sábado, 9 de março de 2013

O Apanhador no campo de centeio 11-20


11
De repente, no caminho para o vestíbulo, comecei a pensar novamente na Jane Gallagher. Aí não houve mais jeito de tirá-la da cabeça. Quando cheguei lá, me sentei numa poltrona caindo aos pedaços e fiquei pensando na Jane e no Stradlater, metidos na porcaria do carro do Ed Banky. Por mais certeza que tivesse de que o Stradlater não tinha conseguido nada com ela - conheço a Jane como a palma da minha mão - mesmo assim não conseguia tirar o troço da cabeça. Conhecia a Jane como a palma da minha mão, no duro. Além de jogar damas, ela gostava de esportes e, depois que ficamos amigos, passamos o verão todo juntos, jogando tênis de manhã e golfe de tarde. Chegamos mesmo a ter bastante intimidade. Não que tenha havido qualquer coisa de físico nem nada - porque não houve mesmo - mas nós passávamos o dia todo juntos. A gente não precisa entrar sempre nesse negócio de sexo para conhecer direito uma garota.
Nós nos conhecemos por causa do cachorro dela, um Dobermann, que vinha se aliviar todo dia no nosso gramado. Minha mão ficava danada da vida, e um dia telefonou para a mãe de Jane e fez um escândalo daqueles por causa do cachorro. Minha mãe é capaz de fazer um bruto escândalo por causa de uma besteira dessas. Aí, alguns dias depois, vi a Jane deitada de bruços na beira da piscina do clube. Cheguei e dei um olá para ela. Sabia que era nossa vizinha, mas nunca tínhamos conversado nem nada. Ela me deu um gelo tremendo no começo, e depois tive um trabalhão para convencê-la de que pouco me importava onde o cachorro dela ia se aliviar. Por mim, podia ser até na sala de visitas. De qualquer maneira, depois disso acabamos amigos e naquela mesma tarde jogamos golfe juntos. Me lembro que ela isolou oito bolas. Oito. Minha maior dificuldade foi convencê-la a pelo menos abrir os olhos na hora de dar a tacada, mas, no fim, consegui que ela fizesse progressos fabulosos. Jogo golfe muito bem. Tem gente que nem acredita quando digo qual é o meu escore normal. Uma vez, quase entrei num curta metragem sobre golfe, mas mudei de idéia no último minuto. Pensei cá comigo que uma pessoa que odeia o cinema tanto quanto eu seria um cretino se aceitasse aparecer num filme.
A Jane era uma garota muito engraçada. Não se podia dizer que fosse propriamente bonita. Para mim era um estouro. Quando ela começava a falar sobre um troço qualquer e ficava excitada, costumava mover a boca em cinqüenta direções ao mesmo tempo, lábios e tudo. Era o máximo. E ela nunca fechava a boca completamente. Estava sempre entreaberta, principalmente quando ela se preparava para dar uma tacada ou estava lendo um livro. Lia sem parar, e bons livros. Costumava ler um bocado de poesia e tudo. Foi a única pessoa, fora de minha família, a quem mostrei a luva de beisebol do Allie, com os poemas escritos por todo o lado. Ela não chegou a conhecer o Allie nem nada, porque aquele era o primeiro verão que passava no Maine - antes disso ela costumava ir para Cape Cod - mas contei a ela uma porção de coisas sobre o Allie. Ela se interessava por esse tipo de coisa.
Minha mãe não gostava muito dela. Achava que a Jane e a mãe dela eram metidas a besta, porque não a cumprimentavam quando se encontravam na cidadezinha. E isso acontecia a toda hora, porque a Jane também ia lá com a mãe dela num La Salle conversível, fazer compras no mercado. Minha mãe nem achava a Jane bonita. Mas eu achava. O caso é que eu gostava do jeitinho dela, só isso.
Me lembro de uma tarde. Foi a única vez em que quase nos beijamos. Era um sábado. Eu estava na varanda da casa dela e lá fora chovia que não acabava mais. Estávamos jogando damas. De vez em quando eu gostava de mexer com ela por causa da mania de não tirar nunca as damas da última fila. Mas eu nunca tinha vontade de mexer muito com ela. Bem que eu gosto de gozar uma guria quando tenho uma chance, mas acontece um troço engraçado comigo. As garotas de quem mais gosto são aquelas que nunca me dão muita vontade de mexer com elas. De vez em quando, acho até que elas gostariam duma bobagem dessas - pra dizer a verdade, tenho certeza de que gostariam - mas é difícil começar, depois de se conhecer uma garota por algum tempo sem nunca ter dado um gozo nela. Seja lá como for, eu estava falando sobre aquela tarde quando a Jane e eu quase nos beijamos. Chovia pra diabo. Nós estávamos na varanda quando, de repente, apareceu na porta o beberrão que era casado com a mãe dela e perguntou à Jane se havia cigarros em casa. Eu mal conhecia o sujeito, mas parecia o tipo do cara que só fala com a gente se estiver precisando de alguma coisa.
Era um péssimo caráter. De qualquer maneira, a Jane nem respondeu quando ele perguntou se ela sabia onde estavam os cigarros. O cara perguntou de novo, mas ela continuou calada. Nem tirou os olhos do tabuleiro. Finalmente, o sujeito voltou para dentro. Aí perguntei a ela o que é que estava havendo. Nem a mim ela respondeu. Fingiu que estava se concentrando no lance seguinte e tudo. Aí, de repente, estalou uma lágrima no tabuleiro. Foi num dos quadrados vermelhos - me lembro como se fosse agora. E ela esfregou a lágrima no tabuleiro com o dedinho. Não sei por que, mas o negócio me chateou pra caralho. Aí me levantei e me sentei ao lado dela no sofá - para falar a verdade, quase me sentei no colo dela. Aí ela começou a chorar mesmo, e só me lembro que comecei a beijá-la toda - em qualquer lugar - olhos, nariz, testa, sobrancelhas e tudo, as orelhas - o rosto todo menos a boca. Não sei como, mas ela sempre arranjava um jeitinho de não me dar a boca. De qualquer maneira, nunca mais estivemos tão perto um do outro. Pouco depois ela se levantou, entrou e voltou com um suéter vermelho e branco que eu achava o máximo. Aí fomos à porcaria dum cinema. No caminho, perguntei a ela se o tal de Cudahy - era assim que se chamava o porrista - tinha alguma vez se metido a engraçadinho com ela. Jane era muito garota, mas tinha um corpo infernal, e eu esperava qualquer coisa dum filho da mãe como aquele cara. Mas ela disse que não, e nunca pude descobrir qual era o problema. Tem garotas que a gente não consegue nunca saber qual é o problema delas.
Também não quero dar a impressão de que ela era uma porcaria dum iceberg ou coisa parecida, só porque nunca ficamos de agarramento. Não é isso. Vivíamos o tempo todo de mãos dadas, por exemplo. Não parece grande coisa, reconheço, mas era fabuloso ficar de mãos dadas com ela. Quando estão de mãos dadas com a gente, a maioria das garotas deixam a mão morrer dentro da mão da gente, ou então acham que têm de ficar mexendo os dedos o tempo todo, como se estivessem com medo de estar chateando a gente ou coisa que o valha. Com a Jane era diferente. Nós entrávamos numa droga dum cinema e imediatamente ficávamos de mãos dadas até o filme acabar. E isso sem ficar mudando de posição, sem fazer nenhuma complicação. Com a Jane a gente nem se preocupava se a mão estava suada ou não. Só sabia uma coisa, estava feliz, no duro.
Tem outra coisa que me lembrei agora. Quando estávamos no cinema, aquele dia, a Jane fez um troço que me deixou maluco. Estava ainda no jornal ou coisa parecida, quando, de repente, senti a mão dela no meu pescoço. Foi um gesto engraçado, esse dela. Jane era muito garota e tudo, e as moças que a gente vê pondo a mão no pescoço de alguém têm, quase todas, uns vinte e cinco ou trinta anos, e geralmente fazem isso com o marido ou um filho pequeno. Eu, por exemplo, de vez em querido faço isso com minha irmã menor, a Phoebe. Mas se uma garota é um bocado moça e faz um troço desses, é tão bonito que a gente nem sabe o que fazer.
De qualquer jeito, era nisso que eu estava pensando, sentado naquela poltrona caindo aos pedaços, no vestíbulo do hotel. Pensando na Jane. Por pouco não ficava doido toda vez que chegava na estória dela com o Stradlater na porcaria do carro do Ed Banky. Eu sabia que ela não ia deixar o Stradlater chutar em gol, mas mesmo assim ficava furioso. Pra ser sincero, nem gosto de falar nisso.
Não havia mais ninguém no vestíbulo. Até as louras com pinta de vigaristas já tinham sumido e, de repente, me deu uma bruta vontade de ir embora. O lugar era meio deprimente, e eu não estava cansado nem nada. Por isso, subi até o quarto e vesti o casaco. Aproveitei para dar uma olhada pela janela e ver se todos os tarados continuavam em ação, mas as luzes já estavam apagadas. Peguei o elevador outra vez, desci, chamei um táxi e disse ao chofer para me levar ao Ernie's. O Ernie's é uma buate em Greenwich Village onde meu irmão D. B. ia muito antes de ir se prostituir em Hollywood. De vez em quando me levava com ele. O Ernie é um pretão gordo que toca piano. É metidíssimo a besta e mal cumprimenta as pessoas, a não ser que seja um figurão, um cara famoso ou coisa que o valha, mas toca piano de verdade. É sério, ele é tão bom que chega quase a ser chato. É difícil de explicar, mas é isso mesmo. É claro que gosto de ouvi-lo tocar, mas, de vez em quando, dá vontade de arrebentar a porcaria do piano dele. Acho que é porque, quando está tocando, ele dá a impressão de ser o tipo do camarada que só fala com uma pessoa quando sabe que ela é um figurão.
12
O táxi que tomei era velho pra chuchu e cheirava como se alguém tivesse acabado de vomitar ali mesmo. Sempre que tomo um táxi de madrugada, tem que estar fedendo a vômito. E o pior é que a rua estava um bocado silenciosa e deserta, embora fosse uma noite de sábado. Não se via quase ninguém. Aqui e ali tinha um homem e uma mulher atravessando a rua, abraçados pela cintura e tudo, ou um grupo de imbecis com as namoradas, todos rindo como umas hienas de qualquer coisa que, aposto, não tinha a menor graça. Nova York é terrível quando alguém ri de noite na rua; pode-se ouvir a gargalhada a quilômetros de distância. É o tipo do troço que faz a gente se sentir só e deprimido. Continuava com vontade de ir para casa e fazer um pouco de
hora com a Phoebe. Mas afinal, depois de algum tempo no táxi, eu e o chofer começamos a conversar. O nome dele era Horwitz. Era um sujeito muito mais simpático do que o outro motorista com quem eu tinha andado antes. Seja como for, pensei que ele talvez soubesse alguma coisa sobre os patos.
- Êi, Horwitz. Você conhece aquele laguinho no Central Park? Aquele lá pro lado sul?
- Conheço o quê?
- O laguinho. Aquele lago pequeno que tem lá. Sabe qual é, onde ficam os patos...
- Sei, mas quê que tem?
- Bom, sabe aqueles patos que ficam nadando nele? Na primavera e tudo? Será que por acaso você sabe pra onde eles vão no inverno?
- Pra onde vai quem?
- Os patos. Será que você sabe, por um acaso? Será que alguém vai lá num caminhão ou sei lá o quê, e leva eles embora, ou será que eles voam sozinhos, pro sul ou coisa que o valha?
O tal do Horwitz virou para trás e me olhou. Era um sujeito do tipo impaciente pra burro. Mas não era má pessoa.
- Como é que vou saber? Como é que vou saber um negócio idiota desses, pomba?
- Tá bem, não precisa se aborrecer - falei. Ele ficou danado com aquilo, sei lá por quê.
- Quem é que está aborrecido? Ninguém tá aborrecido.
Se era para o sujeito ficar assim todo chateado, preferi suspender a conversa. Mas ele mesmo puxou assunto outra vez. Virou-se de novo para trás e disse:
- Os peixes não vão pra lugar nenhum. Ficam lá mesmo onde estão, os peixes. Na droga do lago mesmo.
- Com os peixes é diferente. Aí são outros quinhentos. Tou falando dos patos.
- O quê que é diferente com eles? Não vejo nada de diferente - ele respondeu. Tudo que ele falava parecia que estava aporrinhado com alguma coisa. E continuou: - É muito pior pros peixes, no inverno e tudo, do que pros patos, não vê logo? Usa a cabeça, pôxa!
Fiquei calado mais ou menos um minuto. Aí falei:
- Tá bem. Então, o que é que os peixes fazem quando o laguinho vira um bloco de gelo e tem uma porção de gente patinando nele e tudo?
O Horwitz se virou para trás de novo.
- O quê que os peixes fazem? - gritou para mim. - Pomba, ficam ali mesmo onde estão, ora essa!
- Mas eles não podem simplesmente ignorar o gelo. Não podem só fazer de conta que não tem gelo.
- Mas quem é que ignora o gelo? Ninguém tá ignorando nada!
O sujeito estava tão excitado e tudo que pensei que ele ia se arrebentar em cima dum poste ou coisa parecida.
- Vivem ali mesmo, dentro da porcaria do gelo. Já são feitos assim mesmo, por natureza. Ficam congelados o inverno todo na mesma posição.
- É? Então quê que eles comem, hem? Quer dizer, se ficam congelados, durinhos, então não podem nadar e procurar comida nem nada.
- O corpo deles, pomba... Quê que há contigo? O corpo deles retira a nutrição e tudo da droga das algas e da merda toda que tem no gelo. Eles ficam com os poros abertos o tempo todo. São assim mesmo por natureza. Tá entendendo agora? - ele falou, e virou outra vez no banco para me olhar.
- Tá bom - respondi. Deixei o assunto morrer. Estava com medo que ele arrebentasse a droga do táxi. Além disso, era um cara tão estourado que não dava prazer nenhum conversar com ele.
- Você se incomoda de dar uma paradinha e tomar um trago comigo em algum lugar? - perguntei.
Mas não me respondeu. Acho que ainda estava pensando. De qualquer maneira, perguntei de novo. Era um sujeito um bocado simpático. Muito divertido e tudo.
- Não tenho tempo pra andar bebendo, ô meu. E, afinal, qual é a tua idade, hem? Por que é que você já não está dormindo a esta hora?
- Não estou cansado.
Quando desci na frente do Ernie's e paguei a corrida, o tal Horwitz puxou o assunto do peixe outra vez. O troço não saía mesmo da cabeça do homenzinho.
- Escuta. Se você fosse um peixe, a Natureza ia tomar conta de você, não ia? É ou não é? Ou você acha que tudo quanto é peixe morre quando chega o inverno, hem?
- Não, mas...
- É claro que não, pomba - ele falou, e arrancou com o carro como se fosse o diabo fugindo da cruz. Era um dos sujeitos mais invocados que eu encontrei até hoje na minha vida. Tudo que a gente dizia deixava ele furioso.
Embora já fosse um bocado tarde, o Ernie's estava entupido de gente. Na maioria eram esses palhações das universidades. Em quase todas as drogas dos colégios do mundo as férias de Natal começam antes do que nos colégios em que eu estou. A gente quase não podia pendurar o sobretudo, de tão cheio. Mas era um silêncio danado, porque o Ernie estava tocando. Parecia que era um troço sagrado, no duro, a hora em que ele sentava para tocar. Ninguém pode ser tão bom assim. Ao meu lado estavam três casais, esperando vagar mesa, e ficaram todos na ponta dos pés, se empurrando, só para dar uma olhada no Ernie, enquanto ele tocava. Tinha um baita espelho em frente do piano e um refletor bem em cima do Ernie, para que todo mundo pudesse ver a cara dele enquanto tocava. Não dava para ver os dedos, só a droga da cara do safado. Grande coisa. Não sei direito o nome da música que ele estava tocando quando entrei, mas só sei que ele estava esculhambando mesmo o troço pra valer. Dando uma porção de floreios imbecis nos agudos e outras palhaçadas que me aporrinham pra chuchu. Mas valia a pena ver os idiotas quando ele acabou. Era de vomitar. Entraram em órbita, igualzinho aos imbecis que riem como umas hienas, no cinema, das coisas sem graça. Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário. Seja como for, na hora que ele acabou e todo mundo estava aplaudindo como uns alucinados, o safado do Ernie deu uma volta no banquinho e fez uma reverência fingida, bancando o humilde. Como se, além de ser um pianista bom pra burro, fosse também um sujeito um bocado humilde. Era um troço cretino pra diabo aquilo dele ser metido a besta e tudo. Mas, de um jeito meio engraçado, senti pena dele quando acabou a música. Acho que ele nem sabe mais quando está tocando bem ou não. A culpa não é toda dele. Em parte, os culpados são aqueles bobalhões que batem palmas como uns alucinados: eles são capazes de enganar qualquer um, se tiverem uma chance. De qualquer maneira, o troço me fez sentir deprimido e podre outra vez, e quase apanhei meu casaco e voltei para o hotel, mas era cedo demais e eu não estava com muita vontade de ficar sozinho.
Afinal me arranjaram uma mesa nojenta, encostada à parede e bem atrás de uma droga duma coluna, de onde não dava para ver nada. Era uma dessas mesinhas pequenininhas que, se o pessoal da mesa ao lado não se levanta para dar passagem - e os filhos da mãe nunca se levantam - a gente tem praticamente de fazer uma escalada para chegar na cadeira. Mandei vir um uísque e soda, que é o drinque que eu prefiro se não tiver daiquiri. Qualquer sujeito com uns seis anos de idade pode pedir bebida alcoólica no Ernie's. Primeiro, porque o lugar é tão escuro e tudo, e depois porque ninguém está mesmo dando a mínima bola para a idade da gente. O sujeito pode ser até viciado em entorpecente que ninguém se importa.
Eu estava cercado de imbecis. Fora de brincadeira. Na outra mesinha, bem do meu lado esquerdo, praticamente em cima de mim, tinha um casal com umas caras feiosas pra burro. Tinham mais ou menos a minha idade, ou um pouquinho mais. Era engraçado. A gente via logo que eles estavam tomando um cuidado tremendo para não beber a consumação mínima muito depressa. Fiquei ouvindo algum tempo a conversa deles, porque não tinha mesmo mais nada para fazer. Ele estava contando a ela uma droga dum jogo de futebol que tinha visto naquela tarde. E descreveu todas as jogadas da droga da partida, da primeira à última! - fora de brincadeira. Era o sujeito mais chato que já encontrei em toda a minha vida. E dava para ver que a garota dele nem estava interessada na droga do jogo, mas ela era ainda mais feiosa do que ele, por isso eu acho que ela tinha mesmo de ouvir. O negócio não é mole para as garotas feias. Às vezes, elas me dão muita pena, nem gosto de olhar para elas, especialmente quando estão com um idiota que fica contando toda uma porcaria duma partida de futebol. Mas, à minha direita, a conversa ainda estava pior. Tinha um sujeito metido a besta, com um terno de flanela cinza e um desses coletes afrescalhados. Todos esses filhos da mãe das universidades se vestem igual. Meu pai quer que eu vá para uma dessas universidades metidas a bem, Yale ou talvez Princeton, mas juro que não me pegam nesses lugares cretinos nem morto, no duro mesmo. Seja como for, esse sujeito com pinta de aluno da Yale estava com uma garota espetacular. Puxa, ela era um estouro. Mas valia a pena ouvir a conversa dos dois. Em primeiro lugar, os dois já estavam meio altos. Ele estava passando a mão nas coxas dela, por baixo da mesa e tudo, e ao mesmo tempo contando a estória dum colega dele que tinha engolido um vidro inteiro de aspirina e quase se suicidou. Ela ficava só dizendo para ele: "Que horrível... Não, querido. Por favor. Não, aqui não..." Imagina só, passar a mão numa garota e ao mesmo tempo contar a ela o caso de um cara que tentou se suicidar! Era o máximo!
Mas acabei me sentindo meio jogado fora, sentado ali sozinho. Não tinha nada para fazer senão fumar e beber. Acabei dizendo ao garçon para convidar o safado do Ernie para tomar um drinque comigo. Mandei dizer ao Ernie que eu era o irmão do D. B. Mas acho que nem deu o meu recado. Esses sacanas nunca dão os recados da gente a ninguém.
De repente, uma garota veio andando na minha direção e disse:
- Holden Caulfield!
O nome dela era Lillian Simmons. Meu irmão D. B. andou saindo com ela algum tempo. Tinha uns peitões enormes.
- Como vai - respondi. Naturalmente, tentei me levantar, mas era impossível ficar em pé num lugar daqueles. Ela estava acompanhada de um oficial da Marinha que parecia ter engolido um cabo de vassoura.
- Que maravilhoso encontrar com você! - ela falou. Puro fingimento. - Como vai teu irmão? - perguntou. Era só isso que ela queria saber.
- Está bem. Ele está em Hollywood.
- Em Hollywood! Que fabuloso! Que é que ele está fazendo?
- Sei lá... Escrevendo - respondi. Não estava com vontade de discutir o troço. Era evidente que ela achava um negócio espetacular, aquilo dele estar em Hollywood. Quase todo mundo acha, principalmente as pessoas que nunca leram nenhum dos contos que ele escreveu. Mas a coisa me deixa furioso.
- Que formidável - ela continuou. Aí me apresentou ao cara da Marinha, um tal de Comandante Blop ou coisa que o valha. Era um desses sujeitos que acham que vão parecer veados se não quebrarem uns quarenta dedos da mão da gente na hora de serem apresentados. Pôxa, eu tenho ódio desse tipo de troço.
- Você está sozinho, meu querido? - a safada da Lillian perguntou. Ela estava interrompendo a droga do trânsito todo na passagem. A gente via logo que ela gostava um bocado de parar o trânsito. Tinha um garçon esperando que ela saísse da frente, mas ela nem reparou no sujeito. Era engraçado. Estava na cara que o garçon não gostava dela e que nem o cara da Marinha gostava muito dela, embora estivesse saindo com ela. E eu não gostava muito dela. Ninguém gostava. De certa maneira, a gente tinha que sentir pena da infeliz.
- Você não está acompanhado, meu bem? - ela me perguntou. A essa altura eu já estava em pé e ela nem me disse para sentar. Era do tipo que deixa a gente de pé horas a fio.
- Ele não é bonitão? - ela perguntou ao sujeito da Marinha. - Holden, você está ficando cada vez mais bonitão.
O cara da Marinha disse a ela para seguir em frente, que estava bloqueando a passagem toda.
- Holden, vem sentar conosco. Traz o teu drinque.
- Não, obrigado. Já estava saindo - respondi. - Tenho um encontro marcado.
Era claro que ela estava só querendo bancar a boazinha comigo para eu contar tudo depois ao D.B.
- Está bem, seu bandido. Divirta-se. Quando encontrar teu irmão, diz a ele que eu tenho ódio dele.
Aí foi embora. O cara da Marinha e eu dissemos que tinha sido um prazer conhecer um ao outro. Esse é um troço que me deixa maluco. Estou sempre dizendo: "Muito prazer em conhecê-lo" para alguém que não tenho nenhum prazer em conhecer. Mas a gente tem que fazer essas coisas para seguir vivendo.
Depois que eu disse a ela que tinha um encontro marcado, não podia mesmo fazer droga nenhuma senão sair. Nem podia ficar por lá para ouvir o Ernie tocar alguma coisa minimamente decente. Mas não ia de jeito nenhum sentar numa mesa com a Lillian Simmons e com aquele cara da Marinha e morrer de chateação. Por isso saí. Mas fiquei danado quando apanhei meu sobretudo. As pessoas estão sempre atrapalhando a vida da gente.
13
Voltei a pé para o hotel. Quarenta e um gloriosos quarteirões. Não que eu estivesse com vontade de andar nem nada. Foi mais porque não queria entrar e sair de outro táxi. De vez em quando a gente se cansa de andar de táxi, da mesma maneira que se cansa de andar de elevador. De repente, a gente sente que tem de ir a pé, qualquer que seja a distância ou a altura. Quando eu era menor, costumava subir para nosso apartamento pelas escadas. Doze andares.
Nem parecia que tinha nevado, as calçadas já estavam quase limpas. Mas fazia um frio de rachar e tratei de tirar do bolso meu chapéu vermelho e botei na cabeça - estava pouco ligando para minha aparência. Cheguei até a baixar os protetores de orelha. Bem que gostaria de saber qual o safado que tinha roubado minhas luvas no Pencey, porque minhas mãos estavam geladas. Não que eu fosse fazer muita coisa se soubesse. Sou um desses sujeitos covardes pra chuchu. Procuro não demonstrar, mas sou. Por exemplo, se tivesse descoberto quem roubou minhas luvas no Pencey, provavelmente teria ido até o quarto do vigarista e diria: "Muito bem. Que tal ir me passando as luvas?" Aí, o vigarista que as tinha roubado provavelmente responderia, com a voz mais inocente do mundo: "Que luvas?" Aí eu provavelmente ia até o armário dele e encontrava as luvas num canto qualquer, escondidas na porcaria das galochas ou coisa que o valha. Apanhava as luvas, mostrava a ele e perguntava: "Quer dizer que essas luvas são tuas, não é?" Aí o filho da mãe
provavelmente olharia para mim, com a maior cara de anjinho, e diria: "Nunca vi essas luvas em toda a minha vida. Se são tuas, pode levar. Não quero mesmo essa droga pra nada." Aí eu provavelmente teria ficado uns cinco minutos de pé, no mesmo lugar, com as luvas na mão e tudo. Ia me sentir na obrigação de dar um soco no queixo do sujeito, quebrar a cara dele. Só que não ia ter coragem de fazer nada. Ia só ficar ali, de pé, tentando fazer cara de mau. Talvez dissesse alguma coisa bem cortante e sarcástica, para aporrinhar o sujeito - em vez de lhe dar um soco no queixo. Seja lá como for, se eu dissesse alguma coisa bem cortante e sarcástica, ele provavelmente se levantaria, chegaria perto de mim e perguntaria: "Escuta, Caulfield. Você tá me chamando de ladrão?" Aí, em vez de dizer que era isso mesmo, que ele era um filho da mãe dum ladrão, eu provavelmente só teria dito: "Só sei é que a droga das minhas luvas estavam na droga das tuas galochas." A essa altura o sujeito já saberia com certeza que eu não ia mesmo dar um soco nele e diria: "Olha, vamos deixar esse negócio bem claro. Você tá me chamando de ladrão?" Eu então provavelmente responderia: "Ninguém está chamando ninguém de ladrão. Só sei que as minhas luvas estavam na porcaria das tuas galochas." O negócio podia continuar assim durante horas. Finalmente eu iria embora sem ter dado nem um sopapo nele. Provavelmente ia para o banheiro, acendia um cigarro e ficava me olhando no espelho, fazendo cara de valente. De qualquer maneira, era nisso que eu estava pensando enquanto voltava para o hotel. Não é nada engraçado ser covarde. Talvez eu não seja totalmente covarde. Sei lá. Acho que talvez eu seja apenas em parte covarde, e em parte o tipo do sujeito que está pouco ligando se perder as luvas. Um de meus problemas é que nunca me importo muito quando perco alguma coisa - quando eu era pequeno minha mãe ficava danada comigo por causa disso. Tem gente que passa dias procurando alguma coisa que perdeu. Eu acho que nunca tive nada que me importaria muito de perder. Talvez por isso eu seja em parte covarde. Mas isso não é desculpa. Sei que não é. O negócio é não ser nem um pouquinho covarde. Se é hora de dar um soco na cara de alguém, e dá vontade mesmo de fazer isso, a gente não devia nem conversar. Mas não consigo ser assim. Eu preferia empurrar um sujeito pela janela, ou cortar a cabeça dele com um machado, do que dar um soco no queixo dele. Odeio briga de soco. Não que me importe muito de apanhar - embora, naturalmente, não seja fanático por pancada - mas o que me apavora mais na briga é a cara do outro sujeito. Não consigo ficar olhando a cara do outro sujeito, esse é que é o meu problema. Não seria tão ruim se a gente estivesse com os olhos vendados, ou coisa que o valha. Pensando bem, é um tipo gozado de covardia, mas não deixa de ser covardia. E eu não procuro me iludir.
Quanto mais eu pensava nas minhas luvas e na minha covardia, mais deprimido ficava, e por isso decidi, no meio do caminho, entrar em algum canto para tomar um drinque. Só tinha tomado três doses no Ernie's, e nem tinha acabado a última. Se há um troço que eu tenho é resistência para bebida. Quando me dá na veneta, sou capaz de beber a noite inteira e ficar cem por cento. Uma vez, no Colégio Whooton, eu e um outro garoto, o Raymond Goldfard, compramos uma garrafa de uísque e fomos beber na Capela, num sábado de noite, porque lá ninguém ia ver a gente. Ele ficou na maior água, mas eu acabei inteirinho. Só fui ficando cada vez mais superior, mais indiferente. Vomitei antes de dormir, mas na verdade não precisava - tive mesmo que fazer força para vomitar.
De qualquer modo, antes de chegar ao hotel resolvi entrar num bar de aparência infecta, mas dois sujeitos vinham saindo, bêbados que nem gambá, e queriam saber onde era a entrada do metrô. Um deles, com pinta de cubano, ficou respirando com um hálito podre em cima da minha cara, enquanto eu dava a informação. Perdi até a vontade de entrar na porcaria do bar e tratei de seguir direto para o hotel.
O vestíbulo estava inteiramente deserto, cheirando a cinqüenta milhões de cigarros apagados. Eu não estava com sono nem nada, mas estava me sentindo um bocado mal. Deprimido e tudo. Tive vontade de estar morto.
Aí, mais que de repente, me meti numa enrascada dos diabos.
Mal entrei no elevador, o cabineiro perguntou: - Que tal uma diversãozinha, meu chapa? Ou já está muito tarde pra você?
- Como é que é? - perguntei. Não sabia aonde ele queria chegar nem nada.
- Tá interessado num rabo de saia pra hoje de noite?
- Eu? - respondi. Era o tipo da resposta idiota, mas a gente fica sem jeito quando um sujeito pergunta um troço desses assim de surpresa.
- Qual é tua idade, chefe? - perguntou o cabineiro.
- Por quê? Vinte e dois.
- Hum, hum. Bom, como é que é? Tá interessado? Cinco pacotes uma bimbada. Quinze pacotes a noite toda. Cinco pacotes uma bimbada, quinze pacotes até meio-dia.
- Tá bom - eu disse. Era contra meus princípios e tudo, mas eu estava me sentindo tão deprimido que nem pensei. Esse é que é o problema. Quando a gente está se sentindo muito deprimido não consegue nem pensar.
- Tá bom o quê? Uma hora ou até o meio-dia? Tenho que saber.
- Só uma hora.
- Tá bem, qual é o seu quarto?
Olhei o trocinho vermelho, pendurado na chave, que tinha o número do meu quarto. - Mil duzentos e vinte e dois - falei. Já estava me sentindo meio aporrinhado de ter embarcado naquela estória, mas agora era tarde.
- Perfeito. Vou mandar uma garota lá daqui a quinze minutos.
Abriu a porta do elevador e eu saí.
- Êi, ela é boa? - perguntei. - Não quero nenhum bagulho.
- Que bagulho nada, pode ficar tranqüilo, chefe.
- A quem que eu pago?
- A ela - respondeu. - Vambora, chefe.
Fechou a porta quase na minha cara.
Fui para o quarto e passei uma água no cabelo, mas é realmente impossível pentear um cabelo cortado à escovinha. Aí procurei ver se estava com mau hálito, de tantos cigarros e uísques, que tinha fumado e bebido no Ernie's. Basta por a mão em baixo da boca e soprar para cima em direção ao nariz. Até que não estava muito ruim, mas escovei os dentes assim mesmo. Aí vesti uma camisa limpa. Sabia que não precisava caprichar tanto por causa duma prostituta e tudo, mas era alguma coisa para me ocupar. Estava um pouco nervoso. Estava começando a me sentir muito sensual e tudo, mas estava meio nervoso de qualquer jeito. Pra dizer a verdade, eu sou virgem. No duro. Já tive algumas oportunidades de perder minha virgindade e tudo, mas até agora nunca cheguei ao fim da linha. Sempre acontece alguma coisa. Por exemplo, se a gente está na casa de uma garota, os pais dela sempre chegam na hora errada - ou a gente fica com medo que eles cheguem. Ou, se a gente está no banco de trás do carro de alguém, tem sempre a namoradinha do outro sujeito, no banco da frente, que quer saber o que está acontecendo no carro todo. E fica virando para ver o que está se passando lá atrás. Seja lá como for, sempre acontece alguma coisa. Mas já andei muito perto de fazer o troço algumas vezes. Uma vez, eu me lembro bem, fiquei por pouco. Mas alguma coisa desandou - nem sei mais o que foi. O caso é o seguinte: na maioria das vezes que a gente está quase fazendo o negócio com uma garota - uma garota que não seja uma prostituta nem nada, evidentemente - ela fica dizendo para a gente parar. Meu problema é que eu paro. A maioria dos sujeitos não pára, mas eu não consigo ser assim. A gente nunca sabe se elas realmente querem que a gente pare, ou se estão apenas com um medo danado, ou se estão pedindo que a gente pare só para que, se a gente continuar mesmo, a culpa seja só nossa, e não delas. De qualquer jeito, eu estou sempre parando. O problema é que acabo sentindo pena delas, porque quase todas as garotas são tão burrinhas... Basta um pouquinho de bolinação, e a gente vê que elas estão perdendo a cabeça. Quando uma garota fica excitada mesmo, a gente vê logo que ela está completamente desmiolada. Sei lá. Elas me pedem para parar, e eu paro. Quando volto para casa sempre me arrependo de ter parado, mas continuo a fazer a mesma coisa.
De qualquer maneira, enquanto vestia uma camisa limpa, pensei cá comigo que essa era, de certo modo, minha grande chance. Pensei que, sendo ela uma prostituta e tudo, eu podia treinar um pouco para o caso de vir a me casar um dia ou coisa que o valha. Eu me preocupo com isso de vez em quando. Uma vez, no colégio Whooton, li um livro que tinha um sujeito muito experiente e sensual, um bocado sofisticado. O nome dele era Monsieur Blanchard. O livro era uma droga, mas esse Blanchard até que era bem razoável. Tinha um baita dum castelo na Riviera, na Europa, e sua distração nas horas vagas era bater nas mulheres com uma bengala. Era um cretino e tudo, mas as mulheres ficavam doidinhas por ele. A certa altura ele diz que o corpo da mulher é como um violino, e que a gente precisa ser um grande artista para tocá-lo bem. Era um livro um bocado imbecil - disso eu sei - mas de qualquer maneira não conseguia tirar da cabeça esse negócio do violino. E é por isso que eu queria mais ou menos treinar um pouco, para o caso de vir a me casar algum dia. Caulfield e seu Violino Mágico, que tal? É ridículo, não há dúvida, mas não é tão ridículo assim. Eu até que gostaria de ser bamba nesse troço. Para ser franco, quando estou me badalando com uma garota, perco metade do tempo só para encontrar aquilo que estou procurando, se é que vocês entendem o que eu quero dizer com isso. Por exemplo, essa garota com quem eu quase tive relações sexuais. Passei quase uma hora só para tirar a droga do soutien dela. Quando afinal consegui, a menina já estava a ponto de cuspir em cima de mim.
De qualquer forma, continuei a andar pelo quarto, esperando que a prostituta aparecesse. E desejando que ela não fosse um bagulho. Mas até que não me importava muito. Só queria mesmo era acabar logo com o
troço todo. Afinal, alguém bateu à porta e, quando ia abrir, minha mala estava bem no meio do caminho, tropecei e quase quebrei a droga do joelho. Escolho sempre as ocasiões mais formidáveis para tropeçar numa mala ou coisa parecida.
Quando abri a porta, a tal prostituta estava lá esperando. Com um casaco três-quartos e sem chapéu. Era mais para o louro, mas via-se logo que ela pintava os cabelos. Mas não era nenhum bagulho.
- Como vai? - perguntei, com a voz mais melosa do mundo.
- Você é o sujeito que o Maurice falou? - perguntou. Não parecia lá muito amigável.
- O cabineiro?
- É - respondeu.
- Sou eu sim. Quer fazer o favor de entrar?
Estava me sentindo cada vez mais superior, no duro mesmo. Ela entrou, foi logo tirando o casaco e jogando na cama. Por baixo estava com um vestido verde. Aí ela sentou de lado na cadeira em frente da escrivaninha e começou a balançar o pé para cima e para baixo. Cruzou as pernas e começou a balançar o mesmo pé para cima e para baixo. Para uma prostituta, ela era um bocado nervosa. Era mesmo. Talvez porque fosse tão moça, devia ter mais ou menos a minha idade. Sentei numa poltrona ao lado dela e lhe ofereci um cigarro.
- Eu não fumo - respondeu. Tinha uma voz fininha e fraca, a gente quase não escutava o que ela dizia. Mas nem agradecia quando alguém lhe oferecia alguma coisa. Acho que por simples ignorância.
- Permita que eu me apresente. Meu nome é Jim Steele.
- Você tem um relógio aí? - ela perguntou. Evidentemente, estava pouco ligando para o meu nome. - Êi, espera aí, quantos anos você tem?
- Eu? Vinte e dois.
- Ah, essa não!
Era o tipo da coisa gozada dela dizer, parecia uma criança. A gente espera que uma prostituta responda "não aporrinha", ou "vai à merda", em vez de "essa não".
- E quantos anos você tem? - perguntei.
- O bastante para não ser tapeada - foi a resposta que me deu. Era realmente um bocado espirituosa. - Você tem um relógio aí? - insistiu, e aí se levantou e tirou o vestido por cima da cabeça.
Tenho de confessar que me senti meio esquisito quando ela fez isso. É de se esperar que a gente fique todo excitado quando alguém se levanta e tira o vestido por cima da cabeça, mas não fiquei não. Excitado era talvez a última coisa que eu estava me sentindo. Estava muito mais deprimido do que excitado.
- Êi, você tem ou não tem um relógio aí contigo?
- Não, não tenho não - respondi. Puxa, estava me sentindo esquisito. - Qual é o teu nome? - perguntei. Ela estava só com uma combinação vermelha. Era um bocado embaraçoso, era mesmo.
- Sunny - respondeu. - Vamos logo, tá?
- Não está com vontade de conversar um pouco? - perguntei. Era o tipo da coisa infantil de dizer, mas estava me sentindo um bocado esquisito. - Você está com muita pressa?
Olhou para mim como se eu fosse um maluco.
- Afinal, você quer conversar sobre o quê?
- Sei lá. Nada de especial. Só pensei que você talvez quisesse bater um papo.
Ela sentou de novo na cadeira ao lado da escrivaninha. Mas via-se logo que ela não estava gostando. Começou a balançar o pé outra vez - puxa, que garota nervosa.
- Você gostaria de fumar um cigarro agora? - perguntei. Esqueci que ela não fumava.
- Eu não fumo. Escuta, se você quer falar, fala logo. Eu tenho mais o que fazer.
Mas eu não conseguia pensar em nada para dizer. Pensei em perguntar como é que ela havia se tornado uma prostituta e tudo, mas fiquei com medo de fazer uma pergunta dessas. De qualquer maneira, provavelmente ela não teria me respondido.
- Você não é de Nova York, é? - acabei dizendo. Não consegui pensar em outra coisa.
- Hollywood - respondeu. Aí se levantou e foi até onde tinha deixado o vestido, em cima da cama. - Tem um cabide aí? Não quero que o meu vestido fique todo amassado, está saindo da lavanderia.
- Perfeitamente - respondi depressa. Fiquei muito feliz de poder me levantar e fazer alguma coisa. Levei o vestido até o armário e pendurei. Foi engraçado. Me senti meio triste quando pendurei o vestido. Pensei nela entrando numa loja para comprá-lo, sem ninguém saber que ela era uma prostituta e tudo. Provavelmente, o vendedor pensou que ela era uma garota direita. Não sei bem por que, mas o troço me deixou um bocado triste.
Sentei de novo e procurei manter a conversa acesa. Ela era uma péssima interlocutora.
- Você trabalha toda noite? - perguntei, mas, mal tinha acabado de falar, a coisa me soou horrível.
- Trabalho.
Ela estava andando pelo quarto. Apanhou o menu de cima da escrivaninha e ficou lendo.
- Que é que você faz durante o dia?
Sacudiu os ombros. Era um bocado magricela.
- Durmo, vou a um cinema... - deixou de lado o menu e olhou para mim: - Vamos logo, tá? Não vou ficar aqui...
- Olha - eu disse - não estou me sentindo muito bem hoje. Tive uma noite desgraçada. No duro. Eu te pago e tudo. Você se importa se a gente não fizer o troço? Você se importa?
O problema é que, pura e simplesmente, eu não queria fazer o troço. Para ser sincero, estava mais deprimido do que excitado. Ela era deprimente. O vestido verde pendurado no armário e tudo. E, além disso, acho que eu não poderia nunca fazer esse troço com alguém que passa o dia inteiro sentada numa porcaria dum cinema. Acho que não poderia mesmo.
Ela se aproximou de mim, assim com um olhar engraçado, como se não estivesse me acreditando: - Quê que há? - perguntou.
- Não há nada - respondi. Puxa, já estava começando a ficar nervoso. - Acontece que eu fui operado há pouco tempo.
- É? Aonde?
- No meu... como é que se chama... no meu clavicórdio.
- Como é que é? Onde é que fica isso?
- O clavicórdio? Bem, para dizer a verdade, é na coluna vertebral. Quer dizer, é bem lá embaixo na espinha.
- É mesmo? - ela disse. - Que pena.
Aí ela sentou na droga do meu colo.
- Você é bonitinho.
Ela me punha tão nervoso que eu continuei mentindo como um louco.
- Ainda estou em fase de recuperação.
- Você se parece com um sujeito que trabalha no cinema. Você sabe... Como é que é o nome dele? Você sabe quem eu estou falando. Qual é o nome dele mesmo, hem?
- Sei lá - respondi. E ela nada de sair da droga do meu colo.
- Sabe sim. Ele trabalhou naquele filme com o Melvine Douglas, era o irmão menor do Melvine Douglas. Aquele que cai do bote. Você sabe quem eu estou falando.
- Não, não sei não. Só vou ao cinema quando não tenho outro jeito.
Aí ela começou a se fazer de engraçadinha. Pra valer.
- Você se importa de parar com isso? Não estou com vontade, já disse. Acabei de fazer essa operação.
Nem assim saiu do meu colo, mas me jogou um olhar furioso.
- Olha, eu estava dormindo quando esse maluco desse Maurice foi me acordar. Se você pensa que eu...
- Já disse que vou te pagar e tudo por você ter vindo. Vou pagar mesmo. Tenho um bocado de dinheiro. O problema é que ainda estou me recuperando de uma séria...
- Então pra quê que você disse que queria uma garota a esse maluco do Maurice? Se você acabou de fazer uma droga duma operação na porcaria do teu negócio... Hem?
- Pensei que estaria me sentindo muito melhor do que estou. Fui um pouco prematuro nos meus cálculos. Sem brincadeira, me desculpe. Se você se levantar só um segundo vou apanhar minha carteira. No duro.
Ela estava danada da vida, mas levantou do meu colo para que eu pudesse ir buscar minha carteira em cima da cômoda. Apanhei uma nota de cinco dólares e entreguei a ela.
- Muito obrigado - falei. - Muitíssimo obrigado.
- Aqui só tem cinco. É dez.
Ela estava começando a bancar a engraçadinha, a gente via logo. Eu estava adivinhando que ia acontecer um troço desses.
- O Maurice me disse que era cinco. Disse que era quinze até o meio-dia e só cinco por uma bimbada.
- Uma bimbada é dez.
- Ele disse cinco. Me desculpe, mas é só isso que eu vou dar.
Ela deu uma sacudidela de ombros, como já havia feito antes, e aí disse, muito friamente: - Você se importa de apanhar meu vestido? Ou seria muito incômodo?
Era uma garotinha um bocado invocada. Mesmo com aquela vozinha de nada ela conseguia deixar a gente meio assustado. Se fosse uma baita duma prostituta velha, com um bocado de pintura na cara e tudo, não teria metade daquela arrogância.
Fui apanhar o vestido para ela. Ela se vestiu e tudo, e apanhou o casaco de cima da cama.
- Até logo, bobalhão.
- Até logo - respondi. Não agradeci nem nada. Ainda bem que não agradeci.
14
Depois que a tal de Sunny foi embora, me sentei numa cadeira e fumei uns dois cigarros. O dia estava começando a clarear. Puxa, eu estava nas últimas. Ninguém imagina como eu estava deprimido. Foi então que comecei a falar mais ou menos em voz alta com o Allie. Às vezes, quando estou muito deprimido, costumo fazer isso. Fico dizendo a ele para apanhar a bicicleta em casa e me encontrar em frente da casa do Bobby Fallon. O Bobby Fallon morava bem pertinho de nós no Maine - isto é, há muitos anos atrás. Um dia, Bobby e eu combinamos ir de bicicleta até o Lago Sedebego. Íamos levar um lanche e tudo, e nossas espingardinhas de ar comprimido - éramos garotos e estávamos pensando em dar uns tiros. Afinal o Allie ouviu nossa conversa e quis ir também, mas eu não deixei, dizendo que ele era muito criança. Por isso, hoje em dia, de vez em quando - quando estou muito deprimido - fico dizendo a ele: "Tá bem, vai em casa, apanha a bicicleta e me encontra em frente da casa do Bobby. Vai depressa". Não é que eu não costumasse levá-lo comigo quando ia a esses lugares. Eu levava. Mas naquele dia não deixei. Ele não ficou magoado por isso - nunca ficava magoado por coisa alguma - mas, mesmo assim, penso sempre nisso quando estou muito deprimido.
Afinal, tirei a roupa e me deitei. Na cama, me deu uma bruta vontade de rezar ou coisa parecida. Mas não consegui. Não é sempre que consigo rezar quando tenho vontade. Em primeiro lugar, sou meio ateu. Gosto de Jesus e tudo, mas não dou muita bola para a maioria das outras coisas da Bíblia. Os Apóstolos, por exemplo. Pra falar a verdade, os Apóstolos são uns chatos. Depois que Jesus morreu e tudo eles trabalharam direitinho, mas, enquanto Ele estava vivo, não serviam pra nada. Deixavam Ele na mão o tempo todo. Gosto de todo mundo na Bíblia mais que dos Apóstolos. Pra dizer a verdade, o cara que eu mais gosto na Bíblia é aquele maluco que morava nos túmulos e vivia se cortando com as pedras. Gosto dez vezes mais daquele filho da mãe do que dos Apóstolos. Quando eu estudava no Colégio Whooton, discutia um bocado sobre isso com um garoto chamado Arthur Childs, que morava no fim do corredor. O tal do Childs era Quaker e tudo, e não largava a Bíblia. Era um bom menino e eu gostava dele, mas nunca chegamos a um acordo sobre uma porção de troços da Bíblia, principalmente os Apóstolos. Ele cansou de repetir que, se eu não gostava dos Apóstolos, então não gostava de Jesus nem nada. Se foram escolhidos por Jesus, a gente tinha que gostar deles. Eu respondia que sabia que tinha sido Jesus quem tinha escolhido, mas que a escolha tinha sido feita ao acaso, porque Ele não teve tempo de andar por aí analisando meio mundo. Eu não culpava Jesus nem nada. Ele não tinha culpa de não ter tido tempo. Me lembro que um dia eu perguntei ao tal de Childs se ele achava que Judas, o cara que traiu Jesus e tudo, tinha ido para o inferno depois que se suicidou. Childs respondeu que não tinha nem dúvida. Aí é que discordei dele. Eu disse que era capaz de apostar um milhão que Jesus não tinha mandado Judas para o inferno. Até hoje eu botava dinheiro, se tivesse um milhão. Acho que qualquer um dos Apóstolos teria mandado ele para o inferno - e o mais depressa possível - mas aposto qualquer coisa como Jesus não mandou. O tal de Childs disse que o problema comigo é que eu não ia à missa nem nada. De certo modo, ele tinha razão. Não vou mesmo. Em primeiro lugar, meus pais são de religiões diferentes e por isso nós lá em casa somos todos ateus. Pra falar a verdade, não suporto padre. Todos os que conheci, nas escolas por onde andei, tinham essa voz de juízo final quando faziam os sermões. Juro por Deus que detesto isso. Não sei por que diabo eles não falam com uma voz normal. E é por isso que soam tão cretinos quando falam.
De qualquer maneira, não consegui rezar droga nenhuma. Era só começar e me lembrava logo da tal Sunny me chamando de bobalhão. Acabei sentando na cama e fumando mais um cigarro. Estava com um gosto horrível. Acho que já tinha fumado uns dois maços desde que havia saído do Pencey.
Eu ainda estava sentado ali na cama, fumando, quando de repente alguém bateu na porta. Fiquei torcendo para que as pancadas não fossem na minha porta, mas sabia muito bem que eram. Não sei como é que eu sabia, mas o fato é que eu sabia. E também sabia quem era. Sou meio vidente.
- Quem é? - perguntei. Eu estava meio apavorado. Sou um bocado medroso para esse tipo de negócio.
Ninguém respondeu. Bateram de novo, com mais força. Acabei me levantando, só de pijama, e abri a porta. Nem precisei acender a luz, porque já era dia. Dei de cara com a Sunny e o Maurice, o cafetão do elevador.
- Quê que há? Quê que vocês querem? - perguntei com uma voz que não era lá das mais firmes.
- Pouca coisa - o tal de Maurice disse. - Só cinco dólares.
Maurice era o único a falar. A tal de Sunny só ficava lá em pé, de boca aberta e tudo.
- Já paguei. Dei cinco dólares a ela. Pode perguntar.
Puxa, como minha voz estava tremendo.
- São dez, chefe. Dez por uma bimbada e quinze até meio-dia. Eu te avisei.
- Não foi isso que você disse. Você disse cinco dólares por uma bimbada. Quinze até o meio-dia está certo, mas ouvi perfeitamente...
- Abre aí, chefe.
- Pra quê? - perguntei.
Puxa, meu coração batia tanto que por pouco não me derrubava no chão. Queria, pelo menos, estar vestido. É horrível a gente estar só de pijama quando acontece um troço desses.
- Vamos logo, chefe - Maurice disse. Aí me deu um empurrão, com aquela mão nojenta. Quase caí sentado. O filho da puta era forte pra burro. Quando dei por mim, os dois já estavam dentro do quarto. Pareciam até os donos daquela droga. Ela sentou no peitoril da janela. O Maurice sentou na poltrona e afrouxou o colarinho do uniforme de ascensorista. Puxa, como eu estava nervoso.
- Pronto, chefe, vai passando a nota. Tenho que voltar pro trabalho.
- Já disse mais de dez vezes. Não devo um centavo a ninguém. Já dei cinco a ela...
- Como é... Chega de conversa. Vai passando a nota.
- Por que é que eu tenho que te dar mais cinco dólares? - falei, com uma voz de cana rachada. - Você está querendo me tapear.
O tal do Maurice desabotoou a túnica, do primeiro ao último botão. A única coisa que ele tinha embaixo era um colarinho falso, sem camisa nem nada, e uma barrigona cabeluda.
- Ninguém tá querendo te tapear. Vai passando a nota, chefe.
- Não.
Quando disse isso, o Maurice se levantou da cadeira e começou a andar na minha direção e tudo. Parecia que ele estava muito, muito cansado, ou então muito, muito chateado. Puxa, que medão. Me lembro que eu estava de braços cruzados. Acho que não teria sido tão ruim se eu não estivesse só com a droga do pijama.
- Vai passando a nota, chefe.
Ele veio direto para onde eu estava. Não sabia dizer outra coisa. Era só: "Vai passando a nota, chefe". Era um imbecil total.
- Não.
- Chefe, você assim vai me obrigar a engrossar um pouco. Não queria fazer isso, mas tou vendo que não tem outro jeito. Você deve cinco dólares à gente.
- Não te devo nada. Se você me bater, vou fazer um barulhão danado. Vou acordar o hotel inteiro. Até a polícia e tudo.
Minha voz tremia feito uma filha da mãe.
- Então começa. Pode se esgoelar à vontade. Ótimo - ele falou. - Quer que seus velhos fiquem sabendo que você passou a noite com uma puta? Um garoto da alta sociedade, como você?
Ele era um bocado vivo, lá à moda dele. Era mesmo.
- Me deixa em paz. Se você tivesse dito dez ainda vá lá. Mas ouvi perfeitamente...
- Como é, vai dar ou não vai?
Me imprensou contra a porta. Estava praticamente em cima de mim, com aquela barrigona imunda e cabeluda e tudo.
- Me deixa em paz. Dá o fora do meu quarto - respondi. Eu continuava de braços cruzados e tudo. Puxa, como eu era trouxa.
Aí a Sunny falou pela primeira vez:
- Ô, Maurice, quer que eu apanhe a carteira dele? Está ali bem em cima daquele troço.
- Quero, apanha duma vez.
- Êi, deixa a minha carteira aí!
- Pronto, já peguei - Sunny disse. Ela acenou para mim com os cinco dólares. - Tá vendo? Tou tirando só os cinco que você me deve. Não sou nenhuma vigarista.
De repente, comecei a chorar. Dava tudo para não ter chorado, mas chorei.
- Não, vocês não são vigaristas, não - eu disse. - Só estão roubando cinco...
- Cala a boca - o tal do Maurice disse, me dando um empurrão.
- Deixa esse cara aí e vambora, anda - a Sunny disse. - Anda, vambora. Já tamos com a grana que ele deve. Vem, vambora, anda.
- Tou indo - disse o tal do Maurice. Mas não foi.
- Tou falando sério, Maurice, anda. Deixa ele pra lá.
- Nem tou tocando nele - disse o Maurice, inocente como um anjinho. Foi aí que ele me deu um peteleco com toda a força no meu pijama. Não vou dizer onde foi, mas o peteleco doeu pra chuchu. Eu aí chamei ele de imbecil.
- Quê que você disse? - ele perguntou, com a mão atrás da orelha, como se fosse surdo. - Que que é? O que é que eu sou?
Eu ainda estava mais ou menos chorando. Continuava nervoso é com raiva.
- Você é um idiota - falei. - Você é um vigarista dum imbecil nojento e não dou dois anos para ver você aí pela rua, igual a esses vagabundos raquíticos que atracam a gente pra pedir dinheiro prum café. Você vai andar com um paletó imundo, todo sujo de catarro, e vai ser um...
Aí ele me acertou. Nem tentei sair do caminho, ou me esquivar, nem nada. Só senti aquele murro tremendo no estômago.
Mas não desmaiei nem nada, porque me lembro que ainda estava no chão quando vi os dois saírem e fecharem a porta. Aí fiquei deitado uma porção de tempo, mais ou menos como aconteceu da outra vez com o Stradlater. Só que dessa vez pensei que ia morrer mesmo. No duro. Pensei que estivesse me afogando ou coisa parecida. O caso é que eu mal podia respirar. Quando afinal levantei, tive que ir até o banheiro todo dobrado, apertando a barriga e tudo.
Mas eu sou doido. Verdade. Juro por Deus. Na metade do caminho para o banheiro, comecei a fingir que estava com uma bala no bucho. O tal de Maurice tinha me chumbado. Por isso eu estava indo para o banheiro tomar uma bruta talagada de uísque ou coisa parecida, para acalmar os nervos e me ajudar a entrar mesmo em ação. Me imaginei saindo da porcaria do banheiro de terno e tudo, com minha pistola no bolso e cambaleando um pouco. Aí, em vez de usar o elevador, eu descia pela escada, me agarrando no corrimão e tudo, enquanto um filete de sangue escorria pelo canto da minha boca. Ia descer alguns andares - apertando a barriga, sangue pingando por todo lado - e aí chamava o elevador. Assim que o tal do Maurice abrisse a porta, dava de cara comigo, de pistola na mão, e ia começar a gritar, com aquela voz esganiçada de quem está apavorado, me pedindo para deixar ele em paz. Mas eu chumbava ele assim mesmo. Seis tiros bem no meio daquela barrigona cabeluda. Aí eu jogava a pistola no poço do elevador - depois de apagar as impressões digitais e tudo. Aí me arrastava escada acima até o quarto e chamava a Jane para vir fazer um curativo na minha barriga. Fiquei imaginando a Jane botando um cigarro aceso na minha boca e segurando para eu tragar, enquanto o sangue continuava a correr e tudo.
A culpa é da droga dos filmes de bandido. Por mais que a gente evite, acaba influenciado. Fora de brincadeira.
Fiquei no banheiro quase uma hora, tomando banho e tudo. Depois voltei para a cama. Levei muito tempo para dormir, não estava nem cansado, mas acabei pegando no sono. A vontade que tive foi de me matar: tive vontade de me atirar pela janela. Provavelmente teria pulado mesmo, se tivesse a certeza de que alguém ia me cobrir assim que eu me esborrachasse no chão. Não queria é que um bando de imbecis curiosos ficassem me olhando quando eu estivesse todo ensangüentado.
15
Dormi pouco, porque eram só umas dez horas quando acordei. Fumei um cigarro e logo depois senti uma fome desgraçada. Não tinha comido nada desde aqueles dois hamburgers com o Brossard e o Ackley, quando fomos ao cinema em Agerstown. Já fazia um bocado de tempo, parecia que tinha sido uns cinqüenta anos antes. O telefone estava pertinho de mim e tive vontade de pedir o café no quarto, mas fiquei com medo que mandassem o Maurice trazer. Para ser franco, não estava lá muito ansioso por vê-lo de novo. Por isso, fiquei rolando na cama algum tempo e acendi outro cigarro. Pensei em dar um telefonema para a Jane, para ver se ela já estava em casa e tudo, mas a idéia não chegou a me entusiasmar.
O que fiz foi ligar para a Sally Hayes. Ela estudava no Colégio Mary A. Woodruff e eu sabia que já devia ter voltado para casa, por causa da carta que eu tinha recebido umas duas semanas antes. Ela não me atraía muito, embora eu a conhecesse há anos. Antigamente eu achava a Sally muito inteligente, mas só de burro que eu sou. Só porque ela entendia de teatro, e peças, e literatura e todo esse negócio. Quando as pessoas sabem um bocado sobre essas coisas, a gente leva um tempão para descobrir se são burras ou não. No caso da Sally eu levei anos. Com certeza teria descoberto muito antes, se nós não tivéssemos namorado tanto. O meu problema é que eu sempre acho inteligente a pequena com quem estou me esfregando no momento. Uma coisa não tem droga nenhuma a ver com a outra, mas continuo pensando assim.
De qualquer maneira, liguei para a casa dela. Primeiro me respondeu a empregada. Depois o pai. Depois veio ela.
- Sally?
- Sim... Quem fala? - ela perguntou. Era uma cretinazinha de marca maior. Eu já tinha dito ao pai dela que era eu.
- É Holden Caulfield. Como vai?
- Holden! Vou bem, e você?
- Muito bem. Escuta. Como vai você? Quer dizer, como vai de colégio?
- Vou bem - ela disse. - Quer dizer, sabe como é, né?
- Ótimo. Bem, escuta aqui. Será que você tem algum compromisso para hoje? É domingo, mas sempre tem uma ou duas matinês no domingo. De caridade, ou coisa que o valha. Quer ir?
- Gostaria muito. Grande idéia. Magnífico!
Magnífico. Se há uma palavra que eu odeie é magnífico. É tão cretina. Por um segundo tive vontade de dizer que era melhor desistir da matinê. Mas batemos papo durante algum tempo. Isto é, ela bateu. Não consegui encaixar nem uma palavra. Primeiro me falou de um camarada de Harvard que andava doido atrás dela - um calouro, com certeza, mas é claro que isso ela não ia dizer. O cara telefonava dia e noite. Dia e noite - não agüento. Depois contou que outro cara, um cadete de West Point, também estava gamado por ela. Grande vantagem. Afinal, mandei que ela me encontrasse debaixo do relógio de Biltmore, às duas horas, e que não se atrasasse, porque a peça ia começar às duas e meia. Ela sempre se atrasava. Aí desliguei. Ela era chata pra burro, mas era um bocado bonita.
Depois de marcar o encontro, levantei, me vesti e arrumei a mala. Espiei pela janela antes de ir embora, para ver como iam os tarados, mas todas as venezianas estavam baixadas. Eram um padrão de decência pela manhã. Aí tomei o elevador e paguei a conta. Não vi o tal do Maurice em parte alguma. Claro que não me danei a procurar por ele, o filho da mãe.
Peguei um táxi na porta do hotel, mas não tinha a mínima idéia para onde ir. Não tinha mesmo para onde ir. Era domingo ainda e eu só podia ir para casa na quarta-feira. Ou, no mínimo, na terça. E, no duro mesmo, não estava com vontade nenhuma de me meter noutro hotel para me quebrarem a cara. Por isso, mandei o motorista me levar para a Estação Grand Central. Era juntinho do Biltmore, onde ia encontrar a Sally mais tarde, e calculei que o melhor era deixar as malas guardadas num daqueles armários de aço que a gente leva a chave, e depois, ir tomar café. Estava com fome. Enquanto o táxi seguia, tirei a carteira e mais ou menos contei o dinheiro que me sobrava. Não me lembro exatamente quanto tinha, mas não era nenhuma fortuna. Tinha jogado fora um dinheirão naquelas duas miseráveis semanas. Tinha mesmo. No fundo, eu sou um tremendo esbanjador. E o que não gasto, acabo perdendo. A maioria das vezes, até esqueço de apanhar meu troco nos restaurantes, buates e tudo. Meus pais ficam furiosos com isso e, afinal de contas, têm razão. Mas meu pai é bastante rico. Não sei quanto ele ganha - nunca conversamos sobre isso - mas sei que é um bocado. Ele é advogado de uma companhia. Esses camaradas faturam uma nota alta. Outra prova de que ele está muito bem de vida é que está sempre investindo em peças da Broadway. As peças sempre fracassam e minha mãe fica maluca quando ele faz isso. Desde que meu irmão Allie morreu ela não tem estado muito bem. É muito nervosa. Por isso também, por causa dela, é que fiquei meio chateado de ter levado bomba outra vez.
Depois de deixar minhas malas num armário da estação, entrei num barzinho e tomei café. Para mim foi um vastíssimo café - suco de laranja, bacon e ovos, torrada e café. Em geral, fico só no suco de laranja. Como muito pouco. Verdade mesmo. É por isso que sou tão esquelético. Eu devia fazer uma espécie de super-alimentação, para aumentar o peso e tudo, mas nunca fiz. Quando estou fora de casa, geralmente só como sanduíches de queijo e leite maltado. Não é muita coisa, mas o leite maltado tem um monte de vitaminas. H. V. Caulfield. Holden Vitamina Caulfield.
Enquanto comia meus ovos, entraram duas freiras, com valises e tudo - achei que estavam se mudando de convento ou coisa parecida e esperavam um trem -, e sentaram no balcão. Pareciam não saber que diabo fazer com as valises, por isso dei uma mãozinha. As valises eram daquelas baratas pra burro - das que não são
de couro de verdade nem nada. Isso não tem grande importância, eu sei, mas odeio ver alguém com essas malas ordinárias. É chato confessar, mas sou capaz de odiar alguém, só de olhar, se a pessoa estiver carregando umas valises iguais àquelas. Uma vez me aconteceu um troço enjoado. Foi quando eu estava no Elkton Hills e meu companheiro de quarto, um tal de Dick Slagle, tinha uma dessas malas muito vagabundas. Ele guardava a mala debaixo da cama e não no porta-malas, para que ninguém a visse junto das minhas. Isso me deprimia pra burro. Eu tinha vontade de jogar fora as minhas malas ou coisa parecida, ou até mesmo fazer uma troca com ele. Minhas malas tinham sido compradas numa loja de classe, eram de couro de bezerro e tudo mais, e acho que custaram um dinheirão. No fim, acabei escondendo também as minhas malas debaixo da minha cama, em vez de botá-las no porta-malas, para que o Slagle não ficasse com complexo de inferioridade. Sabe o quê que ele fez? No dia seguinte tirou minhas malas de baixo da minha cama e pôs tudo de novo no porta-malas. E fez isso - levei algum tempo para descobrir - porque queria dar a impressão a todo mundo de que as minhas malas eram dele. Queria mesmo. Era um sujeito gozado. Por exemplo, vivia falando sobre as minhas valises, que eram novas e burguesas demais. Essa era a palavra predileta dele. Tudo meu era burguês pra diabo. Até minha caneta-tinteiro era burguesa. Vivia pedindo a caneta emprestada, mas nem por isso ela deixava de ser burguesa. Só moramos juntos uns dois meses. Depois nós dois pedimos para mudar de quarto. O mais engraçado é que, depois da mudança, eu senti falta dele, porque o safado tinha um senso de humor infernal e, de vez em quando, nós nos divertíamos à bessa. Não me admiraria se ele também sentisse saudade de mim. No começo, ele chamava minhas coisas de burguesas só de brincadeira, e eu não dava bola. Achava até meio engraçado. Depois de algum tempo, ficou evidente que ele não estava mais brincando. O negócio é que é um bocado duro ser companheiro de quarto de um sujeito se as malas da gente são muito melhores que as dele - se as da gente são boas mesmo e as dele não. A gente ainda pensa que, se o outro é inteligente e tudo mais, e se tem senso de humor, não vai dar pelota para esse negócio das malas. Mas o fato é que dá. Dá mesmo. É por isso que fui morar com um filho da mãe imbecil feito o Stradlater. Pelo menos as malas dele eram tão boas quanto as minhas.
Afinal as duas freiras se sentaram ao meu lado e nós acabamos conversando. A que estava junto de mim carregava uma daquelas cestinhas em que as freiras e as donas do Exército da Salvação coletam dinheiro na época do Natal. Essas que a gente encontra pelas esquinas, principalmente na Quinta Avenida, em frente das grandes lojas e tudo. A cestinha da que estava ao meu lado caiu no chão e me abaixei para apanhar. Perguntei se ela estava recolhendo dinheiro para as obras de caridade e tal. Ela disse que não. Disse que a cesta tinha sobrado na hora de arrumar as malas e, por isso, a havia trazido na mão. Ela tinha um sorriso simpático quando olhava para a gente. Tinha um nariz grande e usava óculos, daqueles com uma espécie de aro de ferro, que não são lá muito elegantes, mas tinha uma cara bondosa pra chuchu.
- Se a senhora estivesse recolhendo dinheiro - falei - eu talvez pudesse fazer uma pequena contribuição. Ou então a senhora podia guardar o dinheiro para quando for a época.
- Oh, que bondade a sua - ela disse, e a outra, a amiga dela, olhou para mim.
A outra estava lendo um livrinho de capa preta enquanto bebia o café. Parecia uma Bíblia, mas era fininho demais. Mas era como uma Bíblia. As duas estavam tomando só café com torradas. Já isso me deprimiu. Odeio estar comendo bacon com ovos ou qualquer outra coisa, e ver outra pessoa tomar só café com torradas.
Elas acabaram aceitando uma contribuição de dez dólares. Ficaram perguntando se eu tinha certeza de que não ia me fazer falta e tudo. Eu disse que tinha bastante dinheiro, mas elas pareciam não acreditar muito. Mas acabaram aceitando o dinheiro. E continuaram a me agradecer tanto que chegava a encabular. Levei a conversa para assuntos gerais e perguntei para onde elas iam. Contaram que eram professoras e estavam chegando de Chicago para começar a ensinar num convento da rua 168 ou 186, uma daquelas ruas lá nos cafundós do Judas. A que estava sentada ao meu lado, com os óculos de aro de ferro, disse que ensinava inglês e a amiga dela ensinava história e política americana. E eu comecei a pensar o que é que aquela que estava ao meu lado e ensinava inglês devia pensar, sendo freira e tudo, quando lia certos livros como parte de seu trabalho de professora. Livros que não são só sobre esses troços de sexo, mas com estórias de amantes e tudo. Assim como a tal de Eustacia Vye, em "A Volta do Nativo", de Thomas Hardy. Embora o livro não tivesse sexo demais, a gente não pode deixar de imaginar o que é que uma freira pensa quando lê sobre a tal da Eustacia. Não falei nada, claro. Só disse que inglês era o meu forte.
- É mesmo? Ah, que bom! - falou a de óculos, que ensinava inglês. - Que foi que você leu este ano? Gostaria muito de saber.
Ela era boazinha mesmo.
- Bem, passamos quase o tempo todo nos Anglo-Saxões, Beowulf e Grendel e Lord Randal My Son, e tudo isso. Mas tivemos que ler alguns livros fora do currículo, para melhorar as notas. Eu li "A Volta do Nativo", de Thomas Hardy, e "Romeu e Julieta" e "Júlio..."
- Ah, "Romeu e Julieta"! Que beleza! Você não adorou?
Na verdade ela não falava muito como uma freira.
- Gostei. Gostei muito. De umas coisas eu não gostei, mas, no todo, achei muito comovente.
- De que não gostou? Lembra-se?
Para dizer a verdade, era meio esquisito falar com ela de "Romeu e Julieta". Quer dizer, a peça é meio cheia de sexo, em alguns pedaços, e ela era uma freira e tudo, mas ela perguntou, e por isso discuti um pouco o assunto.
- Bem, não sou maluco pelo Romeu e pela Julieta. Quer dizer, gosto deles, mas... sei lá. Às vezes os dois conseguem ser meio irritantes. Quer dizer, tive muito mais pena quando mataram o tal de Mercúrio do que quando Romeu e Julieta morreram. O negócio é que nunca simpatizei muito com o Romeu, depois que aquele outro homem, o primo de Julieta - como é mesmo o nome dele? - apunhalou o Mercúrio.
- Tebaldo.
- Isso mesmo. Tebaldo - repeti. Eu sempre esqueço o nome desse cara. - Foi culpa do Romeu. Quer dizer, o tal do Mercúrio era de quem, eu mais gostava na peça. Não sei. Eles eram bons, todos aqueles Montecchios e Capuletos - principalmente a Julieta - mas o Mercúrio era... É difícil explicar. Ele era esperto e divertido e tudo. O negócio é que fico danado quando alguém morre - principalmente alguém esperto e divertido e tudo - e por culpa de outro sujeito, ainda por cima. Pelo menos, com o Romeu e a Julieta foi culpa deles mesmos.
- Em que colégio você está? - ela perguntou. Provavelmente queria sair do assunto Romeu e Julieta.
Disse que estava no Pencey e ela conhecia o colégio. Ela disse que era muito bom. Deixei pra lá. Então a outra, a que ensinava história e política, disse que precisavam ir embora. Apanhei a conta delas, mas não deixaram que eu pagasse. A que usava óculos me fez devolver a nota.
- Você já foi muito generoso. Você é um rapaz muito distinto.
Ela era mesmo muito boazinha. Me fazia lembrar um pouco a mãe do tal Ernest Morrow, aquela que conheci no trem. Principalmente quando sorria.
- Gostamos muito de conversar com você - ela disse.
Falei que também tinha gostado muito de conversar com elas. E era verdade mesmo. E acho que ainda teria gostado mais se o tempo todo não estivesse preocupado com que, de repente, elas quisessem saber se eu era católico ou não. Os católicos estão sempre procurando descobrir se a gente é católico. Isso me acontece muito, em parte, eu sei, porque o meu sobrenome é irlandês, e quase todos os descendentes de irlandeses são católicos. Realmente, meu pai era católico. Mas abandonou a religião quando casou com minha mãe. Mas os católicos estão sempre querendo saber se a gente é católico, mesmo sem saber o sobrenome. No colégio Whooton, conheci um camarada católico, Louis Shaney. Foi o primeiro garoto que eu conheci lá. Nós estávamos sentados nas duas primeiras cadeiras, do lado de fora da droga da enfermaria, esperando a chamada para o exame médico e, não sei como, começamos a conversar sobre tênis. Ele se interessava por tênis e eu também. Ele me disse que nunca perdia o torneio de Forest Hills, e eu disse que também não perdia. Aí ficamos falando de alguns cobras durante algum tempo. Ele entendia um bocado de tênis, para um garoto da idade dele. Entendia mesmo. Aí, logo depois, bem no meio da droga da conversa, ele me perguntou:
- Você reparou, por acaso, onde fica a igreja católica aqui na cidade?
Acontece que, pelo jeito de falar, a gente via logo que o que ele queria mesmo era descobrir se eis era católico. Queria mesmo. Não porque ele tivesse preconceito religioso ou coisa parecida, mas só porque queria saber. Ele estava gostando da conversa sobre tênis, mas a gente via logo que ele ia gostar mais ainda se eu fosse católico e tudo. Esse negócio me deixa maluco. Isso não quer dizer que o troço tenha estragado a nossa conversa nem nada - não estragou, não - mas melhorar é que não melhorou. Por isso fiquei contente das duas freiras não me perguntarem se eu era católico. Não teria estragado a conversa, mas provavelmente ia tornar tudo diferente. Não que eu reprove os católicos. Não. Se eu fosse católico, com toda a certeza faria o mesmo. Mas, de certo modo, é parecido com o negócio das valises. O que eu quero dizer é que não contribui para tornar uma conversa agradável. É só isso.
Quando elas se levantaram para ir embora - as duas freiras - fiz uma coisa idiota, que me deixou um bocado sem jeito. Eu estava fumando e, quando levantei para me despedir, sem querer soprei fumaça no rosto delas. Não foi de propósito, mas soprei. Pedi um milhão de desculpas, e elas se mostraram muito educadas e boazinhas, mas assim mesmo fiquei encabulado.
Depois que foram embora, comecei a ficar arrependido de só ter dado dez dólares. Mas acontece que eu tinha aquele encontro com a Sally Hayes e precisava de dinheiro para comprar as entradas e tudo. Mas fiquei arrependido de qualquer maneira. Dinheiro é uma droga. Acaba sempre fazendo a gente se sentir triste pra burro.
16
Depois do café, como o meu encontro com a Sally era às duas horas e ainda não havia passado de meio-dia, resolvi dar um passeio a pé. Não conseguia parar de pensar nas duas freiras. Não me saía da cabeça aquela bolsa de palha surrada em que elas coletavam dinheiro quando não estavam dando aula. Tentei imaginar minha mãe ou outra pessoa, minha tia ou aquela doida da mãe da Sally Hayes, paradas na porta de uma grande loja, catando dinheiro numa cesta de palha. Era difícil. Minha mãe nem tanto, mas as outras duas... Minha tia é um bocado caridosa. Trabalha muito para a Cruz Vermelha e tudo. Mas ela anda sempre muito elegante, e toda vez que faz alguma caridade está sempre podre de chic, de baton e todos esses troços. Era impossível imaginá-la fazendo caridade sem pintura nem nada e toda vestida de preto. E a mãe da Sally Hayes! Puxa vida. Só via um jeito dela sair recolhendo dinheiro numa cesta: era se todo mundo ainda tivesse que fazer a maior reverência, se dobrar até o chão, cada vez que entregasse um donativo. Só botar o dinheiro na cesta e ir em frente, sem dizer nada, isso não bastava. Ela assim desistia em menos de uma hora. Ia ficar chateada, devolvia a cesta e se mandava para algum lugar elegante para almoçar. Era isso que eu apreciava naquelas freiras. A gente podia jurar que elas nunca tinham comido num lugar bacana. Só de pensar que nunca tinham posto os pés num lugar grã-fino para almoçar me deixou triste. Sabia que isso não tinha nenhuma importância, mas fiquei triste de qualquer maneira.
Comecei a andar na direção da Broadway, só de farra, porque fazia mais de um ano que eu não ia lá. Além disso, queria achar uma loja de discos aberta. Queria comprar para a Phoebe um disco chamado "Little Shirley Beans". Era um disco difícil de encontrar. Era a estória de uma menininha que não queria sair de casa porque dois dentes da frente tinham caído e ela tinha vergonha de sair assim. Foi no Pencey que eu ouvi esse disco. Quem tinha era um garoto que morava em outro andar. Fiz tudo para comprar dele, porque sabia que a Phoebe ia vibrar com o troço, mas o garoto não quis vender. O disco tinha sido gravado há uns vinte anos por uma cantora negra, a Estella Fletcher. Ela canta com muita bossa e num estilo de cabaré, sem nenhum sentimentalismo barato. Se fosse cantado por uma branca ia sair água com açúcar, mas a Estella Fletcher sabia o que estava fazendo, e o disco é um dos melhores que eu conheço. Minha idéia era comprá-lo, se achasse alguma loja aberta, e depois levá-lo para o parque. Era domingo, e quase todo domingo a Phoebe vai patinar lá. Conheço bem o roteiro dela.
Não estava tão frio quanto na véspera, mas o sol não havia aparecido e o dia não era dos mais agradáveis para se andar a pé. Mas vi uma coisa boa. Bem na minha frente caminhava uma família que, pelo jeito, estava vindo da igreja. O pai, a mãe e um garotinho de uns seis anos. Pareciam meio pobres. O pai estava usando um desses chapéus de feltro cinzento que o pessoal pobre usa quando quer ficar elegante. Ele e a mulher caminhavam despreocupados, conversando, sem ligar para o garoto. O guri era o máximo. Tinha descido da calçada e vinha andando pela rua, juntinho ao meio-fio. Fazia de conta que estava andando bem em cima de uma linha reta, como todos os meninos fazem, e cantarolava o tempo todo. Cheguei perto para ver se escutava o quê que ele estava cantando. Era aquela música "Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio". A vozinha dele até que era afinada. Estava cantando só por cantar, via-se logo. Os carros passavam por ele zunindo, os freios rangiam em volta, os pais não davam a mínima bola para ele, e o menino continuava a andar colado ao meio-fio, cantando - "Se alguém agarra alguém atravessando o campo de centeio". Isso me fez sentir melhor. Deixei de me sentir tão deprimido.
A Broadway estava uma bagunça, de tanta gente. Era domingo, mais ou menos meio-dia, e já estava entupida de gente. Todo mundo estava indo para o cinema - Paramount, ou Astor, ou Capitol, ou qualquer droga parecida. Todo mundo estava enfatiotado, só porque era domingo, e isso ainda piorava a coisa. O pior mesmo de tudo é que a gente via logo que todo mundo queria ir ao cinema. Eu não conseguia nem olhar para aquela gente. Compreendo que uma pessoa vá ao cinema porque não tem nenhum programa melhor, mas ver alguém querendo mesmo ir, e até andar mais depressa para chegar logo lá, isso me deprime pra chuchu. Principalmente se vejo milhões de pessoas em pé numa dessas filas compridas como o diabo, de dar volta no quarteirão, esperando com a maior paciência sua vez de comprar a entrada e tudo. Puxa, eu só queria sair dali o mais depressa possível. Tive sorte. Encontrei o disco na primeira loja em que entrei. Pediram cinco
dólares, porque era muito raro, mas não me importei. Puxa, o troço me fez ficar feliz assim de repente. Mal podia esperar até chegar no parque e ver se a Phoebe estava por lá, para dar o disco a ela.
Quando saí da loja, passei por uma farmácia e resolvi entrar. Estava pensando em dar um telefonema para a Jane e saber se ela já tinha vindo de férias. Entrei numa cabine e disquei. O problema é que a mãe dela atendeu e desliguei depressa. Não estava com nenhuma vontade de me meter numa conversa comprida com ela. Não me entusiasmo muito com a idéia de ficar conversando pelo telefone com a mãe de garota nenhuma. Eu devia pelo menos ter perguntado se a Jane já estava em casa. Isso não ia me arrancar nenhum pedaço. Só que não estava com vontade. E a gente precisa estar com disposição para fazer um troço desses.
Ainda não tinha comprado a droga das entradas, por isso fui ver no jornal as peças em cartaz. Como era domingo e tudo, só três teatros estavam abertos. O que fiz foi comprar duas poltronas, na platéia, para "Conheço meu amor". Era um espetáculo de caridade ou coisa que o valha. Eu não tinha o menor interesse em ver a tal peça, mas conhecia bem a Sally, a rainha da cretinice, e tinha certeza de que ela ia se babar toda assim que soubesse onde é que nós íamos, porque os artistas eram os Lunts e tudo. Sally só gostava das peças consideradas muito sofisticadas e metidas a besta, com os Lunts e tudo. Eu, não. Para ser franco, não gosto muito de teatro. Não é tão ruim quanto o cinema, mas não é coisa que me faça vibrar. Pra começo de conversa, detesto os atores. Nunca se comportam como gente normal. Só pensam que se comportam. Alguns dos bons conseguem, mas ligeiramente, e de uma forma que não dá prazer de ver. E, se um ator é bom mesmo, a gente percebe logo que ele sabe que é bom, e isso estraga tudo. Sir Lawrence Olivier é um exemplo. Eu o vi trabalhar em "Hamlet". O D. B. me levou com a Phoebe, no ano passado. Primeiro nos levou para almoçar e depois fomos ver o filme. O D. B. já tinha visto uma vez e, pelo jeito que ele falou na hora do almoço, fiquei realmente ansioso para ver também. Mas não gostei muito. Não consigo descobrir o quê que é tão fabuloso em Sir Lawrence Olivier, só isso. Tem uma voz infernal e é um sujeito simpático pra diabo, e muito bom da gente olhar quando está andando ou duelando ou coisa parecida, mas não era nada parecido com a descrição que o D. B. tinha feito do Hamlet. Ele mais parecia uma porcaria dum general do que um camarada meio triste e confuso. A melhor parte do filme foi quando o irmão da tal Ofélia - aquele que trava um duelo com o Hamlet no final - estava de partida e o pai dele fica dando uma porção de conselhos. Enquanto o pai estava dando os maiores conselhos, a Ofélia estava fazendo uma hora bárbara com o irmão, tirando o punhal da bainha e implicando com ele, enquanto o cara faz uma força danada para parecer interessado nos assuntos do velho. Isso foi cem por cento e me divertiu pra burro. Mas não é o tipo da coisa que a gente vê muito por aí. A Phoebe só gostou de uma coisa, foi quando o Hamlet fez carinho na cabeça dum cachorrinho. Ela achou o troço engraçado e bonito, e era mesmo. Uma coisa que eu tenho que fazer é ler essa peça. o problema comigo é que sempre tenho de ler esses negócios sozinho, por conta própria. Se vejo um ator representando, mal consigo escutar direito. Fico preocupado, achando que ele vai fazer um troço cretino e falso a qualquer instante.
Com as entradas para os Lunts no bolso, tomei um táxi para o parque. Devia ter apanhado o metrô ou coisa parecida, porque estava começando a ficar curto de dinheiro, mas queria dar o fora da droga da Broadway o mais rápido possível.
Estava horrível no parque. O frio até que não era de matar, mas o sol não tinha saído ainda, e não parecia haver nada no parque a não ser bosta de cachorro e poças de cuspe e pontas de charutos dos velhos, e todos os bancos onde a gente ia sentar pareciam molhados. Além de deprimente, de vez em quando - e sem o menor motivo - a gente ficava todo arrepiado. Nem parecia que estava tão próximo do Natal. Não parecia que estava próximo de coisa nenhuma. Continuei a andar na direção da pista de patinação, que é onde a Phoebe costumava ficar. Ela gosta de patinar perto do coreto. Engraçado. É o mesmo lugar onde eu também gostava de patinar quando era garoto.
Mas neca da Phoebe quando cheguei lá. Havia uns meninos patinando e tudo, e dois deles jogavam bola, mas nada da Phoebe. Vi uma garota mais ou menos da idade dela, sentada sozinha num banco, apertando o patim. Pensei que talvez conhecesse a Phoebe e pudesse me dizer onde ela estava ou qualquer coisa assim, por isso fui me sentar no banco ao lado dela e perguntei:
- Por acaso você conhece a Phoebe Caulfield?
- Quem?
Ela estava vestida só com uma calça blue-jeans e uns vinte suéteres. Estava na cara que tinham sido feitos pela mãe dela, porque eram um bocado mal-ajambrados.
- Phoebe Caulfield. Ela mora na Rua Sessenta e Um. Está no quarto ano da...
- Você conhece a Phoebe?
- Conheço sim. Sou irmão dela. Sabe onde é que ela está?
- Ela é da classe de Miss Callon, não é? - perguntou.
- Não sei. Acho que é.
- Ela deve estar no museu. Nós fomos lá no sábado passado.
- Qual museu?
Ela sacudiu os ombros.
- Sei lá. O museu.
- Isso eu sei. O que eu estou perguntando é se é o museu que tem os quadros ou o que tem os índios.
- O que tem os índios.
- Obrigado - falei.
Me levantei e comecei a andar, mas aí me lembrei de repente que era domingo.
- Hoje é domingo - disse à menina.
Ela levantou os olhos para mim.
- Ah, é. Então ela não está lá.
Ela estava tendo um trabalhão dos diabos para apertar os patins. Não tinha luvas nem nada, e as mãos dela estavam vermelhas de frio. Dei-lhe uma ajuda. Puxa, fazia não sei quantos anos que eu não segurava uma chave de patins. Mas não estranhei nem um pouquinho. Sou capaz de apostar que, se puserem uma chave de patins na minha mão daqui a uns cinqüenta anos, e na maior escuridão do mundo, ainda sou capaz de dizer o quê que é. Ela me agradeceu e tudo quando acabei. Era uma garotinha muito simpática e bem educada. No juro, fico um bocado feliz quando uma criança sabe ser simpática e educada na hora em que eu acabo de apertar os patins dela ou coisa parecida. A maioria das crianças é assim. É mesmo. Perguntei se ela queria tomar um chocolate quente comigo ou outra coisa qualquer, mas ela disse que não, muito obrigada. Disse que tinha de se encontrar com uma amiguinha. Criança tem sempre um encontro marcado com algum amigo. Eu me esbaldo com isso.
Mesmo sendo domingo e já sabendo que a Phoebe não estava no museu - e apesar do tempo estar tão úmido e ruim - atravessei o parque a pé até lá. Era do Museu de História Natural que a menina tinha falado. Eu conhecia aquele museu como a palma de minha mão. Eu tinha sido da mesma escola da Phoebe, quando era garoto, e íamos muito lá. Tínhamos uma professora, a Miss Aigletinger, que nos levava lá quase todo sábado. Às vezes íamos ver os animais, outras vezes os troços feitos pelos índios nos tempos antigos. Cerâmica e cestas de palha e outros troços assim. Fico feliz só de me lembrar. Até hoje. Me lembro que, depois de olhar as coisas dos índios, a gente quase sempre ia ver um filme qualquer num auditório enorme. Colombo. Eles viviam mostrando à gente o Colombo descobrindo a América, e dando um duro danado para convencer o velho Fernando e a Isabel a emprestarem a grana para comprar os navios, e depois os motins da tripulação e tudo. Ninguém ligava muito para o pobre do Colombo, mas a gente sempre levava uma porção de balas e chicletes e outros troços, e o auditório tinha um cheiro muito gostoso. Sempre cheirava como se estivesse chovendo lá fora, mesmo quando não estava, e a gente se sentia como se estivesse no único lugar bonito, seco e gostoso do mundo. Eu adorava aquela droga daquele museu. Me lembro que a gente tinha que passar pelo Salão dos Índios para chegar ao auditório. Era um salão muito comprido e a gente só podia falar aos cochichos. A professora ia na frente, a turma atrás, formando duas colunas. Cada um de nós tinha um companheiro e eu quase sempre ficava ao lado de uma menina chamada Gertrudes Levine. Ela vivia o tempo todo segurando a mão da gente, e a mão dela era sempre pegajosa ou suada ou sei lá o quê. O chão era todo de pedra e, se a gente levava umas bolas de gude e deixava cair uma de repente, a danada saía quicando como o diabo pelo salão, fazendo um barulho infernal. Aí a professora parava o pessoal e voltava para ver o que é que estava acontecendo, mas nem por isso ficava zangada. Aí a gente passava por uma canoa de guerra dos índios, comprida pra chuchu, do tamanho de uns três cadilaques juntos, com uns vinte índios dentro - uns remando, outros sem fazer nada, fazendo pose de machão, mas todos com pintura de guerra. Lá atrás, sentado, tinha um cara estranho, com uma máscara de meter medo. Era o curandeiro. Ele me deixava arrepiado, mas eu até que gostava dele. Outra coisa: se a gente punha a mão num dos remos ou noutro troço qualquer, um dos guardas dizia logo:
- Não peguem em nada, crianças.
Mas sempre com uma voz simpática, não como uma droga dum tira nem nada.
Aí a gente passava por um baita dum mostruário, todo de vidro. Lá dentro, uns índios esfregavam paus para fazer fogo e uma índia tecia um cobertor. A índia que tecia o cobertor estava meio curvada e dava para a gente ver os seios dela e tudo. Todos nós dávamos uma olhada caprichada, até mesmo as meninas, porque elas ainda eram crianças e tinham tanto seio quanto qualquer um de nós. Aí, quase na porta do auditório, passava-se por um esquimó. Ele estava sentado perto de um buraco, cortado na superfície gelada de um lago, e pescava dentro dele. Bem na borda do buraco havia dois peixes que ele já tinha apanhado. Aquele museu estava cheio de mostruários de vidro. E tinha mais alguns lá em cima, com veados lá dentro bebendo água
nuns laguinhos pequenos, e os pássaros voando, para o sul no outono. Os pássaros que ficavam mais perto da gente eram empalhados e presos por arames, e os outros, mais longe, eram pintados na parede, mas todos davam mesmo a impressão de estar voando para o sul. E, se a gente se curvasse e olhasse bem de baixo para cima, parecia que eles estavam com mais pressa ainda de voar para o sul. Mas a melhor coisa do museu é que nada lá parecia mudar de posição. Ninguém se mexia. A gente podia ir lá cem mil vezes, e aquele esquimó ia estar sempre acabando de pescar os dois peixes, os pássaros iam estar ainda a caminho do sul, os veados matando a sede no laguinho, com suas galhadas e suas pernas finas tão bonitinhas, e a índia de peito de fora ainda ia estar tecendo o mesmo cobertor. Ninguém seria diferente. A única coisa diferente seríamos nós. Não que a gente tivesse envelhecido nem nada. Não era bem isso. A gente estaria diferente, só isso. Podia estar metido num sobretudo, dessa vez. Ou o outro garoto, companheiro de fila da visita anterior, não tinha vindo porque estava com caxumba e a gente teria outro companheiro. Ou então a substituta de Miss Aigletinger é que estaria levando a turma. Ou então a gente tinha ouvido o pai e a mãe da gente terem a maior briga no banheiro. Ou então a gente tinha acabado de passar, na rua, por uma poça d'água com um arco-íris de gasolina dentro dela. Quer dizer, a gente estaria diferente, de um jeito qualquer - não sei explicar direito, mas o negócio é assim mesmo. E, mesmo que eu soubesse, acho que não ia ter muita vontade de explicar.
Enquanto andava, fui tirando o chapéu de caça do bolso e pus na cabeça. Tinha certeza que não ia encontrar nenhum conhecido e estava uma umidade desgraçada. Andei e andei, e continuei pensando na Phoebe, indo todo sábado ao museu assim como eu ia antigamente. Fiquei pensando que ela ia ver todos aqueles troços que eu tinha visto antigamente, e que ela estaria diferente cada vez que fosse lá. Não cheguei a ficar deprimido de pensar nisso, mas não vou dizer que tenha ficado alegre como o diabo. Há coisas que deviam ficar do jeito que estão. A gente devia poder enfiá-las num daqueles mostruários enormes de vidro e deixá-las em paz. Sei que isso não é possível, mas é uma pena que não seja. De qualquer maneira, continuei a pensar em tudo isso enquanto ia andando.
Passei por um playground e parei para ver dois garotinhos bem pequenos numa gangorra. Um deles era meio gorducho, e eu quis dar uma ajuda ao magricela para ver se equilibrava o peso. Mas estava na cara que eles não me queriam por ali, por isso deixei os dois sozinhos.
Aí aconteceu uma coisa engraçada. Quando eu cheguei ao museu, de repente, senti que não entraria lá nem por um milhão de dólares. O museu simplesmente não me atraía - e ali fiquei eu, depois de ter atravessado toda a droga do parque, pensando em visitar de novo o museu e tudo. Se a Phoebe estivesse lá eu provavelmente ainda teria entrado, mas ela não estava. O que fiz foi tomar um táxi na frente do museu e seguir para o Biltmore. Já não tinha a mínima vontade de ir. Mas o fato é que tinha marcado aquela droga daquele encontro com a Sally.
17
Cheguei lá cedo demais e, por isso, me sentei num daqueles sofás de couro, bem pertinho do relógio do saguão, e fiquei olhando as garotas. Muita gente já tinha chegado de férias e acho que havia mais ou menos um milhão de pequenas por ali, sentadas ou em pé esperando os namorados. Garotas de pernas cruzadas, garotas de pernas descruzadas, garotas com pernas fabulosas, garotas com pernas pavorosas, garotas que pareciam boazinhas, garotas que, se a gente fosse conhecer, ia ver que eram umas safadas. Era realmente uma paisagem interessante. De certo modo, também era meio deprimente, porque a gente ficava pensando no que ia acontecer com todas elas. Quer dizer, depois que terminassem o ginásio e a faculdade. A maioria ia provavelmente casar com uns bobalhões. Esses sujeitos que vivem dizendo quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina. Sujeitos que ficam doentes de raiva, igualzinho umas crianças, se perdem no golfe ou até mesmo num jogo besta como pingue-pongue. Sujeitos que são um bocado perversos. Sujeitos que nunca na vida abriram um livro. Sujeitos chatos pra burro. Mas é preciso ter cuidado com isso, com essa mania de chamar certos caras de chatos. Não entendo bem os chatos. Juro que não. No Elkton Hills, durante uns dois meses fui companheiro de quarto dum garoto, o Harris Macklin. Ele era muito inteligente e tudo, mas era um dos maiores chatos que já encontrei na minha vida. Tinha uma dessas vozes de taquara rachada e praticamente não parava nunca de falar. Não havia jeito de se calar, e o pior de tudo é que, em primeiro lugar, nunca dizia uma única coisa que a gente tivesse interesse em ouvir. Mas tinha uma coisa que ele fazia como ninguém: o filho da puta assoviava como gente grande. Ele ficava fazendo a cama ou pendurando seus trecos no armário - vivia pendurando alguma coisa no armário, me deixava maluco - e, quando não estava tagarelando com aquela voz de taquara rachada, ficava assoviando o tempo todo. Ele era capaz de assoviar até troços clássicos, mas
quase sempre assoviava músicas de jazz. Era capaz de pegar um negócio em como, por exemplo, "Tin Roof Blues", e assoviar tão fácil e bonito - sem parar de pendurar os trecos no armário - que deixava a gente doido. Claro que eu nunca disse a ele que o achava um assoviador fabuloso. Ninguém vai chegar junto de um cara e dizer: "Você é um assoviador fabuloso". Mas morei com ele uns dois meses, apesar de toda a chatura, só porque ele assoviava bem pra burro. Por isso, tenho minhas dúvidas quanto aos chatos. Talvez a gente não deva sentir tanta pena de ver uma garota legal se casar com um deles. A maioria não faz mal a ninguém e talvez, sem que a gente saiba, sejam todos uns assoviadores fabulosos ou coisa parecida. Nunca se sabe...
Afinal, avistei a Sally subindo a escada e comecei a descer para encontrá-la. Ela estava um estouro. No duro, mesmo. Estava com um casaco preto e uma espécie de boina preta. Ela quase nunca usava chapéu, mas aquela boina ficava cem por cento. O mais engraçado é que, na hora que a vi, me deu uma bruta vontade de casar com ela. Sou biruta. Nem ao menos gostava muito dela e, apesar disso, de repente, me senti como se estivesse apaixonado e quisesse casar com ela. Juro por Deus que sou biruta. Reconheço.
- Holden! - ela gritou. - Que bom te encontrar! Faz séculos que não nos vemos!
Ela tinha uma dessas vozes altas pra chuchu, que encabulam a gente. Podia dar-se ao luxo de fazer aquele escândalo porque era mesmo bonita pra cachorro, mas aquela maneira de falar sempre me aporrinhava.
- Que bom encontrar com você - falei. Era verdade mesmo. - Como vai você?
- Maravilhosamente bem. Estou atrasada?
Disse que não, mas, para falar a verdade, ela estava atrasada uns dez minutos. Mas eu estava pouco ligando para isso. Toda aquela besteira que vem nas piadas do "Saturday Evening Post" e tudo, mostrando uns caras esperando pela namorada na esquina, furiosos porque ela está atrasada - isso é tudo conversa fiada. Se uma garota está bonita quando chega, qual é o sujeito que vai se importar por causa do atraso? Ninguém se importa.
- É melhor a gente andar depressa - falei. - A peça começa às duas e quarenta.
Começamos a descer as escadas em direção ao ponto de táxis.
- O que é que nós vamos ver? - ela perguntou.
- Sei lá. Os Lunts. Só consegui arranjar entrada para eles.
- Os Lunts! Oh, que maravilhoso!
Tinha certeza que ela ia ficar maluca quando soubesse que ia ver os Lunts.
Ficamos nos esfregando um pouco no táxi, a caminho do teatro. No começo ela não queria, por causa do baton e tudo, mas eu estava sedutor pra diabo e ela não teve outra alternativa. Duas vezes, quando a porcaria do táxi teve que frear de repente, por causa do tráfego, por pouco não caí do assento. Essas drogas desses motoristas nunca olham por onde vão, palavra de honra. Aí, só mesmo de doido que eu sou, quando estávamos saindo dum apertão daqueles, eu disse a ela que estava apaixonado e tudo. Claro que era mentira, mas o caso é que eu estava sendo sincero na hora que falei. Sou louco mesmo. Juro que sou.
- Meu querido, também gosto muito de você - ela disse. E aí engrenou uma segunda: - Me promete que vai deixar teu cabelo crescer. Esse cabelo à escovinha está ficando fora de moda. E teu cabelo é tão bonito...
Bonito uma ova.
A peça não era tão ruim. Eu já tinha visto piores. Mas era meio morrinha. Era a estória de uns quinhentos mil anos na vida de um casal velho. Começa quando os dois são jovens e os pais da moça são contra o casamento, mas ela acaba mesmo casando com o cara. E aí eles vão envelhecendo. O marido vai para a guerra e a mulher tem um irmão que é porrista. Não consegui me interessar muito. Quer dizer, não dei muita bola quando morria alguém na família ou coisa que o valha. Eles eram apenas um bando de atores. O marido e a mulher até que formavam um casal simpático - os dois eram muito espirituosos e tudo - mas não consegui me interessar muito por eles. Em parte porque ficaram a peça inteirinha tomando chá ou coisa parecida. Toda vez que apareciam, lá vinha um mordomo empurrando um carrinho de chá para eles, ou então a mulher estava servindo chá a alguém. E todo o mundo estava sempre entrando ou saindo o tempo todo. A gente ficava tonto só de ver o pessoal se sentar e se levantar. O Alfred Lunt e a Lynn Fontanne faziam o papel do casal velho e trabalhavam muito bem, mas não gostei muito deles. Que eles eram diferentes, isso eram. Não agiam feito gente, mas não representavam como atores. É difícil de explicar. Agiam assim como se soubessem que eram famosos e tudo. Quer dizer, eram bons, mas eram bons demais. Quando um deles acabava de dizer sua parte, imediatamente o outro tratava de falar alguma coisa bem depressa. Queriam parecer gente de verdade, conversando e se interrompendo e tudo. Mas o problema é que pareciam demais com gente conversando e se interrompendo. Era um pouco como o Ernie tocando lá no Village. Se a gente faz uma coisa bem demais, aí, depois de algum tempo, se não tiver muito cuidado, começa a se exibir. E aí a gente deixa de ser bom de verdade. De qualquer modo, eles eram as únicas pessoas na peça - os Lunts, é claro - que pareciam ter algum miolo. Isso eu tenho que admitir.
No fim do primeiro ato, saímos com todos os outros trouxas para fumar um cigarro. Uma palhaçada completa. Nunca vi tanto cretino junto de uma vez só, todos fumando como umas chaminés e falando alto sobre a peça para que os outros vissem como eles eram inteligentes. O bestalhão de um artista de cinema estava fumando perto de nós. Não sei o nome dele, mas é o tal que faz sempre o papel dum cara que, na guerra, se borra todo de medo na hora de enfrentar o fogo. Estava com uma loura do barulho, e os dois estavam tentando bancar o blasé e tudo, como se não soubessem que todo mundo estava olhando para ele. Modesto pra burro. Me diverti um bocado com a estória. A Sally não falou muito, a não ser para se babar com os Lunts, porque estava ocupada em achar tudo bacana e em ser simpática. Aí, de repente, descobriu do outro lado do saguão um imbecil qualquer que ela conhecia. O cara estava de terno de flanela cinza-escuro e um desses coletes de xadrez. Completamente metido a besta. Crente que estava abafando. Ele estava encostado na parede, fumando pra chuchu, dando a impressão de que estava mortalmente aporrinhado. A Sally ficou repetindo: "Conheço aquele rapaz de algum lugar". Ela sempre conhecia alguém, em qualquer lugar que estivesse, ou pelo menos pensava que conhecia. Ficou repetindo tanto, que me enchi e disse:
- Se conhece, porque não vai até lá e dá um beijinho nele? Aposto que ele vai gostar.
Ela ficou furiosa comigo. Finalmente, o bobalhão nos viu e veio cumprimentá-la. Valia a pena ver os dois se cumprimentando. Parecia até que não se viam há uns vinte anos. Parecia até que os dois tomavam banho juntos, na mesma banheira, quando eram crianças. Velhos faixas. Era nojento. O mais engraçado é que eles, provavelmente, só se haviam encontrado uma única vez, em alguma festa cretina. Afinal, quando deram a baboseira por terminada, a Sally resolveu me apresentar. O nome do cara era George qualquer coisa - nem me lembro - e estudava no Andover. Grande coisa. Dava gosto ver a cara do sujeito quando a Sally pediu a opinião dele sobre a peça. Tratava-se de um desses cretinos que precisam de espaço quando começam a falar. Deu um passo para trás e pisou em cheio no pé de uma dona que estava bem ali. Acho que não sobrou um dedo inteiro no pé da infeliz. Disse que a peça em si não era nenhuma obra-prima, mas os Lunts, evidentemente, eram uns anjos. Anjos, pomba! Anjos. Era o fim. Aí, ele e a Sally começaram a falar de uma porção de gente que os dois conheciam. Era a conversa mais cretina do mundo. Ficavam pensando no nome dum lugar, o mais depressa que podiam, e então soltavam o nome de alguém que morava no tal lugar. Eu estava a ponto de vomitar quando chegou a hora de sentar outra vez. Estava mesmo. E então, quando acabou o segundo ato, os dois continuaram a tal conversa morrinha. Ficaram pensando em outros lugares e outros nomes de pessoas que moravam lá. Para piorar, o palhação tinha uma dessas vozes bem cretinas e pedantes, como se estivesse cansado pra burro. Parecia uma moça, com aquela voz de fresco. Mas o filho da mãe não teve o menor escrúpulo de se meter com minha pequena. Quando saímos do teatro pensei até que ele ia entrar conosco na droga do táxi, porque andou uns dois quarteirões com a gente, mas acabou dizendo que tinha de tomar uns drinques com uma turma de cretinos. Imaginei os caras sentados num bar, cada um metido numa droga dum colete xadrez, comentando peças, livros e mulheres com aquelas vozes cansadas e esnobes. Esses caras me enchem.
Quando tomamos o táxi, depois de ouvir aquele filho da mãe do Andover bem umas dez horas seguidas, eu já estava odiando a Sally. Estava decidido a levá-la para casa - estava mesmo - quando ela disse:
- Tenho uma idéia maravilhosa!
Ela vivia tendo idéias maravilhosas.
- Escuta. A que horas você precisa estar em casa para jantar? Você está com muita pressa? Tem hora certa para chegar em casa? - ela continuou.
- Eu? Não. Não tenho hora certa - respondi. Puxa, nunca falei uma coisa mais verdadeira na minha vida. - Por quê?
- Vamos patinar no gelo na Radio City?
Esse era o tipo de idéia maravilhosa que ela vivia tendo.
- Patinar na Radio City? Agora? Agorinha mesmo?
- Só uma hora, mais ou menos. Você não quer? Se não quiser...
- Não disse que não queria. Claro. Se você quer...
- Verdade? Não precisa dizer sim só para me agradar. Francamente, ir ou não ir é a mesmíssima coisa para mim.
A mesmíssima coisa uma ova.
- A gente pode alugar aqueles amores de saiotes de patinar - ela disse. - A Jeannette Cultz alugou um, na semana passada.
Era por isso que ela estava tão seca para ir. Estava louca para se ver num daqueles saiotinhos que mal dão para cobrir a bundinha e tudo.
E lá fomos nós. Depois que nos deram os patins, entregaram à Sally um saiotinho azul justíssimo. Para falar a verdade, ela ficou ótima com aquilo. E o pior é que ela sabia. Ficou o tempo todo andando na minha frente, para que eu visse como a bundinha dela era bonitinha. E era bonitinha mesmo. Confesso que era.
O mais gozado é que nós dois éramos os piores patinadores na droga do ringue. Mas os piores mesmo. E olha que tinha cada cara ruim... Os tornozelos da Sally se entortavam tanto que só faltavam encostar no gelo. Não só tinham uma aparência grotesca, mas também deviam estar doendo pra burro. Sei que os meus estavam. Os meus estavam acabando comigo. Nós devíamos estar uma gracinha. Para piorar ainda mais, tinha no mínimo uns duzentos desocupados sem nada de melhor para fazer do que ficar ali parados, vendo a gente cair uns por cima dos outros.
- Vamos sentar numa mesa lá dentro e tomar um troço qualquer? - perguntei finalmente.
- Foi a idéia mais maravilhosa que você teve hoje - ela disse. A infeliz estava se matando. Era de doer. Juro que tive pena dela.
Tiramos a porcaria dos patins e fomos para aquele bar onde a gente pode tomar uma bebida e espiar os patinadores, só de meias nos pés. Assim que sentamos, a Sally tirou as luvas e eu lhe dei um cigarro. Ela não estava com cara de muito feliz. Veio o garçon e eu pedi uma coca-cola para ela - ela não bebia - e um uísque com soda para mim, mas o sacana não quis trazer, e então eu pedi uma coca para mim também. Aí comecei a riscar fósforos. Eu faço muito isso, quando estou num certo estado de espírito. Deixo o fósforo queimar até eu não poder mais segurar, e então jogo no cinzeiro. É um tique nervoso.
Aí, de repente, sem mais nem menos, a Sally disse:
- Escuta, preciso saber de uma coisa. Você vem ou não vem me ajudar a arrumar a árvore de Natal? Preciso saber.
Estava sendo malcriada, ainda por causa dos tornozelos.
- Escrevi dizendo que ia. Você já me perguntou esse troço umas vinte vezes. Vou, sim, já disse.
- Preciso saber mesmo - ela falou.
Começou a olhar em volta da porcaria do salão. De repente, parei de acender fósforos e me debrucei sobre a mesa, na direção dela. Eu tinha uns assuntos na cachola.
- Êi, Sally - falei.
- O que é? - ela perguntou. Estava olhando para uma garota do outro lado da sala.
- Você já se sentiu alguma vez cheia de tudo? - perguntei. - Quer dizer, você alguma vez na vida já ficou com medo de que tudo vai dar errado, a menos que você faça alguma coisa? Quer dizer, você gosta do colégio e desse negócio todo?
- É uma chatice.
- Quer dizer, você detesta o colégio? Sei que é uma chatice, mas estou perguntando se você detesta mesmo.
- Bem, detestar mesmo, não detesto. Você vive sempre...
- Bom, eu odeio a escola. Pôxa, como detesto o troço - falei. - E não é só isso. É tudo. Detesto viver em Nova York e tudo. Táxis, ônibus da Avenida Madison, com os motoristas gritando sempre para a gente sair pela porta de trás, e ser apresentado a uns cretinos que chamam os Lunts de anjos, e subir e descer em elevadores quando a gente só quer sair, e os sujeitos ajustando as roupas da gente nas lojas, e as pessoas sempre...
- Não grita, por favor - Sally falou. O que era muito engraçado, porque eu nem estava gritando.
- Os carros, por exemplo - eu disse. E falei numa voz muito calma. - A maioria das pessoas, são todos malucos por carros. Ficam preocupados com um arranhãozinho neles, e estão sempre falando de quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina e, mal acabam de comprar um carro novo, já estão pensando em trocar por outro mais novo ainda. Eu não gosto nem de carros velhos. Quer dizer, nem me interesso por eles. Eu preferia ter uma droga dum cavalo. Pelo menos o cavalo é humano, pôxa. Pelo menos, o cavalo você pode...
- Não sei nem de que é que você está falando. Você pula de uma coisa...
- Sabe de um troço? - perguntei. - Só estou agora aqui em Nova York por tua causa. Se você não estivesse por aqui, eu provavelmente estaria numa porcaria dum lugar qualquer, lá pro fim do mundo. No mato ou em qualquer outra droga de lugar. Praticamente só estou aqui por tua causa.
- Você é um amor - ela disse. Mas via-se que ela estava querendo que eu mudasse de assunto.
- Você devia ir a um colégio de rapazes, só pra ver. Experimenta só - falei. - Estão entupidos de cretinos, e você só faz estudar bastante para poder um dia comprar uma droga dum cadilaque, e você é obrigado a fingir que fica chateado se o time de futebol perder, e só faz falar de garotas e bebida e sexo o dia inteiro, e todo mundo forma uns grupinhos nojentos. Os caras do time de basquete formam um grupinho, os
camaradas que jogam bridge formam um grupinho. Até os que são sócios da porcaria do Clube do Livro formam um grupinho. Se você tenta bater um papo inteligente...
- Escuta aqui - ela disse. - Muitos rapazes encontram mais do que isso no colégio.
- Concordo! Concordo, alguns deles encontram mesmo. Mas eu só encontro isso. Compreendeu? Esse é que é o caso. É exatamente o meu problema. Não encontro praticamente nada em nada. Estou mal de vida. Estou péssimo.
- E está mesmo.
Aí, de repente, tive uma idéia.
- Olha aqui - falei. - Escuta a minha idéia. Que tal a gente dar o fora? Escuta só minha idéia. Conheço um camarada que mora lá em Greenwich Village que pode me emprestar o carro dele por uns quinze dias. Ele era meu colega na escola, até hoje me deve dez dólares. Podíamos fazer o seguinte: podíamos sair em direção a Massachusetts e Vermont, amanhã de manhã, e por aí tudo, sabe. É bonito pra burro por lá. É mesmo.
Quanto mais pensava no troço, mais excitado ficava, e cheguei a me esticar e pegar a droga da mão da Sally. Que idiota que eu era.
- Fora de brincadeira - continuei. - Tenho uns 180 dólares no banco. Posso tirar o dinheiro amanhã, quando o banco abrir, e então a gente vai e pega o carro dele. Fora de brincadeira. Vamos ficar numa daquelas casinhas de campo e tudo, até acabar o dinheiro. Aí então, quando terminar a grana, posso arranjar um emprego e nós vamos viver num lugar qualquer, com um riacho, e depois a gente pode se casar e tudo. Eu mesmo ia rachar a lenha no inverno. Palavra de honra, ia ser bom mesmo! Quê que você acha? Vambora! Que tal? Você vem comigo! Por favor!
- A gente não pode fazer uma coisa dessas - ela disse. Parecia danada da vida.
- Por que não? Por quê que não pode?
- Pára de gritar comigo, por favor - ela falou, mas era conversa, porque eu nem estava gritando com ela nem nada.
- Por quê que não pode? Hem? Por quê?
- Porque não pode, só por isso. Em primeiro lugar, praticamente ainda somos crianças. E você já parou para pensar no quê que ia acontecer se você não arranjasse um emprego quando o dinheiro acabasse? Íamos morrer de fome. Esse negócio todo é tão maluco, que nem é...
- Não vejo nada de maluco. Eu arranjava um emprego, não se preocupe com isso. Não precisa se preocupar com isso. Quê que há? Não quer ir comigo? Se não quiser, diz logo.
- Não é isso. Não é isso, absolutamente.
De certa maneira, eu já estava começando a ficar com raiva dela.
- Nós vamos ter um mundo de tempo para fazer essas coisas, todas essas coisas. Quer dizer, depois que você acabar a universidade e tudo, e se a gente se casar. Vai ter um mundo de lugares maravilhosos para a gente ir. Você está...
- Não, não vai ter mundo nenhum de lugares maravilhosos para a gente ir. Ia ser completamente diferente - falei. Estava começando novamente a ficar deprimido como o diabo.
- O quê? - ela perguntou. - Não estou ouvindo direito. Uma hora você grita, na outra você...
- Eu disse que não, que não vai ter lugar maravilhoso nenhum para se ir, depois que eu terminar a universidade e tudo. Vê se escuta direito. Ia ser completamente diferente. Teríamos que descer de elevador, com as malas e a tralha toda. Íamos ter que telefonar para todo mundo, dizendo "até à volta", e mandar cartões postais dos hotéis e tudo. E eu estaria trabalhando em algum escritório, ganhando um dinheirão, e indo para o trabalho de táxi ou nos ônibus da Avenida Madison, e lendo jornais, e jogando bridge o tempo todo, e indo ao cinema, e vendo uma porção de documentários idiotas e traillers e jornais. Jornais cinematográficos. Puxa vida. Tem sempre uma corrida de cavalos imbecil, e uma dona quebrando uma garrafa no casco de um navio, e um chipanzé andando numa droga duma bicicleta, vestido de calças. Não ia ser a mesma coisa nem um pouquinho. Você não entendeu nada do que eu falei.
- Talvez não! Talvez nem você também entenda - ela respondeu. Já estávamos um com raiva do outro. Estava na cara que não adiantava tentar uma conversa inteligente. Eu estava danado de ter começado o troço.
- Vamos, vambora daqui - falei. - Pra falar a verdade, você enche o meu saco.
Pôxa, ela foi bater lá no teto quando eu disse isso. Sei que não devia ter dito, e provavelmente não teria dito em outra situação, mas ela estava me fazendo ficar tremendamente deprimido. Em geral, nunca digo esse tipo de coisa a uma garota. Pôxa, ela subiu a serra. Eu me desculpei como um doido, mas ela não quis aceitar minhas desculpas. Estava até chorando. Isso me deixou meio apavorado, porque fiquei com medo que ela fosse para casa e contasse ao pai que eu tinha dito que ela enchia meu saco. O pai dela era um daqueles filhos
da mãe enormes e caladões, e nunca tinha ido muito com a minha cara. Ele uma vez disse a Sally que eu era muito barulhento.
- Fora de brincadeira. Me desculpe - eu continuava a repetir.
- Desculpe. Desculpe. É muito engraçado - ela disse. Ela ainda estava meio chorando e, de repente, acho que me senti arrependido mesmo de ter dito aquilo.
- Vambora. Vou te levar em casa. Fora de brincadeira.
- Sei ir pra casa sozinha, muito obrigada. Se pensa que vou deixar você me levar em casa, está louco. Nenhum rapaz nunca me disse isso em toda a minha vida.
Pensando bem, o negócio todo era de certo modo meio cômico e, de repente, fiz uma coisa que não devia ter feito. Ri. E eu tenho uma dessas gargalhadas imbecis, altas pra burro. Dessas assim que, se eu sentasse atrás de mim num cinema ou coisa parecida, eu provavelmente me debruçaria e diria a mim mesmo para fazer o favor de calar a boca. A Sally ficou ainda mais danada.
Fiquei por ali algum tempo, pedindo desculpas e tentando fazer com que ela me desculpasse, mas não houve jeito. Continuava a me dizer para ir embora e deixá-la em paz. Acabei fazendo isso mesmo. Fui lá dentro, apanhei meus sapatos e meus trecos, e fui embora sem ela. Não devia ter feito isso, mas nessas alturas eu já estava mesmo cheio.
Para ser franco, nem sei porque comecei aquela estória toda com ela. Quer dizer, aquele troço de ir para algum canto, para Massachusetts e Vermont e tudo. Provavelmente não a levaria comigo, nem que ela quisesse. Ela não era o tipo de garota que valesse a pena levar para um negócio daqueles. Mas o pior de tudo é que eu estava falando sério na hora que fiz o convite. Isso é que é o pior. Juro por Deus que sou maluco.
18
Quando saí do ringue de patinação me senti meio com fome, por isso entrei num bar e pedi um sanduíche de queijo e um leite maltado. Depois fui até o telefone público. Minha idéia era dar outro telefonema para a Jane e saber se ela já estava em casa. O caso é que eu estava mesmo com a noite inteira livre e pensei que, se ela estivesse em casa, podia levá-la para dançar ou qualquer outra coisa em algum lugar. Nunca tinha dançado com ela nem nada, desde que nos conhecemos. Uma vez a vi dançando e tive a impressão de que dançava muito bem. Foi num baile de 4 de julho, lá no clube. Naquele tempo eu ainda não a conhecia direito, e não achei um jeito de tirá-la para dançar. Ela estava com um cara horroroso, um tal de Al Pike, que estudava em Choate. Eu só conhecia o sujeito de vista, porque ele não arredava pé dali de perto da piscina. Usava uma dessas sungas brancas, justíssimas no corpo, e vivia se atirando do trampolim mais alto. Dava a mesma porcaria de mergulho o dia inteiro. Era o único que ele sabia dar, mas se achava o máximo. Só tinha músculos e nenhum miolo. De qualquer forma, ele é que era o par da Jane naquele baile. Não entendi o troço. Juro que não. Depois que começamos a, andar juntos, perguntei à Jane como é que ela agüentava sair com um sacana exibicionista feito o Al Pike. Respondeu-me que ele não era exibicionista e que tinha um complexo de inferioridade. Parecia estar mesmo com pena dele ou coisa que o valha, e não era fingimento, não. Estava falando sério. Isso é uma coisa engraçada com as garotas. Sempre que a gente fala com uma garota sobre algum camarada que é um perfeito sacana - um mau caráter ou muito mascarado e tudo - ela vai logo dizendo que o sujeito tem um complexo de inferioridade. Talvez tenha, mas isso não impede, na minha opinião, que o cara também seja um bom filho da puta. Garotas. A gente nunca sabe o que elas estão pensando. Uma vez combinei um encontro dum amigo meu com a companheira de quarto de uma tal de Roberta Walsh. O nome dele era Bob Robinson e ele tinha mesmo um complexo de inferioridade. A gente via logo que ele morria de vergonha dos velhos dele e tudo, porque eles falavam "a gente vamos" e "nós faz" e coisas assim, e não eram muito ricos. Mas ele não era nenhum sacana nem nada. Era muito boa praça. Mas a companheira de quarto da Roberta Walsh não foi com a cara dele. Disse à Roberta que ele era muito mascarado - e o motivo para achá-lo mascarado foi ele ter dito que era capitão do time de debates. Uma coisinha assim, e ela achou o sujeito convencido! O problema com as garotas é que, quando elas gostam de um camarada, por mais sacana que seja, dizem que ele tem um complexo de inferioridade, e, se não gostam dele, por melhor que o cara seja ou por maior que seja o seu complexo de inferioridade, chamam ele logo de mascarado. Até mesmo as garotas inteligentes fazem isso.
De qualquer maneira, liguei de novo para a casa da Jane, mas não respondiam e desisti. Aí tive que procurar no meu caderninho de endereços alguém que estivesse livre naquela noite. O diabo é que no meu caderno de endereços só tem uns três números: o da Jane, o do Sr. Antolini, que foi meu professor no Elkton
Hills, e o do escritório do meu pai. Sempre me esqueço de anotar nele os nomes das pessoas. Por isso, acabei telefonando mesmo para o Carl Luce. Ele se formou no Colégio Whooton depois que saí de lá. Era uns três anos mais velho do que eu, e não era nada simpático, mas era um desses camaradas intelectuais pra chuchu - tinha o QI mais alto de todo o colégio - e achei que talvez pudéssemos jantar juntos em algum lugar e ter uma conversinha um pouco intelectual. Às vezes ele dizia uns troços muito edificantes. Por isso, liguei para ele. Estava estudando agora na Universidade de Colúmbia, mas morava na Rua 65 e tudo, e eu tinha certeza de que ele estava em casa. Quando atendeu, disse que não podia jantar comigo, mas que me encontraria para um drinque, às dez horas, no Wicker Bar, na Rua 54. Acho que ficou muito surpreendido de eu ter telefonado para ele. Uma vez o chamei de cretino e bundudo.
Tinha muito tempo para matar até às dez horas, por isso acabei me metendo no cinema, na Radio City. Foi provavelmente o pior programa que eu podia ter arranjado, mas o troço era perto e não consegui pensar em coisa melhor.
Quando entrei, estava no meio do espetáculo de palco. As Roquetes estavam dando chutes para o alto, como fazem sempre que ficam em fila, com os braços passados pela cintura umas das outras. A platéia aplaudia loucamente, e um cara atrás de mim ficava repetindo o tempo todo para a mulher dele: "Isso é que é precisão!" Eu me esbaldava por dentro. Depois das Roquetes veio um camarada de patins, vestido a rigor, e começou a patinar por debaixo de uma porção de mesinhas, enquanto contava piadas. Patinava bem e tudo, mas não consegui gostar muito do troço porque fiquei imaginando o sujeito treinando para ser patinador de palco. Parecia tão idiota. Acho que eu é que não estava com o espírito para aquilo. Aí, depois dele, veio aquele negócio que eles fazem todos os anos na Radio City, na época do Natal. Aqueles anjos todos começam a sair das caixas e de todo canto, e vêm uns camaradas carregando crucifixos pelo palco, e a curriola toda - são milhares - começa a cantar "Vinde Todos, ó Fiéis!" como um bando de alucinados. Grande coisa. Dizem que é religioso pra diabo - eu sei - e muito bonito e tudo, mas não consigo ver nada de religioso ou bonito, pôxa, num bando de atores carregando crucifixos pelo palco afora. Quando acabaram e começaram a sair de novo, via-se logo que eles estavam loucos para fumar um cigarro ou coisa parecida. Eu tinha visto o troço no ano anterior com a Sally Hayes, e ela ficou dizendo como era lindo, as roupas e tudo. Eu disse que o velho Jesus com certeza ia vomitar se visse aquilo, aquelas fantasias e tudo mais. A Sally disse que eu era um ateu sacrílego. Vai ver que sou. Mas Jesus teria gostado mesmo era do sujeito que toca tambor na orquestra. Desde os oito anos venho observando esse cara. Meu irmão Allie e eu, quando estávamos com os nossos pais e tudo, saíamos das poltronas para vê-lo melhor, lá na frente. É o melhor tocador de tambor que eu já vi na minha vida. Ele só tem chance de tocar o troço umas duas vezes durante uma música inteira, mas nunca parece chateado quando não está tocando. E quando afinal bate no tambor, bate de um modo tão gostoso e suave, com aquela expressão nervosa no rosto. Uma vez, quando fomos a Washington com meu pai, o Allie mandou um cartão postal para ele, mas aposto que nunca chegou. Não sabíamos direito que nome íamos botar no envelope.
Depois que acabou o negócio do Natal começou a porcaria da fita. Era tão ruim que eu nem pude despregar os olhos da tela. Era sobre um camarada inglês, Alec qualquer coisa, que vai para a guerra e perde a memória no hospital e tudo. Depois sai do hospital de bengala e mancando por tudo quanto é lado, por Londres toda, sem saber quem é ou onde está. Na verdade, ele é um duque, mas não sabe de nada. Aí encontra num ônibus uma garota boazinha, caseira e sincera pra chuchu. A droga do chapéu dela voa e ele apanha e, depois que sobem, começam a conversar sobre Charles Dickens. É o escritor predileto dos dois e tudo. Ele está com o "Oliver Twist" debaixo do braço e ela também. Quase vomitei. De qualquer forma, se apaixonam de estalo, só porque os dois são tarados pelo Charles Dickens, e ele vai ajudá-la a dirigir uma editora. A moça é editora. Só que o negócio não está indo bem, porque o irmão dela é porrista e mete o pau no dinheiro todo. Era um camarada amargo pra diabo, o irmão; ele era médico, mas depois da guerra não podia mais operar porque ficou com os nervos em pandarecos. Por isso vivia enchendo a cara, mas era muito espirituoso e tudo mais. Seja como for, o tal do Alec escreve um livro, a moça publica e os dois ganham um caminhão de dinheiro. Estão com tudo pronto para casar, quando aí aparece uma tal de Márcia. A Márcia era noiva do Alec antes dele perder a memória, e o reconhece quando ele está na loja autografando o livro. Ela diz ao Alec que ele é Duque, mas ele não acredita e não quer ir com ela visitar a mãe dele e tudo. A velhinha é cega como um morcego. Mas a outra garota, que é muito simples, manda ele ir. Ela é muito altruísta e tudo mais. Aí ele vai. Mas nem assim recupera a memória, nem quando o cachorro dinamarquês pula em cima dele, e a mãe passa os dedos pelo rosto dele todo e traz o ursinho que ele carregava pra todo o lado quando era menino. Então, um dia, uns garotos estão jogando críquete no parque e ele leva uma bolada na cabeça. Aí, na mesma hora, ele recupera a droga da memória e vai lá dentro beijar a testa da mãe e tudo. E começa a ser um duque normal, e se esquece da garota boazinha que tem a editora. Eu podia contar o resto da estória, se não
me desse tanta vontade de vomitar. Não que eu fosse estragar o filme para ninguém nem nada. No duro, não há o que estragar. De qualquer forma, acaba com o Alec e a garota boazinha se casando, e o irmão que é porrista fica bom dos nervos e opera a mãe do Alec, restituindo-lhe a visão, e aí o irmão beberrão e a Márcia se apaixonam. Termina todo mundo numa baita mesa de jantar, rindo como uns idiotas porque o dinamarquês entra com uma ninhada de cachorrinhos. Acho que todo mundo pensava que o cachorro era macho ou qualquer droga parecida. Só sei dizer que, quem não quiser vomitar até morrer, não deve nem entrar no cinema quando estiver passando essa fita.
O que me impressionou é que, bem ao meu lado, tinha uma dona que chorou durante a droga do filme todo. Quanto mais cretinice acontecia, mais ela chorava. A gente podia pensar que ela estava chorando porque era bondosa pra cachorro, mas eu estava perto dela e sei que não era. Tinha um menininho com ela, chateado pra burro e com vontade de ir ao banheiro, mas ela não o levou de maneira nenhuma. Ficou o tempo todo dizendo para ele ficar sentado quieto e se comportar. Era tão bondosa quanto uma porcaria dum lobo. De cada dez pessoas que choram de se acabar com alguma cretinice no cinema, nove são, no fundo, uns bons sacanas. Fora de brincadeira.
Quando acabou o filme, fui andando até o Wickey Bar, onde tinha combinado encontrar com o Luce. Enquanto andava, fui pensando sobre a guerra e tudo. Esses filmes de guerra sempre me dão isso. Acho que não ia agüentar se tivesse que ir para a guerra. No duro que não agüentava. Não seria tão ruim se pegassem logo a gente e matassem ou coisa parecida, mas a gente tem que ficar um tempão na droga do exército. Esse é que é o problema. Meu irmão D. B. ficou no exército quatro anos. Esteve na guerra mesmo - participou do desembarque do dia D e tudo - mas acho que ele detestava mais o exército do que a própria guerra. Naquele tempo eu era praticamente uma criança, mas me lembro que, quando ele vinha para casa de licença e tudo, passava o tempo todo praticamente na cama. Quase que nem vinha na sala de visitas. Depois, quando seguiu para a Europa e para a guerra, não foi ferido nem nada, e nem teve que atirar em ninguém. O único troço que ele tinha que fazer era dirigir o dia inteiro o carro de combate de um general de araque. Uma vez ele disse a mim e ao Allie que, se tivesse de atirar em alguém, não ia saber para que lado apontar. Disse que o exército estava praticamente tão cheio de filhos da puta quanto os nazistas. Me lembro que uma vez o Allie perguntou a ele se até que não era bom ter estado na guerra, porque ele era escritor e assim teria um bocado de assunto para escrever. Ele mandou o Allie ir buscar a luva de beisebol dele e perguntou quem era o melhor poeta da guerra, se o Rupert Brooke ou a Emily Dickinson. O Allie respondeu que era a Emily Dickinson. Não entendo muito do assunto, porque não leio muito poesia, mas sei que eu ia ficar maluco se tivesse que ir para o exército e aturar, o tempo todo, a companhia de um bando de sujeitos como o Ackley, o Stradlater e o tal do Maurice, marchando com eles e tudo. Uma vez fui escoteiro, mais ou menos durante uma semana, e já não agüentava mais nem olhar para a nuca do camarada na minha frente. Os monitores ficavam o tempo todo mandando a gente olhar para a nuca do companheiro da frente. Juro que, se houver outra guerra, é melhor me pegarem logo e me botarem na frente de um pelotão de fuzilamento. Juro que não ia protestar. O que eu não entendo no D.B. é que ele, mesmo detestando tanto a guerra, me disse para ler "Adeus às Armas" nas últimas férias. Disse que o livro era o máximo. É isso que eu não entendo. Tinha no livro um sujeito chamado Tenente Henry que era considerado um bom sujeito e tudo. Não sei como o D.B. podia detestar tanto o exército e a guerra e tudo, e ao mesmo tempo gostar de um cretino daqueles. Não entendo, por exemplo, como ele pode gostar de um livro cretino daqueles e ainda gostar daquele do Ring Lardner, ou daquele outro que ele gostava pra chuchu, "O Grande Gatsby". O D. B. ficou ofendido quando eu disse isso e respondeu que eu era muito garoto e tudo para apreciar o livro, mas não concordo. Disse a ele que gostava do Ring Lardner e de "O Grande Gatsby" e tudo. Gostava mesmo. Eu era tarado pelo "O Grande Gatsby". O Gatsby velho de guerra - eu vibrava com ele. De qualquer maneira, até que achei bom eles terem inventado a bomba atômica. Se houver outra guerra, vou me sentar bem em cima da droga da bomba. E vou me apresentar como voluntário para fazer isso, juro por Deus que vou.
19
Quem mora em Nova York sabe que o Bar Wicker funciona no Hotel Seton, um hotel metido a grã-fino. Eu costumava ir muito lá, mas agora parei de ir. Fui deixando aos pouquinhos. É um desses lugares considerados muito sofisticados e tudo, e tinha cretinos aos montes. Havia duas belezocas francesas, Tina e Janine, que tocavam piano e cantavam umas três vezes por noite. Uma delas tocava piano - mal pra burro - e a
outra cantava, e a maioria das canções ou eram um bocado indecentes ou eram em francês. A que cantava, a tal de Janine, cochichava sempre na droga do microfone antes de começar a cantar:
- Agorra vamos lhes oferrecerr uma pequena amostrra do jeitinho frrancês. É a histórria de uma frrancesinha que vem parra uma cidade grrande, assim como Nova York, e se apaixona porr um rapazinho de Brronklyn. Esperramos que vocês aprreciem.
Aí, quando ela acabava de cochichar e de ser engraçadinha pra diabo, cantava uma canção boba, meio em inglês e meio em francês, e deixava completamente alucinados todos os cretinos que lotavam a casa. Se a gente ficasse um pouco por lá e ouvisse todos os cretinos aplaudindo e tudo, tinha que acabar odiando todo mundo que existe na terra, juro que tinha. O barman também era uma besta. Um esnobe tremendo. Só falava com a gente se fosse um cara importante pra burro, ou uma celebridade, ou coisa parecida. E se a gente fosse um cara importante ou uma celebridade ou coisa parecida, aí ele era ainda mais nojento. Ia até onde a gente estava e dizia, com um daqueles sorrisos encantadores, como se ele fosse um cara fabuloso, para os conheci,dos dele: "Então! Como vão as coisas em Connecticut?" ou então "Como vai a Flórida?". Era um lugar horrível, fora de brincadeira. Aos pouquinhos fui deixando de ir lá completamente.
Cheguei lá muito cedo, me sentei no bar - estava entupido de gente - e tomei uns dois uísques enquanto esperava o Luce. Fiquei em pé na hora de pedir os uísques, para eles verem meu tamanho e tudo, e não pensarem que eu era menor de idade. Aí fiquei espiando os cretinos. Um cara perto de mim estava dando a maior cantada na garota que estava com ele, dizendo que ela tinha mãos aristocráticas. Me esbaldei. Do outro lado do bar, só tinha veado. Até que não eram muito afrescalhados - quer dizer, não usavam os cabelos muito compridos nem nada - mas estava na cara que eram veados. Até que afinal o Luce apareceu.
O Luce velho de guerra. Que sujeito! Foi indicado para ser o meu conselheiro no Whooton. Mas a única coisa que fez o tempo todo, foi fazer conferências sobre sexo, altas horas da noite, quando uma turma grande se reunia no quarto dele. Entendia um bocado de sexo, principalmente de tarados e esse negócio todo. Estava sempre contando a estória de uns camaradas perturbados que tinham casos com ovelhas, e outros que andam com calcinhas de mulher costuradas no forro dos chapéus e tudo. E veados, e lésbicas. O safado do Luce conhecia todos os veados e lésbicas em atividade no território dos Estados Unidos. Bastava a gente dizer um nome - qualquer nome - e o Luce dizia se era veado ou não. Às vezes era difícil acreditar nas pessoas que ele dizia que eram veados e mulher macho e tudo, artistas de cinema e coisas assim. Alguns caras que ele dizia que eram veados eram até casados, pomba. A gente dizia para ele: "Quer dizer que o Joe Blow é veado? O Joe Blow? Aquele cara grandalhão e machão, que faz sempre o papel de gangster e de cowboy?" E o Luce respondia: "Lógico". Ele vivia falando "Lógico". Dizia que não tinha a menor importância o fato dum cara ser casado ou não, e que a metade dos sujeitos casados, no mundo inteiro, eram veados sem saber. Dizia que a gente podia virar fresco da noite pro dia, se tivesse as características e tudo. Deixava a gente apavorado. Eu ficava esperando virar veado ou coisa parecida. O engraçado no Luce é que eu achava ele próprio meio afrescalhado. Por exemplo, vivia dizendo: "Experimenta desse tamanho", e mexia com a gente quando encontrava no corredor. E, toda vez que íamos ao banheiro, ele sempre deixava a droga da porta aberta e ficava conversando, enquanto a gente escovava os dentes ou coisa que o valha. Esse tipo de negócio é meio aveadado. É mesmo. Conheci uma porção de veados de verdade, nos colégios e tudo, e eles estão sempre fazendo uns troços assim, e é por isso que sempre tive minhas dúvidas sobre o Luce. Mas era um cara um bocado inteligente. Era mesmo.
Ele nunca dizia "Como vai" ou coisa parecida quando encontrava com a gente. A primeira coisa que ele disse, assim que se sentou, foi que só podia ficar uns dois minutos. Disse que tinha um encontro. Aí pediu um martini seco. Mandou o barman fazer o troço bem seco mesmo, e sem azeitona.
- Êi, tenho um veado pra você - falei. - Lá no fim do bar. Não olha agora. Guardei ele pra você.
- Muito engraçadinho - ele disse. - O mesmo Caulfield de sempre. Quando é que você vai crescer, hem?
Eu o chateava pra burro. Chateava mesmo. Mas ele me divertia. Era um desses camaradas que me divertem um bocado.
- Como vai tua vida sexual? - perguntei. Ele detestava que a gente perguntasse uns troços assim.
- Calma - ele falou. - Puxa, senta bonitinho e fica calmo.
- Estou calmo - respondi. - Como vai a Colúmbia? Tá gostando de lá?
- Lógico que gosto. Se não gostasse não teria ido estudar lá - respondeu. De vez em quando ele também sabia ser chato.
- Em quê que você vai se especializar? Tarados?
Eu estava só fazendo hora.
- E você, está tentando o quê? Ser engraçado?
- Não. Estou só brincando - respondi. - Escuta aqui, Luce. Você é um desses caras intelectuais. Preciso de seu conselho. Estou numa atrapalhada...
- Escute, Caulfield - ele falou, e parecia mais um gemido. - Se você quer se sentar aqui para uns drinques quieto e tranqüilo, e uma conversa quieta e tran...
- Está bem. Está bem - falei. - Calminha.
Estava na cara que ele não queria discutir nada sério comigo. É isso que me chateia nesses caras intelectuais. Não querem nunca discutir troços sérios, a não ser quando eles estão com vontade. Por isso, puxei uma conversa sobre assuntos gerais.
- Sem brincadeira, como vai a tua vida sexual? - perguntei. - Você ainda continua com aquele broto dos tempos do Whooton? Aquela com uma tremenda...
- Puxa vida, lógico que não.
- Por quê? Quê que houve com ela?
- Não tenho a menor idéia. Já que você pergunta, pelo que sei, nessas alturas ela deve ser a Puta de New Hampshire.
- Não fica nada bem você falar um troço desses. Se ela foi bastante legal para te deixar tirar casquinha dela quando queria, você pelo menos não devia falar assim dela.
- Ora, faça-me o favor! Será que vamos ter uma típica conversa à la Caulfield? Quero saber, agorinha mesmo.
- Não - respondi. - Mas, de qualquer modo, não fica nada bem. Se ela foi bastante legal e boazinha a ponto de deixar você...
- Será que nós vamos ter de manter esse abominável tipo de conversa?
Não falei nada. Fiquei com medo que ele se levantasse e fosse embora se eu não calasse a boca. Em vez de falar, pedi mais um uísque. Estava com vontade de tomar um pileque homérico.
- Com quem você está andando agora? Se é que você quer me contar...
- Não é ninguém que você conheça.
- Sei, mas quem é? Talvez eu conheça.
- Uma pequena que mora no Village. Escultora, já que você precisa saber.
- É mesmo? Sério? Quantos anos ela tem?
- Ah, pelo amor de Deus, nunca perguntei isso a ela.
- Mas que idade você calcula?
- Acho que pelos trinta e muitos.
- Trinta e muitos? É mesmo? E você tá gostando? Gosta de mulher dessa idade?
Fiz essa pergunta porque ele entendia mesmo um bocado de sexo. Era um dos poucos sujeitos que eu conheço que entende pra valer do troço. Ele perdeu a virgindade quando tinha só quatorze anos, em Nantucket. Verdade mesmo.
- Gosto de pessoas maduras, se é isso que você quer saber. Lógico.
- Gosta mesmo? Por quê? No duro, são melhores para esse troço de sexo e tudo?
- Escuta. Vamos deixar uma coisa bem clara. Me recuso a responder qualquer pergunta do tipo Caulfield. Que droga, quando é que você vai crescer?
Fiquei algum tempo calado. Deixei o assunto um pouco de lado. Aí o Luce pediu outro martini e mandou o barman preparar ainda mais seco.
- Escuta, há quanto tempo você anda com essa pequena, a escultora? - perguntei. Estava mesmo interessado. - Você já conhecia ela quando estava no Whooton?
- Era difícil. Ela chegou aos Estados Unidos há alguns meses apenas.
- É mesmo? De onde é que ela é?
- Acontece que ela é de Xangai.
- Sério? Ela é chinesa? No duro, mesmo?
- Lógico.
- Não brinca. Você gosta disso? Dela ser chinesa?
- Claro.
- Por quê? Gostaria de saber... Gostaria mesmo.
- Já que você pergunta, acontece simplesmente que eu acho filosofia oriental mais satisfatória do que a ocidental.
- Acha mesmo? O quê que você quer dizer com filosofia? Sexo e tudo? Você acha que é melhor na China? É isso que você quer dizer?
- Não necessariamente na China, pôxa. Eu disse oriental. Será que precisamos mesmo continuar com essa conversa inútil?
- Escuta, tou falando sério - eu disse. - Sem brincadeira. Por quê que é melhor no Oriente?
- Olha, o negócio é muito complicado para se entrar nele assim de repente - respondeu. - Acontece simplesmente que eles consideram o sexo como uma experiência ao mesmo tempo física e espiritual. Se você pensa que eu...
- Eu também! Eu também considero o sexo como uma... como-é-mesmo?... uma experiência ao mesmo tempo física e espiritual. Considero mesmo. Mas depende da droga da pessoa com quem eu estou fazendo o troço. Se é com alguém que nem...
- Fala mais baixo, por favor, Caulfield. Se você não consegue falar baixo, vamos mudar de...
- Tá bem, mas escuta - falei. Eu estava ficando excitado e estava mesmo falando um pouco alto. Às vezes falo um pouco alto quando fico excitado. - Mas o que estou querendo dizer é o seguinte, sei que deve ser físico e espiritual, e artístico e tudo. Mas o negócio é que a gente não pode fazer o troço com todo mundo - toda garota com quem a gente se esfrega e tudo - e conseguir esse resultado. Você consegue?
- Vamos mudar de assunto - ele disse. - Você se importa?
- Está bem, mas escuta. Pega por exemplo o teu caso com essa pequena chinesa. O quê que é tão bom entre vocês dois?
- Chega, já falei.
Concordo que estava começando a me intrometer muito na vida dele. Mas isso era uma das coisas irritantes no Luce. Quando estávamos no Whooton, ele exigia uma descrição dos troços mais íntimos que tinham acontecido com a gente, mas, se a gente começava a fazer perguntas sobre ele, aí ficava aborrecido. Esses camaradas intelectuais não gostam de ter uma conversa intelectual com ninguém, a não ser que estejam controlando a coisa toda. Querem sempre que a gente se cale quando eles se calam, e volte para o quarto quando eles voltam para os quartos deles. No Whooton, o Luce ficava uma fera - a gente via logo que ficava - quando ele acabava mais uma de suas conferências sobre sexo para um bando de caras no quarto dele, e nós ainda resolvíamos esticar o papo mais um pouco. Quer dizer, eu e alguns colegas. No quarto de outra pessoa. O Luce ficava tinindo de raiva. Queria que todo mundo voltasse para seus próprios quartos e calasse a boca depois que ele acabava de deitar falação. Ele tinha era medo de que alguém dissesse alguma coisa mais inteligente do que ele. Ele me divertia um bocado.
- Acho que vou para a China. Minha vida sexual é uma porcaria - falei.
- Naturalmente. Sua mente é imatura.
- É. É mesmo. Sei que é - falei. - Sabe qual é o problema comigo? Não consigo nunca ficar excitado - excitado mesmo - com uma garota de quem eu não goste muito. Você entende, tenho que gostar dela um bocado. Se não gosto, perco a droga do desejo por ela e tudo. Puxa, isso arrasa com a minha vida sexual. Minha vida sexual é um nojo.
- Naturalmente que é, ora essa. Da última vez que estivemos juntos eu te disse o que é que você precisa.
- Aquele troço de ir a um psicanalista e tudo? - perguntei. Era isso que ele tinha dito que eu precisava. O pai dele era psicanalista.
- O problema é teu, essa é boa. Não tenho nada a ver com o que você vai fazer da tua vida.
Fiquei sem dizer nada durante algum tempo. Estava pensando.
- Suponhamos que eu fosse falar com o teu pai e ele me psicanalisasse e tudo. Como é que ia ser? Quer dizer, o que é que ele ia fazer comigo?
- Não ia fazer nada com você. Apenas ia falar com você, e você ia falar com ele. Uma coisa é certa, ele ia te ajudar a reconhecer teus padrões mentais.
- Reconhecer o quê?
- Teus padrões mentais. A mente humana funciona... Escuta. Não vou te dar nenhum curso de psicanálise elementar. Se você está interessado, telefona para ele e marca uma consulta. Se não está, não telefona. Francamente, a mim pouco me importa.
Pus a mão no ombro dele. Puxa, ele me divertia.
- Você é um sacana um bocado simpático - falei. - Você sabe disso?
Ele estava olhando o relógio.
- Tenho que me arrancar - ele disse, e se levantou. - Foi um prazer te encontrar.
Chamou o barman e pediu a conta.
- Escuta - perguntei antes dele ir embora - teu pai já te psicanalisou?
- A mim? Por que é que você quer saber?
- Por nada. Só pra saber. Ele já fez psicanálise em você?
- Psicanálise, propriamente, não. Ele me ajudou a me ajustar, até certo ponto, mas não foi preciso uma psicanálise completa. Por quê que você perguntou isso?
- Por nada. Estava só pensando.
- Tá bom. Te cuida - ele disse.
Deixou a gorjeta e tudo, e já ia saindo.
- Toma mais um drinque - falei. - Faz favor. Estou me sentindo sozinho pra diabo. Sem brincadeira.
Mas ele disse que não podia ficar. Disse que estava atrasado e foi embora.
O safado do Luce. Pra falar a verdade, ele me enchia o saco, mas tinha realmente um bom vocabulário. Quando estávamos no Whooton, o Luce era o sujeito que tinha o maior vocabulário. Foi o primeiro colocado num teste que houve.
20
Continuei sentado ali, enchendo a cara, enquanto esperava que a Tina e a Janine viessem fazer o número delas, mas as duas não trabalhavam mais lá. Um cara com pinta de veado e cabelo ondulado tocou um pouco de piano, e depois apareceu a nova cantora, uma tal de Valência. Era bem ruinzinha, mas mesmo assim era melhor do que a Tina e a Janine. Pelo menos cantava umas músicas bonitas. O piano era bem ao lado do bar, onde eu estava sentado e tudo, e a Valência cantava praticamente junto de mim. Joguei-lhe um olhar de mormaço, mas ela fingiu que nem me via. Acho que normalmente não teria dado bola para ela, mas eu já estava num tremendo pileque. Mal acabou de cantar, ela deu o fora tão depressa que nem pude convidá-la para um drinque comigo, por isso chamei o garçon. Mandei-o perguntar à Valência se ela gostaria de tomar um drinque comigo. Ele disse que ia, mas acho que nem deu meu recado. Esse pessoal nunca dá os recados da gente a ninguém.
Puxa, fiquei sentado naquela droga daquele bar até mais ou menos uma hora, bebendo como uma esponja. Já nem enxergava mais direito. Mas tomei o maior cuidado para não dar nenhum vexame nem nada. Não queria que ninguém notasse e viesse a perguntar a minha idade. Mas, pôxa, não via um palmo adiante do nariz. Quando fiquei de porre mesmo, comecei novamente com aquela estória imbecil de que estava com uma bala na barriga. Eu era o único sujeito no bar com uma bala no bucho. Fiquei botando a mão debaixo do paletó, em cima do estômago, para evitar que pingasse sangue pelo chão todo. Não queria que ninguém soubesse nem que eu estava ferido. Tinha que ocultar aquilo de qualquer maneira. Afinal, me deu vontade de bater um fio para a Jane e ver se ela já estava em casa. Aí paguei minha conta e tudo, e fui até à cabine telefônica. Continuei com a mão embaixo do paletó para impedir que o sangue pingasse pelo chão. Puxa, que porre!
Mas, quando entrei na cabine, já estava quase sem vontade de falar com Jane. Acho que estava bêbado demais. Em vez disso, telefonei mesmo para a Sally Hayes.
Tive de discar umas vinte vezes até acertar. Eu mal enxergava os números.
- Alô - falei, quando alguém atendeu a porcaria do telefone. Acho que estava gritando, de tão bêbado.
- Quem fala? - perguntou uma voz de mulher, fria pra burro.
- Sou eu. Holden Caulfield. Quero falar com a Sally, por favor.
- Sally está dormindo. Aqui é a avó dela. Isso é hora de telefonar, Holden? Sabe que horas são?
- Sei sim. Quero falar com a Sally. É um troço importante. Chama ela aí, tá?
- A Sally está dormindo, mocinho. Telefone amanhã. Boa noite.
- Acorda ela! Quê que há? Acorda ela!
De repente ouvi uma voz diferente.
- Holden, sou eu - falaram do outro lado. Era a Sally. - Que estória é essa?
- Sally? É você?
- Sou... pára de gritar. Você está bêbado?
- Tou sim. Escuta. Escuta aqui. Pode contar comigo na véspera de Natal, tá bem? Vou enfeitar a droga da árvore pra você. Tá? Hem, Sally, tá bem?
- Está bem. Você está bêbado. Agora vai se deitar. Onde é que você está? Quem é que está aí?
- Ninguém. Eu e eu mesmo - respondi. Puxa, que pileque! Ainda estava até segurando as tripas. - Eles me pegaram. A gang do Rocky me apanhou. Sabe disso, Sally? Sabe?
- Não estou conseguindo te ouvir. Vai para a cama agora. Tenho que desligar. Me telefona amanhã.
- Êi, Sally! Quer que eu vá enfeitar tua árvore? Quer que eu vá enfeitar a tua árvore? Quer que eu vá? Hem?
- Quero. Até amanhã. Vai para casa dormir.
Desligou na minha cara.
- Té amanhã. Té amanhã, Sallyzinha. Sally, amoreco querido.
Eu estava mesmo na maior água. Desliguei também. Imaginei que ela devia estar chegando em casa, de volta de algum encontro. Podia imaginá-la em algum lugar com os Lunts e tudo, e aquele bestalhão do Andover. Todos eles nadando num bule de chá, e dizendo umas besteiras sofisticadas, e sendo muito encantadores e cretinos. Me arrependi tremendamente de ter telefonado para ela. Só faço burrada quando estou de pileque.
Continuei um tempão na cabine telefônica, meio agarrado no telefone para não desabar no chão. Para dizer a verdade, não estava me sentindo lá muito bem. Mas acabei saindo e fui para o banheiro, cambaleando como um filho da mãe, e enchi de água fria uma das pias. Aí mergulhei a cabeça na água, até as orelhas. Nem me preocupei de enxugar a cabeça nem nada, deixei a porcaria da água escorrer à vontade. Aí fui até o aquecedor junto à janela e me sentei nele. Estava quentinho. Me senti bem pra chuchu, porque a essa altura eu já estava tremendo de frio. É uma coisa engraçada, fico sempre tremendo como uma besta quando estou de porre.
Não tinha mesmo nada para fazer, por isso fui ficando por ali, sentado no aquecedor, contando os quadradinhos brancos no chão. Estava ficando ensopado. Uns cinco litros de água escorriam pelo meu pescoço, empapavam o colarinho, a gravata e tudo, mas eu nem dava bola. Estava bêbado demais para dar bola. Aí, aquele cara que acompanhava a Valência ao piano, o tal de cabelo ondulado e pinta de fresco, entrou no banheiro para pentear suas madeixas douradas. Batemos um papinho enquanto ele se penteava. Só que o cara não era lá muito de conversa.
- Escuta aqui, você vai ver aquela garota, Valência, quando voltar para o bar?
- É muito provável - respondeu. Sacana engraçadinho. Vivo encontrando esses filhos da mãe metidos a espertinhos.
- Escuta. Diz a ela que eu mandei meus parabéns. Pergunta a ela se a porcaria do garçon deu o meu recado, tá?
- Por quê que você não vai para casa, hem, meu chapa? E, por falar nisso, quantos anos você tem?
- Oitenta e seis. Escuta. Dá a ela meus parabéns, tá?
- Por quê que você não vai para casa, bem?
- Fazer o quê? Puxa, você toca um bocado de piano - falei. Era só para agradar o safado. Pra dizer a verdade, ele tocava piano como a cara dele. - Você devia tocar no rádio. Um camarada boa pinta como você, com todas essas ondas douradas... Tá precisando de um empresário?
- Vai para casa, meu chapa, que é o melhor que você faz. Vai pra casa e se mete na cama.
- Não tenho casa para ir. Fora de brincadeira, você está precisando de um empresário?
Nem me respondeu. Foi embora. Tinha acabado de pentear e alisar o cabelo e tudo, aí saiu. Igualzinho ao Stradlater. Esses sujeitos bonitões são todos iguais. É só acabarem de pentear a droga do cabelo, e dão o fora na gente.
Afinal, quando resolvi descer do aquecedor e ir ao vestiário, estava chorando e tudo. Não sei por quê, mas estava. Acho que era porque estava me sentindo tão deprimido e sozinho. Aí, quando cheguei no vestiário, não consegui encontrar a droga da ficha. Mas a dona que tomava conta de lá era muito boazinha e me deu o sobretudo assim mesmo. E o disco "Little Shirley Beans", que ainda estava comigo. Dei um dólar a ela, porque tinha sido tão boazinha, mas ela não quis aceitar. Ficou dizendo que eu devia ir para casa dormir. Tentei marcar um encontro, quando ela largasse o trabalho, mas não topou. Disse que tinha idade para ser minha mãe e tudo. Mostrei os meus cabelos brancos e falei que tinha quarenta e dois anos - só de brincadeira, é claro. Mas ela era boazinha. Mostrei também a droga do meu chapéu vermelho de caça, e ela gostou dele. Me obrigou a pôr o chapéu na cabeça antes de sair, porque o meu cabelo ainda estava um bocado molhado. Ela era cem por cento.
Quando cheguei na rua não estava mais me sentindo muito bêbado, mas fazia um frio de rachar outra vez e comecei a bater queixo como um desgraçado. Não conseguia parar. Andei até a Avenida Madison e comecei a esperar um ônibus, porque minha grana já estava no fim e eu tinha que começar a economizar nos táxis e tudo. Mas não estava com nenhuma vontade de me meter numa droga dum ônibus e, além disso, nem sabia para onde ir. Por isso comecei a andar em direção ao parque. Me lembrei de ir até o laguinho e ver que diabo os patos estavam fazendo, se continuavam por ali. Ainda não sabia se eles ficavam por lá ou não. O
parque não era muito longe e eu não tinha mesmo nada de muito melhor para fazer - nem sabia ainda onde é que eu ia dormir - por isso fui para lá. Não me sentia cansado nem nada. Só chateado pra burro.
Aí, mal entrei no parque, aconteceu uma coisa horrível. Deixei cair o disco da Phoebe. Quebrou-se em mais de cinqüenta pedaços. O disco estava dentro dum envelope grande e tudo, mas quebrou assim mesmo. Quase chorei, tão chateado me senti, mas o que fiz mesmo foi tirar os pedaços do envelope e botar tudo no bolso do meu sobretudo. Não serviam mais para nada, mas não tive coragem de jogá-los fora. Aí entrei no parque. Puxa, que escuridão!
Moro em Nova York desde que nasci e conheço o Central Park como a palma da minha mão, porque, quando eu era garoto, costumava ir muito lá andar de patins ou de bicicleta. Mas tive um trabalhão danado para encontrar o laguinho naquela noite. Sabia exatamente onde ele ficava - bem pertinho do Central Park Sul e tudo - mas mesmo assim não conseguia encontrar o desgraçado. Eu devia estar mais bêbado do que pensava. Andei pra cá e pra lá, e o lugar ia ficando cada vez mais escuro e mais soturno. Não encontrei vivalma durante o tempo todo que fiquei no parque. Antes assim, porque se desse de cara com alguém provavelmente teria levado o maior susto. Aí, finalmente, achei o lago. Estava metade congelado e metade não. Mas não vi nenhum pato por ali. Dei a volta na droga toda do lago - aliás, quase caí dentro dele uma vez - mas não consegui ver um único pato. Achei que, se houvesse algum por ali, devia estar dormindo ou coisa parecida, bem pertinho da margem ou no gramado. Foi aí que quase caí dentro d'água. Mas não encontrei nenhum.
Acabei me sentando num banco, num canto um pouquinho menos escuro. Puxa, ainda estava tiritando como um filho da mãe e na parte de trás da cabeça, apesar de eu estar de chapéu, tinha uma porção de pedacinhos de gelo. Isso me preocupou. Achei que provavelmente ia apanhar uma pneumonia e morrer. Fiquei imaginando milhões de chatos indo ao meu enterro e tudo. Meu avô de Detroit, aquele que fica lendo alto o nome das ruas quando a gente anda numa porcaria dum ônibus com ele, e minhas tias - tenho umas cinqüenta tias - e todos os nojentos dos meus primos. A tropa toda ia estar lá. Estavam todos lá quando o Allie morreu, a cambada toda de imbecis. Tenho uma tia imbecil, que tem mau hálito, que não parava de repetir que ele estava tão sereno no caixão. O D. B. é que me contou, eu não fui lá. Ainda estava no hospital. Tive que ir para o hospital e tudo quando machuquei minha mão. Seja como for, fiquei com medo de apanhar uma pneumonia e morrer, por causa daqueles flocos de gelo no cabelo. Me deu uma pena danada do meu pai e da minha mãe. Especialmente da minha mãe, porque ela ainda não se conformou com a morte do Allie. Ela não ia saber o que fazer com todos os meus ternos e equipamentos esportivos e tudo. Só tinha uma coisa boa, era saber que ela não ia deixar a Phoebe assistir à droga do meu enterro porque é muito criança. Essa era a única coisa boa. Aí pensei na cambada toda me metendo numa droga de cemitério, com meu nome num túmulo e tudo. Cercado de gente morta. Puxa, depois que a gente morre, eles fazem o diabo com a gente. Tomara que quando eu morrer de verdade alguém tenha a feliz idéia de me atirar num rio ou coisa parecida. Tudo, menos me enfiar numa porcaria dum cemitério. Gente vindo todo domingo botar um ramo de flores em cima da barriga do infeliz, e toda essa baboseira. Quem é que quer flores depois de morto? Ninguém.
Quando faz bom tempo, meus pais vão freqüentemente ao cemitério e espetam um punhado de flores no túmulo do Allie. Fui com eles umas duas vezes, mas aí parei. Em primeiro lugar, não tenho o menor prazer em ver o Allie naquele cemitério maluco. Todo cercado de caras mortos e túmulos e tudo. Não é tão ruim quando faz sol, mas duas vezes - duas vezes - estávamos lá dentro quando começou a chover. Foi horroroso. Choveu na porcaria do túmulo dele, e choveu na grama em cima da barriga dele. Chovia por todo lado. O pessoal todo que estava de visita saiu correndo para os carros. Foi isso que me deixou doido. Todo mundo podia correr para dentro dos carros, ligar o rádio e tudo e ir jantar em algum lugar bacana - todo mundo menos o Allie. Não agüento um troço desses. Eu sei que é só o corpo dele e tudo que está no cemitério, que a alma está no céu e essa merda toda, mas assim mesmo não podia agüentar aquilo. Só queria que ele não estivesse lá. Quem conheceu o Allie entende o que estou querendo dizer. Não é tão mau assim quando tem sol, mas o sol só aparece quando cisma de aparecer.
Depois de algum tempo, só para tirar da cabeça aquela estória de apanhar pneumonia e tudo, catei meu dinheiro e tentei contá-lo, ali naquela luz horrível do poste. Só tinha três notas de um dólar, cinco moedas de vinte e cinco cêntimos e uma moedinha de cinco cêntimos - puxa, tinha gastado uma fortuna desde a hora que saí do Pencey. Aí fui até à beira do laguinho e atirei as moedas todas para o outro lado, rente à água, onde não estava congelado. Sei lá por quê que fiz isso, mas fiz. Acho que era para tirar da cabeça aquela idéia de apanhar pneumonia e morrer. Mas não tirou nada.
Comecei a imaginar o que a Phoebe ia sentir se eu apanhasse pneumonia e morresse. Era o tipo da coisa infantil de se pensar, mas não conseguia parar. Ela ia ficar um bocado triste se acontecesse um troço desses. Ela gosta muito de mim. Quer dizer, tem muito afeto por mim. Tem mesmo. De qualquer maneira, não conseguia afastar aquilo da minha cabeça, por isso acabei resolvendo que o melhor era entrar escondido lá em
casa e ver a Phoebe, para o caso de eu vir a morrer e tudo. Eu estava com a chave da porta e resolvi que ia entrar no apartamento, sem fazer barulho, e bater um papinho com ela. A única coisa que me preocupava era a porta da frente, que range como uma filha da mãe. O edifício é velho pra cachorro, o administrador é um sacana dum preguiçoso, e por isso tudo lá range e geme. Fiquei com medo de que meus pais me pegassem entrando escondido em casa. Mas resolvi arriscar de qualquer jeito.
Saí da droga do parque e fui para casa. Fui a pé até lá. Não era muito longe, e eu não estava cansado. Nem bêbado estava mais. Fazia um frio de rachar e não tinha ninguém pela rua.

21-26

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