sábado, 9 de março de 2013

O Apanhador no campo de centeio 21-26


21
Há muito tempo não dava tanta sorte. Quando cheguei em casa, o ascensorista da noite, Pete, não estava lá, e o substituto dele era um sujeito que eu nunca tinha visto antes. Aí tive a certeza de que, se não desse de cara com meus pais e tudo, ia mesmo conseguir falar com a Phoebe e dar o fora, sem que ninguém no mundo soubesse que eu tinha estado em casa. Era mesmo uma sorte infernal. E, para melhorar a estória, o novo ascensorista parecia meio sobre o imbecil. Disse a ele, com a voz mais natural do mundo, que me levasse ao andar dos Dickstein. Os Dickstein eram uma família que morava no outro apartamento do nosso andar. Eu já tinha guardado meu chapéu de caça para não dar pinta de maluco nem nada. Entrei no elevador como se estivesse com uma pressa danada.
O sujeito já tinha fechado a porta e tudo, e estava pronto para subir, quando se virou para mim e disse:
- Eles não estão em casa. Estão numa festa no quatorze.
- Não faz mal - respondi - sou sobrinho deles e combinei que ia esperar.
Ele me olhou meio desconfiado, com aquela cara de palerma.
- É melhor esperar por eles aqui embaixo, companheiro.
- Bem que gostaria... no duro - falei. - Mas o negócio é que eu sou meio aleijado de uma perna e tenho que ficar com ela numa certa posição. Acho melhor me sentar naquela cadeira que fica no hall do apartamento.
Ele não entendeu patavina, por isso só fez dizer "Ah, sei" - e me levou. É engraçado, basta a gente dizer alguma coisa que ninguém entende para que façam praticamente tudo que a gente quer.
Saltei no nosso andar - capengando como um doido - e comecei a caminhar para o lado dos Dickstein. Aí, quando ouvi a porta do elevador se fechar, dei meia volta e fui para o nosso apartamento. Estava tudo correndo conforme o figurino. Nem me sentia mais de pileque. Tirei minha chave e abri a porta, bem de leve. Aí, com o maior cuidado e tudo, entrei e fechei a porta. Eu devia ter nascido ladrão.
O vestíbulo estava escuro pra chuchu, como era de se esperar, e naturalmente eu não podia acender a luz. Precisava ter cuidado para não esbarrar em nada e fazer um pandemônio dos diabos. Mas tinha a certeza de que estava em casa. O nosso vestíbulo cheira diferente de qualquer outro lugar. Não sei que diabo é. Não é couve-flor nem é perfume - sei lá que porcaria é - mas a gente sente logo que está em casa. Comecei a tirar o sobretudo para pendurar no armário do vestíbulo, mas mudei de idéia porque aquele armário vive entupido de cabides e faz um barulhão infernal quando a gente abre a porta. Aí fui andando bem devagarinho pelo corredor, na direção do quarto da Phoebe. Sabia que a empregada não ia me ouvir, porque ela só tinha um tímpano. Quando era criança, o irmão dela tinha lhe enfiado um canudo no ouvido. Era um bocado surda e tudo. Mas com meus pais a coisa era outra - principalmente minha mãe, que tinha um ouvido de perdigueiro. Pisei macio pra burro quando passei pela porta deles. Pra falar a verdade, até prendi a respiração. Quando meu pai está dormindo, a gente pode dar uma cadeirada na cabeça dele que o velho não acorda; mas, para minha mãe acordar, basta a gente tossir lá pras bandas da Sibéria. Ela é nervosa pra chuchu. Quase sempre passa a noite toda acordada, fumando.
Afinal, mais ou menos uma hora depois, cheguei ao quarto da Phoebe. Ela não estava lá. Tinha-me esquecido. Ela sempre dorme no quarto do D. B. quando ele está em Hollywood ou outro lugar qualquer. Ela gosta de ficar lá porque é o maior quarto da casa. E também por causa da escrivaninha maluca que tem lá, que o D. B. comprou de uma mulher alcoólatra em Filadélfia, e da cama enorme, gigantesca, de dez quilômetros de comprimento por dez de largura. Não sei onde ele conseguiu comprar aquela cama. Seja como for, a Phoebe adora dormir no quarto do D. B. quando ele está fora, e ele não se importa. Vale a pena ver a Phoebe fazendo os trabalhos de casa naquela escrivaninha maluca. É quase tão grande quanto a cama, mas a Phoebe adora um troço desses. Não gosta do quarto dela porque acha muito pequeno. Ela diz que precisa se espalhar, e eu me esbaldo com isso. O que é que ela tem para espalhar? Nada.
De qualquer forma, entrei de mansinho no quarto do D. B. e acendi a luz da escrivaninha. Phoebe nem acordou. Fiquei olhando para ela, com a luz acesa e tudo. Estava espichada ali, dormindo, com o rosto meio de lado, para fora do travesseiro. A boca entre-aberta. É gozado, os adultos ficam horríveis quando estão dormindo de boca aberta, mas as crianças não. As crianças ficam cem por cento. Podem até ter babado todo o travesseiro, que continuam cem por cento.
Dei uma volta pelo quarto, bem devagar e tudo, olhando as coisas. Para variar, estava me sentindo muito bem. Nem me lembrei mais que podia ter apanhado uma pneumonia nem nada. Só para variar, estava me sentindo bem e mais nada. A roupa da Phoebe estava em cima da cadeira, perto da cama. Para uma criança, ela é muito arrumada. Por exemplo, não atira as coisas dela por todos os lados, como a maioria das crianças. Não é nenhuma relaxada. O casaco do costume havana que minha mãe havia trazido do Canadá estava nas costas da cadeira. A blusa e os outros troços estavam no assento. Os sapatos e as meias no chão, debaixo da cadeira, bem juntinho um do outro. Nunca tinha visto aqueles sapatos, deviam ser novos. Eram uns mocassins marron-escuro, parecidos com os meus, e combinavam um bocado com o costume que minha mãe tinha comprado no Canadá. Minha mãe veste a Phoebe muito bem, no duro. Minha mãe tem um gosto infernal para certas coisas. Não tem lá muito jeito para comprar patins de gelo ou coisa parecida, mas em matéria de roupa ela é o fino. A Phoebe está quase sempre com uns vestidos do barulho. Acontece que a maioria das meninas, mesmo quando os pais são ricos e tudo, em geral usam uns vestidos horrorosos. Mas dava gosto ver a Phoebe com aquele costume que minha mãe tinha trazido do Canadá.
Sentei diante da escrivaninha do D. B. e fiquei olhando os troços que estavam ali por cima. Eram as coisas da Phoebe, da escola e tudo. O que mais tinha era livro. Em cima da pilha estava o Aritmética é Divertido. Abri na primeira página para dar uma olhada. Phoebe tinha escrito:
PHOEBE WEATHERFIELD CAULFIELD
4B - 1
Me esbaldei. O segundo nome dela é Josephine, e não Weatherfield. Mas ela não gosta e, por isso, cada vez que a vejo ela está usando um novo segundo nome.
Debaixo do livro de aritmética tinha um de geografia e, mais em baixo, um de ortografia. Esse é o tipo da coisa em que ela é ótima. Ela é ótima em todas as matérias, mas é melhor mesmo em ortografia. Mais para baixo havia uma porção de cadernos. Ela tem uns cinco mil cadernos. Nunca vi ninguém que tivesse tantos cadernos. Tirei o de cima e dei uma olhada na primeira folha. Estava escrito:
Berenice - me procura no recreio que eu tenho uma coisa muito importante para te contar.
Não havia mais nada naquela página. Na seguinte estava escrito:
Por que há tantas fábricas de conservas no sudeste do Alaska?
Porque lá tem muito salmão.
Por que possui florestas valiosas?
Porque tem o clima adequado.
Que providências tomou nosso Governo para melhorar a vida dos esquimós?
estudar para amanhã!!!
Phoebe Weatherfield Caulfield
Phoebe Weatherfield Caulfield
Phoebe Weatherfield Caulfield
Phoebe W. Caulfield
Dra. Phoebe Weatherfield Caulfield
Favor passar adiante para Shirley!!!
Shirley você disse que era sagitário mas não passa de touro traga os patins quando for lá para casa
Ali, sentado na escrivaninha do D. B., li o caderno inteiro. Não me tomou muito tempo e posso passar o dia e a noite lendo um troço desses, seja caderno da Phoebe ou de qualquer outra criança. E morro de rir. Aí acendi outro cigarro - era o meu último. Acho que naquele dia fumei uns vinte maços. Então, finalmente, acordei a Phoebe. Não podia ficar o resto da vida sentado naquela escrivaninha e, além do mais, estava com medo de que meus pais aparecessem de repente. Antes disso, queria pelo menos conversar um pouquinho com a Phoebe. Por isso tratei de acordá-la.
Ela acorda com muita facilidade. Quer dizer, não é preciso gritar nem nada. Praticamente, basta a gente se sentar ao lado dela na cama e dizer: "Acorda, Phoebe" - e pronto, ela acorda.
- Holden - ela disse imediatamente. Passou o braço em volta do meu pescoço e tudo. Ela é muito carinhosa. Muito carinhosa para uma criança. Às vezes ela é até carinhosa demais. Dei uma espécie de beijo nela, e ela perguntou:
- Quando é que você chegou?
Estava vibrando com a minha chegada, era evidente.
- Fala mais baixo. Cheguei agorinha mesmo. Tudo bem com você?
- Tudo bem. Recebeu minha carta? Te escrevi uma carta de cinco páginas...
- Recebi sim, mas fala mais baixo. Gostei muito.
Ela tinha me escrito uma carta que eu não respondi. Falava da peça em que ela ia representar na escola. Mandou-me dizer que não marcasse nenhum programa para sexta-feira, para que eu pudesse assistir à peça.
- Como vai a peça? - perguntei. - Como é mesmo o nome dela?
- "Um Desfile de Natal para os Americanos". A peça é uma droga, mas eu faço o papel do Benedict Arnold. Meu papel é muito bom. Tenho praticamente a melhor parte.
Puxa, a esta altura ela já estava completamente acordada. Fica logo excitada com esse tipo de troço.
- A peça começa quando eu estou morrendo. Um fantasma me aparece na véspera de Natal e pergunta se eu tenho vergonha, etc. Sabe como é... de ter traído meu país, etcétera e tal. Você vai ver?
Ela estava quase em pé na cama.
- Foi sobre isso que eu escrevi para você. Você vai ver?
- Claro que vou. Naturalmente que vou.
- Papai não vai poder. Tem que viajar para a Califórnia - ela disse.
Puxa, como ela estava acordada. Bastam dois segundos para ela acordar completamente. Estava meio ajoelhada lá para os lados da cabeceira da cama e segurava a droga da minha mão.
- Escuta. Mamãe disse que você ia chegar na quarta-feira. - Mamãe disse que era na quarta-feira.
- Me deixaram sair antes. Fala mais baixo, se não você acorda todo mundo.
- Que horas são? Eles só vão chegar muito tarde, mamãe é que disse. Foram a uma festa em Norwalk, Connecticut. Adivinha o quê que eu fiz hoje de tarde! Que filme que eu vi? Adivinha só!
- Não sei... Escuta, eles não disseram a que horas...
- "O Médico". É um filme especial exibido na Fundação Lister. Só ia ser passado uma vez - hoje só. É a estória de um médico do Kentucky que mete um cobertor no rosto de uma garota aleijada que não podia andar. Aí mandam ele para a cadeia e tudo. É ótimo.
- Espera aí, presta atenção um minuto. Eles não disseram a que horas...
- Ele tem pena dela, o doutor. É por isso que ele mete o cobertor na cara dela e tudo, e sufoca ela. Aí mandam ele para a cadeia, condenado à prisão perpétua, mas essa menina que ele meteu o cobertor na cara dela vai sempre visitá-lo, e agradecer pelo que ele fez. Ele tinha matado por piedade. Mas ele sabe que merece ir para a cadeia, porque um médico não tem o direito de tirar as coisas de Deus. Quem me levou foi a mãe de uma colega de turma, a Alice Holmborg. É a minha melhor amiga. É a única na turma inteira que...
- Quer fazer o favor de parar um instante? Estou te fazendo uma pergunta. Eles disseram a que horas vão voltar, ou não?
- Não, mas só vão voltar muito tarde. Papai levou o carro e tudo para não ter que se preocupar com o trem. Ele mandou botar um rádio no carro! Mas mamãe disse que ninguém pode ligar o rádio no meio do trânsito.
Comecei a ficar mais descansado. Quer dizer, finalmente deixei de me preocupar se eles iam me pegar em casa ou não. Resolvi não me importar mais. Se pegassem, pegavam e pronto.
Valia a pena ver a pinta da Phoebe, com um daqueles pijamas com elefantes vermelhos na gola. Ela é tarada por elefantes.
- Quer dizer que foi um bom filme, hem? - perguntei.
- Infernal. Só que a Alice estava resfriada e a mãe dela ficou o tempo todo perguntando se ela havia se constipado. Bem no meio do filme. Sempre no meio de alguma cena importante, a mãe dela se jogava toda por cima de mim para perguntar a Alice se ela havia se constipado. Esse negócio me deixou furiosa.
Aí contei para ela a estória do disco.
- Escuta, comprei um disco para você, mas ele quebrou quando eu estava vindo para casa.
Tirei os pedacinhos do bolso do casaco.
- Eu estava meio alto...
- Me dá os pedaços. Vou guardar...
Praticamente arrancou os pedaços da minha mão e guardou tudo na mesinha de cabeceira. Não posso mesmo com ela.
- O D. B. vem passar o Natal em casa? - perguntei.
- Talvez sim, talvez não. Pelo menos foi o que mamãe disse. Tudo depende. Talvez tenha que ficar em Hollywood e escrever um filme sobre Anápolis.
- Anápolis? Essa não!
- É uma estória de amor e tudo. Adivinha quem vai trabalhar no filme. Que artista? Adivinha!
- Tou pouco ligando. Anápolis! O quê que ele entende de Anápolis? Veja só! O quê que tem isso a ver com o tipo de estórias que ele escreve?
Puxa, um troço desses me deixa maluco. Aquela droga de Hollywood...
- Quê que houve com o teu braço? - perguntei. Ela tinha um baita dum curativo de esparadrapo no cotovelo. Só vi isso porque o pijama dela não tinha manga.
- Tem um garoto, um tal de Curtis Weintraub, lá da minha turma, que me empurrou quando eu estava descendo a escada do parque. Quer ver?
Começou a tirar o esparadrapo do cotovelo.
- Não, não mexe nisso. Por que é que ele te empurrou na escada?
- Sei lá. Acho que ele tem raiva de mim. Eu e uma amiga minha, a Selma Alterbury, derramamos tinta e uma porção de troços no casaco de couro dele.
- Isso não se faz. Afinal, que diabo, isso é coisa de criancinha.
- Eu sei, mas sempre que vou ao parque ele fica me seguindo por tudo quanto é lugar. Ele está sempre andando atrás de mim, e isso me dá raiva.
- Talvez ele goste de você. E isso não é motivo para derramar tinta...
- Não quero que ele goste de mim.
Aí ela começou a olhar para mim com um jeito meio esquisito.
- Holden, por que é que você veio para casa antes de quarta-feira?
- O quê?
Puxa, é preciso a gente ficar de olho nela o tempo todo. Quem pensa que ela não é muito esperta é trouxa.
- Por quê que você não veio pra casa só na quarta-feira? Você não foi expulso nem nada, foi?
- Já te disse. Eles deixaram a gente sair mais cedo. Deixaram todo mundo...
- Você foi expulso! Foi!
Aí me deu um murro na perna. Ela sabe dar os seus soquinhos.
- Você foi expulso! Não é, Holden?
Ela estava cobrindo a boca com a mão e tudo. É um bocado emotiva, no duro.
- Quem é que disse que eu fui expulso? Eu não disse.
Aí me deu outra cutucada. E olha que dava para machucar.
- Papai vai te fazer nem sei o quê.
Aí ela se jogou de bruços na cama e botou a droga do travesseiro em cima da cabeça. Ela faz muito isso. De vez em quando parece uma alucinada.
- Pára com isso, tá? - eu disse. - Ninguém vai me fazer nada. Ninguém vai nem mesmo... Chega Phoebe, tira a porcaria desse troço da cabeça. Não vai me acontecer nada...
Mas cadê que ela tirava. Ninguém a obriga a fazer uma coisa quando ela não quer. Só fazia repetir: "Papai dessa vez te mata". A gente mal conseguia ouvir o que ela dizia, com a cabeça enfiada debaixo daquela droga daquele travesseiro.
- Ninguém vai me matar. Deixa de ser boba. Em primeiro lugar, vou embora. Sabe o quê eu vou fazer? Vou trabalhar uns tempos numa fazenda. Conheço um camarada que tem um avô que tem um rancho no Colorado. Talvez ele me arranje um emprego por lá. Vou escrever sempre para você e tudo, quando estiver lá, tá bom? Agora, pára, tira isso dá cabeça. Vamos, Phoebe, anda. Por favor. Tira isso da cabeça, por favor.
Mas qual nada. Tentei arrancar o travesseiro, mas ela é forte pra burro. Não há quem agüente brigar com a Phoebe. Se resolve ficar com a cabeça enfiada embaixo do travesseiro, fica mesmo.
- Phoebe, por favor. Tira o travesseiro da cabeça. Vamos... Êi, Weatherfield, sai daí...
Mas não havia jeito dela sair. Às vezes é impossível querer argumentar com ela. Finalmente, fui até a sala e tirei uma porção de cigarros da caixa e enfiei no bolso. Os meus tinham acabado.
22
Quando voltei ela já havia tirado o travesseiro de cima da cabeça - sabia que ela ia tirar - mas ainda não queria olhar para mim, embora estivesse deitada de costas e tudo. Quando dei a volta na cama e me sentei outra vez, ela virou o rosto para o outro lado. Estava me dando um gelo danado. Igualzinho ao time de esgrima do Pencey, quando esqueci os floretes no metrô.
- Como vai a Hazel Weatherfield? - perguntei. - Escreveu mais alguma estória sobre ela? A que você me mandou está na minha mala, lá na estação. É muito boa.
- Papai vai te matar.
Puxa, quando ela enfia uma coisa na cabeça é duro de tirar.
- Não, não vai me matar nada. Na pior das hipóteses, vai me dar outra bronca daquelas e aí me manda para a porcaria daquela academia militar. É só o que ele vai fazer comigo. E, em primeiro lugar, não vou nem estar por aqui. Vou estar muito longe... Provavelmente vou estar naquele rancho, lá no Colorado.
- Deixa de piada. Você nem sabe montar a cavalo.
- Quem é que não sabe? É claro que sei. Naturalmente que sei. É o tipo do troço que se aprende em dois minutos. Pára de mexer nisso.
Ela estava escarafunchando de novo o curativo do braço.
- Quem é que cortou o teu cabelo desse jeito? - perguntei. Só então tinha reparado no corte do cabelo imbecil que ela estava usando. Era curto demais.
- Não é da tua conta.
Ela também sabe se fazer de besta. Sabe ser malcriada quando quer.
- Aposto que você foi novamente reprovado em todas as matérias - ela disse, ainda com aquela voz malcriada.
De certo modo, era até meio gozado. De vez em quando ela fala igualzinho a uma droga de uma professora, e não passa de uma criancinha.
- Não, não fui. Passei em inglês - respondi. Aí só de farra, dei um beliscão na bundinha dela. Estava deitada de lado, com o bumbum meio levantado. Ela quase não tem bunda. Não belisquei com força, mas ela tentou acertar minha mão e errou.
Aí, de repente, ela disse:
- Por quê que você fez isso?
Ela queria dizer, por quê que eu tinha novamente levado bomba. O jeito que ela falou me deixou meio triste.
- Ora, Phoebe, pelo amor de Deus, não me pergunta isso! Estou cansado de todo mundo me perguntar a mesma coisa. Tem um milhão de razões. É um dos piores colégios em que eu já estive. Está cheio de cretinos e de sujeitos perversos. Nunca vi tanta gente ruim na minha vida. Por exemplo, se tinha um grupo batendo papo no quarto dum colega e alguém queria entrar, ninguém deixava, se fosse um cara chato e cheio de espinha. Todo o mundo estava sempre fechando a porta quando alguém queria entrar. Tinha uma porcaria duma sociedade secreta que me convidou para ser membro, e eu não tive coragem de recusar. E tinha esse camarada morrinha e cheio de espinha, o Robert Ackley, que queria fazer parte da tal sociedade. Vivia pedindo para entrar e sendo barrado. Só porque era um bolha e tinha a cara cheia de espinhas. Não gosto nem de falar no assunto. Era um colégio nojento. Pode acreditar no que eu digo.
Ela não disse nada, mas estava me escutando. Pelo jeito da cabeça dela, dava para ver que estava prestando atenção. Ela sempre presta atenção quando a gente lhe diz alguma coisa. E o gozado é que ela quase sempre entende o troço que a gente está falando. Entende mesmo.
Continuei a falar sobre o Pencey. Me deu vontade.
- Até os dois professores simpáticos da escola também eram uns cretinos. Tinha esse sujeito velho, o Professor Spencer. A mulher dele vivia dando chocolate quente e outros troços à gente, e eles eram mesmo muito simpáticos. Mas você devia ver ele quando o diretor, o tal do Thurmer, entrava na aula de história e se sentava numa carteira lá no fundo. Ele vivia entrando e sentando no fundo da sala, e ficava lá uma meia hora. Devia achar que estava inspecionando incógnito ou coisa que o valha. Depois de estar sentado algum tempo lá atrás, ele começava a interromper a aula do velho Spencer com as piadas mais bestas. Aí o velho Spencer quase se estourava de tanto rir e tudo, como se o Thurmer fosse uma bosta dum príncipe ou coisa parecida.
- Não diz nome feio.
- Era de fazer a gente vomitar, juro que era. Aí veio o Dia dos Veteranos. Eles lá comemoram esse troço. É o dia em que todos os trouxas que foram alunos do Pencey, aí por volta de 1776, aparecem e se metem por tudo quanto é canto, com as mulheres, os filhos e todo mundo. Você devia ter visto o camarada que me apareceu, um sujeito já com uns cinqüenta anos de idade. Sabe o que ele fez? Bateu no nosso quarto e perguntou se a gente dava licença dele ir ao banheiro. O banheiro era lá no fundo do corredor, não sei por que
diabo veio perguntar logo a nós. Sabe o quê que ele disse? Que queria ver se achava as iniciais que tinha gravado na porta de uma das privadas. Pois é, tinha gravado a droga das iniciais dele na porta de uma das privadas, há uns noventa anos, e queria ver se continuavam no mesmo lugar. Aí, meu companheiro de quarto e eu levamos o sujeito até o banheiro e tudo, e tivemos de ficar ali parados enquanto ele catava as iniciais nas portas de todas as latrinas. E não parou de falar o tempo todo, contando que a melhor época da vida dele foi a que passou no Pencey, e nos deu um bocado de conselhos para o futuro e tudo. Puxa, você não faz idéia como ele me deprimiu! Não quer dizer que ele fosse um mau sujeito - não, não era. Mas não é preciso ser um mau sujeito para deprimir a gente. Um cara pode ser bom e mesmo assim deprimir os outros. Para deprimir alguém, basta um sujeito ficar dando uns conselhos cretinos ao mesmo tempo em que procura as iniciais dele na porta de uma privada - basta isso. Não sei. Talvez não tivesse sido tão chato assim se pelo menos ele não estivesse completamente sem fôlego só de subir a escada. O tempo todo que ele ficou procurando as iniciais estava respirando com a maior dificuldade, as narinas dum jeito engraçado, enquanto dizia a mim e ao Stradlater para aproveitarmos o Pencey ao máximo. Puxa, Phoebe! Nem sei explicar. Eu simplesmente não gostava de nada que estava acontecendo no Pencey. Não sei explicar direito.
Phoebe falou alguma coisa que eu não consegui entender. Estava com o lado da boca grudado no travesseiro e, por isso, eu não podia entender direito o que ela dizia.
- O quê? - perguntei. - Tira a boca daí. Não posso entender nada do que você fala, com a boca desse jeito.
- Você não gosta de nada que está acontecendo.
Quando ela disse isso, fiquei ainda mais deprimido.
- Gosto sim. Gosto. É claro que gosto. Não diga isso. Droga, por que você tem que dizer um troço desses?
- Porque você não gosta. Você não gosta de nenhum colégio. Você não gosta de um milhão de coisas. Não gosta mesmo.
- Gosto! Aí é que você se engana... aí é que você está completamente enganada. Pomba, por quê que você diz isso?
Puxa, como ela estava me deprimindo.
- Porque não gosta. Então me diz uma coisa de que você goste.
- Uma coisa? Uma coisa que eu gosto? Está bem.
O problema é que não estava conseguindo me concentrar. Às vezes é duro da gente se concentrar.
- Quer dizer, uma coisa que eu goste muito? - perguntei.
Mas ela não me respondeu. Estava numa posição esquisita, lá longe, do outro lado da cama, a uns mil quilômetros de distância.
- Vambora, responde - falei. - Uma coisa que eu goste muito, ou só uma coisa que eu goste?
- Que goste muito.
- Está bem.
Mas o problema é que eu não conseguia me concentrar. O mais que consegui lembrar foi das duas freiras que andavam coletando dinheiro naquelas cestinhas velhas. Principalmente daquela dos óculos com aro de ferro. E dum garoto que eu conheci no Elkton Hills. Lá no Elkton Hills tinha esse garoto, chamado James Castle, que cismou de não retirar o que ele tinha dito sobre outro garoto muito mascarado, o Phil Stabile. O James Castle tinha dito que ele era muito mascarado e um dos amigos nojentos do Stabile cagüetou tudo. Aí o Stabile e mais uma meia dúzia de sacanas amigos dele foram até o quarto do James Castle, entraram e trancaram a droga da porta, e tentaram obrigá-lo a retirar o que ele tinha dito, mas ele não retirou. Aí eles se serviram. Nem conto o que fizeram com ele - é nojento demais - mas nem assim ele retirou as palavras, o James Castle velho de guerra. E só vendo o James Castle. Era um magricela, todo raquítico, com uns pulsos da grossura de um lápis. Finalmente, em vez de retirar o que tinha dito, o que ele fez foi pular pela janela. Eu estava no meio do banho e tudo, e mesmo assim escutei o baque do corpo lá em baixo. Mas pensei só que alguma coisa tinha caído pela janela, um rádio, ou uma mesa, ou coisa que o valha, e não um garoto. Aí ouvi todo mundo correndo pelo corredor e se despencando escada abaixo. Botei o roupão e também desci correndo, e lá estava o James Castle, caído bem nos degraus de pedra e tudo. Estava morto, os dentes e o sangue espalhados por todo lado, e ninguém nem ao menos chegava perto dele. Estava com um suéter de gola alta que eu havia emprestado a ele. E não aconteceu nada com os caras que estavam no quarto dele, só foram expulsos do colégio. Nem ao menos foram presos.
Isso foi tudo que me veio à cabeça. As duas freirinhas que encontrei no restaurante e esse garoto, o James Castle, que conheci no Elkton Hills. O gozado é que eu mal conhecia o James Castle, pra dizer a verdade. Era um desses camaradas quietos pra chuchu. Era meu colega na classe de matemática, mas se
sentava do outro lado da sala e raramente se levantava para responder a uma pergunta ou para ir ao quadro-negro. Tem uns sujeitos na escola que quase nunca respondem a uma pergunta ou vão ao quadro-negro. Acho que a única vez que conversamos foi quando ele veio pedir emprestado meu suéter de gola alta. Por um triz não caí duro de surpresa quando ele me pediu. Me lembro que estava escovando os dentes, no banheiro, quando ele veio pedir o troço. Contou que um primo dele vinha apanhá-lo para dar um passeio de carro e tudo. Eu nem ao menos sabia que ele sabia que eu tinha um suéter de gola alta. Só sabia que o nome dele vinha bem na frente do meu na lista de chamada. Cabel, R.; Cabel, W.; Castle; Caulfield - ainda me lembro disso. Pra dizer a verdade, quase que não emprestei o suéter. Só porque não conhecia ele direito.
- O quê? - perguntei à Phoebe. Ela tinha me dito alguma coisa que eu não ouvi.
- Você não consegue nem pensar numa coisa.
- Consigo, sim. Consigo.
- Bom, então diz.
- Gosto do Allie - respondi. - E gosto de fazer o que estou fazendo agora. De sentar aqui com você, conversando e pensando numa porção de troços, e...
- O Allie já morreu... Você sempre diz isso! Se alguém já morreu e tudo, e está no céu, então não é mais...
- Sei que o Allie já morreu! Você acha que eu não sei? Mas mesmo assim posso continuar gostando dele, não posso? Pomba, só porque uma pessoa morreu não quer dizer que a gente tem que deixar de gostar dela... Principalmente se era mil vezes melhor do que as pessoas que a gente conhece, e que estão vivas e tudo.
A Phoebe ficou calada. Quando não consegue pensar numa coisa pra dizer, ela trata de ficar caladinha.
- De qualquer maneira, gosto disso aqui, agora. Assim como estou agora. Sentado aqui contigo, batendo papo e só...
- Mas isso não é uma coisa!
- É muita coisa! Claro que é! Por quê que não ia ser? As pessoas nunca acham que um troço assim é alguma coisa. Já estou ficando cheio disso.
- Pára de dizer coisa feia. Tá bem, então diz outro troço. Uma coisa que você quer ser. Assim como cientista... Ou advogado, ou coisa parecida.
- Eu não podia ser cientista. Não sou bom em ciências.
- Então advogado, igual ao papai e tudo.
- Não tenho nada contra os advogados, mas o negócio não me atrai. Até que é bacana quando um advogado está sempre salvando a vida dos sujeitos inocentes e coisas assim, mas um cara que é advogado não faz nada disso. Só faz ganhar um dinheirão, e jogar golfe, e jogar bridge, e comprar carros, e beber martinis, e fazer pinta de bacana. Mesmo se a gente salvasse as vidas dos sujeitos e tudo, como é que ia saber se estava fazendo o troço porque queria mesmo salvar a vida deles, ou porque queria era ser um advogado bom pra burro, pra todo mundo bater nas costas da gente e dar parabéns no tribunal quando acaba a porcaria do julgamento, os repórteres e tudo, como aparece na droga dos filmes? Como é que eu ia saber se não era na verdade um cretino? O problema é que não ia saber.
Não sei muito bem se a danada da Phoebe entendeu o que eu estava dizendo. Ela é muito criança e tudo. Mas, pelo menos, estava escutando. Se uma pessoa pelo menos presta atenção, aí não é tão ruim.
- Papai vai te matar. Vai te matar.
Mas eu nem estava ouvindo. Estava pensando noutro troço, uma coisa amalucada.
- Você sabe o quê que eu quero ser? - perguntei a ela. - Sabe o que é que eu queria ser? Se pudesse fazer a merda da escolha?
- O quê? Pára de dizer nome feio.
- Você conhece aquela cantiga: "Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio"? Eu queria...
- A cantiga é "Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio"! - ela disse. - É dum poema do Robert Burns.
- Eu sei que é dum poema do Robert Burns.
Mas ela tinha razão. É mesmo "Se alguém encontra alguém atravessando o campo de centeio". Mas eu não sabia direito.
- Pensei que era "Se alguém agarra alguém" - falei. - Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso
que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice.
A danada da Phoebe ficou calada um tempão. Aí, quando resolveu falar, foi para dizer: - Papai vai te matar.
- Tou pouco ligando se ele me matar - respondi.
Aí me levantei da cama, porque queria telefonar para um sujeito que tinha sido meu professor de inglês no Elkton Hills, um tal de Antolini. Tinha saído do Elkton Hills e agora vivia em Nova York.
- Tenho de dar um telefonema - disse a ela. - Volto num instante. Não dorme não.
Não queria que ela pegasse no sono enquanto eu estava na sala de visitas. Sabia que ela não ia dormir, mas falei assim mesmo, só para ter certeza.
Enquanto ia andando para a porta, ela me chamou e eu me virei. Estava sentada na cama, toda empertigada. Estava tão bonita.
- Tem uma colega minha, a Phyllis Margulies, que está me ensinando a arrotar - ela disse. - Escuta.
Prestei atenção e ouvi alguma coisa, mas não era lá nada de excepcional.
- Muito bem - falei.
Aí fui para a sala e telefonei para o tal do Professor Antolini.
23
Telefonei um bocado depressa, porque fiquei com medo de que meus pais me pegassem no meio da conversa. Mas não me pegaram. O Professor Antolini foi muito simpático. Me disse que, se quisesse, podia ir imediatamente para a casa dele. Acho que acordei ele e a mulher, porque demoraram um tempão para atender ao telefone. A primeira coisa que me perguntou foi se tinha acontecido alguma coisa, e respondi que não. Mas contei que tinha levado bomba no Pencey. Achei melhor contar logo a ele. Ele disse "Cruz Credo" quando contei. Tinha um senso de humor muito fino e tudo. Me disse para ir imediatamente para a casa dele, se quisesse.
Acho que ele foi o melhor professor que eu já tive na vida. Era um sujeito ainda bem moço, pouco mais velho que meu irmão D. B., e a gente podia brincar com ele sem perder o respeito. Foi ele quem acabou apanhando do chão aquele menino que se atirou da janela, o James Castle. O Professor Antolini sentiu o pulso dele e tudo e, então, tirou o casaco, cobriu o James Castle e o carregou até a enfermaria. Nem se incomodou do casaco dele ficar todo ensangüentado.
Quando voltei ao quarto do D. B., a Phoebe tinha ligado o rádio. Estava tocando música para dançar. Mas ela tinha ligado baixinho, para não acordar a empregada. Valia a pena ver a Phoebe. Estava sentada bem no meio da cama, em cima das cobertas, com as pernas trançadas como um desses caras que fazem ioga. Estava escutando a música. Não agüento com ela.
- Vamos - falei. - Quer dançar?
Fui eu que lhe ensinei a dançar e tudo, quando ela era bem pequenininha. Ela dança muito bem. Eu só tinha ensinado umas coisinhas, o resto ela aprendeu sozinha mesmo. É impossível a gente ensinar tudo a alguém.
- Você está de sapato - ela falou.
- Eu tiro o sapato. Vamos.
Ela praticamente saltou da cama e ficou esperando enquanto eu descalçava os sapatos. E aí dancei com ela durante algum tempo. Ela é mesmo boa pra burro. Não gosto de ver gente grande dançando com criancinhas porque, em geral, fica horrível. Quer dizer, se a gente está num restaurante qualquer e vê um sujeito velho levar a filhinha para a pista de dança. Quase sempre ficam puxando o vestido da menina para cima, sem querer, e a garota não sabe mesmo dançar droga nenhuma. É horrível. Mas não danço em público com a Phoebe nem nada. Só dançamos em casa e de brincadeira. De qualquer jeito, com a Phoebe é diferente, porque ela sabe dançar. Acompanha qualquer passo que a gente dá. Basta segurar ela bem juntinho para acabar com a diferença de tamanho das pernas. Aí ela segue mesmo a gente. Pode-se dar passo cruzado ou aquelas caídas ridículas, e até um pouco de puladinho, que ela segue a gente o tempo todo. A gente pode até dançar tango, no duro.
Dançamos umas quatro músicas. Nos intervalos ela é gozada pra chuchu. Fica na mesma posição de quando acaba a música. Não fala nem nada. A gente também tem que ficar durinho, no mesmo lugar,
esperando que a orquestra comece a tocar outra vez. É infernal. E fica danada se a gente ri ou coisa que o valha.
Dançamos umas quatro músicas e aí desliguei o rádio. Ela pulou de novo na cama e se meteu debaixo das cobertas.
- Estou melhorando, não estou? - perguntou.
- Puxa, e como!
Me sentei outra vez na cama, pertinho dela. Estava meio sem fôlego. Andava fumando tanto que tinha perdido toda a resistência. Ela nem estava sem fôlego.
- Põe a mão na minha testa para ver a temperatura - ela disse de repente.
- Por quê?
- Põe só. Põe só um pouquinho.
Pus a mão na testa dela, mas não senti nada.
- Estou com muita febre?
- Não. E era pra estar?
- É... tou ficando com febre de propósito. Experimenta de novo.
Experimentei outra vez e continuei sem sentir nada, mas falei:
- Acho que agora está começando.
Não queria que ela ficasse com uma droga dum complexo de inferioridade. Ela concordou com a cabeça.
- Posso fazer minha temperatura passar do limite do termônetro.
- Termômetro. Quem é que te disse isso?
- Foi a Alice Holmborg que me ensinou. A gente cruza as pernas, prende a respiração e fica pensando numa coisa bem quente. Um aquecedor ou um troço assim. Aí a testa da gente fica tão quente que queima a mão da outra pessoa.
Essa foi de matar. Tirei depressa a mão da testa dela, como se estivesse correndo perigo de vida.
- Obrigado pelo aviso - falei.
- Ah, não precisa ficar com medo. Eu não ia queimar a tua mão. Parava antes que ficasse... Psiu!
Aí, dum salto, ela se sentou na cama, empertigada pra diabo. Levei um susto desgraçado.
- Quê que houve?
- A porta da frente! - ela disse num sussurro alto. - São eles.
Pulei depressa da cama e apaguei a luz da escrivaninha. Aí apaguei o cigarro na sola do sapato e botei a guimba no bolso. Aí comecei a abanar o quarto como um doido, para espalhar a fumaça - puxa, eu não devia era estar fumando lá. Aí apanhei meus sapatos, me meti no armário e fechei a porta. Puxa, meu coração estava batendo como um filho da mãe.
Ouvi minha mãe entrar no quarto.
- Phoebe? Vamos parar com essa fita. Eu vi a luz acesa, mocinha.
- Olá - ouvi a Phoebe responder. - Não estava conseguindo dormir. Vocês se divertiram muito?
- Muito - minha mãe disse, mas via-se logo que não era verdade. Ela não costumava se divertir muito quando saía.
- Por que é que você ainda está acordada? Estava bem agasalhada?
- Estava bem agasalhada, mas só que não conseguia dormir.
- Phoebe, você andou fumando aqui? Diga a verdade, mocinha, por favor, a verdade.
- O quê? - Phoebe perguntou.
- Você ouviu o que eu disse.
- Só acendi um, um pouquinho só. Só dei uma baforada. Aí joguei pela janela.
- E por quê? Posso saber a razão?
- Não estava conseguindo pegar no sono.
- Não gosto disso, Phoebe. Não gosto nem um pouquinho disso - minha mãe falou. - Quer mais um cobertor?
- Não, obrigada. Té manhã - Phoebe falou. Era evidente que estava querendo se ver livre dela.
- Que tal o filme? - minha mãe perguntou.
- Ótimo. Menos a mãe da Alice. Ficou o tempo todo se debruçando por cima de mim e perguntando se a Alice estava constipada. Isso o filme inteirinho. Viemos para casa de táxi.
- Deixa eu ver tua temperatura.
- Não peguei nada. A Alice não tinha nada. Era só a mãe dela.
- Bem, vai dormir agora. Como é que foi o jantar?
- Uma droga - Phoebe respondeu.
- Seu pai já falou para você não dizer essa palavra. Droga por quê? Tinha uma costeleta deliciosa para você. Andei toda a Avenida Lexington só para...
- A costeleta estava boa, mas o negócio é que a Charlene sempre respira em cima de mim quando põe algum troço na mesa. Respira em cima da comida e tudo. Respira por cima de tudo.
- Bem, vai dormir. Dá um beijo na sua mãe. Você rezou antes de dormir?
- Rezei sim, no banheiro. Té manhã!
- Até amanhã. Agora vai dormir direitinho. Estou com uma dor de cabeça de rachar - minha mãe falou.
Ela quase sempre está com dor de cabeça. No duro mesmo.
- Toma umas aspirinas - a Phoebe falou. - O Holden vem para casa na quarta-feira, não vem?
- Tanto quanto eu saiba. Agora vai entrando embaixo das cobertas. Anda.
Ouvi minha mãe sair e fechar a porta. Esperei uns dois minutos. Aí saí do armário e dei um encontrão com a Phoebe. Estava escuro como breu e ela tinha levantado da cama para vir falar comigo.
- Machuquei você? - perguntei.
Agora a gente tinha de cochichar, porque os velhos estavam em casa.
- Preciso dar o fora.
Encontrei a beirada da cama no escuro, me sentei e comecei a calçar os sapatos. Estava um bocado nervoso, confesso.
- Não vai agora - Phoebe cochichou. - Espera primeiro eles dormirem.
- Não. Já, já. Agora é que é a melhor hora. Mamãe vai estar no banheiro e Papai deve estar ouvindo o noticiário ou coisa parecida.
Mal conseguia segurar o cadarço para dar o laço, de tão nervoso que eu estava. Não que fossem me matar nem nada se me pegassem, mas ia ser muito chato.
- Onde é que você se meteu? - perguntei. Estava tão escuro que nem conseguia ver a Phoebe.
- Aqui - ela respondeu. Estava bem juntinho de mim, mas eu nem tinha visto.
- Deixei a droga da bagagem na estação. Escuta. Você tem algum dinheiro, Phoebe? Estou quase duro.
- Só o meu dinheiro pro Natal. Para os presentes e tudo. Ainda não fiz nenhuma compra.
- Ah.
Não queria ficar com o dinheiro dela pro Natal.
- Você quer algum?
- Não quero ficar com teu dinheiro de Natal.
- Posso te emprestar algum.
Aí senti que ela estava remexendo na escrivaninha do D.B., abrindo um milhão de gavetas e tateando por todo o canto. O quarto estava na maior escuridão.
- Se você for embora, não vai me ver trabalhar na peça - ela disse. Falou isso com uma voz esquisita.
- Vou ver sim. Não vou embora antes disso. Você acha que eu quero perder a peça? Sabe o quê que eu vou fazer? Acho que vou ficar na casa do Professor Antolini até terça-feira de noite, mais ou menos, e aí venho para casa. Se der jeito ligo pra você.
- Toma - ela disse. Estava procurando minha mão para me dar o dinheiro, mas não achava.
- Onde?
Botou o dinheiro na minha mão.
- Êi, não preciso disso tudo. Me dá só uns dois dólares. É sério... toma...
Tentei dar o dinheiro de volta, mas ela não quis receber.
- Pode levar tudo e depois você me paga, no dia da peça. Tá bem?
- Afinal, quanto é que tem aqui?
- Oito dólares e oitenta e cinco cêntimos. Não, sessenta e cinco. Gastei um pouco.
Aí, de repente, comecei a chorar. Não consegui evitar o troço. Chorei baixinho para que ninguém me ouvisse, mas chorei. A Phoebe ficou apavorada quando me viu chorar e veio para perto de mim, me pedindo para parar. Mas depois que a gente começa, não consegue parar assim à toa. Quando comecei a chorar ainda estava sentado na beira da cama, e aí ela passou o braço por trás do meu pescoço e eu também pus o meu em volta dela, mas nem assim consegui parar. Chorei um tempão. Pensei que ia morrer sufocado ou coisa que o valha. Puxa, nunca vi a pobrezinha da Phoebe tão apavorada. A droga da janela estava aberta e a Phoebe estava tremendo e tudo, porque só estava com o pijama em cima da pele. Mandei ela voltar para a cama, mas ela não quis. Até que enfim consegui parar de chorar. Mas custou um bocado. Aí acabei de abotoar o sobretudo e prometi a ela que ia telefonar. Respondeu que, se eu quisesse, podia dormir com ela, mas eu disse que não, que era melhor dar no pé, porque o Professor Antolini estava me esperando e tudo. Aí tirei o chapéu de caça do bolso e dei para ela. Ela gosta desses chapéus malucos. Só a muito custo aceitou. Sou capaz de
apostar que dormiu com ele na cabeça. Ela gosta muito mesmo desse tipo de chapéu. Aí eu disse de novo que ligava para ela, se desse jeito, e saí.
Não sei porque, mas foi muito mais fácil sair de casa do que entrar. Uma das razões é que eu já estava pouco ligando de ser apanhado ou não. No duro, mesmo. Se pegassem, pegavam e pronto. De certa maneira, quase desejei que me apanhassem.
Desci a vida toda pela escada, em vez de tomar o elevador. Fui pela escada dos fundos. Por pouco não quebrei o pescoço nuns dez milhões de latas de lixo, mas saí direitinho. O cabineiro nem me viu. Provavelmente, até agora ainda continua pensando que eu estou no apartamento dos Dicksteins.
24
O Professor Antolini e a mulher tinham um apartamento grã-finérrimo em Sutton Place, desses que a gente tem que descer dois degrauzinhos para entrar na sala de visitas, e com um bar e tudo. Eu já tinha ido lá algumas vezes, porque depois que saí do Elkton Hills o Professor Antolini ia freqüentemente jantar lá em casa, para saber como eu estava indo. Nessa época ele ainda, era solteiro. Depois que casou, andei jogando tênis com ele e a mulher, no clube de tênis West Side, em Forest Hills, Long Island. Ela era sócia de lá, era mesmo podre de rica. Era mais velha que o Professor Antolini uns sessenta anos, mas os dois pareciam se dar muito bem. Em parte porque eram muito intelectuais, especialmente o Professor Antolini, apesar dele dar a impressão de ser mais espirituoso do que realmente intelectual quando estava com a gente, assim mais ou menos como o D.B. A mulher dele era mais séria. Sofria muito de asma. Os dois haviam lido todos os contos do D.B. - a Senhora Antolini também - e, quando o D.B. foi para Hollywood, o Professor telefonou para ele, dizendo que não fosse. Mas ele foi assim mesmo. O Professor Antolini disse que uma pessoa que escrevia como o D.B. não tinha nada que ir para Hollywood. Foi praticamente a mesma coisa que eu disse.
Eu teria ido a pé à casa dele, porque só em último caso pensava gastar o dinheiro de Natal da Phoebe, mas me senti meio esquisito quando cheguei lá fora. Meio tonto. Por isso tomei um táxi. Não queria, mas tomei. Tive um trabalhão desgraçado só para encontrar um táxi.
Quando o safado do cabineiro resolveu afinal me deixar subir, toquei a campainha e quem veio abrir foi o próprio Professor Antolini. Estava de robe e chinelos e um copo de bebida na mão. Era um cara um bocado sofisticado e também bebia pra chuchu.
- Holden, meu filho! - ele disse. - Ora veja, cresceu mais uns cinco centímetros. Que prazer vê-lo por aqui.
- Como vai o senhor? Como está sua senhora?
- Tudo bem. Me dê seu casaco.
Me ajudou a tirar o sobretudo e guardou.
- Estava esperando vê-lo com um recém-nascido nos braços. Sem ninguém no mundo para quem apelar. Flocos de neve nas pestanas.
Ele às vezes é um camarada muito espirituoso. Virou-se e gritou para a cozinha:
- Lilian! Esse café está saindo?
Lilian era o nome da mulher dele.
- Está prontinho - ela gritou de lá. - É o Holden que está aí? Como vai, Holden?
- Bem, e a senhora?
A gente vivia gritando naquela casa, porque os dois, nunca estavam na mesma sala ao mesmo tempo. Chegava a ser engraçado.
- Sente-se, Holden - disse o professor. Via-se logo que ele estava meio alto. Pelo jeito da sala, parecia que tinham dado alguma festa. Tinha copos e pratinhos com amendoim por todo o canto.
- Desculpe a desordem - ele disse. - Estivemos recebendo uns amigos de Lilian, lá de Bufallo... Uns búfalos, para falar a verdade.
Dei uma risada, e a senhora Antolini gritou qualquer.coisa para mim lá da cozinha, mas não entendi.
- Quê que ela disse? - perguntei ao Professor Antolini.
- Disse para você não olhar para ela quando entrar, porque acabou de sair da cama. Cigarro? Você agora está fumando?
- Obrigado - respondi, e tirei um cigarro da caixa que ele me estendeu. - Só de vez em quando. Sou um fumante moderado.
- Acredito muito - ele falou. Acendeu meu cigarro com um baita isqueiro de mesa. - Muito bem. Quer dizer que o Pencey e você se divorciaram.
Tinha a mania de dizer as coisas assim. Às vezes me divertia um bocado, outras vezes não. Exagerava um pouquinho. Não é que não fosse espirituoso nem nada - isso ele era - mas de vez em quando a gente se irrita quando uma pessoa vive dizendo coisas assim como "Quer dizer que o Pencey e você se divorciaram". D.B. de vez em quando também exagera um pouco nesse troço.
- O que é que houve? Como é que você foi em inglês? Ponho-o na rua agora mesmo se você tiver sido reprovado em inglês, seu craque na redação.
- Não, passei em inglês direitinho. Mas quase que só demos literatura. Só escrevi umas duas redações durante o ano todo. Mas fui reprovado em Expressão Oral. Lá eles tinham esse curso obrigatório. Expressão Oral. Nisso fui reprovado.
- Por quê?
- Ah, sei lá.
Não estava com muita vontade de falar no assunto. Me sentia ainda meio tonto ou coisa parecida, e de repente fiquei com uma dor de cabeça desgraçada. Fiquei mesmo. Mas ele parecia realmente interessado, por isso resolvi contar alguma coisa.
- É um curso em que cada aluno tem que se levantar na aula e fazer um discurso. Sabe como é. Com espontaneidade e tudo. E, se o sujeito sai um pouquinho do assunto, todo mundo tem que gritar: "Digressão !" o mais depressa possível. O negócio me deixava meio maluco. Tirei uma nota horrível.
- Por quê?
- Ah, sei lá. Aquela estória de digressão me chateava. Sei lá. O problema comigo é que eu gosto quando um sujeito sai do assunto. É mais interessante e tudo.
- Você não gosta que uma pessoa seja objetiva quando conta uma estória?
- Claro! Gosto que a pessoa seja objetiva e tudo. Mas não gosto que seja objetiva demais. Não sei. Acho que não gosto quando a pessoa é objetiva o tempo todo. Os garotos que conseguiam as melhores notas em Expressão Oral eram objetivos o tempo todo, isso eram. Mas tinha um garoto, o Richard Kinsella. Ele não era muito objetivo e a turma vivia gritando "Digressão !" quando ele falava. Era horrível. Primeiro porque ele era um cara muito nervoso. Isso mesmo, nervosíssimo - e, quando chegava a hora de falar, os lábios dele começavam a tremer e, do fundo da sala, a gente mal conseguia ouvir o que ele estava dizendo. Mas, quando os lábios dele paravam um pouco de tremer, eu gostava dos discursos dele mais do que os de qualquer outro sujeito. Ele também quase foi reprovado. Passou raspando, porque a turma vivia gritando "Digressão !" para ele. Por exemplo, ele fez um discurso sobre uma fazenda que o pai dele tinha comprado em Vermont. O tempo inteirinho que ele falou a turma ficou gritando "Digressão !" e o professor, um tal de Vinson, deu-lhe uma nota ruim pra diabo porque ele não contou que espécie de animais e legumes e outros troços tinha lá na fazenda e tudo. Sabe o quê que ele fazia? Começava contando essas coisas todas e aí, de repente, começava a falar de uma carta que a mãe dele tinha recebido do tio, e que o tio teve poliomielite e tudo aos quarenta e dois anos de idade, e se recusava a receber visitas no hospital porque não queria que ninguém o visse com a perna na tipóia. Não tinha muita ligação com a fazenda, concordo, mas era simpático. É um troço simpático quando alguém fala de um tio. Principalmente quando começa a falar da fazenda do pai e, de repente, fica mais interessado no tio. O negócio é que eu acho uma sujeira começarem a gritar "Digressão !" pra um sujeito quando ele está todo embalado num assunto... Não sei. É difícil de explicar.
Eu nem estava com muita vontade de tentar. Em parte por causa daquela dor de cabeça desgraçada. Pedi a Deus que a senhora Antolini chegasse com o café. Se há uma coisa que me aporrinha é isso, quando alguém diz que o café está pronto e não está pronto coisa nenhuma.
- Holden... Uma perguntinha pedagógica e um pouquinho batida. Você não acha que há um tempo e um lugar para tudo na vida? Você não acha que, se alguém começa a falar sobre a fazenda do pai, deve agüentar a mão e, depois, arranjar um jeito de falar sobre a tipóia do tio? Ou, então, se a tipóia do tio é um assunto tão fascinante, ele não devia tê-lo escolhido logo como tema da exposição, em vez da fazenda?
Eu não estava com muita vontade de pensar e responder e tudo. Estava com dor de cabeça e me sentia podre. Estava até com um pouco de dor de barriga, para falar a verdade.
- Acho... Sei lá. Acho que sim. Quer dizer, acho que devia ter escolhido o tio como tema, em vez da fazenda, se isso era mais interessante para ele. Mas o caso é que, muitas vezes, a gente só descobre o que interessa mais na hora que começa a falar sobre uma coisa que não interessa muito. Quer dizer, às vezes a gente não consegue evitar isso. O que eu acho é que a gente deve deixar em paz uma pessoa que começa a contar uma estória, se a estória é pelo menos interessante e o sujeito se anima todo com o assunto. Gosto de ver uma pessoa ficar toda animada com o assunto. É bonito. O senhor não conhece esse professor, o tal do
Vinson. Ele às vezes deixava a gente maluco, ele e a droga da turma. Vivia dizendo à gente para unificar e simplificar. Há coisas que a gente simplesmente não pode fazer assim. O negócio é que a gente quase nunca consegue simplificar e unificar um troço, só porque alguém mandou. O senhor não conhece esse camarada, o Professor Vinson. Era muito inteligente e tudo, mas estava na cara que era meio tapado.
- Café, senhores, enfim - disse a senhora Antolini. Entrou com uma bandeja com café e bolos e outros troços. - Holden, nem olhe na minha direção. Estou uma coisa.
- Como vai a senhora? - falei. Fiz menção de me levantar e tudo, mas o Professor Antolini me segurou pelo paletó e me obrigou a sentar. Ela estava com a cabeça cheia desses rolos de ondular cabelo e sem um pingo de pintura. Não estava nada bonita. Parecia um bocado velha e tudo.
- Vou deixar isso aqui. Sirvam-se à vontade - falou. Pôs a bandeja na mesinha do centro, empurrando para o lado um montão de copos. - Como vai sua mãe, Holden?
- Muito bem, obrigado. Não a tenho visto ultimamente, mas a última vez...
- Querido, se o Holden precisar de alguma coisa, está tudo no armário da roupa de cama. Prateleira de cima. Vou me deitar. Estou exausta - ela disse. E dava impressão de estar mesmo. - Será que vocês dois sabem arrumar o sofá sozinhos?
- Pode ir dormir descansada que nós cuidamos de tudo - o Professor Antolini respondeu. Deu um beijo nela, ela me disse até logo e foi para o quarto. Os dois viviam se beijando em público.
Tomei meia xícara de café e comi metade de um pedaço de bolo, mais duro do que pedra. O Professor Antolini se contentou com outro drinque, e forte à beça. Se ele não tomar cuidado ainda acaba viciado.
- Almocei com o seu pai há umas duas semanas - ele falou de repente. - Você sabia?
- Não, não sabia.
- Você não ignora, naturalmente, que ele anda muito preocupado com você.
- Sei disso. Sei que anda.
- Tudo indica que, antes de me telefonar, ele tinha recebido uma carta enorme e bastante perturbadora do seu último diretor, informando que você não estava fazendo o mínimo esforço. Matando aulas. Não preparando as lições. Em suma, sendo um completo...
- Não matei aula nenhuma. Não havia jeito. De vez em quando eu deixava de assistir às aulas de umas duas matérias, como a tal de Expressão Oral que eu falei antes. Matar mesmo, não matei...
Não estava com a menor vontade de discutir o troço. Minha dor de barriga tinha diminuído um pouco com o café, mas aquela dor de cabeça miserável, continuava.
O Professor Antolini acendeu outro cigarro. Ele fumava como uma chaminé. Aí falou:
- Francamente, Holden, não sei o que lhe dizer.
- Eu sei. É difícil falar comigo. Compreendo.
- Tenho a impressão de que você está caminhando para alguma espécie de queda... uma queda tremenda. Mas, honestamente, não sei de que espécie... Está me ouvindo?
- Estou.
A gente via logo que ele estava procurando se concentrar e tudo.
- Talvez da espécie que faz com que a gente, aos trinta anos, se sente num bar e odeie todo mundo que entra com jeito de quem jogou futebol numa universidade. Ou, então, você conseguirá instruir-se o bastante para odiar todo mundo que diz: "É um segredo entre mim e você". Ou talvez acabe em algum escritório, atirando clipes na taquígrafa mais próxima. Não sei mesmo. Mas você entende o que estou querendo dizer, não entende?
- Entendo - respondi. E entendia mesmo. - Mas o senhor se engana sobre esse negócio de odiar os jogadores de futebol e tudo. O senhor se engana mesmo. Não tenho raiva de muita gente. Pode ser que, de vez em quando, eu odeie alguns sujeitos durante algum tempo, como esse cara que eu conheci no Pencey, o Stradlater, ou esse outro sujeito, o Robert Ackley. De vez em quando eu tinha ódio deles, confesso, mas isso não dura muito, esse é que é o caso. Depois de algum tempo, se eu não os visse, se não vinham ao meu quarto, ou se eu passava umas duas refeições sem encontrar com eles no refeitório - chegava a sentir falta deles. É isso mesmo, chegava a ficar com saudade deles.
O Professor Antolini ficou uns dois minutos em silêncio. Levantou-se, apanhou outro pedaço de gelo, deixou cair no copo e aí sentou de novo. Via-se que ele estava pensando. Fiquei torcendo para que ele deixasse a conversa para outro dia, em vez de continuar naquela hora, mas ele estava embalado. Em geral, as pessoas se esquentam numa discussão na hora que a gente está mais frio.
- Está bem. Agora, escuta aqui um momento... Pode ser que eu não consiga expressar isso tão bem quanto eu gostaria, mas escrevo uma carta para você amanhã ou depois explicando tudo. Aí você vai entender direitinho. De qualquer maneira presta atenção agora.
Começou a se concentrar outra vez, e aí disse:
- Esta queda para a qual você está caminhando é um tipo especial de queda, um tipo horrível. O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir ou sentir o baque do seu corpo no fundo. Apenas cai e cai. A coisa toda se aplica aos homens que, num momento ou outro de suas vidas, procuram alguma coisa que seu próprio meio não lhes podia proporcionar. Ou que pensavam que seu próprio meio não lhes poderia proporcionar. Por isso, abandonam a busca. Abandonam a busca antes mesmo de começá-la de verdade. Tá me entendendo?
- Sim, senhor.
- Está mesmo?
- Estou sim.
Levantou-se e despejou mais um pouco de bebida no copo. Aí se sentou de novo. Ficou um bocado de tempo sem dizer nada.
- Não quero te assustar - ele disse - mas vejo você, com toda a clareza, morrendo nobremente, de uma forma ou de outra por uma causa qualquer absolutamente indigna.
Me olhou de um jeito engraçado.
- Se eu escrever umas palavras para você, promete que vai ler cuidadosamente? E guardar?
- Prometo, sim - respondi. E era verdade. Até hoje guardo o papel que ele me deu.
Foi até a escrivaninha, no outro lado da sala, e escreveu alguma coisa num pedaço de papel, sem se sentar. Aí voltou e se sentou, com o papel na mão.
- Por estranho que pareça, isso não foi escrito por um poeta. Foi escrito por um psicanalista chamado Wilhelm Stekel. Aqui está o que ele... Você ainda está me ouvindo?
- Claro que estou.
- Aqui está o que ele disse: "A característica do homem imaturo é aspirar a morrer nobremente por uma causa, enquanto que a característica do homem maduro é querer viver humildemente por uma causa".
Inclinou-se e me passou o pedaço de papel. Li imediatamente o que estava escrito, agradeci e tudo, e guardei o papel no bolso. Foi muito simpático da parte dele incomodar-se tanto por minha causa. Foi mesmo. Mas a verdade é que eu não estava realmente com muita vontade de me concentrar. Puxa, nunca me senti tão cansado, assim de repente.
Mas ele não dava a menor impressão de cansaço. Em parte porque estava bastante alto.
- Acho que um desses dias - ele falou - você vai ter que decidir para onde quer ir. E aí vai ter que começar a ir para lá. E sem perda de tempo. No seu caso, não se pode perder um minuto que seja.
Concordei com a cabeça, porque ele estava me encarando e tudo, mas não estava entendendo muito bem o que ele disse. Eu achava que sabia o que era, mas, naquele momento, não tinha certeza absoluta. Estava cansado pra diabo.
- Detesto dizer isso, mas acho que, assim que você tiver uma idéia de onde quer chegar, seu primeiro passo vai ser aplicar-se no colégio. É o que você vai ter que fazer. Você é um estudante - quer a idéia lhe agrade ou não. Você está apaixonado pelo conhecimento. E eu acho que você vai encontrar, depois que deixar para trás todos esses Professores Vineses e suas composições e...
- Vinsons - falei. Ele queria dizer todos os Professores Vinsons, e não todos os Professores Vineses. Mas eu não devia ter interrompido.
- Está bem... os Professores Vinsons. Na hora em que você conseguir deixar para trás todos os Professores Vinsons, você vai começar a se aproximar cada vez mais - isto é, se você quiser, e se procurar, e se tiver paciência de esperar - da espécie de conhecimento que será muito, muito importante para você. Entre outras coisas, você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enojada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho nesse terreno, e se sentirá estimulado e entusiasmado quando souber disso. Muitos homens, muitos mesmo, enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser. Da mesma forma que, algum dia, se você tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa de você. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. É história. É poesia.
Parou e tomou um longo gole do copo. Aí recomeçou. Puxa, ele estava embalado mesmo. Fiquei feliz por não ter tentado interrompê-lo nem nada.
- Não estou querendo dizer que só os homens instruídos e cultos são capazes de contribuir com algo valioso para o mundo. Não é isso. O que eu quero dizer é que os homens instruídos e cultos, se de fato tiverem brilho e capacidade criadora - o que, infelizmente, é raro - tendem a deixar registros infinitamente mais valiosos do que aqueles que apenas têm brilho e capacidade criadora. Tendem a se expressar com mais
clareza e, geralmente, têm a paixão de desenvolver seu pensamento até o fim. E - o que é mais importante - na grande maioria dos casos têm mais humildade do que o pensador menos culto. Você está me acompanhando?
- Sim, senhor.
Ficou outra vez sem dizer nada por um tempão. Não sei se isso acontece com todo mundo, mas é meio chato a gente ficar sentado, esperando uma pessoa dizer alguma coisa, enquanto ela está pensando. É duro mesmo. Fiquei me esforçando para não bocejar. Não que eu estivesse chateado ou coisa parecida - não estava -mas de repente me deu um sono filho da mãe.
- Há outra coisa que uma educação acadêmica poderá proporcionar a você. Se você prosseguir nela por um tempo razoável, ela acabará lhe dando uma idéia das dimensões da sua mente. Do que ela comporta e, talvez, do que ela não comporta. Depois de algum tempo, você vai ter uma idéia do tipo de pensamento que sua mente deve abrigar. A vantagem disso é que talvez lhe poupe uma enormidade de tempo, que você perderia experimentando idéias que não se ajustam a você, não combinam com você. Você começará a conhecer as suas medidas exatas, e vestirá sua mente de acordo com elas.
Aí, de repente, bocejei. Era o tipo da grossura, mas não pude evitar.
Mas o Professor Antolini só fez rir.
- Vamos - ele disse, e se levantou. - Vamos arrumar o sofá.
Eu o acompanhei até o armário. Ele tentou tirar alguns lençóis e cobertores da prateleira de cima, mas, com o copo na mão, não conseguia. Por isso, bebeu o que restava, pôs o copo no chão e aí tirou os troços. Ajudei-o a trazer tudo para o sofá e fizemos a cama juntos. Ele não tinha muito jeito para a coisa. Não sabia esticar e prender nada direito. Mas não me importei. Estava tão cansado que seria capaz de dormir em pé.
- Como vão as suas mulheres todas?
- Vão indo - respondi. Em matéria de conversa eu estava uma droga, mas não queria me esforçar.
- Como vai a Sally?
Ele conhecia a Sally. Eu a tinha apresentado a ele uma vez.
- Vai bem. Saí com ela hoje de tarde - falei. Puxa, até parecia que tinham passado uns vinte anos. - Quase não temos mais nada em comum.
- Ela é uma garota bonita pra burro. E aquela outra menina? Aquela de quem você me falou, do Maine?
- Ah, sei... a Jane Gallagher. Ela é uma boa garota. Acho até que vou dar um telefonema para ela amanhã.
A essa altura já tínhamos acabado de fazer a cama.
- É toda tua - ele disse. - Não sei que diabo você vai fazer com tanta perna.
- Não tem importância. Já estou acostumado a dormir em camas curtas - respondi. - Muito obrigado. O senhor e a senhora Antolini salvaram mesmo a minha vida hoje.
- Você sabe onde é o banheiro. Se precisar de alguma coisa, basta dar um berro. Vou ficar ainda um bocadinho na cozinha... A luz te incomoda?
- Não, nem um pouquinho. Muito obrigado.
- Está bem. Boa noite, bonitão.
- Boa noite, Professor. Muito obrigado.
Ele foi para a cozinha e eu tirei a roupa no banheiro. Não pude escovar os dentes porque não havia trazido escova. Também não tinha pijama, e o Professor Antolini se havia esquecido de me emprestar um. Voltei para a sala, apaguei o abajur junto do sofá e me deitei só de cuecas. O sofá era um bocado pequeno para mim, mas na verdade eu seria capaz de dormir em pé, sem pestanejar. Fiquei acordado só uns dois segundos, pensando nos troços que o Professor tinha dito. Aquela estória de descobrir o tamanho da mente e tudo. Ele era mesmo um camarada inteligente pra chuchu. Mas não consegui ficar com a droga dos olhos abertos e peguei no sono.
Aí aconteceu um troço. Não gosto nem de falar no assunto.
Acordei de repente. Não sei que horas eram nem nada, só sei que acordei. Senti uma coisa na minha cabeça, a mão de uma pessoa. Puxa, fiquei apavorado pra diabo. Num instante vi que era a mão do Professor Antolini. Sabe o quê que ele estava fazendo? Estava sentado no chão, ao lado do sofá, no escuro e tudo, e estava assim me fazendo festinha ou um carinho na cabeça. Puxa, devo ter dado um pulo duns mil metros.
- Que negócio é esse?
- Nada, estou sentado aqui, admirando...
- Quê que há, afinal? - perguntei de novo. Não sabia que droga ia falar, estava confuso pra burro.
- Que tal falar um pouquinho mais baixo? Estou só sentado aqui...
- Está mesmo na hora de ir embora - falei. Puxa, como eu estava nervoso. Comecei a vestir a porcaria das minhas calças no escuro. Quase não acertava, de tão nervoso. Conheço mais tarados, nas escolas e tudo, do que qualquer pessoa, e eles sempre resolvem ser tarados na hora que eu estou por perto.
- Onde é que você tem que ir? - ele me perguntou. Estava tentando aparentar muita naturalidade e controle e tudo, mas não estava natural coisíssima nenhuma. No duro.
- Deixei minha bagagem e tudo na estação. Acho melhor ir buscar. Todos os meus troços estão lá dentro.
- As malas vão estar no mesmo lugar amanhã de manhã. Agora trata de voltar para a cama. Também vou me deitar. Quê que houve com você?
- Nada. Só que todo o meu dinheiro e meus troços estão nas malas. Volto daqui a pouco. Apanho um táxi e volto num instante - falei. Puxa, estava me embaralhando todo, no escuro. - O problema é que o dinheiro não é meu, é da minha mãe, e eu...
- Não seja ridículo, Holden. Volta para a cama. É o que eu vou fazer também. O dinheiro está bem seguro até de manhã...
- Não, fora de brincadeira, tenho que ir. Tenho mesmo.
Tinha quase acabado de me vestir, só que não achava a gravata. Não me lembrava onde tinha deixado a droga da gravata. Vesti o paletó e tudo, sem ela mesmo. O Professor Antolini estava sentado agora na poltrona grande, um pouco afastado de mim, me espiando. Estava escuro e tudo e não dava para vê-lo direito, mas eu sabia que ele estava me olhando, sem a menor dúvida. E também continuava bebendo. Dava para ver, na mão dele, o copo de estimação.
- Você é um garoto muito estranho. Muito estranho mesmo.
- Sei disso - respondi. Nem me dei ao trabalho de procurar muito pela gravata. Fui embora sem ela. - Até logo, Professor. Muito obrigado. Fora de brincadeira.
Ele me acompanhou até a saída e, quando chamei o elevador, continuou parado na droga da porta. Ficou só repetindo aquela estória de que eu era "um garoto muito estranho, muito estranho mesmo". Estranho uma ova. Ele ficou esperando a titica do elevador chegar. Juro que nunca vi um elevador demorar tanto em toda a droga de minha vida. Eu não sabia que porcaria ia dizer enquanto o elevador não vinha, e ele continuava ali, em pé, por isso falei:
- Vou começar a ler uns bons livros. Vou mesmo.
O negócio é que eu tinha que dizer alguma coisa.
Era uma situação embaraçosa pra burro.
- Apanha tua bagagem e volta correndo pra cá. Vou deixar a porta só encostada.
- Muito obrigado. Até logo!
Até que enfim o elevador tinha chegado. Entrei e desci. Puxa, eu estava tremendo feito um desgraçado. E suando também. Quando me acontece um troço assim meio tarado, começo a suar como um filho da mãe. Esse tipo de coisa já me aconteceu mais de vinte vezes, desde que eu era garotinho. Não agüento isso.
25
Quando cheguei lá fora o dia estava começando a clarear. Fazia também um frio desgraçado, mas até que me senti bem, de tão suado que eu estava.
Não tinha a mínima idéia para onde ir. Não queria me meter em outro hotel e gastar todo o dinheiro da Phoebe. Afinal, fui andando até a Avenida Lexington e tomei o metrô para a Estação Grand Central. Tinha deixado as minhas malas lá e tudo, e pensei em dormir naquele salão de espera enorme, onde tem um milhão de bancos. Foi o que acabei fazendo. No começo até que não foi tão ruim, porque havia pouca gente por ali e eu podia pôr os pés em cima do banco. Mas não tenho muita vontade de falar sobre isso. Não foi nada agradável. A gente não devia nunca ter de fazer um troço desses. No duro, é um bocado deprimente.
Só consegui dormir até umas nove horas porque aí milhões de pessoas começaram a entrar no saguão e tive que tirar os pés de cima do banco. Não consigo dormir direito com os pés no chão, e não tinha mesmo outro jeito senão ficar sentado. Ainda estava com dor de cabeça, só que agora pior ainda, e acho que nunca me senti tão deprimido em toda a minha vida.
Bem que eu não queria, mas comecei a pensar no Professor Antolini e no que ele ia ter que dizer à mulher dele quando ela visse que eu não tinha dormido lá nem nada. Essa parte até que não me incomodava muito, porque eu sabia que o Professor Antolini era bastante inteligente para inventar alguma coisa para dizer
a ela. Podia dizer que eu tinha ido para casa ou coisa parecida. Essa parte não me preocupava muito. O que me chateava mesmo era esse negócio de eu ter acordado e encontrado o Professor fazendo festinha na minha cabeça e tudo. Chegava a pensar que podia ter sido um engano meu e que, afinal de contas, ele não estivesse me fazendo um carinho aveadado. Talvez ele só gostasse mesmo era de fazer festinha na cabeça da gente, enquanto a gente dormia. Como é que se pode ter certeza de um troço desses? É impossível. Comecei até a pensar se não devia pegar minhas malas e voltar para a casa dele, como havia dito que ia fazer. Pensei que, mesmo que fosse veado, ele tinha sido um bocado bom comigo. Nem tinha se importado de eu telefonar tão tarde para ele, e me havia dito que fosse imediatamente para lá, se quisesse. E tinha tido um trabalhão para me aconselhar sobre aquele negócio da gente descobrir o tamanho da nossa mente e tudo. E foi o único sujeito que chegou perto daquele garoto, o James Castle, no dia em que ele morreu. Pensei nisso tudo. E, quanto mais pensava, mais deprimido ficava. Comecei a achar que talvez eu devesse voltar para a casa dele. Possivelmente, ele só estava mesmo me fazendo festinha na cabeça à toa, sem maldade nenhuma. Mas, quanto mais eu pensava no troço todo, mais deprimido e confuso ia ficando. Para piorar tudo ainda, meus olhos estavam me incomodando um bocado. Estavam irritados e ardendo, pela falta de sono. Além disso eu estava começando a ficar resfriado e não tinha nem uma porcaria dum lenço no bolso. Tinha alguns na mala, mas não estava com a mínima vontade de tirá-la de dentro do armário de aço e abrir ali, bem na frente de todo mundo.
Alguém tinha deixado uma revista no banco, ao meu lado, e comecei a ler, achando que assim ia parar de pensar no Professor Antolini e num milhão de outras coisas, pelo menos durante algum tempo. Mas a porcaria do artigo que comecei a ler quase que me fez sentir pior ainda. Era sobre os hormônios. Mostrava a aparência que a gente deve ter - a cara, os olhos e tudo - quando os hormônios estão funcionando direito, e eu estava todo ao contrário. Estava parecendo exatamente com o sujeito do artigo, que estava com os hormônios todos funcionando errado. Por isso comecei a ficar preocupado com os meus hormônios. Aí li outro artigo, sobre a maneira pela qual a gente pode saber se tem câncer ou não. Dizia lá que, se a gente tem alguma ferida na boca que demora a sarar, então isso é sinal de que a gente provavelmente está com câncer. E eu já estava com aquele machucado na parte de dentro do lábio há umas duas semanas. Por isso imaginei que estava pegando um câncer. A tal revista era um bocado boa para levantar o moral da gente. Acabei parando de ler e saí para dar uma volta. Calculei que devia morrer dentro de uns dois meses, já que estava com câncer. Foi mesmo. Eu estava certo de que ia morrer. Evidentemente, essa idéia não me deixou muito satisfeito.
Estava com jeito de que ia chover, mas saí andando assim mesmo. Em parte porque achei que devia comer alguma coisa. Não tinha a menor fome, mas achei que precisava pelo menos me alimentar um pouco. Quer dizer, pelo menos tomar algum troço que tivesse umas vitaminas. Por isso comecei a andar na direção leste, onde tem uma porção de restaurantes baratos, porque não estava a fim de gastar um dinheirão.
Enquanto ia andando, passei por dois sujeitos que estavam descarregando uma baita árvore de Natal dum caminhão. Um deles ficava só falando para o outro: "Segura essa filha da puta! Segura mesmo!" Certamente, era o tipo da maneira delicada de se referir a uma árvore de Natal. Mas até que tinha sua graça, assim dum jeito meio infeliz, e eu mais ou menos comecei a rir. Foi a pior coisa que eu podia ter feito, porque mal comecei a rir, pensei que fosse vomitar. No duro. Cheguei mesmo a começar, mas logo passou. Sei lá por quê. Afinal de contas, não tinha comido nada estragado ou coisa que o valha, e normalmente tenho um estômago um bocado forte. De qualquer forma, consegui me agüentar e imaginei que ia me sentir melhor se comesse alguma coisa. Entrei num restaurante vagabundo e pedi café com roscas. Não houve jeito de engolir direito. O caso é que, quando a gente está muito deprimido, é difícil como o diabo engolir qualquer coisa. Mas o garçon foi simpático: levou as roscas de volta sem me cobrar nada por elas. Só bebi o café. Aí saí e fui andando em direção à Quinta Avenida.
Era uma segunda-feira e tudo, pertinho do Natal, e todas as lojas estavam abertas. Por isso, até que não era de todo mau caminhar pela Quinta Avenida, que estava um bocado natalina. Tinha toda aquela porção de Papais Noéis magricelas nas esquinas, cada um sacudindo seu sino, e todas aquelas mulheres do Exército da Salvação, as tais que não usam baton nem nada, também badalando seus sininhos. Fiquei mais ou menos procurando aquelas duas freiras que eu tinha encontrado na véspera, tomando o café da manhã, mas não as vi. Sabia que não ia vê-las mesmo, porque elas me haviam dito que tinham vindo para Nova York para ser professoras, mas de qualquer maneira continuei a procurar por elas. Seja como for, de repente estava tudo um bocado natalino. Um milhão de crianças zanzavam pelo centro da cidade com as mães, subindo e descendo dos ônibus, entrando e saindo das lojas. Queria que a Phoebe estivesse ali comigo. Ela já não é tão pequena que ainda fique inteiramente alucinada na seção de brinquedos, mas gosta de circular e olhar as pessoas. No Natal passado levei-a à cidade para fazer compras comigo. Nos divertimos pra chuchu. Acho que foi na Loja Bloomingdale. Fomos na seção de sapatos e fizemos de conta que ela - Phoebe - queria um par dessas
galochas altas, dessas que têm mais ou menos um milhão de casas para passar o cadarço. O vendedor quase ficou maluco. A doida da Phoebe experimentou uns vinte pares, e cada vez o infeliz tinha que amarrar um pé até em cima. Era o tipo da maldade, mas a Phoebe se divertiu barbaramente. Afinal, compramos um par de mocassins e mandamos pôr na conta. O vendedor até que foi muito simpático. Acho que ele sabia que nós estávamos só de brincadeira porque a Phoebe fica rindo o tempo todo.
De qualquer modo, continuei andando toda a vida pela Quinta Avenida, sem gravata nem nada. Aí, de repente, começou a acontecer um negócio um bocado fantasmagórico. Cada vez que eu chegava ao fim de um quarteirão e descia o meio-fio, tinha a sensação de que nunca chegaria ao outro lado da rua. Pensava que ia caindo, caindo, caindo, e nunca mais ninguém ia me ver. Puxa, fiquei apavorado pra burro. Ninguém imagina o medão que me deu. Comecei a suar como um filho da mãe, molhei toda a camisa, a roupa de baixo, tudo. Aí comecei a fazer outro troço: cada vez que chegava ao fim do quarteirão, fazia de conta que estava falando com o meu irmão Allie. Dizia pra ele: "Allie, não me deixa desaparecer. Allie, não me deixa desaparecer. Por favor, Allie." Aí então, quando chegava do outro lado da rua sem desaparecer, eu agradecia a ele. Logo que chegava a outra esquina, começava tudo de novo. Mas continuei andando assim mesmo. Acho que estava meio amedrontado de parar - nem sei direito, para dizer a verdade. Sei que só fui parar quando já estava lá pela altura da rua Sessenta e tantos, pra lá do Jardim Zoológico. Aí, sentei num banco. Quase que não conseguia respirar e ainda estava suando como um filho da mãe. Acho que fiquei sentado lá mais ou menos uma hora. Finalmente, decidi ir embora de vez. Resolvi que não voltaria para casa nunca mais, e nunca mais iria para colégio nenhum. Decidi que ia só encontrar com a Phoebe, para me despedir e tudo, e devolver o dinheiro de Natal que ela me havia emprestado. Aí começaria a viajar para o oeste, pegando caronas nos carros. Já sabia o que tinha de fazer: ia até o Túnel Holland e apanhava uma carona, depois pegava outra carona, e depois outra e mais outra. Assim, em poucos dias já estaria lá pelo oeste, num lugar muito bonito e ensolarado, onde ninguém me conhecesse e eu arranjasse um emprego. Calculei que podia achar trabalho num posto de gasolina em qualquer canto, pondo gasolina e óleo no carro dos outros. Mas não me importava que tipo de emprego ia ser, desde que ninguém me conhecesse e eu não conhecesse ninguém. Aí, bolei o que é que eu devia fazer: ia fingir que era surdo-mudo. Desse modo, não precisava ter nenhuma conversa imbecil e inútil com ninguém. Se alguém quisesse me dizer alguma coisa, teria de escrever o troço num pedaço de papel e me entregar. Depois de algum tempo iam ficar um bocado aporrinhados de ter que fazer tudo isso, e aí eu nunca mais precisaria conversar pelo resto da minha vida. Todo mundo ia pensar que eu era só um infeliz dum filho da mãe surdo-mudo, e iam me deixar em paz sozinho. Me deixavam botar gasolina e óleo na droga dos carros deles, e me pagavam um salário para fazer isso. Com o dinheiro que fosse ganhando, construiria uma cabaninha para mim em algum lugar e viveria lá o resto da vida. Ia fazer a cabana bem pertinho de uma floresta, mas não dentro da mata, porque ia fazer questão de ter a casa ensolarada pra burro o tempo todo. Cozinharia minha própria comida e mais tarde, se quisesse casar ou coisa parecida, ia encontrar uma garota bonita, também surdo-muda, e nos casaríamos. Ela viria viver comigo na cabana e, se quisesse me dizer alguma coisa, teria de escrever numa porcaria dum pedaço de papel, como todo mundo. Se tivéssemos filhos, iam ficar escondidos em algum canto. Podíamos comprar uma porção de livros para eles e nós mesmos íamos ensiná-los a ler e escrever.
Fiquei excitado pra burro pensando no negócio todo. No duro. Sabia que aquela parte de bancar o surdo-mudo era amalucada, mas de qualquer maneira gostava de pensar nela. Mas resolvi de fato ir embora para o oeste e tudo. A única coisa que eu queria fazer antes da partida era me despedir da Phoebe. Por isso, de repente, atravessei a rua correndo como um doido - pra dizer a verdade, por um triz não morri atropelado - entrei numa papelaria e comprei um bloco e um lápis. Resolvi que ia escrever um bilhete para ela, marcando um encontro para que eu pudesse lhe dizer adeus e devolver o dinheiro das compras de Natal; aí levaria o bilhete para a escola dela e daria um jeito para que alguém do gabinete do diretor lhe entregasse. Mas acabei guardando o bloco e o lápis no bolso e comecei a andar depressa na direção da escola - estava nervoso demais para escrever o bilhete ali mesmo na papelaria. Tinha que andar rápido, porque queria que ela recebesse o bilhete antes de ir para casa almoçar, e não sobrava muito tempo.
Naturalmente, sabia onde era a escola dela, porque eu também havia estudado lá quando era garoto. Quando cheguei, foi engraçado. Não tinha certeza se me lembraria de como era a escola por dentro, mas vi que me lembrava. Tudo continuava exatamente como no meu tempo. Tinha o mesmo pátio enorme do lado de dentro, sempre meio escuro, com aquelas telas de arame em volta das lâmpadas para não se quebrarem com uma bolada. Os mesmos círculos de giz pelo chão todo, para as brincadeiras de pular. E as mesmas cestas de basquete sem rede - só as tabelas e os aros.
Não havia ninguém à vista, provavelmente porque não era hora do recreio e nem tinha chegado ainda a hora do almoço. Só vi um garotinho, um pretinho, a caminho do banheiro. Do bolso dele saia um daqueles passes de madeira, como nós costumávamos usar, para mostrar que ele tinha permissão para ir ao banheiro.
Eu ainda estava suando, mas não tanto quanto antes. Fui até as escadas, sentei no primeiro degrau e tirei do bolso o bloco e o lápis que tinha comprado. As escadas tinham o mesmo cheiro de quando eu estudava lá, como se alguém tivesse acabado de dar uma mijada por ali. Todas as escadas de escola têm esse cheiro. Seja como for, sentei e escrevi um bilhete:
Querida Phoebe:
Não posso mais esperar até quarta-feira, por isso provavelmente vou partir hoje de tarde para o oeste, pegando carona. Encontre-me no Museu de Arte, juntinho à porta, ao meio-dia e quinze, se você puder, que eu quero devolver teu dinheiro de Natal. Não gastei muito.
Um beijo
Holden
A escola era pertinho do museu e ela tinha mesmo de passar por lá a caminho de casa para o almoço, por isso sabia que ela ia poder encontrar comigo.
Aí comecei a subir a escada em direção ao gabinete do diretor, para arranjar alguém que entregasse o bilhete a ela na sala de aulas. Dobrei o papel umas dez vezes, para que ninguém o abrisse. Não se pode confiar em ninguém numa porcaria duma escola. Mas, como eu era irmão dela e tudo, sabia que eles entregariam o bilhete.
De repente, enquanto subia a escada, pensei outra vez que ia vomitar. Só que não vomitei. Sentei um minuto e me senti melhor. Mas, enquanto estava sentado, vi uma coisa que me deixou maluco de raiva. Alguém tinha escrito "Foda-se" na parede. Fiquei furioso de ódio. Imaginei a Phoebe e todas as outras crianças lendo o que estava escrito: iam ficar pensando que diabo significava aquilo, até que, afinal, algum garoto sujo ia dizer a elas - naturalmente tudo errado - o que queria dizer aquela palavra. E elas todas iam ficar pensando na coisa, e talvez até se preocupando com aquilo durante alguns dias. Me deu vontade de matar o safado que tinha escrito aquilo. Imaginei que devia ter sido algum tarado, que havia entrado escondido na escola tarde da noite, para dar uma mijada ou coisa parecida, e aí tivesse escrito aquilo na parede. Me imaginei pegando o sacana em flagrante e batendo com a cabeça dele nos degraus de pedra, até que ele estivesse todo ensangüentado e bem morto. Mas eu sabia também que não ia ter coragem de fazer um negócio desses. Sabia disso e fiquei ainda mais deprimido. Eu quase não tinha coragem nem mesmo de apagar o troço com a mão, para dizer a verdade. Fiquei com medo de que algum professor me pegasse apagando e pensasse que eu é que tinha escrito aquilo. Mas, finalmente, acabei apagando. Aí subi para o gabinete do diretor.
Acho que o diretor não estava por lá, mas uma velhinha de uns cem anos de idade estava sentada, batendo a máquina. Eu disse que era irmão da Phoebe Caulfield, da classe 4B-1, e pedi que me fizesse o favor de entregar o bilhete à Phoebe. Falei que era muito importante, porque minha mãe estava doente e não podia aprontar o almoço da Phoebe, e que por isso ela tinha de se encontrar comigo para comer numa lanchonete. A velhinha foi muito simpática. Apanhou o bilhete e chamou outra mulher, na sala ao lado, e a outra foi entregar o bilhete à Phoebe. Aí, eu e a velhinha que devia ter uns cem anos batemos um papinho. Ela era muito simpática e eu disse que também tinha estudado lá, como todos os meus irmãos. Perguntou-me onde é que eu estava estudando agora e, quando falei que era no Pencey, ela disse que era um colégio muito bom. Mesmo que eu quisesse, não teria forças para convencê-la do contrário. Além disso, se pensava que o Pencey era um colégio muito bom, melhor para ela. É muito chato dizer alguma coisa nova para alguém que tem uns cem anos de idade. Eles não gostam de ouvir novidades. Aí, depois de algum tempo, fui embora. Foi engraçado: ela me gritou "Felicidades!", igualzinho ao velho Spencer quando eu saí do Pencey. Puxa, que raiva que me dá quando alguém berra "Felicidades!" quando estou indo embora de algum lugar. É deprimente pra burro.
Desci por outra escada e vi outro "Foda-se" na parede. Tentei apagar outra vez com a mão, mas esse tinha sido riscado na parede, com um canivete ou coisa parecida. Não saía de jeito nenhum. De qualquer maneira, é bobagem mesmo. Mesmo que a gente vivesse um milhão de anos, não conseguiria apagar nem a metade dos "Foda-se" escritos pelo mundo. É impossível.
Olhei o relógio do pátio de recreio e eram só vinte para o meio-dia, por isso ainda tinha um bocado de tempo para matar enquanto esperava pela Phoebe. Mas, de qualquer modo, fui andando mesmo para o museu. Não tinha nenhum outro lugar para ir. Pensei que talvez pudesse parar numa cabine telefônica e dar uma palavrinha com a Jane Gallagher antes de começar a minha viagem de carona para o oeste, mas não me deu
vontade. Aliás, nem sabia se ela já tinha chegado de férias. Por isso, fui mesmo até o museu e fiquei zanzando por lá.
Enquanto esperava pela Phoebe no museu, do lado de dentro, bem junto da porta e tudo, dois garotinhos chegaram perto de mim e perguntaram se eu sabia onde ficavam as múmias. Um deles, o que me fez a pergunta, estava com a braguilha desabotoada. Disse isso a ele, que se abotoou ali mesmo onde estava, em pé, falando comigo - nem se deu ao trabalho de ir para trás de uma pilastra nem nada. Achei o troço infernal. Tive vontade de rir, mas fiquei dom medo de me dar vontade de vomitar outra vez, por isso não ri.
- Onde é que ficam as múmias? - ele repetiu. - Você sabe?
Resolvi fazer um pouco de hora com os dois.
- As múmias? Quê que é isso? - perguntei a ele.
- Num sabe? As múmias, esses caras mortos. Que eles enterram nos tumos e tudo.
Tumos. Essa foi mesmo genial. Ele queria dizer túmulos.
- Por que é que vocês dois não estão na escola? - perguntei.
- Hoje num tem aula - respondeu o garoto que falava pelos dois. Na certa era mentira. Mas eu não tinha mesmo nada para fazer até a hora de encontrar com a Phoebe, por isso os ajudei a achar o lugar em que ficavam as múmias. Puxa, eu costumava saber exatamente onde era, mas já fazia anos que não ia ao museu.
- Vocês dois se interessam muito pelas múmias? - perguntei.
- É.
- Teu amigo não sabe falar, é?
- Ele num é meu amigo, é meu irmão.
- Mas ele não sabe falar? - repeti. Olhei para o garoto que ainda não tinha dito uma palavra. - Será que você sabe falar? - perguntei a ele.
- Sei sim - respondeu - mas não tou com vontade.
Afinal encontramos o lugar das múmias e entramos.
- Você sabe como é que os egípcios enterravam os mortos? - perguntei ao que falava.
- Não.
- É, mas devia. É muito interessante. Eles embrulhavam as caras deles nuns panos, tratados com um preparado químico secreto. Desse jeito eles podiam ficar enterrados milhares de anos nos túmulos, sem as caras apodrecerem nem nada. Ninguém sabe como é que eles faziam isso, só os egípcios. Nem a ciência moderna.
Para se chegar até onde estavam as múmias, a gente tinha de descer uma espécie de corredor, com paredes de pedra nos dois lados, que eles tinham tirado lá mesmo da tumba de um faraó e tudo. Era um lugar de meter medo, e estava na cara que os dois sabichões que vinham comigo não estavam se divertindo muito. Andavam grudadinhos em mim, e o tal que não falava nunca vinha praticamente agarrado na minha manga.
- Vambora - ele disse para o irmão. - Já vi tudo. Vambora, êi!
Aí ele deu meia volta e se mandou.
- Ele é medroso pra burro - o outro disse. - Té logo!
E disparou também. Fiquei sozinho no túmulo. Até que, de certo modo, gostei. Estava tudo tão quieto e agradável. Aí, de repente, vi aquilo na parede. Outro "Foda-se". Escrito com lápis vermelho ou coisa parecida, bem embaixo da parte envidraçada da parede, perto das pedras.
Esse é que é o problema todo. Não se pode achar nunca um lugar quieto e gostoso, porque não existe nenhum. A gente pode pensar que existe, mas, quando se chega lá e está completamente distraído, alguém entra escondido e escreve "Foda-se" bem na cara da gente. É só experimentar. Acho mesmo que, se um dia eu morrer e me enfiarem num cemitério, com uma lápide e tudo, vai ter a inscrição "Holden Caulfield", mais o ano em que eu nasci e o ano em que morri e, logo abaixo, alguém vai escrever "Foda-se". Tenho certeza absoluta.
Depois que saí do lugar onde estavam as múmias, tive que ir ao banheiro. Para dizer a verdade, estava com um pouco de diarréia. Não liguei muito para esse negócio da diarréia, mas aconteceu outra coisa. Quando tinha acabado de me levantar da privada, quase chegando na porta, acho que desmaiei. Mas até que tive sorte. Podia ter morrido quando caí no chão, mas aterrissei meio de lado. O mais engraçado é que me senti melhor depois do desmaio. Verdade mesmo. Meu braço ficou um pouco doído, onde bati com ele no chão, mas parei de sentir aquela droga daquela tonteira.
A essa altura, já era mais ou menos meio-dia e dez, e por isso voltei para junto da porta, para esperar pela Phoebe. Pensei que aquela podia ser a última vez que eu ia vê-la. Ela ou qualquer dos meus parentes. Imaginei que provavelmente os veria outra vez, mas muitos anos depois. Poderia voltar para casa quando tivesse uns trinta e cinco anos - pensei - caso alguém ficasse doente e quisesse me ver antes de morrer, mas só
assim eu deixaria a cabana e voltaria. Sabia que minha mãe ia ficar nervosa pra chuchu e ia começar a chorar e a me pedir que ficasse em casa, que não voltasse para minha cabana, mas eu iria embora de qualquer maneira. Ia bancar o superior. Ia acalmar minha mãe e aí atravessava a sala, tirava a cigarreira do bolso e acendia um cigarro - tudo isso com a maior calma. Diria a eles que me visitassem algum dia, se tivessem vontade, mas não ia insistir nem nada. Uma coisa eu ia fazer: ia deixar que a Phoebe fosse me visitar no verão e nas férias da Páscoa e do Natal. E deixaria o D.B. passar algum tempo comigo, se ele quisesse um lugar simpático e quieto para escrever. Só que não ia poder escrever nenhum filme na minha cabana só contos e romances. Ia estabelecer essa regra, que ninguém podia fazer nada de falso quando me visitasse. Se alguém tentasse fazer qualquer coisa falsa, ia ter que ir embora.
De repente, olhei para o relógio no vestíbulo e vi que já era vinte e cinco para uma. Comecei a ficar com medo de que talvez a velhinha na escola tivesse dito à outra mulher para não entregar meu recado à Phoebe. Fiquei assustado, achando que talvez ela tivesse mandado queimar o bilhete ou coisa que o valha. Me deu mesmo um medão danado. Queria muito ver a Phoebe antes de me largar pelo mundo. Além disso, estava com o dinheiro de Natal dela e tudo.
Finalmente a vi, através da porta de vidro. Logo vi que era ela porque estava usando meu chapéu de caça maluco - dava pra se enxergar aquele chapéu a quinze quilômetros de distância.
Saí e comecei a descer a escadaria de pedra para encontrar-me com ela. Só não conseguia entender aquela mala enorme que ela vinha trazendo. Estava atravessando a Quinta Avenida e arrastando aquela baita mala. Ela quase não agüentava com o peso. Quando cheguei mais perto, vi que era a minha mala velha, a que eu usava no tempo do Colégio Whooton. Não conseguia imaginar que diabo ela estava fazendo com a mala.
- Oi - ela disse, quando veio chegando. Já nem tinha mais fôlego, por causa daquela mala doida.
- Pensei que você não vinha mais - falei. - Que é que você pôs aí nessa mala? Não preciso de nada. Vou assim mesmo como estou. Não vou levar nem as minhas malas que estão na estação. Afinal de contas, quê que você enfiou aí?
Ela pôs a mala no chão.
- Minhas roupas - respondeu. - Vou com você. Posso? Tá bem?
- O quê? - perguntei. Quase caí duro quando ela disse aquilo. Juro por Deus. Me senti meio tonto e pensei que ia desmaiar outra vez ou coisa parecida.
- Desci com a mala pelo elevador dos fundos para a Charlene não me ver. Não é pesada, não. Só tem dois vestidos, meus mocassins, minha roupa de baixo, meias e mais umas coisinhas. Experimenta só. Não é pesada, não. Experimenta uma vez só pra ver... Posso ir com você, Holden? Posso? Por favor.
- Não. Cala a boca.
Pensei que ia desmaiar. Eu não queria que ela calasse a boca e tudo, não era bem isso, mas pensei mesmo que ia desmaiar novamente.
- Por quê que eu não posso ir? Deixa, Holden. Não vou fazer nada... Só vou com você, só isso! Se você quiser nem levo minhas roupas. Só levo minha...
- Você não vai levar nada. Porque nem você vai. Vou sozinho. Por isso, trata de calar a boca.
- Deixa, Holden. Deixa eu ir. Vou ser muito, muito... Você nem vai...
- Não vou deixar nada. Agora, cala a boca. Me dá essa mala.
Tirei a mala da mão dela. Estava quase batendo nela. Cheguei até a pensar por um instante que ia dar-lhe um tapa. No duro. Ela começou a chorar.
- Pensei que você ia representar no teatro da escola e tudo. Pensei que você ia ser o Benedict Arnold naquela peça - falei, com uma voz um bocado dura. - Que é que você quer fazer? Sair da peça, é?
Isso fez ela chorar mais ainda. Fiquei satisfeito. De repente eu quis que ela chorasse até arrebentar. Quase tive ódio dela. Acho que tive mais raiva principalmente porque ela não representaria mais na peça se fosse embora comigo.
- Vamos - eu disse. Comecei a subir outra vez as escadas do museu. Resolvi o que ia fazer: deixava aquela mala doida na portaria do museu e aí ela podia apanha-la às três horas, quando saísse da escola. Sabia que ela não podia mesmo levar a mala para a escola.
- Vamos, agora vamos - repeti.
Mas ela não subiu comigo. Não houve jeito de faze-la ir comigo. Subi assim mesmo, deixei a mala na portaria e saí outra vez. Ela ainda estava lá, na calçada, mas virou as costas para mim quando me aproximei. Isso ela sabe fazer muito bem. Quando lhe dá na veneta, ela vira as costas pra gente sem a menor cerimônia.
- Não vou mais embora pra lugar nenhum. Mudei de idéia. Agora pára de chorar e cala a boca - falei. O engraçado é que, quando eu disse isso, ela nem estava chorando mais. Mas falei de qualquer maneira. - Agora vamos embora. Vou com você até a escola. Vambora, senão você vai chegar atrasada.
Nem assim me respondeu. Tentei segurar a mão dela, mas também não me deixou. Continuou me dando as costas.
- Você almoçou? Já almoçou, Phoebe?
Neca de resposta. O que ela fez foi tirar da cabeça meu chapéu de caça vermelho - que eu tinha dado a ela de presente - e praticamente me jogou o chapéu na cara. Aí virou de costas outra vez. Me deu uma vontade danada de rir, mas eu não disse nada. Só apanhei o chapéu do chão e enfiei no bolso do meu casaco.
- Vamos, êi! Vou andando com você até a escola.
- Não vou pra escola!
Fiquei sem saber o que dizer depois que ela falou isso. Fiquei ali em pé uns dois minutos, sem fazer nada.
- Você tem que voltar pra escola. Você quer trabalhar naquela peça, não quer? Você quer ser o Benedict Arnold, não quer?
- Não.
- É claro que você quer. É lógico que quer. Agora vamos, vambora - repeti. - Em primeiro lugar, já te disse que não vou mais embora. Vou voltar pra casa. Logo que você for para a escola eu vou voltar pra casa. Primeiro vou até a estação apanhar minhas malas, e aí vou direto...
- Já te disse que não vou voltar pra escola. Você pode fazer o que quiser, mas eu não vou voltar pra escola. Por isso, cala a boca.
Era a primeira vez que ela me mandava calar a boca. Era horrível ouvir isso dito por ela. Puxa, era horrível mesmo. Pior do que se ela tivesse dito um nome feio. Continuava a nem me olhar e, cada vez que eu tentava pôr a mão no ombro dela, não me deixava.
- Escuta, quer dar um passeio comigo? - perguntei. - Quer passear comigo no Jardim Zoológico? Se eu deixar você faltar à escola hoje de tarde e nós dermos um passeio, você pára com essa maluquice?
Não me respondeu, por isso repeti: - Se eu deixar você matar aula hoje de tarde e dar uma voltinha, você pára com essa maluquice? Você vai amanhã à escola, como uma menininha bem comportada?
- Talvez sim e talvez não - respondeu. E aí saiu correndo e atravessou a rua como uma doida, sem ao menos olhar se vinha algum carro. Às vezes ela é maluquinha.
Mas não fui atrás dela. Sabia que ela iria atrás de mim, por isso comecei a andar na direção do centro da cidade, a caminho do Jardim Zoológico; eu ia pela calçada do lado do parque e ela começou a andar na mesma direção, só que pelo outro lado da rua. Não olhava para mim nem nada, mas eu sabia que ela provavelmente estava me espiando com o rabo do olho, para ver onde eu ia e tudo. De qualquer maneira, fomos assim o caminho todo, até o Jardim Zoológico. A única coisa que me chateou foi quando passou um ônibus de dois andares e eu não pude ver o outro lado da rua, para saber que diabo ela estava fazendo. Mas, quando chegamos ao Jardim Zoológico, gritei para ela:
- Phoebe! Vou entrar agora! Vem!
Nem assim olhou para mim, mas eu sabia que ela tinha me ouvido. Quando comecei a descer as escadas para o Jardim Zoológico, virei para trás e vi que ela estava atravessando a rua, me seguindo e tudo.
Não havia muita gente no Jardim Zoológico, porque o tempo estava mesmo uma droga, mas havia algumas pessoas em volta da piscina dos leões-marinhos e tudo. Eu ia seguir direto, mas a danada da Phoebe parou e fingiu que estava vendo os leões-marinhos serem alimentados - tinha um sujeito jogando uns peixes para eles - por isso voltei. Imaginei que era uma boa oportunidade para chegar perto dela e tudo. Fui até lá, parei atrás dela e experimentei pôr-lhe as mãos no ombro, mas ela dobrou os joelhos e escapuliu. Ela sabe ser malcriada quando quer. Continuou ali em pé, enquanto os leões-marinhos comiam, e eu postado bem atrás. Não tentei botar a mão outra vez no ombro dela nem nada, porque, se tivesse tentado, ela teria certamente me dado outro fora. As crianças são gozadas. A gente tem que se cuidar com elas.
Quando saímos da piscina dos leões-marinhos, ela não veio andando a meu lado, mas já não estávamos tão longe um do outro. Ela ia numa beirada do passeio e eu na outra. Não era lá grande coisa, mas era melhor do que antes, quando ela ficava a um quilômetro de distância. Seguimos em frente e passamos algum tempo olhando os ursos, no alto daquela colinazinha, mas não havia muita coisa para se ver. Só um dos ursos estava do lado de fora, o polar. O outro, o marrom, estava metido na droga da cova e não saía de jeito nenhum. Só dava para ver o traseiro dele. Ao meu lado tinha um garotinho, com um chapéu de cowboy que praticamente lhe cobria as orelhas, que ficava dizendo para o pai dele: "Faz ele sair, pai. Chama ele, pai!" Olhei para a Phoebe, mas ela não estava achando graça. Sabe como é criança quando está zangada com a gente, não acha graça em nada.
Depois de ver os ursos, saímos do Jardim Zoológico, atravessamos aquela ruazinha no parque e passamos por baixo de um daqueles túneis pequenos que estão sempre cheirando a mijo. Era no caminho do
carrossel. A danada da Phoebe ainda não conversava comigo nem nada, mas já estava andando meio ao meu lado agora. Agarrei o cinto nas costas do casaco dela só de brincadeira, mas não deixou.
- Se não é muito incômodo, guarda tua mão pra você mesmo - ela disse.
Ainda estava zangada comigo, mas não tão zangada quanto antes. Seja como for, estávamos chegando cada vez mais perto do carrossel e já dava para se ouvir aquela musiquinha maluca que toca sempre. Estava tocando Ó, Maria! Era a mesma música que tocava há uns cinqüenta anos, quando eu era pequeno. Isso é um troço bom nos carrosséis, eles tocam sempre as mesmas músicas.
- Pensei que o carrossel ficava fechado no inverno - ela disse. Era praticamente a primeira vez que ela me falava alguma coisa. Provavelmente esqueceu que estava de mal comigo.
- Vai ver que é por causa do Natal - falei.
Ela não falou mais nada quando eu disse isso. Provavelmente lembrou que estava de mal comigo.
- Você quer dar uma volta no carrossel? - perguntei. Sabia que ela devia querer. Quando pequenininha - e o Allie, o D. B. e eu costumávamos levá-la ao parque - ela era tarada pelo carrossel. Não havia jeito de arrancá-la de lá.
- Já sou muito crescida - ela falou. Pensei que não ia me responder, mas respondeu.
- Que crescida, que nada. Vai que eu te espero, vai.
Tínhamos chegado lá. Havia uns garotinhos andando nele, na maioria muito pequenininhos, e uns pais esperando do lado de fora, sentados nos bancos e tudo. Fui até o guichê onde vendem as entradas e comprei uma para a Phoebe. Aí entreguei-a a ela. Ela estava bem ao meu lado.
- Toma. Espera um instante, toma também o resto do teu dinheiro.
Comecei a entregar o resto do dinheiro que ela me havia emprestado.
- Guarda. Guarda pra mim - ela disse e, logo em seguida: - Por favor.
Isso é deprimente, quando alguém diz "por favor" à gente. Alguém assim feito a Phoebe. Isso me deprimiu pra burro. Mas botei o dinheiro de volta no bolso.
- Você também não vai dar uma volta? - ela perguntou. Estava me olhando com um jeito meio engraçado. Via-se logo que não estava mais muito zangada comigo.
- Talvez eu ande na próxima volta. Agora vou ficar te olhando. Apanhou tua entrada?
- Apanhei.
- Então vai. Vou ficar naquele banco ali, te olhando.
Caminhei para o banco e me sentei, enquanto ela subia no carrossel. Deu a volta toda na plataforma e acabou sentando num enorme cavalo castanho, velho e surrado pra chuchu. Aí o carrossel começou a rodar e eu a fiquei vendo passar e passar. Só havia mais uns cinco ou seis garotinhos, e a música que o carrossel estava tocando era Smoke Gets in Your Eyes. Num ritmo bem ligeiro e engraçado. Todos os garotos ficavam tentando agarrar a argola dourada, e a Phoebe também, e eu cheguei a ficar com medo de que ela acabasse caindo da droga do cavalo. Mas não disse e nem fiz nada. O negócio com as crianças é que, se elas querem agarrar a argola dourada, o melhor é deixar elas fazerem o troço e não dizer nada. Se caírem, caíram, mas o errado é dizer alguma coisa para elas.
Quando acabou a volta, ela desceu do cavalo e veio até onde eu estava.
- Dessa vez você vai também - ela disse.
- Não, vou só ficar te olhando. Acho que só vou ficar olhando - respondi. Dei a ela mais alguma grana e falei: - Toma. Compra mais umas entradas.
Ela apanhou o dinheiro e disse: - Não tou mais de mal com você.
- Eu sei. Corre que o negócio vai começar outra vez.
Então, de repente, ela me deu um beijo. Aí, estendeu a mão e falou: - Tá chovendo. Está começando a chover.
- Eu sei.
Aí ela fez um troço que me deixou maluco: enfiou a mão no bolso do meu casaco, tirou o chapéu de caça vermelho e botou na minha cabeça.
- Você não quer mais ele? - perguntei.
- Pode usar ele um pouco.
- Tá bom. Mas corre agora. Você assim vai perder essa volta. Não vai mais pegar teu cavalo nem nada.
Mas ela continuou por ali.
- É verdade aquilo que você disse? Que não vai mais embora? Você vai mesmo pra casa depois?
- Vou - respondi. E era verdade mesmo. Não estava mentindo. Fui mesmo para casa depois.
- Agora, corre. O negócio já tá começando.
Ela correu, comprou a entrada e pulou na droga do carrossel bem na horinha. Aí deu a volta toda, até encontrar o cavalo dela, e montou. Acenou para mim e eu acenei de volta.
Puxa, aí começou a chover pra burro. Um dilúvio, juro por Deus. Todos os pais e mães, todo mundo correu pra debaixo do teto do carrossel, para não se molhar até os ossos, mas eu ainda fiquei ali no banco mais algum tempo. Me molhei pra diabo, principalmente no pescoço e nas calças. Até que meu chapéu de caça me protegeu mesmo um bocado, mas acabei ensopado de qualquer maneira. Mas nem liguei. Me senti tão feliz de repente, vendo a Phoebe passar e passar. Pra dizer a verdade, eu estava a ponto de chorar de tão feliz que me sentia. Sei lá por quê. É que ela estava tão bonita, do jeito que passava rodando e rodando, de casaco azul e tudo. Puxa, só a gente estando lá para ver.
26
Isso é tudo que eu vou contar. Podia contar também o que fiz quando voltei para casa, e como fiquei doente e tudo, e o colégio para onde vou no próximo outono, depois que sair daqui - mas não tenho a mínima vontade. No duro mesmo. Esse negócio todo não me interessa muito agora.
Uma porção de gente, principalmente esse cara psicanalista que tem aqui, vive me perguntando se eu vou me esforçar quando voltar para o colégio em setembro. Na minha opinião, isso é o tipo da pergunta imbecil. Quer dizer, como é que a gente pode saber o que é que vai fazer, até a hora em que faz o troço? A resposta é: não sei. Acho que vou, mas como é que eu posso saber? Juro que é uma pergunta cretina.
D. B. não é dos piores, mas também fica me fazendo um monte de perguntas. Veio me visitar no sábado passado e trouxe a garota inglesa que vai trabalhar no novo filme que ele está escrevendo. Ela é meio metida a besta, mas é um bocado bonita. De qualquer maneira, na hora que ela foi ao toalete, lá na outra ala, o D. B. me perguntou o que é que eu pensava sobre esse troço todo que acabei de contar. Eu não soube o que dizer. Para ser franco, não sei o que eu acho disso tudo. Tenho pena de ter contado o negócio a tanta gente. Só sei mesmo é que sinto uma espécie de saudade de todo mundo que entra na estória. Até do safado do Stradlater e do Ackley, por exemplo. Acho que sinto falta até do filho da mãe do Maurice. É engraçado. A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.

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