quarta-feira, 7 de março de 2012

Jogos Perigosos 11-20


CAPÍTULO XI
Quatorze de agosto de 1965 — faz pouco mais de dois anos desde o dia em que o
sol desapareceu. É aniversário de Will; ele passou o dia inteiro dizendo a todos solenemente
que completava agora um ano para cada tempo de um jogo de beisebol. Jessie não consegue
compreender por que isso parece ser tão importante para o irmão, mas evidentemente é, e
ela conclui que se Will quer comparar a vida a um jogo de beisebol, tudo bem.
Durante algum tempo a festa de aniversário do irmão corre muito bem. Tocam
Marvin Gaye na vitrola, verdade, mas não é aquela música ruim, a música perigosa. "Tenho
que reconhecer", Marvin canta, fingindo ameaçar, "Há muito teria partido, baby"... Uma
música realmente bonitinha e, para dizer a verdade, aquele dia correra para lá de bem, pelo
menos até ali; tinha sido, nas palavras da tia-avó Kathenne, "mais harmonioso que música
de violino". Até papai concorda, embora não tivesse muita vontade de voltar a Falmouth
para o aniversário de Will quando surgiu a idéia. Jessie ouviu-o dizer à mamãe: Afinal, acho
que foi uma boa idéia, e isso a deixa feliz, porque foi ela — Jessie Mahout, filha de Tom e
Sally, irmã de Will e Maddy, esposa de ninguém — que deu aquela idéia. Ela é a razão de
estarem ali e, não, no interior, em Sunset Trails.
Sunset Trails é o acampamento da família (embora, após três gerações de
desordenada expansão familiar, seja apenas um aglomerado de casas) na margem norte do
lago Dark Score. Este ano a família interrompeu as habituais nove semanas de retiro ali
porque Will quer — só uma vez, disse ao pai e à mãe, em tom de lamentação digno de um
velho aristocrata que sofre em silêncio e sabe que não pode mais continuar a enganar a
morte — festejar seu aniversário ao mesmo tempo com a família e os amigos-do-anointeiro.
Tom Mahout no início veta a idéia. Trabalha como corretor da bolsa e divide o
tempo entre Portland e Boston, e há anos diz à família que não acredite em tudo que ouve
sobre os caras que trabalham de paletó e gravata e passam o dia matando o tempo — no
bebedouro ou ditando convites para almoçar com belas secretárias louras.
— Nenhum plantador de batatas deste município dá mais duro que eu — diz à
família com freqüência. — Me manter atento ao mercado não é fácil, nem é tão glamouroso
assim, apesar do que possam ter ouvido em contrário.
A verdade é que nenhum deles ouvira dizer nada em contrário, todos (e muito
provavelmente até sua mulher, embora Sally nunca dissesse nada) acham que o emprego de
Tom parece chatíssimo, e apenas Maddy tem uma vaga idéia do que o pai faz.
Tom insiste que precisa daquela temporada no lago para se recuperar das tensões do
trabalho, e que no futuro o filho terá muitos aniversários com os amigos. Afinal, Will vai
completar nove anos, e, não, noventa.
— E mais — Tom acrescenta —, festinhas de aniversário com os colegas não têm
muita graça até se chegar à idade de beber umas cervejinhas.
Com isso o pedido de Will para festejar o aniversário na casa da cidade
provavelmente teria sido negado não fosse pelo súbito e inesperado apoio de Jessie ao plano
(o que para Will é uma grande surpresa; Jessie é três anos mais velha e muitas vezes Will
duvida que ela se lembre que tem um irmão). Depois que sugeriu com voz mansa que talvez
fosse divertido voltar para casa — só por uns dois ou três dias, é claro — e preparar uma
festa no jardim, com jogos, churrasco, lanternas japonesas acesas ao anoitecer, Tom
começou a se animar com a idéia. Ele é o tipo de homem que se julga "mais teimoso que
uma mula" e muitas vezes os outros o consideram um "bode velho teimoso"; de um jeito ou
de outro, ele sempre foi um homem difícil de demover uma vez que bata o pé no chão... e
faça queixo duro.
Quando se trata de demovê-lo — de fazê-lo mudar de idéia — a filha mais nova tem
mais sorte do que todos os outros juntos. Jessie sempre encontra um jeito de chegar ao pai
por alguma abertura ou passagem secreta vedadas ao resto da família. Sally acredita — com
alguma razão — que a filha do meio sempre foi a favorita de Tom e ele finge acreditar que
nenhum dos outros sabe. Maddy e Will simplificam: acreditam que Jessie puxa o saco do
pai e que ele, por sua vez, lhe faz todas as vontades.
— Se papai apanhasse Jessie fumando — Will comentou com a irmã mais velha no
ano anterior, depois que Maddy foi punida por esse mesmo delito — provavelmente daria a
ela um isqueiro de presente. Maddy riu, concordou e abraçou o irmão. Nenhum dos dois,
nem a mãe, têm a menor idéia do segredo que há entre Tom Mahout e a filha mais nova
como um prato de carne podre.
A própria Jessie acredita que está apenas concordando com o pedido do irmãozinho
— que está dando uma força. Não tem idéia, pelo menos conscientemente, o quanto passou
a odiar Sunset Trails e que vontade tem de ir embora. Também passou a odiar o lago que
antigamente amava com paixão — principalmente aquele leve cheiro salobro de minerais.
Em 1965 ela mal suporta nadar no lago, mesmo nos dias mais quentes. Sabe que a mãe
pensa que é por causa de seu corpo — Jessie começou a amadurecer precocemente, como a
própria Sally, e aos doze anos tinha um corpo quase de mulher — mas não é o corpo.
Acostumou-se a ele, e sabe que está longe de ser a garota do mês na Playboy com os seus
maios inteiros desbotados. Não, não são os seios, nem os quadris, nem o bumbum. É aquele
cheiro.
Sejam quais forem as razões e motivações que estejam por trás do pedido de Will
Mahout ele é finalmente aprovado pelo chefe da família Mahout. Viajaram de volta à cidade
ontem, partindo bem cedo para Sally (pressurosamente ajudada pelas duas filhas) preparar a
festa. E hoje é 14 de agosto, e 14 de agosto é certamente a apoteose do verão em Maine, um
dia de céu azul-claro e gordas nuvens brancas, refrescado por uma brisa salina.
No interior — e isso inclui o distrito dos lagos, onde se situa Sunset Trails às
margens do lago Dark Score, desde que o avô de Tom Mahout construiu a primeira cabana
em 1923 — as matas, lagos, poços e pântanos são abafados por temperaturas na faixa dos
trinta e cinco graus e uma umidade um tantinho abaixo do ponto de saturação, mas ali no
litoral faz apenas vinte e sete graus. A brisa do mar é um prêmio extra, que torna a umidade
insignificante e sopra para longe pernilongos e micuins. O gramado está cheio de meninos, a
maioria amigos de Will mas também de meninas conhecidas de Maddy e Jessie, e uma vez
na vida, mirabile dictu, todos parecem estar se dando bem. Não houve uma única discussão,
e por volta das cinco horas, quando Tom leva à boca o primeiro martíni do dia, olha para
Jessie, parada ali perto com o taco de croquet ao ombro como o rifle de uma sentinela (e que
evidentemente se encontra ao alcance do que parece uma conversa casual entre marido e
mulher, que, na realidade, pode ser um elogio disparado à filha com uma astuta tacada), e
em seguida volta a atenção para a mulher:
— Afinal, acho que a idéia não foi nada má — diz.
Foi mais que boa, pensa Jessie. Absolutamente genial e totalmente bárbara, se quer
saber a verdade. E isso ainda não é o que quer dizer, o que realmente pensa, mas seria
perigoso dizer o resto em voz alta; seria desafiar os deuses. O que realmente pensa é que o
dia está perfeito — fora de série. Até a música que explode do toca-fitas portátil de Maddy
(que a irmã mais velha trouxe cheia de boa vontade para alegrar a festa, embora a peça seja
normalmente o Grande ícone Intocável) está legal. Jessie jamais vai gostar realmente de
Marvin Gaye — como jamais vai gostar daquele leve cheiro mineral que emana do lago nas
tardes quentes de verão — mas a música é legal. "Tenho que reconhecer que você é uma
gracinha... beei-bi": bobinha mas não oferece perigo.
Hoje é 14 de agosto de 1965, um dia que ficou, um dia que continua na mente de
uma mulher que dorme algemada à cama numa casa às margens de um lago, 64 km ao sul
de Dark Score (mas tem o mesmo cheiro mineral, aquele cheiro asqueroso, evocativo, nos
dias quentes e parados de verão) e embora a menina de doze anos não veja Will se
esgueirando por trás quando ela se curva para bater a bola de croquet, transformando o
traseiro em um alvo simplesmente irresistível para o moleque, que só viveu um ano para
cada tempo do jogo de beisebol, parte de sua mente sabe que o irmão está ali, e que ali fica a
costura em que o sonho se une ao pesadelo.
Ela prepara a tacada, concentrando-se no arco a uns dois metros de distância. Uma
tacada difícil mas não impossível, e se puder fazer a bola passar por dentro do arco, talvez
consiga alcançar Caroline. Isso seria ótimo, porque Caroline quase sempre ganhava no
croquet. Então, na hora em que dá impulso no taco, a música que vem do toca-fitas muda.
— "Oh. ouçam todos vocês". Marvin Gaye canta e desta vez pareceu a Jessie muito
mais que uma falsa ameaça, "principalmente os brotinhos..."
Ondas de arrepios percorreram os braços bronzeados de Jessie.
— "... é direito me deixarem sozinho quando o meu amor nunca está em casa? Eu
amo demais, meus amigos às vezes dizem..."
Os dedos de Jessie adormecem e ela deixa de sentir o taco nas suas mãos. Seus
pulsos formigam, como se estivessem presos por (troncos Esposinha está nos troncos
venham ver Esposinha nos troncos venham rir de Esposinha nos troncos) torniquetes
invisíveis e seu coração repentinamente se enche de desânimo. É a outra música, a música
errada, a música ruim.
— "... mas acredito... acredito... que uma mulher deve ser amada assim..."
Ergue os olhos para o grupo de garotas que estão esperando por sua tacada e
descobre que Caroline sumiu. Parada em seu lugar acha-se Nora Callighan. Tem os cabelos
em trancas, uma pelota de pasta d'água na ponta do nariz, calça os tênis amarelos de
Caroline e o pingente de Caroline — aquele onde guarda uma foto minúscula de Paul
McCartney — mas aqueles são os olhos verdes de Nora, que a contemplam com profunda
compaixão. Jessie repentinamente se lembra que Will — sem dúvida instigado pelos
coleguinhas, tão excitados com as Coca-Colas e o bolo de chocolate quanto Will — se
aproxima sorrateiro por trás dela, que se prepara para enfiar a mão no seu traseiro. Ela vai
reagir violentamente quando ele a tocar, vai virar para trás e lhe dar um soco na boca, o que
talvez não estrague totalmente a festa mas dê um toque dissonante numa festa até ali
perfeita. Ela tenta largar o taco, quer se endireitar e se virar antes que aquilo aconteça. Quer
mudar o passado, mas o passado é pesado — ao tentar mudá-lo ela descobre que é o mesmo
que levantar a casa por um canto e procurar embaixo dela coisas que se perderam,
esqueceram ou esconderam.
Atrás dela, alguém aumentou o volume do pequeno toca-discos de Maddy e aquela
música horrível berra mais alto que nunca, triunfal, ofuscante e sádica. "ME DÓI TANTO
POR DENTRO... SER TÃO MALTRATADO... ALGUÉM, EM ALGUM LUGAR... DIGA
A ELA QUE NÃO É JUSTO..."
Jessie tenta novamente se livrar do taco — atirá-lo longe — mas não consegue; é
como se alguém a tivesse algemado ao taco.
Nora! ela grita. Nora, você precisa me ajudar! Segure ele!
(Foi neste ponto do sonho que Jessie gemeu pela primeira vez, assustando
momentaneamente o cachorro e fazendo-o largar o corpo de Gerald.)
Nora balança a cabeça, lenta e solenemente. Não posso ajudá-la, Jessie. Você está
por conta própria — todos estamos. Em geral não digo isso aos meus pacientes, mas acho
que no seu caso é melhor ser sincera.
Você não está entendendo! Não posso passar por isso de novo! NÃO POSSO!
Ah, não seja boba, diz Nora, com inesperada impaciência. Ela começa a se afastar,
como se não pudesse agüentar a visão do rosto de Jessie, voltado para ela, frenético. Você
não vai morrer; isso não é veneno.
Jessie olha desesperada (embora continue incapaz de se levantar, de furtar aquele
alvo tentador ao irmão que a ameaça) e vê que sua amiga Tammy Hough sumiu; parada ali
vestindo os shorts brancos e a frente-única amarela de Tammy encontra-se Ruth Neary.
Segura em uma mão o taco listrado de vermelho de Tammy e na outra um Marlboro. Tem
os cantos da boca erguidos no seu habitual sorriso sardônico, mas os olhos estão sérios e
pesarosos.
Ruth, me ajude! Jessie grita. Você tem de me ajudar!
Ruth dá uma grande tragada no cigarro, depois esmaga-o na grama com a sandália
de sola de cortiça de Tammy Hough. Putzi-grilo, boneca — ele vai lhe enfiar a mão no
traseiro, não vai lhe enfiar um ferro em brasa. Você sabe disso tão bem quanto eu; já passou
por tudo isso antes. Então qual é o problema?
Não é apenas um dedo! Não é, e você sabe disso!
A velha coruja piadeira pia para o ganso, Ruth diz.
Que? Que quer d...
Quer dizer, como posso saber qualquer coisa de QUALQUER COISA? Ruth
dispara de volta. Há raiva aparente em sua voz, há mágoa profunda por baixo. Você não
quis me contar— você não quis contara ninguém. Você fugiu. Você fugiu como um coelho
que vê a sombra de uma coruja piadeira no gramado.
EU NÃO PODIA contar! — Jessie guincha. Agora vê uma sombra ao seu lado no
gramado, como se as palavras de Ruth a tivessem materializado. Não é a sombra de uma
coruja, porém; é a sombra do irmão. Ouve os risinhos abafados dos amigos dele, sabe que
está esticando a mão para cutucá-la, e ainda assim não consegue nem se endireitar, muito
menos se afastar. Sente-se impotente para alterar o que vai acontecer, e compreende que isto
é a própria essência do pesadelo e da tragédia.
EU NÃO PODIA! guinchou para Ruth outra vez. Não poderia, nunca! A história
teria matado mamãe... ou destruído a família... ou as duas coisas! Ele disse! Papai disse!
Odeio ser portadora desta má notícia, boneca, mas o seu velho e querido paizinho
fará doze anos de morto no próximo dezembro. E será que não poderíamos esquecer um
pouquinho esse melodrama? Ele não pendurou você no varal pelos bicos dos seios nem
tocou fogo em você depois, sabe.
Mas ela não quer ouvir falar disso, não quer cogitar — sequer em sonho — em
reavaliar o passado que sepultou; uma vez que os dominós começam a cair, quem sabe onde
as coisas irão parar? Por isso fecha os ouvidos ao que Ruth está dizendo e continua a fitar a
velha companheira de quarto com aquele olhar profundo de súplica que tantas vezes levou
Ruth (cuja casca grossa era na realidade apenas um verniz) a rir e ceder a qualquer coisa que
Jessie lhe pedisse para fazer.
Ruth, você tem de me ajudar! Você tem que!
Mas desta vez o olhar suplicante não comoveu. Acho que não, boneca. As
coleguinhas de alojamento já partiram, o tempo de calar terminou, fugir está fora de
questão, e acordar não é uma opção possível. Estamos no trem fantasma, Jessie. Você é a
gatinha; eu sou a coruja. Aqui vamos nós — todos a bordo. Aperte o cinto, e aperte-o bem.
Vai dar uma voltinha de classe E.
Não!
Mas agora, para desespero de Jessie, o dia começava a escurecer. Podia ser apenas o
sol se escondendo atrás de uma nuvem, mas ela sabe que não é. O sol está desaparecendo.
Em breve as estrelas vão cintilar no céu de verão e a coruja piadeira vai piar para a
pombinha. Chegou a hora do eclipse.
Não! ela torna a gritar. Isso foi há dois anos!
Errou, boneca, diz Ruth Neary. Para você a coisa nunca terminou. Para você o sol
jamais reapareceu.
Abre a boca para negar a afirmação, para dizer a Ruth que ela peca pelo mesmo
excesso de dramatização que Nora. que não parava de empurrá-la para portas que não queria
abrir, que não parava de dizer que se pode melhorar o presente examinando o passado —
como se alguém pudesse melhorar o sabor do jantar de hoje acrescentando os restas
bichados do jantar de ontem. Quer dizer a Ruth. como disse a Nora no dia em que saiu de
seu consultório para nunca mais voltar, que há uma grande diferença entre viver com uma
coisa e ser prisioneira dessa coisa. Suas patetas, vocês não compreendem que o Culto do Eu
é apenas mais um culto? Quer dizer isso, mas mal abre a boca. ocorre a invasão: uma mão
entre as suas pernas ligeiramente abertas, o polegar no seu traseiro, dedos que forçam o
tecido do short. acima da vagina. e desta vez não é a mãozinha inocente do irmão: a mão
entre suas pernas é muito maior que a de Will e não é nada inocente. A música ruim toca no
rádio, as estrelas brilham no céu de três horas da tarde, e (você não vai morrer, não é
veneno) é assim que gente grande cutuca uma a outra.
Ela se vira. esperando ver o pai. Ele fez uma coisa parecida durante o eclipse, uma
coisa que ela supõe que os Chorões-do-Culto-do-Eu. os Habitantes-do-Passado. como Ruth
e Nora. chamariam de abusar sexualmente de uma criança.
Fosse o que fosse seria ele — disso tem certeza — e teme que sofrerá um terrível
castigo pelo que o pai fez. por mais séria ou trivial que fosse a coisa: ela vai levantar o taco
de croquet e meter na cara dele. arrebentar seu nariz e quebrar seus dentes, e quando ele cair
no gramado os cachorros vão comê-lo.
Só que não é Tom Mahout ali: é Gerald. E está nú. O Pênis do Advogado espia
Jessie por baixo da abóbada macia e rosada da barriga. Ele segura um par de algemas de
polícia em cada mão. Estende-as para ela na estranha escuridão da tarde. O brilho
sobrenatural das estrelas se reflete nas mandíbulas de aço onde estamparam M-17 porque o
fornecedor não tinha algemas F-23 em estoque.
Vamos, Jess. Gerald diz sorrindo. Você conhece bem o jogo. Além do mais, você
gostou. Aquela primeira vez você gozou com tanta violência que quase explodiu. Não me
importo de confessar que aquele foi o melhor rabo que comi na vida. tão bom que às vezes
sonho com ele. E sabe por que foi tão bom? Porque você não teve que fazer nada. Quase
todas as mulheres preferem quando o homem faz tudo — é um dado comprovado da
psicologia feminina Você gozou quando seu pai a molestou, Jessie? Aposto que gozou.
Aposto que gozou com tanta violência que quase explodiu. As pessoas que cultuam o Eu
podem querer discutir essas coisas, mas nós conhecemos a verdade, não é? Algumas
mulheres sabem dizer que querem, outras precisam de um homem para lhes dizer o que
querem. Você pertence ao segundo grupo. Mas tudo bem, Jessie: é para isso que servem as
algemas. Só que nunca foram algemas de verdade. São pulseiras de amor. Por isso ponha as
algemas, meu amor. Ponha.
Ela recua, sacudindo a cabeça, sem saber se quer rir ou chorar. O assunto em si é
novo, mas a retórica é velhíssima.
Conversa de advogado não funciona comigo, Gerald — faz um tempão que estou
casada com você. O que nós dois sabemos é que o problema que houve com as algemas
nunca foi comigo. Foi com você... para ser franca, foi você que quis estimular um
pouquinho o velho tesão que a bebida derrubou. Portanto pode guardar sua versão de merda
sobre psicologia feminina, está bem?
Gerald sorri de maneira desconcertante e astuta. Boa tentativa, belezinha. Não surtiu
efeito, mas foi uma tacada e tanto. A melhor defesa é um boa ofensa, certo? Acho que fui eu
que lhe ensinei isso. Não importa. No momento você precisa fazer uma escolha. Ou põe as
algemas ou levanta o taco e me mata outra vez.
Ela olha à volta e percebe, em meio ao pânico e ao desalento que sobrevém, que
todas as pessoas na festa de aniversário de Will observam seu confronto com esse homem
nú (isto é. exceto pelos óculos), gordo, sexualmente excitado... e não são apenas a família e
os amiguinhos de infância. não. A Sra. Henderson. que será sua orientadora no primeiro ano
de universidade, encontra-se parada ao lado da poncheira; Bobby Hagen. que vai
acompanhá-la ao baile de formatura — e depois transar com ela no banco traseiro do
Oldsmobile 88 do pai — está no pátio com a loura da paróquia de Neuworth, aquela cujos
pais a amavam mas era ao filho que idolatravam.
Barry. Jessie pensa. É a Olivia e o irmão Barry.
A loura ouve o que diz Bobby Hagen mas observa Jessie, tem o rosto tranqüilo mas
meio abatido.
Usa uma malha grossa com o logo de uma loja famosa, Mr. Natural, caminhando
apressado por uma rua da cidade. No balão que sai da boca do Mr. Natural estão impressos
os dizeres -Vício é bom. Mas incesto é muito melhor". Atrás de Olivia. Kendall Wilson, que
dará a Jessie o primeiro emprego de professora, corta um pedaço do bolo de chocolate do
aniversário para a Sra. Paige. professora de piano de Jessie na infância. A Sra. Paige tem um
ar animadíssimo para uma mulher que morreu de infarto há uns dois anos quando escolhia
maçãs numa frutaria em Alfred.
Jessie pensa. Isto não parece sonho: parece um afogamento. Todos que conheci
parecem estar presentes sob esse estranho céu de tarde estrelado, observando meu marido
pelado tentar me algemar enquanto Manin Gaye canta "Será que arranjo uma testemunha?"
Há apenas um consolo, se houver algum: as coisas não podem ficar piores do que já estão.
Mas ficam. A Sra. Wertz. professora de Jessie no primário, cai na risada. O velho
Sr. Cobb. jardineiro da família até 1964. quando se aposentou, ri com a professora. O riso
contagia Maddy. Ruth e a Olivia dos seios queimados. Kendall Wilson e Bobby Hagen
quase se dobram de rir e dão tapas um nas costas do outro como homens que ouviram a
piada suja de barbas mais brancas na barbearia local. Talvez aquela em que a graça é a frase
um sistema vivo de apoio para uma boceta.
Jessie baixa a cabeça para se olhar e descobre que agora está nua também. No peito,
escritas com batom Delícia de Hortelã as três palavras malditas: FILHINHA DO PAPAI.
Preciso acordar, pensa. Caso contrário vou morrer de vergonha.
Mas não acorda, pelo menos não imediatamente. Ergue os olhos e vê que o sorriso
astuto e desconcertante de Gerald virou uma ferida aberta. Inesperadamente o focinho
melado de sangue do vira-lata irrompe por entre os dentes de Gerald. O cachorro também
sorri, e a cabeça que surge entre suas presas como o início de um parto obsceno pertence ao
pai de Jessie. Seus olhos, sempre muito azuis, agora estão cinzentos e abatidos encimando o
sorriso. São os olhos de Olivia. Jessie percebe, e então percebe mais uma coisa: o cheiro
salobro de minerais da água do lago. tão leve porém tão desagradável, está por toda parte.
Meus amigos às vezes dizem que o meu amor é intenso demais — seu pai canta de
dentro da boca do cachorro que está dentro da boca de Gerald. Mas acredito, acredito
mesmo, que é assim que se deve amar uma mulher...
Ela atira o taco para um lado e corre, aos berros. Ao passar pelo monstrengo com a
exótica cadeia de cabeças encaixadas umas nas outras, Gerald fecha uma das algemas em
seu pulso.
Peguei você! — urra vitorioso. Peguei-a, minha altiva bela!
Em princípio ela pensa que o eclipse ainda não é total, porque o dia continua a
escurecer ainda mais. Então lhe ocorre que provavelmente está desmaiando. Esse
pensamento é acompanhado de uma sensação de profundo alívio e gratidão.
Não seja tola. Jess — não se pode desmaiar em sonho.
Mas ela acha que talvez esteja fazendo exatamente isso e, ao fim, não importa se é
um desmaio ou apenas um recesso mais profundo do sono em que se refugia como se
tivesse sobrevivido a um cataclismo. O que importa é que, enfim, está escapando do sonho
que a assaltou de uma forma mais fundamental do que o gesto do pai no deck naquele dia.
enfim está escapando, e a gratidão lhe parece uma reação maravilhosamente normal às
circunstâncias.
Quase alcançou o recesso escuro e confortável quando aquele som se interpõe: um
som feio e estilhaçante como um forte espasmo de tosse. Ela tenta fugir do som e descobre
que é impossível. Ele a prende como se fosse um gancho, e como um gancho começa a
puxá-la em direção ao vasto mas frágil céu prateado que separa o sono da consciência.
CAPÍTULO XII
O ex-Príncipe, que em tempos fora o orgulho e alegria da jovem Catherine Sutlin.
sentou-se à entrada da cozinha por uns dez minutos depois da última investida no quarto.
Tinha a cabeça erguida, os olhos muito arregalados. Sobrevivera com uma ração muito
pobre nos últimos dois meses, se alimentara bem esta noite — se empanturrara mesmo — e
deveria estar se sentindo pesado e sonolento. Sentira-se assim algum tempo, mas agora a
sonolência acabara. Fora substituída por uma inquietação que piorava sem parar. Alguma
coisa rompera os finíssimos sensores estendidos na zona mística em que intuição e sentidos
caninos se sobrepunham. A dona fêmea continuava a gemer no outro quarto e a produzir
ocasionais sons de conversa, mas esses ruídos não eram a fonte do nervosismo do vira-lata;
não foram a razão de se sentar quando estava quase adormecendo placidamente, nem a
razão de sua orelha boa se empinar para a frente em posição de alerta, e o focinho enrugar
deixando à mostra as pontas dos dentes.
Era outra coisa... uma coisa esquisita... uma coisa possivelmente perigosa.
Quando o sonho de Jessie atingiu o auge e começou a espiralar para o final, o
cachorrro subitamente se ergueu, incapaz de suportar a vibração constante nos nervos.
Virou-se, empurrou a porta dos fundos com o focinho e saltou para a escuridão batida pelo
vento. Ao sair, um odor estranho e inidentificável chegou às suas narinas. Havia perigo
naquele cheiro... perigo quase certo.
O cachorro correu para a mata o mais rápido que lhe permitiu a barriga pesada e
inchada. Quando ganhou a segurança das moitas, virou-se e, contrafeito. refez um
pedacinho do caminho até a casa. O cachorro batia em retirada, é bem verdade, mas um bom
número de sinais de alarme dentro dele teria de soar para ele considerar abandonar a
maravilhosa despensa de comida que encontrara.
Escondido em segurança, a cara inteligente e cansada riscada de ideogramas
desenhados pelas sombras do luar, o vira-lata começou a latir, e foi a repetição desse som
que trouxe Jessie de volta à consciência.
CAPÍTULO XIII
Durante os verões que passavam no lago no inicio dos anos sessenta, antes que
William pudesse fazer mais que dar braçadas no raso com um par de bóias cor-de-laranja
preso às costas, Maddy e Jessie, sempre boas amigas apesar da diferença de idade,
freqüentemente iam nadar na casa dos Neidermeyers. Os Neidermeyers tinham um flutuante
equipado com trampolim, e foi ali que Jessie começou a desenvolver a habilidade que lhe
valeu o primeiro lugar na equipe de natação da escola e, mais tarde, em 1971, na equipe
estadual. A segunda melhor lembrança da época em que mergulhava do trampolim dos
Neidermeyers (a primeira — então e sempre — era cortar o ar quente de verão até as águas
azul-metálicas) era a sensação de emergir do fundo do lago atravessando camadas
contrastantes de água quente e fria.
Emergir desse sonho atormentado era igual.
Primeiro havia uma confusão escura e ribombante em que se sentia dentro de uma
nuvem de tempestade. Atravessou-a aos trambolhões, sem ter a menor idéia de quem ou
quando era. e muito menos onde estava. Depois sobreveio uma camada mais quente e
menos agitada; fora apanhada no pior pesadelo da história (pelo menos de sua história), mas
não passara de um pesadelo, e agora findara. Ao se aproximar da superfície, deparou com
outra camada fria: uma idéia de que a realidade que a aguardava era quase tão ruim quanto o
pesadelo. Talvez pior.
Que será? perguntou-se. Que poderia ser pior do que o pesadelo por que acabei de
passar?
Recusava-se a pensar nisso. A resposta estava ao seu alcance, mas se lhe ocorresse,
poderia optar por uma cambalhota à la Flipper e abanar as nadadeiras para retornar às
profundezas. Tomar tal decisão seria se afogar, e embora o afogamento talvez não fosse a
pior maneira de fugir à vida — era menos ruim do que meter a Harley num paredão de
pedra ou aterrissar de pára-quedas numa rede de alta tensão, por exemplo — a idéia de abrir
o corpo àquele cheiro salobro de minerais, que lhe lembrava ao mesmo tempo cobre e
ostras, era insuportável. Jessie continuou a nadar mal-humorada em direção à superfície,
dizendo a si mesma que se preocuparia com a realidade quando, e se. chegasse à tona.
A última camada que atravessou era quente e assustadora como sangue recémderramado:
seus braços provavelmente estariam mais inertes que pedaços de pau. Só
esperava poder obrigá-los a se mexer até o sangue voltar a circular.
Jessie arfou, estremeceu e abriu os olhos. Não fazia a menor idéia de quanto tempo
dormira, e o rádio-relógio sobre a cômoda, preso num inferno individual de obsessiva
repetição (doze-doze-doze, piscava na escuridão, como se o tempo tivesse parado para
sempre à meia-noite), não servia para nada. Só tinha certeza de que era noite e a lua agora
entrava pela clarabóia e não mais pela janela leste.
Seus braços se agitavam numa dança nervosa como se estivessem em brasa. Em
geral detestava essa sensação, mas era mil vezes preferível às cãibras musculares, preço que
pagava para reavivar as extremidades adormecidas. Pouco depois notou uma umidade que
se espalhava sob suas pernas e nádegas e percebeu que a vontade de urinar desaparecera. O
corpo cuidara do problema enquanto ela dormia.
Dobrou os pulsos e cautelosamente se alçou um pouco, fazendo careta com a dor
que o movimento provocava nos pulsos e, mais profundamente, nas costas das mãos. A
maior parte dessa dor vem da tentativa de me livrar das algemas, pensou. Não pode culpar
ninguém a não ser você mesma, queridinha.
O cachorro recomeçara a latir. Cada latido cortante era como uma farpa martelada
em seu tímpano, e ela percebeu que foram aqueles ruídos que a arrancaram do sono na hora
em que ia mergulhar mais fundo para escapar ao pesadelo. A direção dos latidos lhe
informou que o cachorro se encontrava no quintal da casa. Ficou contente que tivesse saído,
mas meio intrigada, também. Talvez ele não se sentisse bem dentro de casa depois de passar
tanto tempo ao ar livre. Essa idéia fazia um certo sentido... tanto quanto qualquer outra coisa
nas circunstâncias.
— Controle-se, Jess — aconselhou a si mesma em tom solene e toldado de sono e,
talvez — apenas talvez — estivesse fazendo exatamente isso. O pânico e a vergonha
desarrazoada que sentira em sonho estavam sumindo. O sonho em si parecia estar
murchando, assumindo o aspecto curiosamente dessecado de uma foto superexposta. Logo.
percebeu, desapareceria de todo. Os sonhos que antecediam o despertar eram como casulos
vazios de mariposas ou cápsulas rompidas de marias-sem-vergonha. cascas vazias onde a
vida momentaneamente torvelinhou vertiginosa e frágil. Houve momentos em que a
amnésia — se é que era isso — lhe parecera triste. Agora não. Nunca em sua vida igualara o
esquecimento à misericórdia tão rápida e completamente.
E não importa, pensou. Afinal, foi apenas um sonho. Quero dizer, todas aquelas
cabeças saindo de dentro de cabeças? Dizem que os sonhos são simbólicos, naturalmente —
sei disso — e suponho que haja algum simbolismo nesse... talvez até alguma verdade. Não
fosse por outra razão, acho que agora compreendo por que bati em Will quando ele me
cutucou naquele dia. Nora Callighan sem dúvida vibraria — chamaria isso de progresso. E é
provável que seja. Mas não tem serventia para me tirar dessas pulseiras de presidiária, e isso
continua a será minha prioridade número um. Alguém discorda?
Nem Ruth nem Esposinha responderam; as vozes OVNIs permaneceram igualmente
caladas. A única reação, de fato, veio de seu estômago, que ficou morrendo de tristeza com
todo o acontecido mas. ainda assim, se sentia compelido a protestar contra o cancelamento
do jantar com um ronco discreto e prolongado. Engraçado, de certa forma... mas é bem
capaz de ter menos graça amanhã de manhã. Até lá a sede teria retornado com intensidade,
também, e Jessie não tinha a ilusão de que dois golinhos de água a manteriam saciada.
Preciso me concentrar — é o jeito. O problema não é a comida, nem a água. No
momento essas coisas importam tão pouco quanto a razão pela qual meti a mão na cara do
Will no seu aniversário de nove anos. O problema é como vou...
Suas reflexões se interromperam subitamente como um nó de madeira estourando
em uma fogueira. Seu olhar, que vagava distraído pela penumbra do quarto, fixou-se no
canto mais afastado, onde as sombras produzidas pelo vento no pinheiral dançavam com
vivacidade à luz nacarada que entrava pela clarabóia.
Havia um homem parado ali.
Um terror maior do que jamais sentira invadiu-a sorrateiro. A bexiga, que na
realidade aliviara apenas o desconforto excedente, se esvaziou agora num jato indolor e
quente. Jessie não tomara conhecimento disso ou de qualquer outra coisa.
O terror varrera temporariamente sua cabeça de parede a parede, do teto ao chão.
Nenhum ruído lhe escapava, nem mesmo o mínimo rangido; estava tão incapaz de falar
quanto de pensar. Os músculos dos braços, ombros e pescoço pareciam estar se dissolvendo
em água morna e ela foi escorregando para baixo até ficar pendurada pelas algemas numa
espécie de desmaio. Não perdeu a consciência — nem de longe — mas aquele vazio mental
e a total incapacidade física que o acompanhava foram piores do que a inconsciência.
Quando o pensamento tentou voltar, em princípio foi bloqueado por uma muralha escura e
informe de medo.
Um homem. Um homem no canto.
Ela distinguia seus olhos escuros observando-a com uma atenção fixa e imbecil. Via
a palidez cerosa do rosto fino e da testa larga, embora as feições reais do intruso estivessem
borradas pelas sombras que passavam voando por elas. Via ombros curvados e braços
pendentes como os de um macaco que terminavam em longas mãos; percebia pés em algum
ponto do triângulo de sombra projetado pela cômoda, mas era só isso.
Não fazia idéia de quanto tempo passara naquele horrível semidesmaio, paralisada
mas consciente, como um besouro picado por uma aranha. Pareceu-lhe uma eternidade. Os
segundos passaram lentos e ela se sentiu incapaz sequer de fechar os olhos, menos ainda de
desviá-los do estranho visitante. O primeiro momento de terror diante do homem começou a
diminuir um pouquinho, mas o que sobreveio foi pior: um horror e uma repugnância
desarrazoada e atávica. Jessie mais tarde concluiu que a fonte dessas sensações — as
emoções mais fortes e negativas que já experimentara na vida, incluindo as que sentira
pouco antes, quando contemplava o cachorro se preparar para jantar o Gerald — era a
absoluta imobilidade da criatura. Entrara silenciosamente enquanto ela dormia e agora
simplesmente postava-se num canto, camuflado pela incessante maré de sombras que
perpassava seu rosto e corpo, observava-a com olhos negros estranhamente ávidos, tão
grandes e extasiados que lhe lembravam as órbitas vazias de um crânio.
O visitante apenas parara no canto; só isso, nada mais.
Deitada em algemas, os braços estirados acima da cabeça, sentia-se uma mulher no
fundo de um grande poço. O tempo passava, marcado apenas pelo pisca-pisca insano do
relógio que anunciava doze, doze, doze horas, e finalmente um pensamento coerente voltou
ao seu cérebro, um pensamento que lhe pareceu ao mesmo tempo perigoso e imensamente
reconfortante.
Não há mais ninguém aqui além de você, Jessie. O homem que está vendo no canto
é uma combinação de sombras e imaginação — nada mais.
Esforçou-se para voltar à posição sentada, içando-se com os braços, contraindo as
feições com a dor nos ombros sobrecarregados, empurrando com os pés, tentando fincar os
calcanhares nus na colcha, arfando com o esforço... e, durante todo o tempo, seus olhos não
abandonaram um só instante o vulto alongado no canto.
É alto demais e magro demais para ser um homem de verdade, Jess — não está
vendo? É apenas vento, sombras, um raio de luar... e alguns resíduos do seu pesadelo,
imagino. Concorda?
Quase. Ela começou a se acalmar. Então, de fora o cachorro emitiu outra saraivada
de latidos histéricos. E não é que o vulto no canto — o vulto que era apenas vento, sombras
e um raio de luar — não é que o vulto inexistente virou ligeiramente a cabeça naquela
direção?
Não, claro que não. Claro que foi apenas mais uma brincadeira do vento, da
escuridão e das sombras.-
Talvez fosse; de fato estava quase segura de que aquela parte — de virar a cabeça
— fora ilusão. Mas, e o resto? O vulto em si? Não conseguia se convencer de todo que era
apenas sua imaginação. Certamente nenhum vulto que parecesse tanto com um homem
poderia ser apenas uma ilusão... poderia?
Esposa Perfeita manifestou-se inesperadamente e embora houvesse receio em sua
voz não havia histeria, pelo menos por ora; que coisa esquisita, foi a parte Ruth de Jessie
que mais se apavorou com a possibilidade de não estar sozinha no quarto, e era a parte Ruth
que continuava quase desarticulada.
Se aquela coisa não é real, disse Esposinha, por que o cachorro se retirou? Eu acho
que ele não teria saído sem uma razão muito boa, e você?
No entanto Jessie compreendia que Esposinha estava profundamente amedrontada e
ansiosa por ouvir uma explicação para a saída do cachorro que não envolvesse o vulto que
Jessie viu ou pensou que viu parado no canto. Esposinha lhe suplicava que dissesse que sua
primeira idéia, a de que o cachorro simplesmente saíra porque não se sentia bem dentro de
casa, era muito mais plausível. Ou talvez, pensou, tivesse ido embora pela razão mais antiga
do mundo: farejara outro vira-lata, uma fêmea no cio. Supunha que até fosse possível que o
cachorro se assombrasse com algum ruído — um galho batendo numa janela do primeiro
andar, digamos. Gostava mais desta explicação, porque sugeria uma espécie de justiça
grosseira: que o cachorro também se assombrara com um intruso imaginário, e pretendesse
com seus latidos assustar o recém-chegado inexistente, afastando-o do seu banquete de
pária.
Por. favor, dê uma explicação assim, Esposinha suplicou, e mesmo que você não
acredite em nenhuma, me faça acreditar.
Mas Jessie não se achava capaz disso e a razão encontrava-se no vulto postado no
canto junto à cômoda. Havia alguém ali. Não era alucinação, não era uma combinação de
sombras impelidas pelo vento e imaginação, não era um restinho de sonho, um fantasma
momentâneo vislumbrado na terra de ninguém perceptual entre o sono e a vigília. Era um
(monstro é um monstro um bicho-papão que veio me comer) homem, não um monstro, um
homem, parado ali imóvel a observá-la enquanto o vento soprava, fazendo a casa rangir e as
sombras dançarem pelo estranho rosto que ela entrevia.
Desta vez o pensamento — Monstro! Bicho-papão! — emergiu dos níveis mais
profundos da mente até o palco iluminado de sua consciência. Negou-o outra vez, mas
sentia o terror voltar, do mesmo jeito. A criatura no extremo oposto do quarto poderia ser
um homem, mas mesmo que fosse, adquiria cada vez mais certeza de que havia alguma
coisa muito errada naquele rosto. Se ao menos pudesse vê-lo melhor!
Você não ia querer, a voz sussurrante e agourenta de uma OVNI aconselhou-a.
Mas tenho que falar com ele— tenho que fazer contato, Jessie pensou, e na mesma
hora alguém lhe respondeu nervosa em tom de censura, que parecia combinar as vozes de
Ruth e Esposinha: Não veja o vulto como um bicho, Jessie — veja-o como um homem.
Pense num homem, alguém que talvez tenha se perdido na mata, alguém que está tão
apavorado quanto você.
Bom conselho, talvez, mas Jessie descobriu que não podia pensar na figura no canto
como um homem, como também não podia pensar no vira-lata como um homem. Também
não podia pensar na criatura nas sombras como alguém perdido ou assustado. O que sentia
vir do canto eram ondas longas e lentas de malevolência.
Isso é uma idiotice! Fale com ele, Jessie! Fale com ele!
Ela tentou pigarrear e descobriu que não havia nada preso na garganta — estava
seca como um deserto e mais lisa que pedra-sabão. Agora sentia o coração batendo no peito,
uma palpitação muito leve, muito rápida, muito irregular.
O vento soprava novas rajadas. As sombras projetavam desenhos pretos e brancos
pelas paredes e pelo teto, fazendo-a se sentir uma mulher presa no interior de um
caleidoscópio para gente daltônica. Por um instante ela pensou ter visto um nariz — fino,
longo e branco — sob os olhos negros e imóveis.
— Quem...
Em princípio conseguiu enunciar apenas aquele único sussurrinho que não poderia
ter sido ouvido no extremo oposto da cama, muito menos no do quarto. Parou, umedeceu os
lábios e tentou outra vez. Tinha consciência de que trazia os punhos doloridos cerrados com
força, e forçou os dedos a se descontraírem.
— Quem é você? — Ainda um sussurro, mas um pouco mais alto que o anterior.
O vulto não respondeu, continuou parado com as mãos brancas e estreitas batendo
pelos joelhos, e Jessie pensou: Joelhos? Joelhos? Não é possível, Jess — quando os braços
de alguém estão caídos ao longo do corpo as mãos batem na primeira metade das coxas.
Ruth respondeu, a voz tão baixa e temerosa que Jessie mal a reconheceu. As mãos
de uma pessoa normal batem na metade superior das coxas, não é isso que quer dizer? Mas
você acha que uma pessoa normal entraria sorrateiramente na casa de alguém no meio da
noite, e ficaria parada num canto observando, ao descobrir a dona da casa algemada à cama?
Fica parada ali e acabou?
Então ele mexeu uma perna... ou talvez tenha sido apenas mais um movimento
diversivo das sombras, desta vez vislumbrado pelo quadrante inferior de sua visão. A
combinação de sombras, luar e vento emprestava uma incrível ambigüidade ao episódio, e
mais uma vez Jessie se viu duvidando da concretude do visitante. Ocorreu-lhe a
possibilidade de que ainda estivesse adormecida, que o sonho com a festa de aniversário de
Will simplesmente tivesse tomado uma estranha direção... mas ela não acreditou realmente
nisso. Estava muito acordada.
Se, de fato, a perna mexeu ou não (ou até mesmo se havia uma perna), o olhar de
Jessie foi momentaneamente atraído para baixo. Ela pensou ver um objeto escuro no chão
entre os pés da criatura. Era impossível dizer o que seria porque a sombra da cômoda
tornava aquele o canto mais escuro do quarto, mas lembrou-se de repente daquela tarde,
quando tentara persuadir Gerald de que realmente falava sério. Os únicos sons que havia era
o vento, a porta batendo, os latidos do cachorro, o mergulhão e...
A coisa no chão entre os pés do visitante era uma motosserra.
Jessie teve imediata certeza disso. O visitante usara-a antes, mas não para cortar
lenha. Fora gente que ele andara cortando de tarde, e o cachorro fugiu porque farejara a
aproximação desse lunático, que subia pelo caminho do lago sacudindo na mão enluvada a
serra tinta de sangue....
Pare com isso! Esposinha gritou indignada. Pare com essa tolice agora mesmo e
procure se controlar!
Mas ela descobriu que não conseguia se controlar, porque isso não era um sonho e
também porque sentia avolumar-se a certeza de que o vulto postado no canto, silencioso
como o Frankenstein antes dos raios, era real. Mas mesmo que fosse, não passara a tarde
transformando gente em costeletas de porco com uma motosserra. Claro que não — isso era
apenas uma variação cinematográfica das histórias simples e repelentes dos acampamentos
de verão, que pareciam tão engraçadas quando a garotada se sentava ao redor da fogueira,
assando marshmallows, e tão horríveis mais tarde, quando se tremia de medo dentro do saco
de dormir, acreditando que cada graveto quebrado assinalava a aproximação do homem de
Lakeview, o lendário sobrevivente da guerra da Coréia que teve os miolos estourados.
A coisa parada no canto não era o homem de Lakeview nem tampouco o assassino
da motosserra. Havia alguma coisa no chão (pelo menos disso tinha certeza), e Jessie
supunha que podia ser uma motosserra, mas também podia ser uma mala... uma mochila...
um mostruário de vendedor...
Ou minha imaginação.
Sim. Embora olhasse diretamente para a coisa qualquer que fosse, sabia que não
podia descartar a possibilidade de estar imaginando. Porém, de uma forma perversa isso
apenas reforçava a idéia de que a criatura em si era real, e a cada momento se tornava mais
difícil excluir a sensação de maldade que vinha do emaranhado de sombras escuras e do luar
claro como um rosnido baixo e contínuo.
Aquilo me odeia, ela pensou. Seja o que for, aquilo me odeia. Deve me odiar. Que
outra razão teria para ficar parado ali sem me ajudar?
Voltou a olhar para aquele rosto semi-oculto, para os olhos que pareciam brilhar
com avidez tão febril nas órbitas redondas e escuras, e começou a chorar.
— Por favor, tem alguém aí? — Sua voz era humilde, afogada em lágrimas. — Se
houver, será que quer por favor me ajudar? Está vendo essas algemas? As chaves estão bem
aí do seu lado, em cima da cômoda...
Nada. Nenhum movimento. Nenhuma resposta. Apenas continuou parado ali — isto
é, se é que estava ali — espiando-a por trás da máscara ferina de sombras.
— Se não quiser que eu conte a ninguém que o vi, não contarei — tentou de novo.
Sua voz tremia, engrolava, sumia e derrapava. — Pode ter certeza que não! E ficaria tão...
tão grata...
Ele a observava.
Apenas isso e nada mais.
Jessie sentiu as lágrimas lhe escorrerem pelo rosto.
— Você está me apavorando, sabe? Não quer dizer alguma coisa? Não pode falar?
Se está realmente aí, será que pode, por favor, falar comigo?
Uma histeria breve e terrível apoderou-se de Jessie, então, e saiu voando com uma
parte valiosa e insubstituível do seu eu presa firmemente nas garras ossudas. Ela chorou e
suplicou ao vulto assustador, imóvel no canto do quarto; permaneceu o tempo todo
consciente mas, por vezes, vagava pelo curioso vazio reservado àqueles cujo terror crescia
tão desmedidamente que se aproximava do êxtase. Ouvia-se pedindo ao vulto com voz
rouca e chorosa para por favor libertá-la das algemas, para por favor ah por favor ah por
favor libertá-la das algemas, e depois recuava para aquele estranho vazio. Sabia que sua
boca ainda estava mexendo porque sentia os movimentos. Ouvia também os sons que
emitia, mas quando se encontrava no vazio, os sons não eram palavras, eram uma torrente
descontrolada e ininteligível de sons. Ouvia, ainda, o vento soprando e o cachorro latindo,
percebia-os sem tomar consciência, ouvia-os sem compreender, pois tudo se perdia no pavor
da forma vislumbrada do horrível visitante, do hóspede indesejável. Não conseguia
interromper a contemplação daquela cabeça estreita e disforme, das faces pálidas, dos
ombros curvados... mas, cada vez mais, eram as mãos da criatura que atraíam os olhos de
Jessie; aquelas mãos pendentes, de dedos longos, que chegavam muito mais abaixo do que
mãos" normais teriam o direito de chegar. Um lapso indefinido de tempo se escoava nesse
vazio (doze-doze-doze, o relógio sobre a cômoda informava; sem serventia alguma) e então
ela retornava um pouquinho, começava a pensar ao invés de apenas experimentar o tropel
interminável de imagens incoerentes, começava a ouvir palavras de seus lábios ao invés de
sons confusos. Mas mudara a tônica enquanto estivera no vazio; as palavras agora não se
referiam às algemas ou às chaves sobre a cômoda. O que ouvia era o murmúrio fraco, agudo
de uma mulher reduzida a suplicar uma resposta... qualquer resposta.
— Que é você? — soluçou. — Um homem? Um demônio? Por Deus, que é você?
O vento soprou uma rajada.
A porta bateu.
Diante dela, o rosto do vulto pareceu mudar... pareceu se enrugar para cima num
sorriso. Havia alguma coisa terrivelmente familiar naquele sorriso, e Jessie sentiu o cerne de
sua sanidade, que suportara aquele assalto com extraordinária força até o momento, começar
finalmente a fraquejar.
— Papai? — sussurrou. — Papai, é você?
Não seja boba! exclamou Esposa Perfeita, mas Jessie sentia agora até mesmo aquela
voz sancionadora vacilar diante da histeria. Pare de tolices, Jessie! Seu pai está morto desde
1980!
Ao invés de ajudar, o comentário piorou a situação. Muito mais. Tom Mahout fora
enterrado na cripta da família em Falmouth, a menos de 160 km dali. A mente febril e
aterrorizada de Jessie insistia em lhe mostrar um vulto curvado, as roupas e sapatos podres
emplastrados de bolor verde-azulado, atravessando, furtivo, terrenos banhados de luar,
correndo por matagais entre loteamentos suburbanos: via a gravidade atuando nessa corrida
sobre os músculos dos braços em decomposição, gradualmente esticando-os até que as mãos
pendessem ao lado dos joelhos. Era seu pai. Era o homem que a encantara com passeios nos
ombros aos três anos, que a consolora ao seis quando um palhaço a assustou às lágrimas
com suas cabriolas, que lhe contara histórias na hora de dormir até os oito anos — idade
bastante, disse ele, para que as lesse sozinha. O pai, que improvisara filtros na tarde do
eclipse e a segurara no colo quando o momento da escuridão total se aproximou, o pai que
falara: Não precisa se preocupar... não se preocupe e não olhe para os lados. Mas achara que
talvez ele estivesse preocupado, porque sua voz estava pastosa e trêmula, muito diferente da
voz normal.
No canto, o sorriso da coisa pareceu se alargar e de repente o quarto se encheu
daquele perfume, aquele que era meio metálico e meio orgânico; um aroma que lhe
lembrava ostras com creme, o cheiro da mão depois que se segurava um punhado de moedas
e o cheiro do ar pouco antes de um temporal.
— Papai, é você? — perguntou ao vulto no canto, e de algum lugar veio o grito
distante do mergulhão. Jessie sentiu as lágrimas escorrerem lentamente pelo seu rosto. E
agora acontecia algo esquisitíssimo, algo que jamais esperaria na vida. À medida que crescia
sua certeza de que era o pai, de que era Tom Mahout parado no canto, estivesse ou não
morto há doze anos, o terror começou a abandoná-la. Encolhera as pernas, mas agora
deixara-as escorregar para baixo e caírem abertas. Ao fazer isso, lembrou um fragmento de
seu sonho — FILHINHA DO PAPAI escrito sobre os seios com batom Delícia de Hortelã.
— Está bem, vá em frente — falou ao vulto. Tinha a voz um pouquinho rouca mas
firme. — Foi por isso que voltou, não foi? Então vá em frente. De qualquer modo, como
poderia lhe deter? Mas prometa que vai abrir minhas algemas depois. Que vai me libertar e
me deixar ir embora.
O vulto não deu resposta. Continuou parado naquele pega-varetas surreal de
sombras e luar, sorrindo para ela. E à medida que os segundos passavam (doze-doze-doze,
informava o relógio sobre a cômoda, parecendo sugerir que a idéia da passagem do tempo
era uma ilusão, que o tempo na realidade congelara), Jessie pensou que talvez estivesse
certa de início, que afinal não havia realmente ninguém ali. Começara a se sentir como um
cata-vento à mercê das rajadas contraditórias e travessas do vento que, por vezes, sopra
pouco antes de um forte temporal ou de um tornado.
Seu pai não pode voltar do além, Esposa Perfeita falou numa voz que se esforçava
por ser firme sem êxito. Ainda assim, Jessie rendeu homenagem àquele esforço.
Acontecesse o que acontecesse, a Esposa Perfeita agüentava o rojão e não abandonava a
partida. Isto não é um filme de terror nem um episódio de Além da Imaginação, Jess; isto é
realidade.Mas outra parte dela — a parte que talvez abrigasse aquela meia dúzia de vozes
interiores que eram os verdadeiros OVNIs, e não apenas grampos que seu subconsciente
tivesse instalado em determinado momento em sua mente consciente — insistia que havia
uma verdade mais sinistra ali, algo que se alongava dos calcanhares da lógica como uma
sombra irracional (e talvez sobrenatural). Essa voz insistia que as coisas se alteravam no
escuro. E as coisas se alteravam no escuro, dizia, principalmente quando a pessoa se
encontrava sozinha. Quando isso acontecia, os cadeados caíam da gaiola que prendia a
imaginação, e qualquer coisa — quaisquer coisas — podiam voar.
Pode ser roce, papai, sussurrou essa sua parte essencialmente alienígena, e com um
arrepio de frio reconheceu nela as vozes da loucura e da razão combinadas. Pode ser, nunca
se deve duvidar. As pessoas quase sempre estão livres de almas-penadas e vampiros e
mortos-vivos à luz do dia, e em geral estão livres deles à noite quando têm companhia, mas
quando estão sós, o caso muda. Homens e mulheres sozinhos no escuro são como portas
abertas, Jessie, e se chamam ou gritam pedindo ajuda, quem sabe que horrores podem
responder? Quem sabe o que alguns homens e mulheres viram na hora de uma morte
solitáriai' Será muito difícil acreditar que possam ter morrido de medo, ainda que as
certidões de óbito digam outra coisa?
— Não acredito nisso — Jessie falou numa voz hesitante e indistinta. E mais alto,
procurando expressar uma firmeza que não sentia. — Você não é meu pai! Acho que não é
ninguém! Acho que você é apenas um efeito do luar!
Como se respondesse, o vulto se curvou para a frente num salamaleque zombeteiro,
e por um instante seu rosto — um rosto que parecia demasiado real para alimentar dúvidas
— saiu das sombras. Jessy soltou um guincho enferrujado quando o pálido luar que entrava
pela clarabóia pintou as feições do vulto com purpurina carnavalesca. Não era seu pai;
diante da maldade e loucura que viu no rosto do visitante, ela teria festejado a presença do
pai, mesmo depois de passar doze anos num caixão frio. Olhos contornados de vermelho,
pavorosamente cintilantes, observavam-na das órbitas fundas envoltas em rugas. Os cantos
dos lábios finos erguiam-se num sorriso seco, revelando molares descoloridos e caninos
pontiagudos que pareciam quase tão longos quanto as presas do vira-lata.
Uma das mãos brancas ergueu o objeto que ela semi-intuíra, semivislumbrara a seus
pés na escuridão. No primeiro momento pensou que o vulto tivesse apanhado a pasta de
Gerald no quartinho que ele usava naquela casa como escritório, mas quando a criatura
ergueu o objeto retangular à luz, ela viu que era bem maior e mais velho do que a pasta de
Gerald. Lembrava o tipo de mostruário fora de moda que os caixeiros-viajantes costumavam
carregar.
— Por favor — sussurrou com uma vozinha fraca e chiante. — Seja você o que for,
por favor não me machuque. Não precisa me soltar se não quiser, tudo bem, mas por favor
não me machuque.
O sorriso dele se alargou, e ela viu pequenos reflexos de luz no fundo de sua boca
— o visitante aparentemente tinha dentes ou obturações de ouro, tal como Gerald. Parecia
rir em silêncio, como se se comprazesse com o terror que inspirava. Então os dedos longos
abriram os trincos da mala (Acho que estou sonhando, agora parece mesmo um sonho,
graças a Deus parece) e abriu-a para lhe mostrar. A mala continha ossos e jóias. Ela viu
ossos de mãos, anéis, dentes, pulseiras, ossos do antebraço e pingentes; viu um diamante
com tamanho suficiente para engasgar um rinoceronte a refletir trapezóides leitosos de luar
do interior das curvas delicadas e rígidas do tórax de um bebê. Viu essas coisas e queria que
fosse um sonho, sim, queria que fosse, mas se era, não se parecia com nenhum sonho que
tivesse tido antes. Era a situação — algemada à cama enquanto um maníaco semivisível
silenciosamente exibia seus tesouros — isso tinha aparência de sonho. A sensação, porém...
A sensação era de realidade. Não tinha como escapar. A sensação era de realidade.
A coisa parada no canto manteve a mala aberta para sua inspeção, uma mão
amparando o fundo. Mergulhou a outra no emaranhado de ossos e jóias e revirou-o,
produzindo um clique-clique e um farfalhar que lembravam castanholas cheias de lama.
Observava-a ao fazer isso, os traços de certa maneira informes de seu estranho rosto
enrugados para cima indicando divertimento, a boca aberta naquele sorriso silencioso, os
ombros curvados subindo e descendo em resfôlegos de riso sufocado.
Não! gritou Jessie, mas não saiu nenhum som.
Subitamente sentiu alguém — muito provavelmente a Esposa Perfeita, puxa, como
subestimara a força visceral dessa senhora — correndo para os botões que controlavam os
quebra-circuitos de sua cabeça. Esposinha vira anéizinhos de fumaça começarem a se
infiltrar pelas rachaduras abertas nas portas daqueles painéis, compreendera o que
significavam, e fazia um último e desesperado esforço para desligar a máquina antes que os
motores superaquecessem e os rolamentos grimpassem.
O vulto sorridente do lado oposto do quarto mergulhou as mãos no fundo da mala e
estendeu à luz do luar uma mancheia de ossos e ouro para Jessie.
Produziu-se um lampejo intoleravelmente brilhante em sua cabeça e em seguida as
luzes se apagaram. Ela não desmaiou bonito como a heroína em uma peça pastelão, mas
despencou brutalmente contra a cama como um assassino condenado que, amarrado à
cadeira elétrica, acabasse de levar a primeira descarga de eletricidade. Mesmo assim era um
fim para o episódio de horror, e por ora era o bastante. Jessie Burlingame adentrou a
escuridão sem um murmúrio de protesto.
CAPÍTULO XIV
Jessie lutou um pouquinho para recuperar a consciência algum tempo depois,
consciente de apenas duas coisas: a lua dera a volta à casa até as janelas de oeste, e ela
sentia um medo horrível... do quê, não sabia, em princípio. Então se recordou: Papai
estivera ali, talvez continuasse ali. A criatura não se parecia com ele, verdade, mas era
somente porque papai estivera usando sua face eclíptica.
Ela lutou para se levantar, empurrando os pés com tanta força que removeu a colcha
de sob o corpo. Não pôde, porém, fazer muito com os braços. A sensação de formigamento
tinha sumido enquanto estivera inconsciente, e os braços conservavam o tato das pernas de
uma cadeira. Observou atentamente o canto junto à cômoda, os olhos muito abertos,
banhados de luar. O vento amainara e as sombras estavam, ao menos por enquanto, paradas.
Não havia nada no canto. O visitante sombrio se fora.
Talvez não, Jess — talvez tenha apenas mudado de lugar. Talvez esteja escondido
debaixo da cama, que acha da idéia? Se estiver, poderá esticar o braço para o alto a
qualquer minuto e pôr uma das mãos no seu quadril.
O vento recomeçou — um leve sopro, não uma rajada — e a porta dos fundos bateu
frouxamente. Esses eram os únicos sons. O cachorro se calara, e foi principalmente isso que
a convenceu que o estranho partira. A casa era só sua.
O olhar de Jessie caiu sobre o amontoado escuro no chão.
Correção, pensou. E do Gerald. Não posso esquecê-lo.
Recostou a cabeça e fechou os olhos, consciente de uma pulsação lenta na garganta,
sem querer acordar o suficiente para aquela pulsação se transformar no que realmente era:
sede. Não sabia se podia ou não passar da inconsciência total para o sono comum, mas sabia
que era isso que queria; mais do que tudo — exceto talvez que alguém chegasse de carro
para salvá-la — queria dormir.
Não havia ninguém aqui, Jessie — você sabe disso, não é? Era, absurdo dos
absurdos, a voz de Ruth. A Ruth durona, cujo lema permanente, copiado de uma canção de
Nancy Sinatra, era "Qualquer dia desses essas botas vão marchar por cima de você". Ruth.
que fora reduzida a um monte de gelatina trêmula pelo vulto ao luar.
Vamos boneca, falou Ruth. Caçoe de mim o quanto quiser— talvez eu ate mereça
— mas não engane a si mesma Não havia ninguém aqui. Sua imaginação montou um
showzinho de slides, nada mais. Foi só isso.
Você está enganada. Ruth. Esposinha respondeu calmamente. Alguém esteve aqui.
sim. e Jessie e eu sabemos quem era. Não era igualzinho ao papai, mas foi porque estava
usando seu rosto eclíptico. O rosto não era a parte importante, porém, nem mesmo a altura
— poderia estar usando botas com saltos altos especiais ou talvez calçasse sapatos com
palmilhas. Pelo que sei poderia estar até trepado em pernas de pau
Pernas de pau! Ruth exclamou admirada. Deus do céu. não precisa dizer mais nada!
Vamos esquecer que o homem morreu antes mesmo que o smoking do presidente Reagan
voltasse da tinturaria depois da posse. Tom Mahout era tão desastrado que deveria ter feito
seguro para descer escadas. Pernas de pau? Ah. criança, você só pode estar me gozando'
Isso não faz diferença, disse Esposinha com uma certa teimosia serena. Era ele.
Conheceria aquele cheiro em qualquer lugar — aquele cheiro forte, quente como o sangue.
Não era o cheiro de ostras e moedinhas. Nem mesmo o cheiro de sangue. O cheiro de...
O pensamento se interrompeu e saiu vagando.
Jessie adormeceu.
CAPÍTULO XV
Ela acabou sozinha com o pai em Sunset Trails. na tarde de 20 de julho de 1963, por
dois motivos. Um encobria o outro. A desculpa era que continuava a sentir um certo medo
da Sra. Gilette, embora já tivessem passado no mínimo cinco anos (quase seis) desde o
incidente do biscoito e do tapa na mão. O motivo verdadeiro era muito simples: queria
assistir com o pai a esse fenômeno especial que só ocorria uma vez na vida.
A mãe suspeitara disso, e não gostou de ser manobrada como uma peça de xadrez
pelo marido e a filha de dez anos, mas àquela altura o fato estava praticamente consumado.
Jessie procurara o pai antes. Ainda faltavam quatro meses para o seu décimo primeiro
aniversário, mas isso não fazia dela uma bobinha. A suspeita de Sally Mahout era
verdadeira: Jessie lançara uma campanha consciente e bem planejada que lhe permitiria
passar o dia do eclipse com o pai. Muito depois ocorreria a Jessie que essa era mais uma
razão para calar a boca sobre os acontecimentos daquele dia; poderia haver quem dissesse
— sua mãe, por exemplo — que ela não tinha o direito de se queixar; que na verdade
recebera o que merecia.
Na véspera do eclipse. Jessie encontrara o pai sentado no deck diante do escritório,
lendo um exemplar de Profiles in Courage. enquanto a mulher, o filho, e a filha mais velha
se divertiam no lago embaixo. Ele sorriu para a filha que se sentou ao lado dele. e Jessie
retribuiu o sorriso. Avivara os lábios com batom para essa entrevista — Delícia de Hortelã,
um presente que Maddy lhe dera de aniversário. Jessie não gostara do batom de início
porque era cor de criança e tinha gosto de pasta de dentes — mas papai dissera que achava
bonito, e isso transformara o batom no seu cosmético mais precioso, uma coisa a ser
guardada e usada somente em ocasiões especiais como aquele dia.
Ele ouviu o que a filha dizia com atenção e respeito, mas não fez nenhum esforço
especial para disfarçar o brilho de cética zombaria nos olhos. Você está realmente me
dizendo que ainda tem medo de Adrienne Gilette?. perguntou quando ela terminou a história
muitas vezes recontada de que a Sra. Gilette lhe dera um tapa na mão quando ela ia tirar o
ultimo biscoito do prato. Isso deve ter sido há... nem sei. mas eu ainda trabalham para o
Dunmnger. portanto deve ter sido antes de 1959 E você continua com medo tantos anos
depois? Que coisa absolutamente freudiana, querida!
Be-mmm... você sabe... só um pouquinho. Arregalou os olhos, tentando comunicar
a idéia de que estava falando só uma coisinha, mas dizendo um mundo de coisas. Na
verdade não sabia se ainda tinha medo da velha de cabelos azulados ou não, mas sabia que
considerava a Sra. Gilette uma estraga-prazeres, e não tinha a menor intenção de passar o
único eclipse total do sol que provavelmente veria na vida em sua companhia, se pudesse
dar um jeito de assisti-lo com o papai, a quem adorava mais do que havia palavras
suficientes para expressar. Avaliou o ceticismo do pai e concluiu com alívio que era
amistoso, talvez até cúmplice. Sorriu e acrescentou: Mas também quero ficar com você.
Ele levou a mão de Jessie aos lábios e beijou seus dedos como um cavalheiro
francês. Não se barbeara aquele dia — muitas vezes não o fazia quando estava no campo —
e a aspereza de seu rosto produzira um gostoso arrepio nos braços e costas de Jessie.
Comme tu es douce, ele disse. Ma jolie mademoiselle. Je t'aime.
Ela riu encabulada. sem compreender o francês desajeitado do pai. mas teve a súbita
certeza de que tudo ia correr conforme esperara.
Seria tão divertido, disse feliz. Só nós dois. Eu poderia servir o jantar cedo e
poderíamos comê-lo aqui mesmo no deck.
Ele sorriu. Eclipse-búrgueres à deux?
Ela riu. concordando com a cabeça e batendo palmas de prazer.
Então ele dissera uma coisa que lhe parecera estranho mesmo à época, porque não
era homem de se preocupar muito com roupas e modas: Você poderia usar aquele bonito
vestido novo de verão.
Claro, se você quiser, respondeu, embora já tivesse anotado mentalmente que
pediria à mãe para tentar trocar o vestido. Era bem bonito — isto é. se a pessoa não se
incomodava com listras vermelhas e amarelas que chegavam a berrar — mas também era
demasiado pequeno e justo. A mãe encomendara-o na Sears, guiando-se principalmente por
instinto e, imagine, assinalando no pedido apenas um número maior do que Jessie usara no
ano anterior. Acontece que ela crescera mais depressa do que se esperava, e de várias
maneiras. Ainda assim, se Papai gostava... e ia ficar do seu lado no caso do eclipse e dar um
empurrãozinho...
Ele realmente ficou do seu lado. e empurrou com a força de um Hércules. Começou
naquela noite mesmo, sugerindo à mulher depois do jantar (e umas três taças de vinho tinto
para amaciá-la) que Jessie fosse dispensada da excursão para assistir ao eclipse no alto do
monte Washington. A maioria dos vizinhos veranistas iam participar: logo depois do feriado
de maio. tinham começado a organizar reuniões informais para discutir como e onde ir
assistir ao fenômeno solar que se aproximava (para Jessie essas reuniões tinham parecido
coquetéis rotineiros de verão), e o pessoal tinha até escolhido um nome para o grupo — Os
Adoradores do Sol de Dark Score. Os Adoradores do Sol alugaram um microônibus da
administração escolar para o evento e estavam planejando uma excursão até o cume da
montanha mais alta de New Hampshire equipados com almoços, óculos escuros Polaroid,
caixas refletoras construídas para a ocasião, câmeras com filtros especiais... e champanhe, é
claro. Muito champanhe. À mãe e à irmã mais velha de Jessie isso parecera a própria
definição do divertimento grã-fino e sofisticado. A Jessie parecera a essência da chatice... e
isso antes de acrescentar a presença da Estraga-prazeres à equação.
Retirou-se para o deck depois do jantar do dia 19. supostamente para ler vinte ou
trinta páginas de um romance da astronomia enquanto havia claridade. Seu verdadeiro
objetivo era bem menos intelectual: queria assistir à jogada do pai — dos dois — e
silenciosamente torcer por ele. Ela e Maddy sabiam há anos que o conjunto sala de
estar/jantar da casa de verão tinha propriedades acústicas especiais, provavelmente devidas
ao teto alto de ângulo muito acentuado: Jessie imaginava que até Will sabia que o som da
sala chegava até ao deck Somente os pais pareciam não se dar conta de que a sala era
praticamente grampeada, e que a maioria das decisões importantes que tomaram naquela
sala enquanto bebericavam um conhaque ou um café depois do jantar eram conhecidas (pelo
menos das filhas) muito antes das ordens de marcha serem despachadas do quartel-general.
Jessie reparou que estava lendo o livro de cabeça para baixo e se apressou a
consertar o engano antes que Maddy aparecesse e a brindasse com uma gargalhada
silenciosa. Sentia um remorsinho pelo que estava fazendo — uma coisa muito mais próxima
da bisbilhotice do que da torcida, se analisada objetivamente — mas o sentimento não era
bastante forte para impedi-la de continuar. E de fato considerava que não ultrapassara a
tênue linha da moral. Afinal não era o mesmo que se esconder num armário nem nada;
estava sentada ali fora bem à vista de todos, iluminada pela luz forte do sol poente. Estava
sentada ali fora com seu livro, imaginando se haveria eclipses em Marte, e caso houvesse, se
haveria marcianos para assisti-los. E se os pais pensavam que ninguém podia ouvir o que
conversavam só porque estavam sentados na sala, que culpa tinha Jessie? Será que era sua
obrigação entrar lá e avisar?
— Creio que não, minha cara — sussurrou Jessie afetando o sotaque de Elizabeth
Taylor em Gata em Teto de Zinco Quente, e, em seguida, sufocou uma grande risada idiota
com as mãos. Calculou ainda que estivesse também a salvo da interferência da irmã mais
velha, pelo menos por ora; dali ouvia as vozes de Maddy e Will no quarto de brinquedos,
disputando bem-humorados uma partida de parcheesi ou de outro jogo qualquer.
Eu realmente acho que não faria mal a ela ficar amanhã comigo, que é que você
acha?, o pai perguntava com a voz mais insinuante e bem-humorada.
Não, é claro que não, a mãe de Jessie respondeu, mas tampouco iria matá-la se nos
acompanhasse este verão a algum lugar. Ela virou uma Filhinha do Papai sem tirar nem pôr.
Foi ao teatro de marionetes em Bethel com você e Will na semana passada. Aliás,
não foi você que me contou que ela ficou com Will— e até comprou sorvete para o irmão
com apropria mesada — enquanto você foi ao leilão?
E isso não foi nenhum sacrifício para a nossa Jessie, Sally retrucou. Parecia quase
aborrecida.
Que está querendo dizer?
Que ela foi ao teatro de marionetes porque quis e que cuidou de Will porque quis. O
aborrecimento dera lugar a um tom mais familiar: exasperação. Como pode entender o que
estou dizendo? era a pergunta implícita no tom. Como entenderia, sendo homem?
Era um tom que Jessie percebia cada vez com maior freqüência na voz da mãe nos
últimos anos. Sabia que em parte era porque ouvia e via mais à medida que crescia, mas
tinha certeza que era também porque a mãe usava aquele tom com maior freqüência do que
antigamente. Jessie não conseguia compreender por que o tipo de lógica do pai sempre
deixava a mãe tão furiosa.
De repente o fato de que Jessie fazia alguma coisa porque queria era motivo de
preocupação? Tom perguntava agora. Talvez conte ponto contra ela? O que faremos se ela
desenvolver simultaneamente uma consciência social e familiar. Sal? Vamos interná-la
numa instituição para meninas desencaminhadas?
Não me trate com esse tom de superioridade. Tom. Você entendeu perfeitamente o
que estou querendo dizer.
Não; desta vez você me deixou completamente confuso, amor. Supostamente
estamos em férias de verão, lembra-se? E sempre pensei que quando as pessoas estão de
férias, devem fazer o que querem, e ficar com quem querem. Na verdade, pensei que essa
era a idéia geral.
Jessie sorriu, sabendo que a coisa terminara exceto a gritaria. Quando começasse o
eclipse amanhã à tarde, estaria ali com o papai ao invés de ir ao monte Washington com a
Estraga-prazeres e os demais Adoradores do Sol de Dark Score. Seu pai lembrava um
enxadrista de primeira linha que dera uma oportunidade a uma amadora talentosa e agora
encerrava rapidamente a partida.
Você poderia ir também, Tom —Jessie iria se você fosse.
Essa era perigosa. Jessie prendeu a respiração.
Não posso, meu amor— estou esperando uma ligação de David Adams sobre a
carteira de ações da Brookings Pharmaceuticals. Coisa muito importante... e também muita
arriscada. Nessa altura, segurar essas ações é o mesmo que manusear espoletas. Mas vou ser
sincero com você; mesmo que pudesse, provavelmente não iria. Não morro de amores pela
Sra. Gilette, mas dá para levar. Já aquele idiota do Sleefort...
Psiu, Tom!
Não se preocupe — Maddy e Will estão lá embaixo e Jessie esta lã fora no deck da
frente... bem ali!
Naquele instante, Jessie teve a repentina certeza de que o pai conhecia exatamente a
acústica da sala de estar/jantar; sabia que a filha estava escutando cada palavra da conversa.
Queria que ela escutasse cada palavra que diziam. Um arrepio morno subiu por suas
costas e desceu pelas pernas.
Eu devia saber que o problema era Dick Sleefort! A mãe parecia ao mesmo tempo
se divertir e se aborrecer, uma combinação que fazia a cabeça de Jessie girar. Tinha a
impressão que somente os adultos conseguiam combinar emoções de maneira tão doida —
se as emoções fossem comida, os sentimentos dos adultos seriam bife com cobertura de
chocolate, purê de batatas com abacaxi, cereal com pimenta malagueta ao invés de açúcar.
Jessie achava que ser adulto parecia mais um castigo do que uma recompensa.
Isso é realmente exasperante. Tom — o homem me deu uma cantada faz seis anos.
Estava bêbedo. Naquele tempo andava sempre bêbedo, mas se recuperou. Polly Bergeron
me disse que ele está freqüentando os Alcoólatras Anônimos, e...
Parabéns para ele, disse o pai secamente. Devemos lhe mandar um cartão desejando
uma rápida convalescença ou lhe dar uma medalha, Sally?
Não seja irreverente. Você quase quebrou o nariz do homem...
Efiz muito bem. Quando um cara entra na cozinha para buscar gelo e descobre o
bebum da rua com a mão no traseiro de sua mulher e a outra pela frente do...
Isso não interessa, Sally interpôs virtuosamente, mas Jessie achou que a mãe parecia
quase satisfeita. As coisas estavam cada vez mais curiosas, pensou lembrando uma frase de
Alice no País das Maravilhas. A questão é que já é tempo de você descobrir que Dick
Sleefort não é o diabo e de Jessie descobrir que Adrienne Gilette é apenas uma velha
solitária que uma vez lhe deu um tapa na mão de brincadeira numa festa ao ar livre. Agora,
por favor, Tom, não fique furioso comigo; não estou dizendo que a brincadeira teve graça;
não teve. O que estou dizendo é que Adrienne não tinha consciência do que fazia. Não
houve má intenção.
Jessie baixou os olhos e viu que tinha o livro quase dobrado em dois na mão direita.
Como é que sua mãe, uma mulher que se formara cum laude (o que quer que isso
significasse) em Vassar, conseguia ser tão burra? A resposta parecia bastante clara para
Jessie: não podia ser tão burra. Ou sabia das coisas ou se recusava a encarar a verdade, e a
conclusão era a mesma qualquer que fosse a resposta escolhida como certa: quando a
forçaram a escolher entre a velha horrorosa que vivia ali adiante na rua durante o verão e a
própria filha, Sally Mahout escolhera Estraga-prazeres. Que legal!
Se eu for Filhinha do Papai, é por isso. Por essas e outras coisas que ela diz. É por
isso, mas eu nunca poderia contara ela nem ela jamais vai descobrir isso sozinha. Nem daqui
a um bilhão de anos.
Jessie procurou descontrair a mão que segurava o livro. A Sra. Gilette tivera
intenção de machucar, tivera má intenção, mas, mesmo assim, a suspeita do pai de que já
não tinha mais medo da coruja velha provavelmente estava mais certa do que errada. Além
disso ia conseguir o que pretendia, por isso nenhuma M-E-R-D-A que a mãe dissesse ia
fazer diferença alguma. Ia ficar em casa com papai, não ia ter que aturar a velha Estragaprazeres,
e essas coisas boas iam acontecer porque...
— Porque ele me defende — murmurou.
Isso era o que interessava. O pai a defendia e a mãe a atacava.
Jessie observou a estrela vespertina piscando fraquinha no céu poente e de súbito
percebeu que estivera no deck escutando o pai e a mãe contornarem o problema do eclipse
— e o dela — durante quase quarenta e cinco minutos. Descobriu uma realidade pequena
mas interessante naquela noite: o tempo corre mais depressa quando se bisbilhota uma
conversa em que o assunto é a gente.
Sem pensar, ergueu a mão e fechou-a para formar um canudo, espiando ao mesmo
tempo a estrela e recitando o versinho tradicional: quero querer, quero poder. Seu desejo, já
em vias de ser concedido, era que a deixassem ficar em casa no dia seguinte com papai.
Ficar com ele de qualquer maneira. Duas pessoas que sabiam defender uma a outra,
sentadas no deck, saboreando edipse-búrgueres à deux... como um velho casal.
Quanto a Dick Sleefort, ele se desculpou comigo depois, Tom. Não me lembro se
lhe contei ou nã...
Contou, mas não me lembro de Sleefort jamais ter se desculpado comigo.
Provavelmente teve medo de que você quebrasse a cara dele, ou pelo menos
tentasse, falando de novo naquele tom de voz que Jessie, achava tão curioso — parecia uma
mistura contrafeita de felicidade, bom humor e raiva. Jessie ficou imaginando um instante se
era possível alguém falar assim e ser inteiramente normal, e em seguida abafou o
pensamento rápida e completamente. E tem mais uma com que quero dizer sobre Adrienne
Gilette antes de encerrarmos esse assunto...
Esteja à vontade.
Ela me contou — em 1959, ou seja, dois verões depois — que entrou na menopausa
naquele ano. Nunca mencionou o nome de Jessie e o incidente do biscoito, mas acho que
estava tentando se desculpar.
Ah. Era a exclamação mais fria, mais advocaticia do pai. "Ah!" E uma das duas
senhoras pensou em transmitir essa informação à Jessie... e lhe explicar o que significava?
Silêncio de parte da mãe. Jessie que tinha apenas uma vaguíssima idéia do que era
menopausa, baixou os olhos e viu que mais uma vez apertara o livro com força suficiente
para dobrá-lo e mais uma vez procurou descontrair as mãos.
Ou se desculparem? Seu tom era gentil... acariciante... letal.
Pare de me interrogar como se eu fosse uma testemunha! Sally explodiu depois de
mais um longo silêncio de reflexão. Você está em casa e não numa câmara da Suprema
Corte, caso não tenha reparado!
Foi você que puxou o assunto, e não eu. ele disse. Apenas perguntei...
Ah. me dá um cansaço tão grande esse seu jeito de torcer tudo que falo. disse Sally.
Jessie percebeu pelo tom de voz que a mãe estava chorando ou prestes a chorar. Na sua
lembrança era a primeira vez que o som das lágrimas da mãe não despertara solidariedade
em seu coração, nem vontade de correr para consolá-la (provavelmente se desmanchando
em lágrimas também). Ao invés sentiu uma estranha e dura satisfação.
Sally, você se aborreceu. Por que não...
Que grande descoberta! As discussões com o meu marido têm o condão de provocar
essa reação, não é curioso? Não é a coisa mais estranha que você já ouviu? E sabe qual é a
causa da nossa discussão? Vou lhe dar uma dica. Tom — não é Adrienne Gilette. não é Dick
Sleefort e não é o eclipse de amanhã. Nós estamos discutindo por causa de Jessie, por causa
de nossa filha, e que novidade há nisso?
Ela ria por entre as lágrimas. Ouviu-se um sibilo seco quando riscou um fósforo
para acender o cigarro.
Não dizem que é a roda que range que sempre recebe a graxa? É bem a nossa Jessie,
não é? A roda que range. Nunca está satisfeita com o que se faz até ter a chance de dar o
toque final. Nunca está satisfeita com os planos dos outros. Nunca é capaz de deixar as
coisas como estão.
Jessie ficou perplexa ao perceber algo muito próximo do ódio na voz da mãe.
Sally...
Não importa. Tom. Ela quer ficar aqui com você? Ótimo. De qualquer maneira não
seria um prazer levá-la: só ia mesmo puxar briga com a irmã e reclamar de ter de ficar de
olho no Will. Em outras palavras, só iria ranger.
Sally. Jessie quase nunca reclama, e é muito boa para...
Ah. você não enxerga! Sally Mahout exclamou, e o despeito em sua voz fez Jessie
se encolher na cadeira, juro por Deus, às vezes você se comporta como se ela fosse sua
namoradinha e... não sua filha!
Desta vez o longo silêncio foi do pai. e quando ele falou, a voz saiu suave e fria. É
nojento, mesquinho e injusto dizer uma coisa dessas, retrucou finalmente.
Jessie, sentada no deck. contemplava a estrela vespertina e sentia o desânimo se
aprofundar e se transformar em horror. Sentiu um impulso repentino de fechar a mão e fixar
de novo a estrela — desta vez para desejar o contrário de tudo. a começar pelo pedido ao pai
que desse um jeito de poder ficar com ele em Sunset Trails no dia seguinte.
Então ouviu a cadeira da mãe sendo arrastada para trás. Desculpe, disse Sally, e
embora ainda tivesse a voz zangada, Jessie achou que agora parecia um pouquinho receosa,
também. Fique com ela amanhã, se é o que você quer. Ótimo! É sua.
Então ouviu o som dos seus saltos, batendo rapidamente em retirada, e um instante
depois o clique do Zippo do pai acendendo um cigarro.
No deck. Jessie sentiu lágrimas quentes saltarem dos seus olhos — lágrimas de
vergonha, mágoa, e alívio de que a discussão tivesse acabado antes de ficar muito pior...
porque ela e Maddy não já tinham notado que as discussões dos pais ultimamente estavam
ficando mais altas e acaloradas? Que a frieza que se formava em seguida entre os dois
custava mais a reaquecer? Seria possível que eles...
Não, interrompeu-se antes que o pensamento se completasse. Não, não é. Não é
nem um pouco possível por isso cale a boca.
Talvez uma mudança de cenário produzisse uma mudança de pensamento. Jessie se
levantou, desceu correndo a escada do deck e. em seguida, tomou o caminho da beira do
lago. Sentou-se ali, atirando pedrinhas na água, até que o pai saiu para procurá-la, meia hora
depois.
— Eclipse-búrgueres para dois amanhã no deck — anunciou e beijou-a no pescoço.
Barbeara-se e o queixo estava liso, mas aquele arrepiozinho delicioso subiu pelas costas de
Jessie do mesmo jeito. — Está tudo arranjado.
— Ela ficou aborrecida?
— Nadinha — disse o pai animado. — Disse que tanto fazia para ela. porque você
já completou todas as tarefas da semana e...
Ela esquecera a intuição anterior de que o pai sabia muito mais a respeito da
acústica da sala de estar/jantar do que jamais deixara perceber, e a generosidade de sua
mentira comoveu-a tão profundamente que quase caiu no choro. Virou-se para ele, abraçouo
pelo pescoço e cobriu-lhe o rosto e os lábios com beijinhos ardentes. A reação inicial do
pai foi de surpresa. Suas mãos viraram para trás e, por um instante, empalmou os seiozinhos
minúsculos da filha. Aquela sensação de arrepio perpassou o corpo de Jessie outra vez, mas
muito mais forte desta vez — quase tão forte quanto uma dor, um choque — e acompanhoua,
como um estranho déjà vu, aquela sensação recorrente das estranhas contradições nos
adultos: um mundo em que se podia encomendar bolo de carne com geléia ou ovos fritos em
suco de limão sempre que se quisesse... e onde havia gente que realmente fazia isso. Então
ele deslizou as mãos pelas costas da filha e firmando-as nos ombros da menina, apertou-a
carinhosamente contra o peito, e se as mãos estiveram onde não deviam por mais tempo do
que deviam, ela mal notou.
Amo você, papai.
Amo você também, Bobrinha. Muito, muito, muito.
CAPÍTULO XVI
O dia do eclipse amanheceu quente e pegajoso mas relativamente claro —
aparentemente os avisos da meteorologia de que nuvens baixas poderiam impedir a visão do
fenômeno seriam infundados, pelo menos no Maine.
Sally, Maddy e Will saíram para tomar o ônibus dos Adoradores do Sol de Dark
Score por volta das dez (Sally deu um beijinho seco e silencioso na bochecha de Jessie antes
de sair, e Jessie retribuiu na mesma moeda), deixando Tom Mahout com a menina que a
mulher chamara de "roda que range" na noite anterior.
Jessie trocou o short e a camiseta do acampamento Ossippee pelo novo vestido de
verão, o que era bonito (isto é, se a pessoa não se incomodava com listras vermelhas e
amarelas que chegavam a berrar) mas demasiado justo. Pôs um dedinho do perfume de
Maddy, Meu Pecado, um pouco do desodorante da mãe, e reavivou os lábios com o batom
Delícia de Hortelã. E embora não fosse pessoa de se demorar diante do espelho,
preocupando-se com a aparência (esse era o termo que a mãe usava, como em "Maddy, pára
de se preocupar com sua aparência e sai já daí"), levou tempo para prender os cabelos para
cima porque o pai certa vez elogiara aquele penteado
Quando pôs o último grampo no lugar, esticou a mão para o interruptor do banheiro
e parou. A garota que a mirava do espelho não parecia em nada uma menina, mas uma
adolescente. Não era o jeito com que o vestido acentuava os calombinhos que só virariam
seios dentro de mais um ou dois anos, não era o batom, e não eram os cabelos, presos num
coque desajeitado mas curiosamente atraente; nem todas essas coisas juntas, uma soma
maior do que as parcelas porque... o quê? Não sabia. Alguma coisa no jeito dos cabelos
levantados acentuava o feitio das maçãs do rosto, talvez. Ou a curva do pescoço descoberto,
muito mais sexy do que as "mordidas de mosquito" no peito do seu corpo informe de
moleca. Ou talvez fosse apenas a expressão dos olhos — um brilho que estivera oculto até
agora ou nunca estivera presente.
Fosse o que fosse, essa alguma coisa a fez deter-se por um instante, contemplando
sua imagem, e de repente ouviu a mãe dizendo: Juro por Deus, mas às vezes você se
comporta como se ela fosse sua namoradinha, e não sua filha!
Jessie mordeu os lábios pintados, enrugou a testa um pouquinho, lembrando-se da
noite anterior — o arrepio que lhe percorrera o corpo quando ele a acariciou, o toque das
mãos dele nos seus seios.
Sentiu aquele arrepio querer se repetir, mas não deixou que isso acontecesse. Não
fazia sentido se arrepiar por coisas idiotas que não conseguia entender. Nem pensar nelas.
Um bom conselho, pensou, e desligou a luz do banheiro.
Percebeu que sua excitação crescia à medida que depois do meio-dia a tarde
avançava mais rápido para a hora do eclipse. Sintonizou o rádio portátil numa estação de
rock de North Conway. Sua mãe odiava aquela estação, que depois de trinta minutos de Del
Shannon e Dee Dee Sharp e Gary "U.S." Bonds, obrigava quem a tivesse sintonizado (em
geral Jessie ou Maddy, mas, às vezes, Will) a mudar para outra que irradiava música
clássica do alto do monte Washington, mas seu pai parecia estar gostando da música hoje,
estalava os dedos e cantarolava. Uma vez, durante a versão dos Duprees de "Você me
pertence", ele enlaçou Jessie por um instante e dançaram pelo deck. Jessie acendeu a
churrasqueira às três e meia, uma hora antes do início do eclipse, e foi perguntar ao pai se
ele queria dois hambúrgueres ou só um.
Encontrou-o do lado sul da casa, embaixo do deck onde ela estivera. Usava apenas
o calção de algodão de sua universidade (com os dizeres Yale Phys Ed estampados numa
perna) e uma luva de pegar panelas. Amarrara um lenço na testa para o suor não escorrer
para os olhos. Estava agachado ao pé de uma fogueirinha de turfa. A combinação do calção
com o lenço lhe emprestava um curioso, mas simpático ar de juventude; Jessie pôde ver,
pela primeira vez na vida, o homem por quem sua mãe se apaixonara no último verão de
universidade.
Havia diversos quadrados de vidro — painéis despregados cuidadosamente da
massa esfarinhada de lima velha janela de galpão — empilhados ao lado dele. O pai
segurava um dos vidros na fumaça da fogueirinha, usando pinças de churrasco para virá-lo
de um lado e outro como se fosse uma iguaria exótica. Jessie caiu na gargalhada — achou
graça principalmente na luva — e ele se virou, rindo também. O pensamento de que aquele
ângulo permitia ao pai olhar debaixo de seu vestido lhe passou pela cabeça, mas
fugazmente. Afinal era o pai dela, e não um gatinho como o Duane Corson lá da marina.
Que é que você está fazendo? ela caçoou. Pensei que íamos comer hambúrgueres
para o almoço, e não sanduíches de vidro!
Óculos de eclipse, e não sanduíches, Bobrinha, ele respondeu. Se você juntar dois
ou três, poderá observar o eclipse até ficar tudo escuro sem prejudicar os olhos. Li que é
preciso ter muito cuidado; pode-se queimar as retinas e só descobrir isso depois.
Hum! Jessie exclamou sentindo um calafrio. A idéia de se queimar sem saber
pareceu-lhe incrivelmente grosseira. Quanto tempo demora para o eclipse total, papai?
Pouco tempo. Mais ou menos um minuto.
Bem, faça uns óculos extras — não quero queimar os olhos. Um eclipse-búrguer ou
dois?
Um chega. Se for grande.
Tudo bem.
Virou-se para ir embora.
Bobrinha?
Olhou para o pai, um homem baixo e robusto com gotinhas de suor porejando na
testa, um homem com poucos pêlos no corpo como aquele com quem ela mais tarde se
casaria, exceto pelos óculos de lentes grossas de Gerald e aquela barriga, e por um momento
o fato de que esse homem era seu pai parecia o dado menos importante a seu respeito.
Impressionou-se novamente com sua boa aparência e o ar de juventude. Enquanto
observava, uma gota de suor rolou lentamente pelo tronco do pai, passou à leste do umbigo
e produziu um pontinho escuro na cintura elástica do calção. Olhou para o rosto do pai e se
sentiu inesperadamente, estranhamente consciente do olhar com que ele a fitava. Mesmo
apertados para se protegerem da fumaça, aqueles olhos eram absolutamente lindos, o cinza
luminoso da alvorada nas águas de inverno. Jessie descobriu que precisava engolir antes de
responder; tinha a garganta seca. Talvez a fumaça acre da fogueirinha de turfa. Talvez não.
Que é, papai?
Durante um longo intervalo ele não respondeu, continuou simplesmente a fitá-la, o
suor a escorrer devagarinho pela testa, as bochechas e a barriga, e Jessie sentiu um repentino
temor. Então ele sorriu outra vez e ficou tudo bem.
Você está muito engraçadinha hoje, Bobrinha. Na verdade, se não parecer muito
idiota, você está linda.
Muito obrigada — não parece nada idiota.
O comentário do pai lhe agradou tanto (especialmente depois das palavras zangadas
e opinativas da mãe na noite anterior, ou talvez por causa delas) que um nó apertou sua
garganta e, por um momento, sentiu vontade de chorar. Ao invés, sorriu, esboçou uma
reverência para o pai e, em seguida, correu de volta para a churrasqueira com o coração
rufando como um tambor. Uma das coisas que a mãe dissera, a mais horrível, quis subir à
tona (Você se comporta como se ela fosse sua) e Jessie esmagou a lembrança com a mesma
crueldade com que teria esmagado uma vespa agressiva. Contudo, sentiu-se assaltada por
uma daquelas misturas doidas de emoção adulta — sorvete e molho de carne, galinha assada
recheada de balas azedinhas — de que parecia não conseguir escapar inteiramente.
Tampouco tinha certeza de que queria escapar. Mentalmente continuava a ver aquela gota
singela de suor escorrendo preguiçosamente pelo peito dele, para ser absorvida pelo algodão
macio do calção, deixando aquele pontinho escuro. Era principalmente aquela imagem que
parecia ser a fonte primária do seu torvelinho emocional. A cena se repetia, repetia, repetia.
Que maluquice.
E daí? Era um dia maluco, só isso. Até o sol ia fazer uma coisa meio maluca. Por
que não parar por aí?
Isso, a voz que um dia se fantasiaria de Ruth Neary concordou. Por que não?
Os eclipse-búrgueres, guarnecidos de cogumelos e cebolas rosadas sauté, ficaram
do outro mundo. Com toda certeza eclipsam os últimos que sua mãe preparou, comentou o
pai, e Jessie riu incoerentemente. Comeram no deck diante do escritório de Tom Mahout,
equilibrando as bandejas de metal no colo. Uma mesa redonda de varanda, apinhada de
temperos, pratos de papel, e acessórios para observar eclipses, separava os dois. O
equipamento de observação incluía óculos escuros Polaroid, duas caixas refletoras de
papelão feitas em casa, iguais às que o resto da família levara para o monte Washington,
vidros esfumaçados, e uma pilha de pega-panelas trazidos da gaveta junto ao fogão da
cozinha. Os vidros esfumaçados já estavam frios, Tom informou à filha, mas não cortara os
vidros com muita competência, e receava que talvez houvesse lascas e bicos nas bordas de
alguns.
A última coisa que preciso, disse o pai, é sua mãe chegar em casa e encontrar um
bilhete avisando que levei você para o pronto-socorro de Oxford Hills para os médicos
costurarem seus dedos no lugar.
Mamãe não estava lá muito entusiasmada com essa idéia, estava?, Jessie perguntou.
O pai lhe deu um breve abraço. Não, respondeu, mas eu estava. Eu estava
entusiasmado por nós dois. E lhe deu um sorriso tão radioso que ela não pôde senão
retribuir.F oram as caixas refletoras que eles usaram primeiro quando se aproximou a hora do
eclipse — quatro horas e vinte e nove minutos, hora do leste americano. O sol no centro da
caixa refletora de Jessie não era maior que uma tampinha de refrigerante, mas brilhava com
tal intensidade que ela apalpou a mesa à procura dos óculos escuros e os colocou.
De acordo com o seu relógio, o eclipse já devia ter começado — ele indicava quatro
horas e trinta.
Acho que o meu relógio está adiantado, disse nervosa. Ou então tem um grupo de
astrônomos no mundo inteiro com cara de tacho.
Olhe outra vez, disse Tom, sorrindo.
Quando voltou a olhar a caixa refletora, viu que o círculo brilhante deixara de ser
um círculo perfeita, uma nesga escura surgia agora do lado direito. Um calafrio desceu-lhe
pelo pescoço. Tom, que estivera a observar a filha ao invés da imagem em sua caixa
refletora, percebeu.
Bobrinha? Tudo bem?
Tá, mas... apavora um pouquinho, não é?
É. concordou o pai. Jessie espiou-o e sentiu um profundo alívio ao constatar que o
pai falava serio. Parecia quase tão apavorado quanto ela, e isso só melhorava sua sedutora
juventude. A idéia de que o pai pudesse sentir medo de alguma coisa jamais lhe passara pela
cabeça. Quer se sentar no meu colo, Jess?
Posso?
Claro.
Ela deslizou para o seu colo, ainda segurando a caixa refletora. Ajeitou-se para se
recostar no pai com conforto, achando gostoso o cheiro de sua pele ligeiramente suada e
quente de sol com aroma longínquo de loção de barba — Redwood, achava que era o nome.
O vestido de verão subiu por suas coxas (não poderia fazer outra coisa, curto como era), e
ela quase não sentiu quando o pai pôs a mão em sua perna. Afinal era seu pai — seu
Paizinho — não era o Duane Corson da marina, nem o Richie Ashlocke, o menino que
provocava gemidos e risadinhas nela e nas colegas de escola.
Os minutos escoaram lentamente. De vez em quando ela se remexia, procurando
uma posição mais confortável — o colo do pai parecia estranhamente cheio de ângulos esta
tarde — e num dado momento provavelmente cochilou uns três ou quatro minutos. Talvez
até mais, porque a brisa que passou pelo deck e a acordou pareceu surpreendentemente fria
nos seus braços suados, e a tarde mudara um pouco; as cores que pareciam vivas, antes de se
recostar no ombro do pai e fechar os olhos, tinham empalidecido, e a luminosidade geral
enfraquecera. Era como se o dia tivesse passado por um coador de pano, pensou. Espiou sua
caixa refletora e ficou surpresa — na realidade, quase aturdida — ao ver que agora só havia
metade do sol. Consultou o relógio e viu que eram cinco e nove.
Esta acontecendo, papai! O sol está desaparecendo!
Está. ele concordou. Sua voz soava meio estranha — cautelosa e pensativa na
superfície, mas meio indistinta no fundo. Bem no horário.
Ela reparou, sem prestar muita atenção, que a mão do pai subira por sua coxa —
aliás, subira bastante — enquanto estivera cochilando.
Já posso olhar pelos vidros esfumaçados, pai?
Ainda não, ele respondeu, e a mão avançou ainda mais pela coxa. Estava quente e
suada mas não era desagradável. Ela cobriu a mão do pai com a sua, virou-se para ele, e
sorriu.
É excitante, não é?
É. ele concordou no mesmo tom indistinto de antes. É, Bobrinha. Na realidade, bem
mais do que eu imaginei que seria.
Passou-se o tempo. Na caixa refletora, a lua continuava a mordiscar o sol as cinco e
vinte e cinco, depois às cinco e trinta. Quase toda a atenção de Jessie agora focalizava a
imagem que ia diminuindo na caixa refletora, mas alguma parte dela percebia mais uma vez.
vagamente, a dureza estranha do colo do pai nesta tarde. Alguma coisa comprimia o seu
traseiro. Não era doloroso, mas era insistente. Dava a Jessie a impressão de ser um cabo de
ferramenta — uma chave de fenda, ou talvez o martelinho da mãe.
Ela se remexeu de novo, querendo encontrar um lugar mais confortável no colo, e
Tom aspirou uma golfada rápida e sibilante de ar mordendo o lábio inferior.
Papai? Estou muito pesada? Machuquei você ?
Não. Você está ótima.
Ela consultou o relógio. Cinco e trinta e sete agora: faltavam quatro minutos para a
escuridão total, talvez um pouquinho mais se o seu relógio estivesse adiantado.
Já posso espiar o eclipse pelo vidro?
Ainda não, Bobrinha. Daqui a pouco.
Ouvia Debbie Reynolds cantando alguma coisa da Idade das Trevas, a Idade Média,
cortesia de uma estação de NorthConway. "A velha coruja piadeira, pia pia para a
pombinha... Tammy... Tammy, Tammy está apaixonada." A música terminou com um
turbilhão adocicado de violinos e, em seguida, o disc-jockey anunciou que estava
escurecendo na cidade dos esquiadores dos Estados Unidos (essa era a maneira com que os
disc-jockeys quase sempre se referiam a North Conway), mas que o céu se encontrava
nublado do lado de New Hampshire impedindo a visão do eclipse. O disc-jockey informava
que havia muita gente desapontada usando óculos de sol do lado oposto da rua. no parque da
cidade.
Nós não estamos desapontados, estamos, papai?
Nem um pouquinho, ele concordou, e mudou de posição sob a menina de novo.
Acho que somos praticamente as pessoas mais felizes do universo.
Jessie espiou a caixa refletora de novo, esquecendo tudo exceto a minúscula
imagem que agora podia ver sem apertar os olhos para protegê-los apesar dos óculos
Polaroid muito escuros.
A lua crescente do lado direito que sinalizara o início do eclipse agora se
transformara numa fulgurante lua solar do lado esquerdo. Era tão brilhante que quase
parecia flutuar sobre a superfície da caixa refletora.
Olhe para o lago. Jessie!
Ela obedeceu e por trás dos óculos seus olhos se arregalaram. Na embevecida
contemplação da imagem que encolhia na caixa refletora, perdera o que acontecia à sua
volta. O colorido pastel desbotara ate adquirir um tom de aquarela antiga. Um crepúsculo
prematuro, ao mesmo tempo arrebatador e aterrorizante para uma menina de dez anos,
atravessava o lago Dark Score. Em algum ponto da mata, uma velha coruja piou de
mansinho, e Jessie sentiu um tremor súbito e violento perpassar seu corpo. No rádio,
terminou o comercial de uma transmissão para automóveis e Marvin Gaye começou a
cantar: "Ah, escuta minha gente, principalmente vocês brotinhos, é direito deixarem você
sozinho quando a pessoa que você ama nunca está em casa?"
A coruja piou outra vez na mata, para os lados do norte. Era um som apavorante.
Jessie percebeu de repente — um som muito apavorante. Desta vez quando estremeceu,
Tom abraçou-a. Jessie recostou-se grata contra seu peito.
Dá medo, papai.
Não vai demorar, queridinha, e você provavelmente nunca verá outro. Procure não
ter medo para poder apreciar.
Ela olhou a caixa refletora. Não havia nada lá.
"Amo você demais, meus amigos às vezes dizem..."
Pai?Papai?Desapareceu. Posso...
Pode. Agora pode. Mas quando eu disser para você parar, você tem que parar. Sem
discussões. entendeu?
Ela entendeu muito bem. Achava a idéia de queimar as retinas — queimaduras que
a gente nem sabia que estavam ocorrendo até ser tarde demais para tomar uma providência
— muito mais apavorante do que uma coruja piadeira na mata. Mas nem pensar que não ia
ao menos dar uma espiadinha. agora que a coisa estava ali, acontecendo. Nem pensar.
"Mas eu acredito", Marvin cantava com o fervor de um crente. "Acredito que uma
mulher deve ser amada assim..."
Tom Mahout entregou a Jessie uma das luvas pega-panelas e três pedaços de vidro
esfumaçado empilhados. Respirava depressa, e Jessie de repente sentiu pena dele. O eclipse
provavelmente o amedrontara também, mas, é claro, ele era um adulto e não podia deixar
transparecer. De muitas maneiras os adultos eram uns pobres coitados. Pensou em se virar
para consolá-lo, então concluiu que provavelmente ia fazer o pai se sentir ainda pior. Ia
fazê-lo se sentir idiota. Jessie sabia ser solidária. Sentir-se idiota era o que mais detestava.
Ao invés, segurou os pedaços de vidro na frente do rosto, e lentamente tirou os olhos da
caixa refletora para espiar pelos vidros.
"Agora vocês brotinhos deviam concordar" — Marvin cantava — "não é assim que
devia ser. Quero ouvir vocês gritarem! Quero ouvir vocês gritarem SIM SIM!"
O que Jessie viu quando olhou pelo visor improvisado...
CAPÍTULO XVII
Nesse ponto a Jessie algemada à cama na casa de verão à margem norte do lago
Kashwakamak, a Jessie que já não tinha dez mas trinta e nove anos, e enviuvara há quase
doze horas, repentinamente percebeu duas coisas: que estava dormindo, mas que não estava
sonhando e, sim revivendo o dia do eclipse. Continuou a dormir enquanto pensara que era
sonho, apenas um sonho, como aquele do aniversário de Will, em que a maioria dos
convidados já havia morrido ou era gente que ela não via há anos. O novo filme mental
possuía a qualidade surreal-mas-sensível do anterior, mas essa régua era pouco confiável
porque aquele dia inteiro fora surreal e onírico. Primeiro o eclipse, depois o pai...
Chega, Jessie decidiu. Chega, é aqui que eu vou saltar fora.
Fez um esforço convulso para despertar do sonho, ou lembrança, ou o que fosse.
Seu esforço mental traduziu-se num tremor súbito do corpo, e as correntes das algemas
produziram um tilintar abafado quando ela se contorceu violentamente de um lado para o
outro. Quase conseguiu; por um instante quase despertou. E poderia ter feito isso, teria feito
isso, se não mudasse de idéia no último instante.
O que a impediu de despertar foi um terror inarticulado mas avassalador de um
vulto — um vulto à espreita que pudesse fazer o acontecido aquele dia no deck parecer
insignificante... isto é, caso tivesse de enfrentá-lo.
Mas talvez eu não tenha. Ainda não.
E talvez o desejo de se esconder no sono não fosse tudo — talvez houvesse mais
alguma coisa. Uma parte de Jessie pretendera tirar o caso a limpo de uma vez por todas,
custasse o que custasse.
Tornou a se recostar no travesseiro, os olhos fechados, os braços estendidos para o
alto em pose sacrificial, o rosto pálido e contraído de tensão.
"Principalmente vocês garotas" — murmurou na escuridão. "Principalmente todas
vocês."
Afundou no travesseiro, e o dia do eclipse reclamou-a novamente.
CAPÍTULO XVIII
O que Jessie viu através dos óculos escuros e do filtro de luz caseiro foi tão estranho
e assombroso que em princípio sua mente se recusou a compreender. Parecia haver no céu
da tarde um enorme ponto negro, como o sinalzão que a artista Anne Francis usava no
cantinho inferior da boca.
"Se falo durante o sonho... é porque não vi o meu amor a semana inteira..."
Foi nessa altura que ela sentiu a mão do pai tocar o mamilo do seu seio direito.
Apertou-o carinhosamente um instante, passou para o esquerdo, e voltou ao direito, como se
tivesse comparando o tamanho dos dois. Ele resfolegava agora; ao seu ouvido a respiração
lembrava um trem a vapor, e ela estava outra vez consciente daquela coisa dura a pressionar
o seu traseiro.
"Será que consigo uma testemunha?" Marvim Gaye, aquele leiloeiro de almas,
gritava. "Testemunha, testemunha?"
Papai? Você está se sentindo bem?
Ela sentiu outra vez um ligeiro formigamento nos seios — prazer e dor, peru
glaçado ao forno com molho de chocolate — mas desta vez sentiu também apreensão e uma
certa perplexidade.
Estou, ele respondeu, mas sua voz parecia a de um estranho. Estou ótimo, mas não
olhe para os lados. A mão que estivera em seu seio trocou de lado; a que estava na coxa
subiu mais um pouco, empurrando com o movimento a bainha do vestido para cima.
Papai, que é que você está fazendo?
A pergunta não denotava medo; mas sobretudo curiosidade. Ainda assim, havia uma
pontinha de medo, algo como um fiozinho de linha vermelha. No alto, uma fornalha
sobrenatural de luz brilhava com intensidade contornando o círculo negro chapado no céu
anil.
Você me ama, Bobrinha?
Claro, mas...
Então não se preocupe com nada, eu nunca a machucaria. Quero ser bonzinho com
você. Observe o eclipse e me deixe ser bonzinho com você.
Não tenho muita certeza se quero, papai. A sensação de aturdimento se
aprofundava, o fio vermelho engrossava. Estou com medo de queimar os olhos. De queimar
as como-se-chamam?
"Mas acredito" — Marvin cantava — "que a mulher é a melhor amiga do homem...
e vou ficar do lado dela... até o fim."
Não se preocupe. Ele ofegava agora. Você tem mais vinte segundos. No mínimo.
Portanto não se preocupe. E não olhe para os lados.
Ela ouviu um estalido de um elástico que encolhia, mas era o dele e, não, o dela;
suas calcinhas continuavam onde deviam estar, embora ela soubesse que se olhasse para
baixo poderia vê-las — de tanto que ele subira seu vestido.
Você me ama?, ele repetiu a pergunta, e embora ela fosse assaltada por uma terrível
premonição de que a resposta certa a essa pergunta se tornara a errada, tinha apenas dez
anos e era a única resposta que sabia dar. Respondeu-lhe que sim.
"Testemunha, testemunha" — Marvin suplicava, terminando a canção.
O pai se ajeitou, comprimindo com mais firmeza a coisa dura contra o seu traseiro.
Jessie percebeu de repente o que era — seguramente não era o cabo de uma chave de fenda
ou de um martelinho da caixa de ferramentas na despensa — e o alarme que sentiu igualouse
a um momentâneo prazer vingativo que tinha mais relação com a mãe do que com o pai.
Isso é o que você ganha por não me defender, pensou, observando o círculo negro
no céu através das camadas de vidro esfumaçado e, em seguida: acho que é o que nós duas
ganhamos.
Sua vista subitamente turvou e o prazer desapareceu. Só restou a crescente sensação
de alarme. Puxa, pensou. São as minhas retinas... devem ser as minhas retinas começando a
queimar.A mão em suas coxas agora deslizou por entre as pernas até a virilha e enconchouse
firmemente ali. Ele não devia estar fazendo aquilo, pensou. Era o lugar errado para sua
mão estar. A não ser que...
Ele está enfiando o dedo no seu rabo, dentro dela uma voz inesperada falou.
Nos últimos anos aquela voz, que ela veio a considerar a da Esposa Perfeita,
freqüentemente a exasperava; era por vezes a voz da cautela, muitas, a voz da culpa, e quase
sempre a voz da negação. Coisas desagradáveis, coisas que lhe diminuíam, coisas
dolorosas... com o tempo desapareciam se você as desprezasse com bastante fervor, essa era
a opinião da Esposa Perfeita. Era uma voz que insistia obstinadamente que até o mal mais
óbvio era na realidade um bem, parte de um plano de bondade demasiado grande e
complexo para ser compreendido por meros mortais. Houve vezes (principalmente entre
seus onze e doze anos, quando batizou aquela voz de Senhorita Petrie, nome de uma
professora da segunda série) em que chegava a levar as mãos aos ouvidos para tentar abafar
aquela voz sensata e desagradável — inutilmente, é claro, porque a voz vinha do lado dos
ouvidos que ela não poderia tapar — mas naquele momento de desânimo emergente,
enquanto o eclipse escurecia os céus do Maine ocidental e refletia estrelas gravadas nas
profundezas do lago Dark Score, e ela percebeu (de certo modo) o que a mão entre suas
pernas pretendia fazer, ouviu apenas a bondade e o senso prático, e se apegou ao que a voz
lhe dizia com um alívio pânico.
Ele está apenas lhe cutucando, nada mais, Jessie.
Você tem certeza? gritou em resposta.
Tenho — replicou a voz com firmeza — com o passar dos anos Jessie descobriria
que aquela voz tinha quase sempre certeza, estivesse certa ou errada. Ele está só brincando.
Não sabe que está lhe assustando, portanto não abra a boca para estragar uma bela tarde.
Não há mal nenhum.
Não acredite nisso, boneca! responde a outra voz — a durona. Às vezes ele se
comporta como se você fosse uma namoradinha qualquer e não a filha dele, e é isso que está
fazendo neste exato momento! Ele não está enfiando o dedo no rabo, Jessie! Ele está lhe
fodendo!
Jessie tinha quase certeza de que era mentira, quase certeza de que aquela palavra
estranha e proibida que se usava no recreio da escola se referia a um ato que não podia ser
executado apenas com a mão, mas as dúvidas permaneceram. Com súbito desalento
lembrou-se de Karen Aucoin lhe dizendo que jamais deixasse um garoto meter a língua em
sua boca, porque poderia gerar um bebê na garganta. Karen disse que às vezes a gravidez
acontecia assim, e a mulher que precisava vomitar o bebê para expeli-lo quase sempre
morria e o bebê também. Não vou deixar nenhum garoto me dar beijo de língua nunca,
concluiu Karen. Podia até deixar alguém me tocar na parte de cima, se eu realmente
gostasse dele, mas não vou jamais querer um bebê na garganta. Como é que eu ia COMER?
À época, Jessie achou aquele conceito de gravidez tão doido que chegava a ser
engraçado — e quem a não ser Karen Aucoin, que se preocupava se a luz permanecia ou
não acesa quando se fechava a porta da geladeira poderia inventar uma coisa dessas? Agora,
no entanto, a idéia refulgia com a luz de uma lógica singular. Vamos supor — é só uma
suposição— que fosse verdade? Se se podia engravidar com a língua de um menino, se isso
podia acontecer, então...
E a coisa continuava a pressionar o seu traseiro. Aquela coisa que não era o cabo de
uma chave de fenda nem o martelinho de sua mãe.
Jessie tentou fechar as pernas, um gesto que era ambíguo para ela mas
aparentemente não o era para ele. Ele arfou — um som dolorido e apavorante — e seus
dedos pressionaram com mais força o volume sensível logo abaixo dos fundilhos de suas
calcinhas. Doeu um pouco. Ela se retesou contra ele e gemeu.
Ocorreu-lhe muito tempo depois que provavelmente o pai interpretara aquele som
como paixão, e provavelmente foi bom que tivesse pensado aquilo. Qualquer que fosse sua
interpretação, o gemido assinalou o clímax desse estranho interlúdio. Ele se arqueou
subitamente sob o corpo dela, empurrando-a suavemente para o alto. O movimento foi ao
mesmo tempo aterrorizante e estranhamente prazeroso... que o pai fosse tão forte, que a
levantasse para o alto. Por um instante quase entendeu a natureza dos elementos químicos
postos em ação ali, uma ação perigosa mas compulsiva, cujo controle estava ao alcance de
suas mãos — isto é, se ela quisesse controlá-los.
Não quero, pensou. Não quero me meter com isso. Seja o que for, é ruim, terrível,
assustador.
E a coisa dura que fazia pressão contra suas nádegas, a coisa que não era o cabo da
chave de fenda nem o martelinho da mãe, entrou em espasmo, e espalhou um líquido cujo
calor atravessou e molhou suas calcinhas.
É suor, a voz que um dia pertenceria à Esposa Perfeita disse prontamente. É isso.
Ele sentiu que você estava com medo dele, com medo de sentar no colo dele, e isso o deixou
nervoso. Você devia arrepender-se.
Suor, uma ova! a outra voz, a que um dia pertenceria a Ruth, retorquiu. Falou com
brandura, convicção e temor. Você sabe o que é, Jessie — é aquela coisa que você ouviu
Maddy e as outras garotas comentando naquela noite que Maddy deu a festinha do sono,
depois que elas acharam que você finalmente dormira. Cindy Lessard chamou a coisa de
esporro. Contou que era branco e que esguichava da coisa do cara como pasta de dente. É
isso que gera bebês e não beijo de língua.
Por um momento ela se equilibrou ali no alto da curva rígida do corpo do pai,
confusa, receosa e de certa forma excitada, escutando-o aspirar golfadas rascantes de ar
úmido. Então seus quadris e coxas lentamente se descontraíram e ele a desceu novamente.
Não olhe mais para o sol, Bobrinha, ele disse, e embora ainda arfasse, sua voz
praticamente voltara ao normal. A excitação assustadora desaparecera da voz e não havia
mais ambivalência nos sentimentos de Jessie; havia um alívio simples e profundo. O que
quer que tivesse acontecido — se é que acontecera — terminara.
Papai...
Não, não discuta. O seu tempo acabou.
Ele tirou com delicadeza a pilha de vidros esfumaçados de suas mãos. Ao mesmo
tempo beijou-a no pescoço, ainda mais gentilmente. Enquanto isso Jessie olhava
assombrada a estranha escuridão ir envolvendo o lago. Tinha uma vaga consciência de que a
coruja ainda piava, e que os grilos enganados pela escuridão tinham começado a cantar duas
ou três horas antes. Uma imagem persistente flutuou diante de seus olhos como uma
tatuagem negra e redonda contornada por uma auréola irregular de fogo verde e ela pensou:
Se eu olhasse para isso muito tempo, se queimasse as retinas, provavelmente teria que ficar
vendo essa imagem o resto da vida, como acontece quando alguém dispara um flash nos
olhos da gente.
Por que você não vai lá dentro e veste uns jeans, Bobrinha? Acho que afinal o
vestido de verão talvez não tenha sido uma idéia tão boa.
Falou num tom impessoal que fez parecer que o uso do vestido de verão fora idéia
dela (E mesmo que não tenha sido, você deveria ter tido mais juízo, a voz da Senhorita
Petrie falou na mesma hora), e inesperadamente uma nova idéia lhe ocorreu: E se ele
resolvesse contar a mamãe o que aconteceu? A possibilidade era tão terrível que Jessie
prorrompeu em lágrimas.
Sinto muito, papai, choramingou, atirando-se ao seu pescoço e comprimindo o rosto
no pescoço dele, sentindo o cheiro vago e fantasmático da sua loção pós-barba, colônia ou o
que fosse. Se fiz alguma coisa errada, sinto muito, muito mesmo.
De maneira nenhuma, ele retorquiu, mas ainda naquela voz impessoal, preocupada,
como se estivesse tentando decidir se deveria contar a Sally o que Jessie fizera, ou talvez
varrer o incidente para baixo do tapete. Você não fez nada errado, Bobrinha.
Você ainda me ama?, ela insistiu. Ocorreu a Jessie que era uma loucura fazer aquela
pergunta, uma loucura arriscar-se a receber uma resposta que poderia arrasá-la, mas tinha
que perguntar. Tinha.
Claro, ele respondeu imediatamente. Sua voz pareceu ganhar um pouquinho de
animação, suficiente para fazê-la compreender que estava dizendo a verdade (e ah, que
alívio era isso), mas ela ainda suspeitava que alguma coisa mudara, e tudo por causa de
alguma coisa que ela mal compreendia. Ela sabia que (era uma mão em seu traseiro, só que
uma variação) tivera alguma ligação com sexo, mas não fazia idéia até que ponto ou que
seriedade a coisa teria. Provavelmente não era o que as garotas na festinha do sono tinham
chamado de "ir até o fim" (exceto aquela Cindy estranhamente sabida; ela chamara isso de
"mergulho em águas profundas com um longo pau branco", um termo que parecera a Jessie
ao mesmo tempo horrível e hilariante), mas o fato de que ele não pusera a coisa dele na
coisa dela talvez não garantisse que estava a salvo de estar o que, mesmo em sua escola, as
garotas chamavam de grávida. O que Karen Aucoin lhe contara no ano anterior quando
regressavam da escola voltou à sua lembrança, e Jessie tentou afastá-la. Com certeza não era
verdade, e mesmo que fosse, ele não tinha metido a língua em sua boca.
Mentalmente ouviu a voz da mãe, alta e zangada: Não dizem que a roda que range é
a que sempre leva graxa?
Sentiu novamente o calor úmido nas calcinhas contra as nádegas. Continuava a se
espalhar. É, pensou. Acho que o ditado está certo. Acho que a roda que range realmente leva
graxa.
Papai...
Ele ergueu a mão, um gesto que muitas vezes fazia à mesa de jantar quando a mãe
ou Maddy (em geral a mãe) começavam a se esquentar por alguma coisa. Jessie não se
lembrava do pai jamais ter feito esse gesto para ela, e isso reforçou sua sensação de que
alguma coisa desandara barbaramente ali, e que talvez houvesse mudanças fundamentais e
inapeláveis em conseqüência de algum erro terrível (provavelmente por ter concordado em
usar o vestido de verão) que cometera. Essa idéia lhe provocou uma tristeza tão profunda
que teve a sensação de que dedos invisíveis remexiam brutalmente dentro dela, repuxando e
torcendo suas tripas.
Pelo canto do olho, reparou que o calção de ginástica do pai estava repuxado.
Alguma coisa espiava para fora, alguma coisa rosada, e podia garantir que não era o cabo de
uma chave de fenda.
Antes que pudesse desviar os olhos, Tom Mahout percebeu a direção do olhar da
filha e acertou rapidamente o calção, fazendo a coisa rosada desaparecer. Seu rosto se
contraiu numa momentânea expressão de desagrado, e Jessie se encolheu por dentro outra
vez. Ele a surpreendera olhando, e interpretara o olhar casual como uma curiosidade
inconveniente.
O que acabou de acontecer, ele começou, em seguida pigarreou. Precisamos
conversar sobre o que aconteceu, Bobrinha, mas não agora. Corra lá dentro e mude de
roupa, e aproveite para tomar um banho rápido. Ande depressa para não perder o fim do
eclipse.
Ela perdera todo o interesse pelo eclipse, embora jamais fosse confessar isso ao pai
nem em um milhão de anos. Ao invés, concordou, mas virou-se em seguida. Papai, eu estou
limpa?
Ele a olhou surpreso, inseguro, cauteloso — uma mistura que aumentou em Jessie a
sensação de que mãos raivosas remexiam-se dentro dela, amassando suas tripas... e notou
subitamente que ele se sentia tão mal quanto ela. Talvez pior. E num momento de clareza
intocado por outras vozes exceto a sua, refletiu: Devia se sentir mesmo! Putz, você é que
começou isso!
Está, respondeu o pai... mas seu tom não a convenceu de todo. Limpa como água de
chuva. Agora vá lá dentro e se arrume.
Está bem.
Ela tentou sorrir — fez muita força — e acabou conseguindo dar um sorrisinho. O
pai a olhou espantado por um momento, mas em seguida retribuiu o sorriso. Isso a aliviou
um pouco, e as mãos que amassavam por dentro temporariamente a largaram. Até chegar ao
grande quarto que dividia com Maddy no primeiro andar, porém, a sensação recomeçou. O
pior de tudo era o temor de que ele se sentisse obrigado a contar à mãe o que acontecera.
Que pensaria sua mãe?
É bem coisa da nossa Jessie, não é? A roda que range.
O quarto fora dividido ao meio por um varal como num acampamento para
meninas. Ela e Maddy tinham pendurado uns lençóis velhos na corda, em que fizeram
pinturas de cores vivas com os lápis de massa de Will. Colorir os lençóis e dividir o quarto
tinha sido uma grande diversão à época, mas agora lhe parecia boba e infantil, e a maneira
com que sua sombra avantajada dançava no lençol do meio na realidade assustava; parecia a
sombra de um monstro. Até mesmo o perfume fragrante de resina de pinheiros (que em
geral, apreciava) parecia pesado e pegajoso, como o spray que se usava para disfarçar um
fedor desagradável numa sala.
É bem a nossa Jessie, não é? Nunca está satisfeita com o que se faz até ter a chance
de dar o toque final. Nunca está satisfeita com os planos dos outros. Nunca é capaz de
deixar as coisas como estão.
Correu para o banheiro, querendo vencer a voz na corrida, mas percebendo
corretamente que não seria capaz. Acendeu a luz e despiu o vestido de verão pela cabeça
com um movimento rápido. Atirou-o no cesto de roupa suja, contente de poder se livrar
dele. Olhou-se no espelho, os olhos arregalados, e viu o rosto de uma menininha
emoldurado por um penteado de moça... um penteado que agora se desprendia dos grampos
em mechas, pompons e cachos. Era um corpo de menininha também — o peito liso e os
quadris estreitos — mas não continuaria assim por muito tempo. Já começara a mudar, e
com isso fizera alguma coisa ao pai que não deveria ter feito.
Nunca vou querer peitos nem quadris arredondados, pensou deprimida. Se fazem
acontecer essas coisas, quem vai querer?
O pensamento a fez reparar outra vez na umidade nos fundilhos das calcinhas.
Tirou-as — calcinhas de algodão da Sears, verdes quando novas, agora tão desbotadas que
mais pareciam cinzentas — e ergueu-as curiosa, as mãos esticando a cintura de elástico.
Havia alguma coisa nos fundilhos, sim, e não era suor. Nem lembrava nenhuma pasta de
dentes que tivesse visto. Parecia mais um detergente cinza-pérola para lavar pratos. Jessie
baixou a cabeça e cheirou-a com cautela. Tinha o leve odor que ela associava com o lago
depois de uma temporada de calor abafado, e com a água do poço, também. Uma vez
apanhara para o pai um copo de água com um cheiro que achou particularmente forte e
perguntou se ele o sentia.
O pai sacudira a cabeça. Não, respondeu animado, mas isso não significa que não
exista. Só significa que fumo demais. Acho que é o cheiro do lençol de água, Bobrinha. São
resíduos minerais, só isso. Meio malcheirosos, por isso sua mãe tem de gastar uma fortuna
em amaciantes para roupas, mas não vai lhe fazer mal. Juro por Deus.
Resíduos minerais, pensou agora, e deu outra cheirada. Não era capaz de dizer por
que aquele aroma fraco a fascinava, o fato é que fascinava. É o cheiro do lençol de água, só
isso. O cheiro de...
Então a voz mais confiante se manifestou. Na tarde do eclipse lembrara um pouco a
voz da mãe (primeiro porque a chamou de boneca, como Sally às vezes fazia quando se
irritava com Jessie porque a filha fugira de suas tarefas ou esquecera alguma
responsabilidade), mas Jessie tinha uma idéia de que era realmente a voz do seu eu adulto.
Se aquele zurro combativo a incomodava um pouco, era apenas porque, a rigor, ainda era
cedo para aquela voz. Mas mesmo assim presente. Estava ali e fazia o possível para juntar
os seus cacos. Achou o seu espalhafato curiosamente reconfortante.
E a coisa de que Cindy Lessard estava falando, é isso — é o esporro dele, boneca.
Suponho que deveria agradecer por ter ido parar nas suas calcinhas e, não, em outro lugar,
mas não fique inventando histórias da carochinha de que é o cheiro do lago, ou de resíduos
minerais no lençol de água, ou outra coisa qualquer.
Karen Aucoin é uma babaca, nunca houve uma mulher no mundo que tivesse
gerado um filho na garganta e você sabe disso, mas Cindy Lessard não é nenhuma babaca.
Acho que já viu a coisa, e agora você também viu. Coisa de homem. Esporro.
Repentinamente revoltada — não tanto pelo que era mas de quem provinha —
Jessie jogou as calcinhas no cesto de roupa suja por cima do vestido. Então teve uma visão
da mãe, que era quem esvaziava os cestos e lavava a roupa na lavanderia úmida do porão,
pescando essas calcinhas desse cesto e descobrindo esses vestígios. E o que pensaria? Ora
que a roda rangedora da família recebera graxa, é claro... que mais pensaria?
Sua repugnância transformou-se em pavor culposo, e Jessie rapidamente recolheu as
calcinhas do cesto. Na mesma hora o cheiro salobro pareceu encher suas narinas, denso,
fraco e enjoativo. Ostras e cobre, pensou, e foi o bastante. Caiu de joelhos diante do vaso
sanitário, as calcinhas apertadas numa mão, e vomitou. Deu descarga logo em seguida, antes
que o cheiro do hambúrguer parcialmente digerido pudesse impregnar o ar, então abriu a
torneira de água fria da pia e enxaguou a boca. Seu receio de que fosse passar a próxima
hora ali dentro ajoelhada na frente do vaso vomitando começou a diminuir. O estômago
parecia estar se acalmando. Se pudesse evitar sentir aquele cheiro leve e cremoso de cobre
outra vez...
Prendendo a respiração, enfiou as calcinhas debaixo da torneira, lavou-as, torceu-as
e atirou-as de volta no cesto. Inspirou profundamente, então, ao mesmo tempo que afastava
os cabelos das têmporas com as costas das mãos molhadas. Se a mãe perguntasse o que
fazia um par de calcinhas molhadas no cesto de roupa suja...
Você já está começando a pensar como uma criminosa, lamentou a voz que um dia
pertenceria à Esposa Perfeita. Está vendo no que dá ser uma menina má, Jessie? Está vendo?
Sinceramente espero que você...
Fica quieta, sua nojentinha, retrucou num rosnido a outra voz. Você pode ralhar o
quanto quiser depois, mas agora estamos tentando resolver um probleminha aqui, se não se
importa. Está bem?
Silêncio. Essa foi boa. Jessie, nervosa, afastou de novo os cabelos, embora poucos
fios tivessem voltado a cair sobre as têmporas. Se a mãe perguntasse que faziam as
calcinhas molhadas no cesto de roupa suja, Jessie simplesmente diria que estava tão quente
que dera um mergulho sem trocar de roupa. Todos os três tinham feito isso diversas vezes
durante aquele verão.
Então é melhor lembrar de passar uma água no short e na camisa também. Certo,
boneca?
Certo, ela concordou. Boa lembrança.
Vestiu o roupão que estava pendurado na porta do banheiro e voltou ao quarto para
apanhar o short e a camiseta que estivera usando quando a mãe, o irmão e a irmã mais velha
tinham saído de manhã... há milhares de anos, parecia agora. Não os encontrou de pronto, e
se pôs de joelhos para procurar debaixo da cama.
A outra mulher também está de joelhos, uma voz comentou, e sente o mesmo
cheiro. O cheiro de cobre e creme.
Jessie ouviu sem ouvir. Seu pensamento estava no short e na camiseta — no álibi.
Conforme suspeitara, estavam debaixo da cama. Esticou-se para apanhá-los.
Está saindo do poço, a voz acrescentou. O cheiro do poço.
Sei, sei, Jessie pensou, agarrando as roupas e voltando ao banheiro. O cheiro do
poço, que ótimo, como você é criativa.
Ela fez o homem cair dentro do poço, a voz continuou, e isso finalmente penetrou
os pensamentos de Jessie. Ela estacou na porta do banheiro, os olhos arregalados. Sentiu um
temor súbito, novo e fatal. Agora que estava realmente prestando atenção, percebeu que a
voz não se parecia com nenhuma das outras; essa lembrava uma voz que a gente talvez
sintonizasse no rádio à noite se as condições fossem ideais — uma voz que poderia vir de
muito, muito longe.
Nem tão longe assim, Jessie; ela está na faixa do eclipse também.
Por um instante, o corredor do primeiro andar da casa no lago Dark Score pareceu
sumir. Substituiu-o um silvado de amoreiras, que não projetavam sombra sob o céu
escurecido pelo eclipse, e um cheiro nítido de sal marinho. Jessie viu uma mulher magrela
em um vestido caseiro com os cabelos grisalhos presos num coque. Achava-se ajoelhada
junto a um quadrado de tábuas partidas. Havia uma mancha de tecido branco a seu lado.
Jessie tinha certeza de que era a combinação da mulher. Quem é você? Jessie perguntou à
mulher, mas ela já se fora... Isto é, se é que estivera ali, para começar.
Jessie chegou a lançar um olhar sobre o ombro para ver se talvez a mulher magra e
fantasmagórica a seguira. Mas o corredor estava deserto; estava sozinha.
Olhou para os próprios braços e constatou que estavam grossos de arrepios.
Você está perdendo a razão, lamentou a voz que um dia seria da Esposa Perfeita.
Ah, Jessie, você foi má, você foi muito má. por isso vai ter que pagar perdendo a razão.
Não estou — respondeu. Espiou seu rosto pálido e tenso no espelho do banheiro.
Não estou!
Aguardou um instante numa espécie de suspensão horrorizada para ver se alguma
das vozes — ou a imagem da mulher ajoelhada junto ao quadrado de tábuas com a
combinação empilhada a um lado _ voltaria, mas não ouviu nem viu mais nada. Aquela
outra apavorante que contara a Jessie que empurrara um homem para dentro de um poço,
bem, aparentemente desaparecera.
Tensão, boneca, comentou a voz que um dia seria de Ruth, e Jessie teve a nítida
impressão de que embora a voz não acreditasse no que dizia, decidira que era melhor Jessie
começar a se mexer outra vez, e depressinha. Você pensou numa mulher com uma
combinação ao lado porque está com a cabeça cheia de roupa interior esta tarde, só isso. Eu
esqueceria a coisa toda se fosse você.
Uma grande sugestão. Jessie rapidamente molhou o short e a camiseta na torneira,
torceu-os e em seguida entrou debaixo do chuveiro. Ensaboou-se, enxaguou-se, enxugou-se,
correu de volta ao quarto. Normalmente não teria se dado o trabalho de vestir o roupão para
atravessar correndo o corredor, mas desta vez usou-o, fechando-o com a mão ao invés de
gastar tempo para prendê-lo com o cinto.
Parou de novo no quarto, mordendo o lábio, rezando para a estranha voz não voltar,
rezando para não ter outra dessas alucinações ou ilusões ou o que fossem. Nada aconteceu.
Ela largou o roupão em cima da cama, correu até a cômoda, escolheu calcinhas e short
limpos.
Ela sente o mesmo cheiro, pensou. Quem quer que seja, a mulher sente o mesmo
cheiro saindo do poço em que fez o homem cair, e isso está acontecendo agora, durante o
eclipse. Tenho certeza...
Virou-se, uma blusa limpa na mão, e congelou. O pai estava parado à porta,
observando-a.
CAPÍTULO XIX
Jessie acordou na claridade suave e leitosa do amanhecer com a lembrança
intrigante e agourenta da mulher a ocupar sua mente — a mulher de cabelos grisalhos
repuxados num apertado coque de camponesa, a mulher ajoelhada no silvado de amoreiras
com a combinação empilhada ao lado, a mulher que estivera espiando por entre umas tábuas
partidas, sentindo aquele cheiro fraco e horrível. Jessie não pensava naquela mulher há anos,
e agora, recém-saída de um sonho de 1963, que não fora um sonho mas uma recordação,
parecia que fora agraciada com uma espécie de visão sobrenatural daquele dia, uma visão
talvez causada pela tensão que, em seguida, se perdera pela mesma razão.
Mas não tinha importância — não aquilo, não o que acontecera com o pai no deck,
não o que acontecera depois, quando se virará e dera com ele parado à porta do quarto. Tudo
isso acontecera há muito tempo, ao passo que o que estava acontecendo neste momento...
Estou numa enrascada. Acho que estou numa enrascada muito séria.
Recostou-se nos travesseiros e examinou os braços suspensos. Sentiu-se tão
aturdida e desamparada quanto um inseto envenenado numa teia de aranha, querendo apenas
voltar a dormir — desta vez sem sonhar, se possível —, os braços dormentes e a garganta
seca em outro universo. Não teve essa sorte.
Ouviu um zumbido lento e grave em algum lugar próximo. O primeiro pensamento
é que fosse um despertador. O segundo, após cochilar dois ou três minutos com os olhos
abertos, um detetor de fumaça. Essa idéia provocou um breve e infundado surto de
esperança que a deixou mais perto do verdadeiro despertar. Percebeu que aquilo que estava
ouvindo não parecia em nada detetor de fumaça. Parecia mais... bem... mais.
São moscas, boneca, certo? A voz chega-de-papo agora soava cansada e fraca. Você
já ouviu falar nos Garotões do Campeonato de Verão, não ouviu? Pois bem, essas são as
Moscas de Outono, e o que está ouvindo é a modalidade que jogam neste momento no
corpo de Gerald Burlingame, o conhecido advogado que tinha por fetiche usar algemas.
— Essa não, tenho que me levantar — disse naquele grasnido rouco em que mal
reconhecia sua voz.
Que diabo significa isso? pensou, dando a própria resposta — Merda nenhuma,
graças a Deus — o que completou a tarefa de despertá-la por completo. Ela não queria ficar
acordada, mas tinha a impressão de que era melhor aceitar o fato de que estava acordada e
tirar o melhor proveito dele, enquanto podia.
E provavelmente é melhor começar por acordar as mãos e os braços. Isto é, se eles
quiserem acordar.
Examinou o braço direito, depois girou a cabeça na armadura enferrujada em que se
transformara seu pescoço (apenas parcialmente dormente) e examinou o esquerdo. Jessie
percebeu com repentino choque que examinava os braços de maneira inteiramente nova —
examinava-os como se fossem móveis em uma vitrine.
Pareciam não ter a menor relação com Jessie Burlingame, e ela supunha que não
havia nada estranho nisso; afinal estavam absolutamente dormentes. As sensações só
começavam pouco abaixo das axilas.
Tentou alçar-se e ficou desolada ao descobrir que o motim de seus braços era mais
sério do que suspeitara. Não somente eles se recusavam a movê-la; recusavam-se a se
mover. Não tomavam conhecimento das ordens de seu cérebro. Examinou-os de novo, e já
não lhe pareceram móveis. Pareceram peças desbotadas de carne pendurada nos ganchos do
açougue, e ela soltou um grito rouco de medo e raiva.
Não importa. Os braços não estavam acontecendo, pelo menos por ora, mas se
enfurecer ou se amedrontar, ou ambos, não ia mudar nada. Quem sabe os dedos? Se pudesse
enroscá-los em torno dos pilares, então talvez...
... ou talvez não. Os dedos pareciam tio inúteis quanto os braços. Após quase um
minuto de esforço, Jessie foi recompensada com um único espasmo maquinai do polegar
direito.
— Meu bom Deus — exclamou na voz rascante cheia-de-poeira-nas-frestas. Não
havia mais raiva na voz, apenas medo.
As pessoas morriam em acidentes, é claro — supunha que tivesse visto centenas,
talvez milhares, de cenas de morte nos telejornais em sua vida. Sacos com cadáveres sendo
removidos de carros batidos ou guinchados do mato em lingas da defesa civil, os pés saindo
por baixo de cobertores estendidos às pressas enquanto ao fundo edifícios pegavam fogo,
testemunhas de rosto pálido, voz gaguejante apontando poças de uma coisa pegajosa e
escura nos becos e no chão dos bares. Vira a forma amortalhada em branco de John Belushi
ao ser retirada do hotel Château Marmont em Los Angeles; vira o equilibrista Karl
Wallenda vacilar e cair pesadamente no cabo que tentava atravessar (estendido entre dois
hotéis de veraneio, lembrava vagamente), agarrar-se por um momento e em seguida
mergulhar para a morte. Os noticiários mostraram a cena repetidamente como se estivessem
obcecados. Portanto, sabia que as pessoas morriam em acidentes, claro que sabia, mas até
agora jamais percebera que havia gente dentro daqueles personagens, gente como ela, gente
que não tinha tido a mínima idéia de que jamais voltaria a comer um cheesebúrguer, a
assistir a mais um roundde um programa de perguntas (e por favor não deixe de dar sua
resposta em forma de pergunta), ou ligar para os amigos e perguntar se um poquerzinho à
um centavo o ponto na noite de quinta-feira, ou fazer compras no sábado não seria uma
grande idéia? Acabaram-se as cervejas, acabaram-se os beijos, e a fantasia de fazer amor
numa rede durante um temporal jamais se realizaria, porque você ia estar muito ocupado em
morrer. Qualquer manhã que você se levantava da cama poderia ser a última.
É muito mais do que uma possibilidade esta manhã, Jessie pensou. Acho que agora
é uma probabilidade. A casa— nossa confortável e tranqüila casa à beira do lago — poderá
muito bem entrar para o noticiário de sexta ou sábado à noite. Aquele repórter que cobre
externas, de impermeável branco que eu tanto odeio, vai conversar com o microfone e se
referir à "casa onde o eminente advogado de Portland Gerald Burlingame e sua mulher
Jessie morreram". Então chamará o estúdio e entrará o comentarista de esportes, e não estou
querendo ser mórbida, Jessie; não sou a Esposa Perfeita com seus lamentos, nem a Ruth
com seus discursos. É...
Mas Jessie sabia. Era a verdade. Era apenas um acidentezinho bobo, o tipo de coisa
que fazia a gente abanar a cabeça ao ler no jornal no café da manhã; a gente dizia "Escuta só
isso, querido", e lia a notícia para o marido enquanto ele comia o seu grapefruit. Apenas um
acidentezinho bobo, só que desta vez estava acontecendo com ela. A contínua insistência de
sua mente de tratar isso como um engano era compreensível, mas irrelevante. Não havia
Seção de Reclamações onde pudesse explicar que as algemas tinham sido idéia do Gerald e
portanto era apenas justo que a deixassem de fora. Se o engano ia ser corrigido, ela é quem
teria de fazê-lo.
Jessie pigarreou, fechou os olhos, e dirigiu-se ao teto:
— Deus? Quer me ouvir um instante? Preciso de uma ajudinha, preciso mesmo.
Estou metida numa enrascada e me sinto aterrorizada. Por favor me ajude a sair daqui, sim?
Eu... hum... Te peço em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. — Esforçou-se para ampliar a
oração e só lhe ocorreu uma coisa que Nora Callighan lhe ensinara, uma oração que hoje em
dia andava na boca de todos os vigaristas da auto-ajuda e dos gurus de merda: — Deus me
dê serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem de mudar as coisas que
posso mudar, e a sabedoria de saber diferenciá-las. Amém.
Nada mudou. Não sentiu serenidade, nem coragem, muito menos sabedoria.
Continuava a ser apenas uma mulher com os braços inertes e um marido morto, algemada
aos pilares da cama como um cão vadio acorrentado ao poste de um quintal e condenado a
morrer, sem ninguém notar nem lamentar, enquanto o dono cachaceiro passa trinta dias no
xadrez municipal por dirigir sem licença e alcoolizado.
— Oh, por favor, não permita que doa — disse em voz baixa e trêmula. — Se vou
morrer, meu Deus, por favor, não permita que doa. Suporto muito mal a dor.
Pensar em morrer numa altura dessas provavelmente é uma má idéia, boneca. Ruth
fez uma pausa e acrescentou. Pensando melhor, risque o provavelmente.
Tudo bem, não vamos discutir — pensar em morrer foi uma má idéia. Então o que
sobrou?
Viver. Ruth e Esposa Perfeita responderam em uníssono. Então, viver. O que a
trouxe de volta aos braços, fechando o círculo.
Estão dormentes porque passei a noite inteira pendurada neles. Continuo pendurada
neles. Aliviar o peso dos braços é o primeiro passo.
Tentou impulsionar-se para trás e para cima com os pés e sentiu um pânico súbito e
opressivo quando no primeiro momento eles se recusaram a cooperar. Perdeu-se por
instantes e então, quando voltou a si, estava flexionando as pernas rapidamente para cima e
para baixo, empurrando a colcha, os lençóis e o forro do colchão para os pés da cama.
Arfava como um ciclista vencendo a última subida numa maratona. Suas nádegas, que
também tinham adormecido, recuperavam a animação.
O medo conseguira fazê-la despeitar inteiramente, mas foram precisos os exercícios
aeróbicos glúteos provocados pelo pânico para obrigar o coração a sair de ponto morto.
Finalmente começou a perceber prenúncios de sensibilidade — junto aos ossos e,
ameaçadores como uma trovoada distante, nos braços.
Se nada mais funcionar, boneca, não se esqueça daqueles últimos golinhos de água.
Lembre-se que nunca vai conseguir pegar naquele copo de novo se suas mãos e braços não
estiverem em boas condições, e muito menos beber aquela água.
Jessie continuou a empurrar a cama com os pés enquanto o dia clareava. O suor
empastou seus cabelos contra as têmporas e escorreu pelo seu rosto. Tinha consciência —
muito vaga — que estava aumentando sua carência de água a cada minuto que insistia nessa
atividade fatigante, mas não tinha escolha.
Porque não tem nenhuma, boneca — nenhuma mesmo.
Boneca isto e boneca aquilo, ela pensou distraída. Quer fazer o favor de calar a
boca, sua vaca tagarela?
Finalmente seu traseiro começou a escorregar em direção à cabeceira da cama. Cada
vez que ele se mexia, Jessie contraía os músculos da barriga e fazia uma semiflexão. O
ângulo formado pelas partes superior e inferior do tronco começou a se aproximar dos
noventa graus. Seus cotovelos começaram a dobrar, e à medida que seu peso foi se
transferindo dos braços e ombros, aumentou o formigamento que percorria sua pele. Ela não
parou de movimentar as pernas até finalmente se sentar, e continuou a pedalar, procurando
manter o coração acelerado.
Uma gota ardida de suor entrou em seu olho esquerdo. Ela a lançou longe sacudindo
a cabeça com impaciência e continuou a pedalar. O formigamento foi aumentando,
percorrendo os braços de alto a baixo, e cinco minutos após atingir uma posição derreada
(parecia uma adolescente desengonçada jogada na poltrona do cinema), a primeira cãibra a
assaltou. Parecia um golpe dado com o lado rombudo de um cutelo de açougueiro.
Jessie jogou a cabeça para trás, espalhando no ar uma névoa fina de suor da cabeça
e dos cabelos, e gritou. Quando reunia fôlego para repetir o grito, a segunda cãibra a
acometeu. Foi muito pior que a primeira. Parecia que alguém laçara seu ombro esquerdo
com uma corda preparada com cerol e pó de vidro e depois puxara com força. Ela urrou, as
mãos fecharam-se em punhos com tanta rapidez e selvageria que duas das unhas partiram no
sabugo e começaram a sangrar. Seus olhos, afundados em olheiras escuras e inchadas,
cerraram-se apertados, mas as lágrimas escapuliram mesmo assim e escorreram rosto
abaixo, misturando-se aos filetes de suor que desciam dos cabelos.
Não pare de pedalar, boneca— não pare agora.
— Não me chame de boneca! — Jessie berrou.
O cachorro vira-lata voltara silenciosamente para a varanda dos fundos pouco antes
do alvorecer, e ao som daquele berro ergueu bruscamente a cabeça. Havia uma expressão de
surpresa quase cômica em sua cara.
— Não me chame assim, sua vaca! Sua vaca ódio...
Mais uma cãibra, tão aguda e súbita quanto um infarto fulminante, atravessou o seu
tríceps esquerdo até a axila, e suas palavras se dissolveram num longo e tremido grito de
agonia. Contudo, continuava a pedalar.
Fosse como fosse, continuava a pedalar.
CAPÍTULO XX
Quando o acesso pior de cãibras passou — pelo menos, esperava que o pior tivesse
passado — ela fez uma pausa, recostou-se nas ripas de mogno que formavam a cabeceira da
cama com os olhos fechados, e sua respiração foi gradualmente se acalmando — primeiro
passou a um galope lento, depois a um trote e, finalmente, a um passo. Com sede ou sem
sede, ela se sentiu surpreendentemente bem. Supunha que a razão residia em parte naquela
velha piada que terminava com a frase: "Me sinto tão bem quando paro." Afinal tinha sido
uma garota e uma mulher atlética até cinco anos atrás (está bem, talvez dez), e ainda era
capaz de reconhecer um afluxo de endorfina quando produzia um. Absurdo, dadas as
circunstâncias, mas também muito gostoso.
Talvez nem tão absurdo assim, Jess. Talvez útil. A endorfina clareia a cabeça, o que
é uma das razões por que as pessoas trabalham melhor depois de se exercitarem um pouco.
E sua cabeça clareara. O pânico pior se dissolvera como os nevoeiros industriais
empurrados por um vento forte, e se sentia mais do que racional: sentia-se inteiramente sã
outra vez. Jamais imaginara isso possível, e achou que era uma prova assustadora da
incansável adaptabilidade da mente, e de sua quase insetífera determinação de sobreviver.
Tudo isso e ainda nem tomei o café da manhã, pensou.
A imagem do café — escuro, em sua xícara favorita com um friso de flores azuis à
volta — a fez lamber os lábios.
Também a fez pensar no programa de televisão Today. Se o seu relógio interno
estivesse certo, o programa estaria entrando no ar agora. Homens e mulheres de todo o país
— em geral sem algemas — estariam sentados a mesa da cozinha, bebendo suco e café,
comendo pães doces e ovos mexidos (ou talvez um daqueles cereais que dizem acalmar o
coração e ao mesmo tempo estimular os intestinos). Estariam assistindo ao casal que
apresentava o programa tagarelar com um terceiro. Mais adiante assistiriam a um quarto
locutor desejar um feliz aniversário a pessoas que completavam cem anos. Haveria
entrevistados — um falaria sobre uma tal de prime rate e a reserva monetária, outro
mostraria aos telespectadores como impedir que o cãozinho chinês roesse os chinelos do
dono, e um terceiro divulgaria seu último filme — e ninguém se daria conta de que no
Maine ocidental ocorria um acidente; que uma das espectadoras razoavelmente assíduas não
poderia sintonizar a estação esta manhã porque se encontrava algemada à cama a menos de
seis metros do marido nu, semidevorado por um cachorro e cheio de moscas.
Virou a cabeça para o lado direito e olhou para o copo que Gerald pousara
descuidadamente do seu lado da prateleira, pouco antes da festa começar. Há cinco anos,
refletiu, o copo provavelmente não estaria ali, mas à medida que Gerald aumentara o
consumo de uísque, crescera também o seu consumo de outros líquidos — principalmente
de água, mas ele também bebia toneladas de soda cristal diet e chá gelado. Para Gerald, pelo
menos, a frase "problema de bebida" parecia não ter sido um eufemismo, mas a pura
verdade.
Bom, pensou desanimada, se tinha um problema de bebida, agora está curado, não
é?
O copo continuava exatamente onde ela o deixara, é claro; se o visitante da noite
anterior não tivesse sido um sonho (Não seja boba. é claro que foi um sonho, disse a Esposa
Perfeita, nervosa), com certeza não teve sede.
Vou apanhar aquele copo. pensou Jessie. E também vou tomar muito cuidado, caso
sinta mais cãibras musculares. Alguma pergunta?
Não sentiu nenhuma cãibra, e desta vez apanhar o copo foi sopa porque estava bem
mais à mão; não houve necessidade de números de equilibrismo. Ela teve uma surpresa
agradável quando apanhou o canudo improvisado. Ao secar, o cartão de assinatura se
enrolara nas dobras que ela fizera. Esse estranho objeto geométrico parecia um origami de
formas livres e funcionava com uma eficiência muito maior do que a da noite anterior.
Beber o resto da água foi ainda mais fácil do que apanhar o copo, e enquanto Jessie ouvia o
barulhinho característico que o canudo improvisado produzia no fundo do copo quando
tentou sugar as últimas gotas, ocorreu-lhe que teria derramado muito menos água na colcha
se soubesse que poderia "curar" o canudo. Tarde demais agora e não adiantava chorar.
Os poucos golinhos só serviram para acentuar sua sede, mas teria que conviver com
o problema. Repôs o copo na prateleira, e riu de si mesma. O hábito era um bicho resistente.
Mesmo em circunstâncias bizarras como a atual, ele continuava um bicho resistente. Ela se
arriscara a ter novas cãibras para devolver o copo vazio à prateleira ao invés de largá-lo pelo
lado da cama e deixar que se espatifasse no chão. E por quê? Porque ser limpa e arrumada
era importante. Essa era uma das coisas que Sally Mahout ensinara à sua boneca, sua
rodinha rangedora que nunca parecia receber graxa suficiente e não era capaz de deixar as
coisas como estavam — sua bonequinha que não hesitava diante de nada, inclusive seduzir
o próprio pai, para garantir que elas seguissem o curso que traçara.
Na lembrança, Jessie reviu a Sally Mahout como muitas vezes no passado: o rosto
vermelho de exasperação, os lábios comprimidos, as mãos em punhos plantadas nos quadris.
— E você teria acreditado nessa versão — Jessie disse baixinho. — Não é mesmo,
sua vaca?Não é justo, parte de sua mente reagiu constrangida. Não é justo, Jessie!
Só que era justo, e ela sabia disso. Sally estivera muito longe de ser uma mãe ideal,
principalmente durante os anos em que seu casamento com Tom andara rateando como um
carro velho com barro na transmissão. Seu comportamento naquela época tinha muitas
vezes beirado a paranóia e a irracionalidade. Will por alguma razão fora quase
completamente poupado de suas tiradas e suspeitas, mas ela por vezes assustara as duas
filhas, e muito.
Aquele lado sombrio não existia agora. As cartas que Jessie recebia do Arizona
eram bilhetes banais e monótonos de uma velha senhora que vivia para o bingo das quintas
à noite e recordava os anos de criação dos filhos como uma época calma e feliz.
Aparentemente não se recordava de berrar a plenos pulmões que mataria Maddy a próxima
vez que ela esquecesse de enrolar o modess em papel higiênico antes de jogá-lo na cesta de
lixo, ou de adentrar numa manhã de domingo — por razões que Jessie jamais conseguira
entender — o quarto da filha, atirar um par de sapatos altos nela, e sair de forma igualmente
tempestuosa.
Às vezes quando recebia os bilhetes e postais da mãe — Tudo bem aqui, querida,
tive notícias de Maddy, ela escreve regularmente, meu apetite melhorou desde que a
temperatura caiu — Jessie tinha vontade de agarrar o telefone, ligar para a mãe e berrar. —
Você se esqueceu de tudo, mamãe? Esqueceu do dia em que atirou os sapatos em mim,
quebrou o meu jarro favorito e eu chorei porque achei que você sabia, que ele devia ter
finalmente fraquejado e contado tudo, embora já tivessem passado três anos desde o
eclipse? Esqueceu a freqüência com que nos apavorava com os seus gritos e lágrimas?
Isso é injusto, Jessie. Injusto e desleal.
Talvez fosse injusto, mas não era mentira.
Se ela tivesse sabido do que acontecera naquele dia...
A imagem da mulher nos troncos passou pela cabeça de Jessie tão depressa que
quase não pôde reconhecê-la, quase como se fosse um anúncio subliminar: as mãos presas,
os cabelos sobre o rosto como a mortalha de penitente, o grupinho de gente desdenhosa
apontando para ela. Na maioria mulheres.
Talvez a mãe não tivesse dito abertamente, mas — teria acreditado que a culpa era
de Jessie, e poderia realmente ter achado que fora uma sedução consciente. Não era muito
grande a distância entre a roda que range e a Lolita, era? E sabedora de que houvera alguma
coisa sexual entre o marido e a filha muito provavelmente a teria feito parar de pensar em ir
embora e passar realmente à ação.
Acreditar? Pode apostar que ela teria acreditado.
Desta vez a voz do decoro não fez sequer um protesto simbólico, e Jessie teve uma
súbita intuição: o pai percebera instanteneamente o que lhe levara quase trinta anos para
entender. Soubera da verdade da mesma maneira que sabia da acústica estranha que havia
na sala de estar/jantar na casa do lago.
O pai a usara de várias maneiras naquele dia.
Jessie aguardou um dilúvio de emoções negativas diante dessa triste constatação;
tinha, afinal, feito papel de otária para um homem cuja obrigação fundamental era amá-la e
protegê-la. O dilúvio não veio. Talvez isso resultasse, em parte, da ação duradoura das
endorfinas, mas tinha a impressão de que a emoção que sentia estava mais próxima do
alívio: por mais podre que aquela história fosse, ela finalmente conseguira vê-la
objetivamente. Suas principais emoções eram o assombro de que tivesse guardado aquele
segredo por tanto tempo, e uma certa perplexidade apreensiva. Quantas das opções que
fizera desde aquele dia teriam sido influenciadas direta ou indiretamente pelo minuto final
que passara no colo do pai, observando aquela imensa pinta redonda no céu através de dois
ou três pedaços de vidro esfumaçado? E seria a situação atual uma conseqüência do que
acontecera durante o eclipse?
Ah, isso é demais, pensou. Se ele tivesse me estuprado talvez fosse diferente. Mas o
que aconteceu no deck aquele dia foi de fato apenas mais um acidente, e nem tão sério
assim, para falar a verdade — se você quer saber o que é um acidente sério, Jess, olhe para a
situação em que se encontra. É o mesmo que culpar a velha Sra. Gilette por ter me dado um
tapa na mão naquela festa, no verão em que fiz quatro anos. Ou um pensamento que tive no
momento em que era parida. Ou os pecados cometidos em uma vida passada que precisam
ser expiados. Além do mais, o que ele fez comigo no deck não foi nada comparado ao que
me fez no quarto.
E não havia necessidade de sonhar essa parte; estava bem ali, perfeitamente clara e
perfeitamente acessível.

21-30

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