueles dois golinhos
poderia ocupar sua mente quando, e se. tentasse reverter aos seus artifícios mórbidos.
Afinal, a noite se aproximava, o marido jazia morto ali perto, e pelo jeito, ela ia acampar.
O quadro não era animador, principalmente quando se acrescentava o vira-lata
faminto que estava acampando com ela. mas Jessie descobriu que, ainda assim, começava a
sentir sono outra vez. Procurou pensar em razões para combater a crescente sonolência e
não conseguiu encontrar nenhuma que a convencesse. Mesmo o pensamento de acordar com
os braços dormentes até os cotovelos não lhe pareceu um problema particularmente grande.
Bastaria movimentá-los até que o sangue recomeçasse a fluir na velocidade normal. não
seria agradável, mas não duvidava de sua capacidade para tanto.
Além disso, quem sabe você tem uma idéia enquanto está dormindo, querida, disse
a Esposa Perfeita. Isto sempre acontece nos livros.
— Talvez você tenha — respondeu Jessie. — Afinal, até agora foi você quem teve a
melhor idéia
Ela deixou o corpo deitar, usando as omoplatas para empurrar o travesseiro o mais
próximo possível da cabeceira da cama. Seus ombros doíam, os braços (particularmente o
esquerdo) latejavam, e os músculos do estômago ainda vibravam com o esforço de manter o
tronco curvado para beber do canudo... mas sentia-se curiosamente satisfeita, assim mesmo.
Em paz.
Satisfeita? Como pode se sentir satisfeita? Seu marido, afinal de contas, está morto
e você teve o dedo nisso. Jessie. E suponha que a encontrem? Suponha que a salvem? Já
pensou na impressão que vai causar em quem a encontrar? Aliás, que impressão acha que o
guarda Teagarden vai ter disso tudo? Quanto tempo acha que ele vai levar para decidir
chamar a polícia estadual'1' Trinta segundos? Talvez quarenta? É verdade que eles pensam
mais devagar aqui no campo — pode ser que Teagarden leve dois minutos inteiros.
Ela não tinha argumentos para discordar. Era verdade.
Então como pode se sentir satisfeita, Jessie? Como é possível se sentir satisfeita
com tudo isso ameaçando desabar na sua cabeça?
Não sabia, mas o fato é que estava satisfeita. Sua sensação de tranqüilidade era
envolvente como um colchão de penas em noite de março, quando a tempestade de granizo
chega roncando de noroeste, quentinha como um edredom de penas num colchão de penas.
Suspeitava que a maior parte dessa sensação tinha causas puramente físicas; quando se tem
muita sede, aparentemente era possível ficar dopada com meio copo d'água.
Mas havia uma parte mental também. Há dez anos desistira, com relutância, do
emprego de professora substituta, cedendo finalmente à pressão da lógica insistente (ou
talvez "incessante" fosse a palavra) de Gerald. Ele estava ganhando quase cem mil dólares
por ano àquela altura; perto disso os seus cinco ou sete mil pareciam bem insignificantes.
Na verdade, eram uma chateação na hora de entregar a declaração de rendimentos e o
governo levava quase tudo e ainda saía xeretando as contas do casal, perguntando onde
tinham escondido o resto.
Quando reclamou dessa desconfiança, Gerald olhara para ela com uma mistura de
amor e exasperação. Não era bem a expressão "Por que vocês mulheres são sempre tão
tolas?" — essa só começou a aparecer regularmente cinco ou seis anos depois — mas quase
isso. Eles vêem o que eu faturo, disse à mulher, vêem dois carrões alemães na garagem,
olham para as fotos da casa no lago, e finalmente olham para sua declaração de rendimentos
e vêem que está trabalhando para ganhar o que chamam de trocados. Não conseguem
acreditar—parece trapaça, uma artimanha para esconder outra coisa—por isso saem
bisbilhotando, procurando o que poderia ser essa outra coisa. É que não conhecem você
como eu conheço.
Fora incapaz de explicar a Gerald o que significava para ela aquele contrato de
substituição... ou talvez ele não estivesse disposto a escutar. Tanto fazia: ensinar, mesmo em
meio expediente, completava-a de uma forma importante, e Gerald não entendeu isso.
Tampouco fora capaz de entender que o emprego de substituta criava uma ponte com a vida
que levara antes de encontrar Gerald naquela festa do partido republicano, quando ensinava
inglês em tempo integral na escola secundária de Waterville, uma mulher independente que
ganhava a vida, que era querida e respeitada pelos colegas, e não tinha compromissos com
ninguém. Fora incapaz de explicar (ou ele não quisera ouvir) que deixar de ensinar —
mesmo naquele bico — fazia com que se sentisse triste e perdida e, de certo modo, inútil.
Aquela sensação de desorientação — provavelmente causada tanto por sua
incapacidade de engravidar quanto pela decisão de não renovar o contrato — desaparecera
de seu consciente após um ano e pouco, mas nunca abandonara inteiramente as profundezas
de seu coração. Havia vezes que se sentia como um clichê de si mesma — jovem professora
casa-se com advogado brilhante cujo nome é anunciado à porta (profissionalmente, é claro)
aos trinta anos. A jovem (bem, relativamente jovem) com o tempo entra no saguão daquele
palácio de enigmas que é conhecido por meia-idade, olha à volta e de repente descobre que
está sozinha — não tem emprego, não tem filhos, e tem um marido inteiramente
concentrado (para não dizer fixado; o que talvez fosse mais exato mas também menos
caridoso) em escalar a fabulosa rampa do sucesso.
Esta mulher, prestes a enfrentar os quarenta na próxima curva da estrada, é
justamente o tipo que tem a maior probabilidade de arranjar problemas com drogas, bebidas,
ou outro homem. Um rapaz mais jovem, em geral. Nada disso aconteceu com esta jovem
(bom... ex-jovem), mas Jessie ainda se via com uma assustadora margem de tempo nas
mãos — tempo para jardinagem, tempo para compras, tempo para cursos (pintura, cerâmica,
poesia... e poderia ter tido um caso com o professor de poesia se quisesse, e quase quisera).
Também tinha havido tempo para se cuidar, e fora assim que acabara conhecendo Nora. No
entanto, nenhuma dessas coisas a fizera sentir o que sentia agora, como se as suas fadigas e
dores fossem condecorações de bravura e sua sonolência uma merecida recompensa... a
versão do Miller Time para senhoras algemadas, por assim dizer.
Eh, Jessie— a maneira com que pegou aquela água foi realmente fantástica.
Mais uma OVNI, mas desta vez Jessie não se importou. Desde que Ruth ficasse
algum tempo longe. Ruth era interessante, mas era também exaustiva.
Muita gente sequer teria pegado o copo, continuou a fã OVNI, e ainda por cima usar
o cartão-assinatura como canudo... foi um golpe de mestre. Por isso, vá em frente, sinta-se
bem. São é proibido. Tirar uma soneca também não é proibido.
Mas e o cachorro? Esposinha perguntou em dúvida.
Aquele cachorro não vai lhe incomodar nem um pouquinho... e você sabe por quê.
Sabia. A razão por que o cachorro não ia incomodá-la estava caída ali perto no chão
do quarto. Gerald agora era apenas uma sombra entre sombras, pelo que Jessie se sentia
muito grata. Lá fora, o vento recomeçou. Seu rumorejo quando atravessava o pinheiral era
reconfortante, acalentador. Jessie fechou os olhos.
Mas cuidado para não sonhar! Esposinha gritou para ela inesperadamente alarmada,
mas a voz estava distante e fácil de resistir. Ainda assim, ela tentou novamente: Cuidado
com o que vai sonhar. Jessie! Estou falando sério!
Claro que estava. A Esposa Perfeita sempre falava sério, o que significava também
que era muitas vezes chata.
Seja qual for o sonho, pensou Jessie, não será um em que sinta sede. Não tive
muitas vitórias indiscutíveis nos últimos dez anos — na maioria uma sucessão de ações
obscuras de guerrilha — mas pegar aquele copo d'água foi um êxito indiscutível. Não foi?
Ah, isso foi, a voz OVNI concordou. Era uma voz vagamente masculina, e ela se
viu imaginando sonolentamente se não seria talvez a voz de seu irmão Will... Will quando
era criança, na década de sessenta. Aposto que sim. Foi um barato.
Cinco minutos depois Jessie dormia profundamente, os braços para cima formando
um V inerte, os pulsos presos frouxamente aos pilares da cama pelas algemas, a cabeça
caindo no ombro direito (o menos dolorido), roncos lentos e longos a saírem de sua boca. E
em algum momento — muito depois de anoitecer e surgir uma nesguinha clara de lua no
leste — o cachorro reapareceu à porta.
A exemplo de Jessie, estava mais calmo agora que a necessidade mais imediata fora
satisfeita e o clamor do estômago de certa forma apaziguado. Observou-a durante muito
tempo com a orelha boa em pé e o focinho empinado, tentando decidir se Jessie realmente
dormia ou apenas fingia. Decidiu (principalmente com base no cheiro — o suor que agora
secava, a ausência total do fedor ozônico da adrenalina) que se encontrava adormecida. Não
haveria chutes nem gritos desta vez — não, se tomasse cuidado para não acordá-la.
O cachorro caminhou de mansinho até o monte de carne no meio do chão. Embora
sua fome fosse menor agora, a carne na verdade melhorara de cheiro. A razão é que a
primeira refeição contribuíra muito para quebrar o antigo e congênito tabu contra esse tipo
de carne, embora o cachorro não soubesse disso e nem teria ligado se soubesse.
Baixou a cabeça, primeiro farejando o aroma agora atraente do advogado morto
com toda a delicadeza de um gourmet, para depois abocanhar gentilmente o lábio inferior de
Gerald. Puxou-o, aplicando pressão aos poucos, esticando a carne mais e mais. Gerald
começou a parecer que se concentrava em fazer um bico monstruoso. O lábio finalmente se
rompeu, revelando seus dentes inferiores num largo sorriso congelado. O cachorro engoliu o
piteuzinho de uma só vez, e lambeu os beiços. Seu rabo recomeçou a abanar, desta vez em
arcos lentos de satisfação. Dois minúsculos pontinhos luminosos dançavam lá no teto; era a
lua que se refletia nas obturações de dois molares de Gerald. As obturações tinham sido
feitas ainda na semana anterior e estavam novinhas e reluzentes como moedas recémcunhadas.
O
cachorro lambeu os beiços uma segunda vez, contemplando Gerald com amor.
Então esticou o pescoço para a frente, quase da mesma maneira que Jessie o fizera para
conseguir mergulhar o canudo no copo. O cachorro cheirou o rosto de Gerald, mas não fez
apenas cheirar; permitiu ao nariz fazer uma espécie de excursão olfativa ali, primeiro,
destacou o leve aroma de cera de assoalho no fundo da orelha esquerda do dono morto,
depois os odores entremesclados de suor e creme para cabelos na linha do couro cabeludo,
em seguida o cheiro forte e extasiante de sangue coagulado no topo da cabeça de Gerald.
Demorou-se especialmente no nariz, conduzindo nesses canais agora sem ar uma delicada
investigação com o focinho arranhado, sujo mas extremamente sensível. Mais uma vez
sobreveio aquela idéia de guloseimas, a sensação de que o cachorro selecionava um entre
muitos tesouros. Finalmente cravou os dentes afiados na bochecha esquerda de Gerald,
cerrou-os, e começou a puxar.
Na cama, os olhos de Jessie começaram a girar rapidamente sob as pálpebras e ela
gemeu — um som alto e irresoluto, cheio de terror e reconhecimento.
O cachorro ergueu os olhos imediatamente, seu corpo encolheu numa reação
instintiva de culpa medo Mas não durou muito; ele já começara a considerar essa montanha
de carne como sua despensa particular, pela qual lutaria — e talvez morresse — se o
desafiassem. Além do mais, era apenas um som que vinha da dona fêmea, e o cachorro
agora tinha certeza de que a dona fêmea estava impotente.
Mergulhou a cabeça, tornou a agarrar a bochecha de Gerald Burlingame, e puxou-a
para si, sacudindo a cabeça com energia de um lado para o outro. Uma longa tira da
bochecha do morto se soltou com um ruído semelhante ao da fita crepe quando a puxam do
rolo rapidamente. Gerald exibia agora o feroz sorriso predatório de alguém que acabou de
fazer uma seqüência do mesmo naipe num jogo de pôquer valendo muito dinheiro.
Jessie gemeu outra vez. O som seguiu-se de um fluxo de palavras guturais e
ininteligíveis. O cachorro tornou a olhá-la. Tinha certeza de que ela não podia sair da cama
para incomodá-lo, mas aqueles sons o deixavam inquieto do mesmo jeito. O velho tabu
esmaecera, mas não desaparecera de todo Além disso, saciara sua fome; não estava
propriamente comendo, apenas beliscava. Virou-se e trotou para fora do quarto mais uma
vez. A maior parte da bochecha de Gerald sacudia em sua boca como o escalpo de uma
criancinha.

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