sábado, 9 de março de 2013

O Apanhador no campo de centeio 6-10


6
Tem coisas difíceis da gente lembrar. Por exemplo, a volta do Stradlater do encontro com a Jane. Quer dizer, não consigo lembrar direito o que é que eu estava fazendo quando ouvi a droga dos passos dele no corredor. Talvez ainda estivesse olhando pela janela, mas juro quê não me lembro. Estava preocupado demais, é por isso. Não brinco em serviço quando me preocupo com alguma coisa. Fico até precisando ir ao banheiro. Só que não vou, porque minha preocupação é tão grande que não quero interrompê-la só para ir lá. Qualquer um que conhecesse o Stradlater também ficaria preocupado. Já tínhamos saído juntos com garotas algumas vezes, e sei o que estou dizendo. Ele não tinha escrúpulos. Nem um pouco.
Seja como for, o corredor era forrado de linóleo e tudo, e a gente ouvia a porcaria dos passos dele se aproximando do quarto. Não me lembro mais nem onde estava quando ele entrou - se na janela, ou na minha cadeira, ou na dele. Juro que não me lembro.
Chegou se queixando do frio lá fora. Aí disse:
- Onde é que se meteu o pessoal? Isso aqui tá parecendo mais uma droga dum necrotério.
Nem me dei ao trabalho de responder. Se a burrice dele não lhe permitiu ver que era sábado de noite e que quem não tinha ido passar o fim de semana em casa já estava dormindo - não era eu que ia perder meu tempo para ensinar isso a ele. Começou a tirar a roupa. Não disse nem uma porcaria duma palavra sobre a Jane. Nem umazinha. Nem eu, que fiquei só olhando para ele. Limitou-se a me agradecer pelo casaco que eu tinha emprestado. Pendurou-o num cabide e guardou no armário.
Aí, enquanto tirava a gravata, perguntou se eu havia escrito a droga da redação para ele. Respondi que estava em cima da porcaria da cama. Apanhou-a e foi lendo enquanto desabotoava a camisa. Ficou ali, de pé, lendo e alisando o peito e a barriga, com a maior cara de boçal. Ele vivia alisando o peito ou a barriga. Ele se adorava.
De repente, falou:
- Que negócio é esse, Holden? Você escreveu sobre uma droga duma luva de beisebol!
- E daí? - eu disse, com a maior frieza.
- E daí o quê? Eu te disse que tinha que ser sobre uma porcaria duma sala, uma casa ou outro troço assim.
- Você disse que tinha de ser descritiva. Qual é a diferença se é sobre uma luva de beisebol?
- Merda!
Ele estava com uma raiva dos diabos. Furioso mesmo.
- Por que é que tudo que você faz é enrolado, hem? - falou virando-se para mim. - Não é à toa que você vai ser chutado daqui do colégio. Não há uma merda duma coisa que você faça direito. É isso mesmo. Nem uma única porcaria.
- Tá bem, então me dá aí a redação - falei. Fui até lá, arranquei o papel da mão dele e rasguei em pedacinhos.
- Pra quê que você fez isso?
Nem respondi. Apenas joguei os pedacinhos na cesta de papéis. Aí me deitei na cama e nenhum de nós falou durante muito tempo. Ele tirou toda a roupa, ficando só de cuecas, e eu acendi um cigarro, ainda na cama. Era proibido fumar no dormitório, mas àquela hora da noite, com todo mundo dormindo ou na rua, ninguém podia sentir o cheiro e não tinha importância. Mas fumei mesmo só para chatear o Stradlater, que ficava doente quando a gente não cumpria o regulamento. Ele nunca fumava no dormitório, era sempre eu.
Ainda não tinha dito nem uma palavra sobre a Jane. Não me agüentei:
- Você está chegando um bocado tarde, se é que ela só tinha mesmo licença para voltar às nove e meia. Ela chegou atrasada por tua causa?
Quando perguntei, ele estava sentado na beirada da cama, cortando a porcaria das unhas dos pés.
- Só uns dois minutos. Também é o tipo da idéia infeliz ir dormir às nove e meia numa noite de sábado.
Puxa vida, como eu detestava aquele sujeito.
- Vocês foram a Nova York? - perguntei.
- Tá maluco? Como é que a gente podia ir a Nova York se às nove e meia ela tinha que estar de volta?
- É, é meio difícil mesmo.
Olhou para mim.
-Escuta aqui - ele disse. - Se você está com vontade de fumar, que tal dar uma chegadinha no banheiro, bem? Você está indo embora daqui, mas eu ainda preciso agüentar a mão até me formar.
Não dei pelota. Não dei mesmo. Continuei a fumar como uma chaminé. Só fiz me virar meio de lado e ficar olhando para ele, enquanto aparava a droga das unhas. Que colégio! A gente passava o tempo todo vendo alguém cortar a porcaria das unhas ou espremer as espinhas, ou coisa que o valha.
- Você deu minhas lembranças a ela? - perguntei.
- Dei.
Aposto que não deu, o sacana.
- E aí, o quê que ela disse? Você perguntou a ela se ainda guarda todas as damas na última fila?
- Não! Como é que ia perguntar um troço desses? Que é que você pensa que nós ficamos fazendo a noite inteira? Jogando damas, é? Essa não!
- Se você não foi a Nova York, então pra onde foi? - perguntei um pouco depois. Minha voz já estava saindo trêmula pra burro. Puxa, como eu estava nervoso. Tinha a impressão de que havia acontecido alguma coisa esquisita entre eles dois.
Stradlater acabou de cortar a porcaria das unhas. Levantou-se, só de cuecas e tudo, e começou a bancar o brincalhão. Chegou junto da minha cama, se abaixou e ficou dando uns murros de brincadeira no meu ombro.
- Pára com isso - eu disse. - Se não foi a Nova York, pra onde é que você levou a Jane?
- Pra lugar nenhum. Ficamos no carro mesmo - respondeu e me deu novamente um daqueles murrinhos idiotas no ombro.
- Pára com isso! No carro de quem?
- Do Ed Banky.
Ed Banky era o técnico de basquete do Pencey. O Stradlater era protegido dele porque jogava de pivô no time. Por isso o carro do Ed Banky estava sempre à sua disposição. Era proibido aos alunos dirigir os carros dos professores, mas os sacanas que praticavam esporte eram um bocado unidos. Em todos os colégios onde estive, esses sacanas formavam sempre a sua panelinha.
Stradlater continuava a dar aqueles saquinhos de brincadeira no meu ombro. Botou na boca a escova de dentes que estava segurando.
- Você mandou brasa nela dentro do carro do Ed Banky? - perguntei, com a voz tremendo mais do que gelatina.
- Isso é coisa que se diga? Tá querendo que eu lave a tua boca com sabão?
- Mandou ou não mandou?
- Isso é segredo profissional, meu chapa.
Não me lembro direito do que aconteceu depois. Só sei que me levantei da cama, como se fosse para o banheiro ou coisa parecida, e tentei dar-lhe um murro de surpresa, com toda força, bem ali na escova de dentes, para furar a droga da garganta dele. Só que errei. Não consegui acertar direito. Quando muito, peguei-o no lado da cabeça. Talvez tivesse machucado um pouquinho, mas não como eu queria. Teria machucado de verdade, se eu não tivesse usado a direita, que é a minha mão fraca. Por causa daquele defeito de que eu já falei.
Afinal, quando vi já estava deitado no chão, e o Stradlater, com o rosto vermelho pra diabo, sentado em cima do meu peito. Quer dizer, a droga dos joelhos dele estavam fincados no meu peito e o safado pesava mais de uma tonelada. Meus pulsos também estavam presos, por isso não podia lhe dar outro murro. Tive vontade de matá-lo.
- Quê que há com você? - ele repetia, a cara estúpida cada vez mais vermelha.
- Tira essa merda desses joelhos de cima de mim - falei, quase urrando. Urrando mesmo. - Vamos, sai de cima de mim, seu filho da puta!
Mas ele não saiu. Continuou prendendo meus pulsos, e eu continuei a chamá-lo de filho da puta e tudo, durante mais de dez horas. Nem me lembro direito do que eu disse a ele. Disse que ele pensava que podia mandar brasa em quem bem entendesse. Disse que não fazia a menor diferença para ele se uma pequena deixava todas as damas na última fila ou não, e que ele só não se importava com isso porque era um imbecil total. Ele ficava furioso quando era chamado de imbecil. Todos os imbecis detestam ser chamados de imbecis.
- Cala a boca, Holden! - ele disse, com a carona imbecil toda vermelha. - Cala a boca!
- Você nem ao menos sabe se o nome dela é Jane ou Jean, seu boçalão!
- Cala essa boca, Holden, que merda! Estou avisando - ele disse. O cara estava alucinado. - Se você não calar a boca vou te dar uma porrada.
- Tira a droga desses joelhos de idiota de cima de mim.
- Se eu te soltar, você fica calado?
Nem respondi. Ele repetiu:
- Se eu te soltar, você vai ficar calado, Holden?
- Vou.
Ele se levantou e eu também. Meu peito estava doendo pra chuchu do peso dos joelhos dele.
- Você é um filho da puta dum imbecil - falei.
Aí o Stradlater virou fera de verdade. Ficou sacudindo o dedão na minha cara.
- Porra, Holden, tou te avisando. Pela última vez. Se você não fechar a matraca, vou te...
- Pra quê? - perguntei, quase gritando. - Esse é que é o problema com os imbecis como você. Nunca querem discutir coisa nenhuma. É assim que a gente descobre quem é boçal. Não discutem nunca um troço com inteligên...
Aí ele me mandou um murro tremendo e eu capotei. Não me lembro se cheguei a perder os sentidos, mas acho que não. Não é nada fácil nocautear uma pessoa, a não ser no cinema. Mas meu nariz pingava sangue pelo quarto todo. Quando abri os olhos, o Stradlater estava em pé, bem ao meu lado.
- Por que diabo você não cala a boca quando eu mando? - perguntou.
Ele estava um bocado nervoso. Acho que estava apavorado, com medo que eu tivesse fraturado o crânio ou coisa parecida quando bati com a cabeça no chão. É pena que isso não tenha acontecido.
- A culpa é tua, toda tua - ele disse.
Puxa, estava preocupado pra burro.
Nem me dei ao trabalho de levantar do chão. Continuei espichado ali mesmo, chamando-o de imbecil e filho da puta. Minha raiva era tanta que eu estava quase berrando.
- Quer saber de uma coisa, vai lavar a cara - ele falou. - Tá ouvindo?
Disse que ele, se quisesse, que fosse lavar sua cara de boçal. Era o tipo da resposta infantil, mas eu estava com uma raiva desgraçada. Disse ainda que, no caminho do banheiro, desse uma parada e mandasse uma brasinha na Sra. Schmidt. A Sra. Schmidt era a mulher do zelador. Andava aí pelos sessenta e cinco anos.
Fiquei sentado no chão até ouvir o Stradlater fechar a porta e seguir para o banheiro, no fim do corredor. Então me levantei. Não conseguia achar a droga do meu chapéu de caça em lugar nenhum. Procurei um pouco mais e acabei encontrando, debaixo da cama. Botei-o na cabeça e virei a aba para trás, até ficar como eu gostava. Aí fui até o espelho dar uma olhada na minha cara de imbecil. Garanto que ninguém nunca viu ferimento igual àquele. Tinha sangue espalhado pela boca e pelo queixo, e até no pijama e no roupão. Fiquei meio assustado e meio fascinado. Todo aquele sangue me dava um jeitão de machão. Na minha vida inteira só tinha entrado numas duas brigas, e apanhei nas duas vezes. Não sou muito de briga. Para dizer a verdade, eu sou é pacifista.
Tinha a impressão de que o Ackley tinha ouvido a bagunça toda e estava acordado. Por isso atravessei as cortinas do banheiro que ficavam entre o quarto dele e o nosso, só para ver o que ele estava fazendo. Eu quase nunca ia ao quarto dele, porque o sacana era tão relaxado em seus hábitos pessoais que o quarto dele sempre tinha um fedor meio esquisito.
7
Do nosso quarto chegava um fiapo de luz, através das cortinas do chuveiro, o bastante para ver o Ackley deitado na cama. Podia jurar que ele estava bem acordado.
- Ackley, tá acordado?
- Tou.
Estava um bocado escuro. Tropecei num sapato e por pouco não dei de cara no chão. Ackley ergueu-se na cama, apoiado num braço. Estava com a cara toda coberta de um troço branco, remédio para as espinhas. No escuro, parecia até um fantasma.
- O que é que você está fazendo aí? - perguntei.
- Pomba, que estória é essa de que é que eu estou fazendo? Estava tentando dormir, quando vocês começaram aquele barulhão todo. Afinal, por quê que vocês brigaram?
- Onde é a luz?
Já tinha passado a mão pela parede toda e não conseguia encontrar o interruptor.
- Pra quê que você quer acender a luz? Aí, bem junto da tua mão.
Achei finalmente o interruptor e acendi a luz. Ackley cobriu os olhos com a mão, protegendo-os contra a claridade.
- Puxa! Quê que houve contigo? - ele perguntou. Estava se referindo ao sangue e tudo.
- Saí no braço com o Stradlater.
Aí sentei no chão. Eles nunca tinham nem uma cadeira no quarto, não sei que diabo faziam com elas.
- Escuta, que tal uma partidinha de canastra? - perguntei. Ele era tarado por canastra.
- Pomba, você ainda está sangrando. É melhor pôr um remédio aí nisso.
- Isso passa. Escuta, você topa uma partidinha de canastra ou não topa?
- Que canastra, que nada. Sabe que horas são, por acaso?
- Cedo. Só umas onze ou onze e meia.
- Só umas onze! Escuta aqui, tenho que me levantar cedo amanhã para ir à Missa. Vocês dois começam a berrar e a se arrebentar no meio da porcaria da... Afinal, por que foi a briga?
- É uma longa estória, Ackley. Não quero te aporrinhar com o troço todo. Estou pensando no teu próprio bem-estar.
Nunca conversei com ele sobre a minha vida íntima. Primeiro, porque o Ackley era ainda mais burro que o Stradlater. Perto dele o Stradlater era um verdadeiro gênio.
- Escuta aqui, você se incomoda se eu dormir hoje na cama do Ely? Ele só volta amanhã de noite, não é?
Sabia muito bem que o Ely não ia voltar, porque costumava passar quase todo fim de semana em casa.
- Sei lá quando é que ele vai voltar - respondeu o Ackley.
Puxa, essa me encheu.
- Como é que você não sabe quando que o Ely vai voltar? Ele nunca volta antes de domingo à noite, volta?
- Tá bem, eu sei, mas não é por isso que vou deixar todo mundo dormir na droga da cama dele.
Com essa não me agüentei. Me estiquei de onde estava, sentado no chão, e dei um tapinha na porcaria do ombro dele.
- Você é um príncipe, garoto. Sabia disso? Um príncipe.
- Não, é sério... Não posso dizer a todo mundo para dormir...
- Você é um verdadeiro príncipe. Bem educado e culto pra burro, garoto.
E era mesmo.
- Será que você tem um cigarro aí, por acaso? Diz que não, ou eu caio duro aqui mesmo.
- Pra falar a verdade, não tenho. Escuta, por que diabo vocês brigaram, hem?
Não respondi. Só fiz me levantar, ir até a janela e ficar olhando para fora. De repente, me senti muito só. Quase tive vontade de morrer.
- Mas por que diabo vocês brigaram afinal? - o Ackley perguntou pela milionésima vez. Já estava ficando chato com essa pergunta.
- Por tua causa - acabei dizendo.
- Por minha causa? No duro?
- É. Estava defendendo a porcaria da tua honra. O Stradlater disse que você tem um péssimo caráter. Acha que eu podia engolir um troço desses?
Ackley vibrou.
- Foi mesmo? Sério? Ele disse isso, é?
Falei que era brincadeira, e fui me deitar na cama do Ely. Puxa, eu me sentia podre. Estava me sentindo tremendamente só.
- Como fede este quarto - falei. - Daqui de onde estou sinto o cheiro das tuas meias. Você nunca manda tua roupa para a lavanderia?
- Os incomodados que se mudem - respondeu-me. Que sujeito espirituoso!
- Que tal apagar a droga da luz, hem? - ele continuou.
Mas não apaguei logo. Fiquei ali espichado na cama do Ely, pensando na Jane e tudo. Ficava alucinado só de pensar nela e no Stradlater parados em algum canto escuro, no carro daquele bundudo do Ed Banky. Cada vez que pensava nisso tinha vontade de saltar pela janela. O negócio é que ninguém conhece o Stradlater como eu conheço. A maioria dos caras no Pencey só fazia falar o tempo todo sobre relações sexuais com as garotas - como o Ackley, por exemplo - mas o Stradlater era pra valer. Eu conhecia pessoalmente pelo menos duas garotas com quem ele tinha andado. Essa é que é a verdade.
- Me conta a história fascinante da tua vida, meu caro Ackley.
- Que tal apagar a droga da luz? Tenho que acordar cedo para ir à Missa.
Levantei e apaguei a luz, para lhe dar um pouco de felicidade. Tornei a me deitar na cama do Ely.
- Que é que você vai fazer... dormir na cama do Ely? - o Ackley me perguntou. Puxa, ele devia ser eleito anfitrião do ano.
- Talvez sim, talvez não. Não se preocupe com isso.
- Não estou preocupado com coisa nenhuma. Só que ia ser chato pra burro se o Ely entrasse de repente e desse com um sujeito...
- Calminha. Não vou dormir aqui. Não iria abusar da droga da tua hospitalidade.
Dois minutos depois ele já estava roncando como um louco. Fui ficando por ali, espichado no escuro, procurando não pensar na Jane e no Stradlater dentro da porcaria do carro do Ed Banky. Mas era quase
impossível. O problema é que eu conhecia a técnica daquele sujeito. Uma vez nós saímos com duas garotas, no carro do Ed Banky, ele no banco de trás com a pequena dele, e eu na frente com a minha. Puxa, o cara tinha uma classe bárbara. Ele começou a cantar a menina, com uma vozinha mansa e sincera pra burro, como se, além de um sujeito simpático, fosse também bom e sincero. Quase vomitei, só de ouvir. A garota só fazia dizer: "Não, por favor. Não faz isso não, por favor". Mas o Stradlater continuava a passar a cantada com aquela -voz mais sincera do que a do Abraão Lincoln, e no fim houve um silêncio horrível no banco de trás. Foi realmente embaraçoso. Não acredito que ele tenha feito o serviço na garota naquela noite, mas chegou perto. Perto mesmo.
Ainda estava deitado ali, fazendo força para não pensar, quando escutei o Stradlater voltar do banheiro e entrar no quarto. Dava para ouvir perfeitamente enquanto ele guardava aquela escova e aquele pente imundos e depois abria a janela. O imbecil era tarado por ar puro. Aí, pouco depois, apagou a luz, sem nem ao menos dar uma olhadela para ver onde eu estava.
Lá fora, a rua estava até deprimente. Não se ouvia nem um carro passando. Fiquei me sentindo tão podre e soninho que me deu até vontade de acordar o Ackley.
- Ackley - chamei, numa espécie de cochicho, para que o Stradlater não me ouvisse através das cortinas do chuveiro. Mas ele não ouviu.
- Êi, Ackley!
Nem assim me ouviu. Dormia como uma pedra.
- Êi, Ackley!
Dessa vez ele escutou.
- Pomba, quê que há contigo? Já estava dormindo, poxa.
- Escuta, como é que a gente faz pra entrar num convento? - perguntei. Estava começando a estudar a idéia de ser monge. - É preciso ser católico e tudo?
- Claro que tem que ser católico. Ô seu veado, você me acordou só para fazer essa pergunta idio...
- Vai, vai dormir, tá. Não vou mesmo entrar pra droga de convento nenhum. Tenho tanta sorte, que ia acabar entrando para um convento cheio da pior espécie de monges. Todos uns sacanas imbecis. Ou só sacanas.
Quando disse isso, o Ackley sentou na cama como se fosse de mola.
- Escuta aqui, tou pouco ligando para o que você falar de mim ou seja lá o que for, mas se começar a fazer piadinhas sobre a porcaria da minha religião, aí...
- Sossega. Ninguém está fazendo piada nenhuma com a porcaria da tua religião.
Levantei da cama do Ely e andei em direção à porta. Não queria ficar nem mais um minuto naquele ambiente idiota. Mas parei no caminho, segurei a mão do Ackley e dei-lhe um baita dum aperto de mãos fingido. Ele puxou a mão e perguntou:
- Que negócio é esse?
- Nada. Só queria te agradecer, porque você é um verdadeiro príncipe. Só isso, - falei, com uma voz sincera pra chuchu. - Você é o fino, garoto. Sabia disso?
- Muito engraçadinho. Qualquer dia desses vão te arrebentar a...
Não perdi tempo ouvindo o resto. Fechei a droga da porta e saí para o corredor. Todo o mundo estava dormindo, tinha saído ou ido passar o fim de semana em casa, e por isso o corredor estava silencioso e deprimente pra burro. Na porta do quarto do Leahy e do Hoffman tinha uma caixa de Kolynos vazia, que fui chutando pelo corredor, com meu chinelo de pêlo de carneiro, enquanto caminhava para a escada.
Estava pensando em dar um pulo lá embaixo para ver o que o Mal Brossard estava fazendo. Mas de repente mudei de idéia. Decidi que ia sumir do Pencey, dar o fora naquela noite mesmo e tudo. Nada de esperar até quarta-feira. Não queria mais ficar zanzando por lá. O troço todo estava me deixando triste e solitário pra burro. Por isso resolvi ir para um hotel em Nova York - um hotelzinho barato e tudo - e ficar flanando até quarta-feira. Aí, na quarta-feira, ia para casa descansado e me sentindo cem por cento. Calculei que, antes de terça ou quarta-feira, meus pais dificilmente receberiam a carta do velho Thurmer, com a notícia de que eu tinha sido chutado. Não queria ir para casa nem nada antes que tivessem recebido a notícia, digerido completamente tudo. Não queria estar por perto na hora em que eles recebessem a carta. Minha mãe fica muito histérica. Mas melhora bastante depois que digere um troço completamente. Além disso, eu estava mesmo precisando de umas fériazinhas. Meus nervos estavam abalados. No duro.
De qualquer maneira, foi o que resolvi fazer. Por isso, voltei para o quarto e acendi a luz, para arrumar as malas e tudo. Já tinha muita coisa arrumada. O Stradlater nem acordou. Acendi um cigarro e me vesti. Aí, botei tudo nas minhas duas malas. Em dois minutos já estava pronto. Faço minhas malas um bocado depressa.
Só uma coisa me deprimiu enquanto arrumava as malas. Tive de guardar os patins de gelo, novinhos em folha, que minha mãe tinha mandado uns dias antes. Isso me deprimiu. Imaginei minha mãe entrando na loja e perguntando um milhão de besteirinhas ao vendedor - e cá estava eu levando bomba outra vez. O troço me deixou um bocado chateado. Minha mãe tinha comprado os patins errados - eu havia pedido patins de corrida e ela comprou patins de hóquei - mas fiquei triste de qualquer jeito. Quase todo presente que me dão acaba me deixando triste.
Depois de arrumar tudo, contei minha grana. Não me lembro exatamente quanto era, mas estava abonado. Minha avó tinha me mandado uma bolada uma semana antes. Minha avó é um bocado mão-aberta. Já está meio caduca - é velha como o diabo - e manda dinheiro pelo meu aniversário umas quatro vezes por ano. De qualquer maneira, embora estivesse com a erva, achei que não havia mal algum em levar um dinheirinho extra. A gente nunca sabe. Por isso, atravessei o corredor e acordei o Frederick Woodruff, o sujeito a quem eu havia emprestado minha máquina de escrever, e perguntei quanto ele dava por ela. Era um cara um bocado rico. Disse que não sabia, e que não estava muito interessado. Mas acabou comprando. A máquina tinha custado uns noventa dólares e ele só me deu vinte por ela. Estava aborrecido porque eu o havia acordado.
Quando já estava pronto para partir, com as malas e tudo, parei no alto da escada e dei uma última olhada pela droga do corredor. Acho que chorei, nem sei porquê. Pus o chapéu de caça vermelho na cabeça, virei a aba para trás, como gostava, e aí dei um berro, com toda a força:
- Durmam bem, seus imbecis!
Aposto que acordei todos os filhos da mãe daquele andar. Aí tratei de dar o fora. Um cretino qualquer tinha espalhado uma porção de cascas de amendoim nos degraus e por um triz não me arrebentei todo.
8
Era muito tarde para chamar um táxi ou coisa parecida, por isso fui mesmo a pé até a estação. Não era tão longe, mas fazia um frio danado, a neve dificultava a caminhada e as malas iam chacoalhando como umas desgraçadas de encontro a minhas pernas. Mas, de qualquer maneira, até que me sentia bem com o ar puro e tudo. O único problema era que o frio fazia meu nariz doer, e aumentava a dor que eu já estava sentindo na parte de dentro do meu lábio superior, onde o safado do Stradlater tinha me acertado. Ele tinha arrebentado meu lábio contra os dentes, e estava doendo pra chuchu. Mas minhas orelhas estavam bem quentinhas. Aquele chapéu que eu havia comprado tinha protetores de orelha, que eu tratei de abaixar. Estava pouco ligando para minha aparência.
Tive bastante sorte quando cheguei na estação, porque só precisava esperar uns dez minutos pelo próximo trem. Enquanto esperava, apanhei um bocado de neve e lavei minha cara, que ainda estava cheia de sangue.
Normalmente, eu gosto de andar de trem, principalmente de noite, com as luzes acesas e as janelas tão escuras, e um desses sujeitos passando pelo corredor, vendendo café, sanduíches e revistas. Normalmente eu compro um sanduíche de presunto e mais ou menos quatro revistas. Num trem, de noite, sou até capaz de ler uma dessas estórias imbecis sem vomitar de nojo. Uma dessas estórias com uma porção de machões de queixo ossudo, chamados David, e uma porção de garotas bestas, chamadas Linda ou Márcia, que estão sempre acendendo os cachimbos dos David para eles. Normalmente, consigo ler até mesmo uma dessas estórias cretinas se estou andando de trem, de noite. Mas dessa vez foi diferente. Pura e simplesmente, não estava no estado de espírito necessário. Fiquei só sentado, sem fazer nada. A única coisa que fiz foi tirar meu chapéu de caça e guardá-lo no bolso.
De repente, uma dona tomou o trem em Trenton e sentou ao meu lado. Já era um bocado tarde e tudo, e por isso o vagão estava praticamente vazio, mas ela sentou bem ao meu lado, e não em qualquer banco vazio, porque vinha carregando uma mala enorme e eu estava logo no primeiro banco. Deixou a mala bem no meio do corredor, onde o condutor ou qualquer um podia tropeçar nela. Estava usando umas orquídeas, como se tivesse acabado de sair de uma baita duma festa ou coisa parecida. Acho que ela devia ter uns quarenta ou quarenta e cinco anos, mas era um bocado bonita. Sou doido por mulher. No duro. Não que eu seja nenhum tarado nem nada, embora seja bastante macho. O negócio é que eu gosto mesmo das mulheres. Elas estão sempre deixando a porcaria das malas delas bem no meio dos corredores.
De qualquer modo, nós estávamos sentados lá e, de repente, ela me perguntou:
- Desculpe, mas essa etiqueta não é do Colégio Pencey?
Ela estava olhando para minhas malas, em cima da prateleira.
- É sim - respondi. Ela tinha razão. Havia mesmo uma droga duma etiqueta do Pencey em uma das minhas malas. Reconheço que era o tipo do negócio idiota de se usar.
- Ah, você estuda no Pencey? - perguntou. Ela tinha uma voz agradável. Era mais uma voz agradável de telefone. Ela bem que devia carregar uma porcaria dum telefone com ela por toda parte.
- É, eu estudo lá, sim - respondi.
- Ah, que interessante. Então talvez você conheça meu filho, o Ernest Morrow. Ele também está lá no Pencey.
- Conheço sim. Ele é da minha turma.
O filho dela era sem dúvida o maior sacana que já tinha passado pelo Pencey, em toda a infeliz história do colégio. Ele estava sempre andando pelo corredor, depois de tomar banho, batendo com a toalha encharcada na bunda dos outros. É esse o tipo de cara que ele era.
- Ah, que interessante! - ela disse, mas sem ser besta nem nada. Estava só querendo ser simpática. - Vou contar ao Ernest que nós nos encontramos - continuou ela. - Posso saber o seu nome, meu filho?
- Rudolph Schmidt - respondi. Não estava com a mínima vontade de contar a ela toda a história da minha vida. Rudolph Schmidt era o nome do zelador do nosso dormitório.
- Você gosta do Pencey? - ela perguntou.
- O Pencey? Não é de todo mau. Não é nenhum paraíso nem nada, mas é tão bom quanto a maioria dos colégios. Alguns professores são um bocado conscienciosos.
- O Ernest adora o Pencey.
- É, eu sei que ele gosta de lá - eu disse. Aí comecei a embromar um pouco. - Ele se adapta muito bem às coisas. No duro. Ele realmente sabe se adaptar ao meio.
- Você acha? - ela perguntou. Parecia interessada pra burro.
- O Ernest? Claro que sim.
Aí fiquei olhando enquanto ela tirava as luvas. Puxa, a mulherzinha estava coberta de pedraria.
- Acabei de quebrar uma unha saindo do táxi.
Olhou para e mim e sorriu. Ela tinha um sorriso tremendamente simpático. Verdade. A maioria das pessoas ou não sabem sorrir ou têm um sorriso pavoroso.
- Eu e o pai do Ernest às vezes nos preocupamos com ele. Às vezes pensamos que ele não faz amigos com facilidade.
- Como assim?
- Bem, ele é um rapaz muito sensível. Ele nunca foi de ter muitos amigos. Talvez porque encara as coisas com seriedade demais para a idade dele.
Sensível. Essa era a maior. O tal do Morrow tinha tanta sensibilidade quanto um assento de privada.
Olhei bem para ela. Não me parecia nenhuma imbecil. Parecia mesmo que era capaz de saber direitinho que bom sacana que era o filho dela. Mas não se sabe nunca, quando se trata da mãe de alguém. Todas as mães são um pouquinho amalucadas. Mas o fato é que eu estava simpatizando com a mãe do Morrow. Ela era cem por cento.
- A senhora aceita um cigarro?
Ela olhou em volta: - Acho que não se pode fumar neste carro, Rudolph - ela disse. Rudolph. Essa foi infernal!
- Não faz mal não. A gente pode fumar até eles começarem a reclamar - respondi.
Aceitou um cigarro, que eu acendi para ela. Fumava de uma maneira simpática. Tragava e tudo, mas não engolia a fumaça, como a maioria das mulheres da idade dela. Tinha um bocado de charme. Para dizer mesmo a verdade, ela era um bocado atraente sexualmente.
Ela estava me olhando de um jeito meio esquisito. – Pode ser que eu esteja enganada - ela disse, de repente - mas acho que seu nariz está sangrando, meu filho.
Acenei com a cabeça e apanhei meu lenço.
- Me acertaram uma bola de neve - falei. – Uma dessas bem geladas.
Eu provavelmente teria contado a ela tudo que tinha de fato acontecido, mas ia tomar muito tempo. Mas eu simpatizava com ela. Estava começando a me sentir chateado de haver dito que meu nome era Rudolph Schmidt.
- O Ernie - eu disse - ele é um dos sujeitos mais populares do Pencey. A senhora sabe disso?
- Não, não sabia.
Sacudi a cabeça afirmativamente.
- Na verdade, custou um bocado até o pessoal todo conhecer bem o Ernie. Ele é um sujeito engraçado. Um sujeito estranho, de certo modo - a senhora compreende? Por exemplo, a primeira vez que eu encontrei com ele. Nessa primeira vez, pensei que ele era um sujeito meio metido a besta. Foi o que eu pensei. Mas ele não é, não. O caso é que ele tem uma personalidade muito original, e a gente custa um pouco a conhecer ele bem.
A mãe dele não disse nada, mas, puxa, valia a pena ver a cara dela. Parecia colada na poltrona. É sempre assim, a gente fala com a mãe de alguém, e a única coisa que elas querem ouvir é como o filho delas é bacana pra chuchu.
Aí eu comecei a embromar mesmo.
- Ele falou à senhora sobre as eleições? - perguntei. - As eleições na turma?
Ela fez que não com a cabeça. Tinha posto a mulherzinha em transe. No duro.
- Bem, muitos de nós queríamos que o Ernie fosse o chefe da turma. Era realmente uma escolha unânime. Quer dizer, ele era o único sujeito realmente capaz de ocupar o cargo - eu disse. Puxa, agora ninguém me segurava mais. - Mas quem acabou sendo eleito foi outro cara, o Harry Fencer. E sabe por quê? Pela única e exclusiva razão de que o Ernie não quis ser candidato. Só porque ele é tão modesto, tão tímido e tudo. Ele recusou... Puxa, ele é modesto mesmo. A senhora deve procurar fazer com que ele se modifique um pouco nesse ponto.
Olhei para ela.
- Ele falou à senhora sobre isso?
- Não, não me disse nada.
Sacudi a cabeça. - O Ernie é assim mesmo. É evidente que não ia contar. Esse é o defeito dele - ser tão tímido e modesto. A senhora deve realmente tentar fazer com que ele seja um pouco mais desembaraçado.
Nesse exato instante, o condutor apareceu para conferir a passagem dela, e me deu uma chance de parar com a embromação. Mas até que eu estava satisfeito de ter dito aquelas besteiras. Um sujeito assim como o Morrow, que está sempre batendo com a toalha na bunda dos outros - pra machucar mesmo - não é safado só quando é garoto. É safado a vida toda. Mas aposto que, depois de toda aquela baboseira que eu falei, a mãe dele vai pensar sempre nele como o sujeito tímido e modesto pra burro, que não deixou a gente elegê-lo chefe da turma. Certamente vai pensar, não se sabe nunca. As mães não são lá muito espertas nesse tipo de coisa.
- A senhora aceita um drinque? - perguntei. Estava com vontade de beber um troço qualquer. - Podemos ir até o carro-restaurante. Vamos?
- Meu filho, você tem idade para pedir bebidas alcoólicas? - ela perguntou. Mas sem ser desagradável. Ela era simpática demais para ser desagradável.
- Poder não posso, lá isso é verdade, mas normalmente me servem por causa da minha altura - respondi. - E, além disso, eu tenho um bocado de cabelo branco.
Virei de lado e mostrei a ela os meus cabelos brancos. Ela ficou fascinada com o troço.
- Vamos, a senhora não quer me acompanhar? - insisti. Eu bem que gostaria que ela fosse comigo.
- Acho que não, mas muito obrigada, meu filho. E, de qualquer maneira, o carro-restaurante deve estar fechado. Já é muito tarde sabe?
Ela tinha razão. Eu já havia até esquecido da hora. Aí ela olhou para mim e perguntou aquilo que eu estava mesmo com medo que ela perguntasse.
- O Ernest me escreveu dizendo que voltava para casa na quarta-feira, que as férias de Natal iam começar na quarta-feira. Espero que você não tenha sido chamado para casa de repente por causa de doença na família.
Ela realmente parecia preocupada. Era evidente que não estava perguntando só porque era enxerida nem nada.
- Não, todo mundo vai bem lá em casa - respondi. - Sou eu mesmo. Tenho que fazer uma operação.
- Oh! Que pena! - disse ela. E estava com pena mesmo. Me arrependi imediatamente de ter dito aquilo, mas agora já era tarde demais.
- Não é nada sério, não. Estou só com um tumorzinho no cérebro.
- Ah, não! - ela falou. Levantou a mão até a boca e tudo.
- Ah, vai correr tudo bem. É bem perto da superfície, e é bem pequenininho e tudo. Eles podem tirar o troço em dois minutos.
Aí eu comecei a ler um horário de trem que tinha trazido no bolso. Só para parar de mentir. Quando eu começo, posso ficar mentindo horas a fio, se me dá vontade. Sem brincadeira. Horas.
Não conversamos muito depois disso. Ela começou a ler o Vogue que tinha trazido, e eu fiquei olhando algum tempo pela janela. Ela desceu em Newark. Desejou que tudo corresse bem na operação. Sempre me
chamando de Rudolph. Aí me convidou para visitar o Ernie durante o verão em Gloucester, Massachussets. Disse que a casa deles era bem em frente da praia e tinha quadra de tênis e tudo, mas eu só agradeci e disse a ela que ia para a América do Sul com minha avó. Essa era mesmo de amargar, porque minha avó quase nunca sai nem de casa, a não ser talvez para ir a uma porcaria duma matinée ou coisa que o valha. Mas eu não ia visitar aquele filho da puta do Morrow nem por'todo o dinheiro do mundo, nem que eu estivesse desesperado.
9
Assim que cheguei à Estação Pennsylvania fui entrando na primeira cabine telefônica que encontrei. Me deu vontade de telefonar para alguém. Deixei as malas do lado de fora, junto à cabine, para poder vigiá-las, mas, lá dentro, não consegui pensar em ninguém para telefonar. Meu irmão D. B. mora em Hollywood. Minha irmã menor, a Phoebe, vai para a cama lá pelas nove horas - por isso não podia ligar para ela. Ela não se importaria nem um pouquinho se eu a acordasse, mas o problema é que não era ela quem ia atender; ia ser meu pai ou minha mãe, e isso estava fora do programa. Aí tive a idéia de ligar para a mãe da Jane Gallagher e saber quando começavam as férias dela, mas a idéia não me entusiasmou muito. Além disso, era um bocado tarde. Aí pensei em telefonar para essa garota com quem eu costumava sair, a Sally Hayes, que já estava em casa para as férias de Natal - ela tinha me escrito uma baita duma carta, cretina pra chuchu, me convidando para ajudá-la a arrumar a árvore de Natal e tudo - mas fiquei com medo que a mãe dela atendesse. A mãe dela e a minha se conheciam e a imaginei logo correndo para o telefone para contar à minha velha que eu estava em Nova York. Além disso, não morria de desejos de falar com a velha Hayes: uma vez ela tinha dito a Sally que eu era maluquinho e desorientado. Aí pensei em ligar para um antigo colega do Colégio Whooton, o Carl Luce, mas não ia muito com a cara dele. No fim das contas, acabei sem telefonar para ninguém. Depois de ficar uns vinte minutos lá dentro, saí da cabine, apanhei as malas e andei até o túnel onde param os táxis.
Sou tão distraído que dei ao motorista o endereço lá de casa, por causa do hábito e tudo. Esqueci completamente que ia acampar num hotel por uns dias e só voltaria para casa depois do começo das férias. Já estávamos no meio do Parque quando dei pela coisa. Aí disse ao chofer:
- Êi, você se importa de dar a volta assim que puder? Dei o endereço errado. Quero ir para o centro.
O chofer era metido a engraçadinho:
- Não posso virar aqui, meu chapa. Essa rua é mão-única. Agora vamos ter que seguir até a rua Noventa.
Não queria me meter numa discussão e respondi:
- Tá bom.
Aí me lembrei duma coisa, de repente.
- Escuta aqui, você sabe onde ficam aqueles patos que vivem no lago lá pro lado sul do Parque? Aquele laguinho? Você sabe por acaso para onde eles vão, os patos, quando fica tudo congelado? Será que você tem uma idéia?
Calculei que era uma chance num milhão. Ele se virou para trás e me olhou como se eu fosse maluco.
- Quê que há, ó meu, tá querendo me gozar?
- Não, só que eu estava interessado em saber. Só isso.
Ele se calou e eu também, até que saímos do Parque, na rua Noventa. Aí me disse:
- Prontinho, meu chapa. Pra onde a gente vai agora?
- Bem, o negócio é o seguinte: não quero me hospedar em nenhum hotel do lado leste, onde possa dar de cara com algum conhecido. Estou viajando incógnito.
Odeio dizer coisas quadradas, assim como "viajando incógnito", mas quando estou com gente burra fico burro também.
- Você sabe, por acaso, quais são as orquestras que estão tocando no Taft ou no New Yorker?
- Não manjo nada disso, meu chapa.
- Tá bem, então me deixa no Edmont. Escuta, você se importa de dar uma paradinha no caminho e tomar qualquer coisa comigo? Eu pago, tou com a nota.
- Não posso, meu chapa. Sinto muito.
Aquele sujeito era certamente uma grande companhia. Uma dessas personalidades irresistíveis.
Chegamos ao Edmont e assinei o registro. No táxi, eu tinha posto só de farra meu chapéu de caça vermelho, mas tirei-o da cabeça na hora de entrar no hotel. Não queria passar por doido ou coisa que o valha. Aí é que está a ironia da estória. Nem sabia que o hotel estava cheio de malucos e de pervertidos. Havia um tarado em cada canto.
Me deram um quarto muito vagabundo. A única vista que eu tinha era a outra ala do hotel. Não que eu ligasse para isso. Estava deprimido demais para me preocupar se a vista do meu quarto era boa ou não. O empregado que me levou até o quarto devia andar pelos sessenta e cinco anos e conseguia ser mais deprimente do que o próprio quarto. Era um desses carecas que penteiam todo o cabelo do lado por cima da cabeça para tapear. Eu preferia ser careca de uma vez a fazer um troço desses. De qualquer jeito, que emprego fabuloso para um sujeito de sessenta e cinco anos: carregar a mala dos outros e ficar esperando uma gorjeta. Acho que ele não era muito inteligente nem nada, mas o troço não deixava de ser doloroso.
Quando ele foi embora, fiquei olhando pela janela, ainda de paletó e tudo. Não tinha nada de melhor Para fazer. Aí é que reparei o que estava acontecendo do outro lado do hotel. Não se davam nem ao trabalho de baixar a veneziana. Vi um sujeito de cabelos grisalhos e ar muito distinto, só de cuecas, fazendo um troço de cair o queixo. Primeiro pôs a mala em cima da cama. Aí tirou uma porção de roupas de mulher e começou a vesti-las. Roupa de mulher mesmo: meias de seda, soutien e uma dessas cintas com elásticos, pendurados e tudo. Aí se enfiou num vestido de noite preto, justo pra chuchu. Juro por Deus. Depois ficou andando pra lá e pra cá, no quarto, com uns passinhos miudinhos assim como as mulheres fazem, fumando um cigarro e se olhando no espelho. E o pior é que estava sozinho, a não ser que houvesse alguém no banheiro - isso não dava para ver de onde eu estava. Quase em cima da janela dele, um homem e uma mulher estavam se encharcando: cada um esguichava um bocado de água em cima do outro. Talvez fosse uma bebida qualquer, e não água, mas não dava para saber o que estava nos copos. Seja lá o que for, ele tomava um gole e esguichava em cima dela toda, e aí era a vez dela fazer o esguicho em cima dele. Dou minha palavra de honra, os sacanas se revezavam. Era um troço digno de ser apreciado. O tempo todo pareciam uns histéricos e riam como se estivessem fazendo a coisa mais engraçada do mundo. Não estou brincando, não, o hotel estava repleto de tarados. Acho que, provavelmente, eu era o único sacana normal nas imediações - e isso não é lá muita vantagem. Me deu uma vontade bárbara de passar um telegrama para o Stradlater, mandando ele tomar o primeiro trem para Nova York. Ele ia ser o rei do hotel.
O diabo é que esse tipo de porcaria é meio fascinante da gente olhar, mesmo que não queira. Por exemplo, essa garota que estava levando os esguichos na cara, ela era um bocado bonita. Aí é que está o problema. Na imaginação, sou provavelmente o maior tarado sexual que existe. De vez em quando sou capaz de inventar uns troços um bocado indecentes que não me importaria de fazer se aparecesse uma oportunidade. Até compreendo que pode ser bastante divertido, dum jeito meio esquisito, a gente arranjar uma garota e ficar esguichando água ou qualquer troço, um na cara do outro, se os dois estão de pifa e tudo. Mas o caso é que a idéia não me agrada. Pensando bem é nojento. A meu ver, se a gente não gosta de verdade de uma garota, não deve de jeito nenhum ficar fazendo um troço desses com ela. E, se gosta mesmo, então é porque deve gostar também do rosto dela, e aí não se vai fazer uma porcaria dessas, esguichar água na cara dela e tudo. É pena que um troço imundo desses às vezes possa ser um bocado divertido. E as garotas também não ajudam muito quando a gente faz força para evitar muita sujeira, quando a gente procura evitar que se estrague uma coisa boa de verdade. Há uns dois anos conheci uma garota que era ainda mais safada do que eu. Safada é apelido. Mas, durante algum tempo, nos divertimos pra valer. De uma maneira meio marota, é claro. Sexo é o tipo da coisa que não consigo entender direito. A gente nunca sabe em que ponto está. Vivo estabelecendo uma série de regras sexuais para mim e aí, não demora muito, desobedeço a todas elas. No ano passado resolvi nunca mais ficar me esfregando com nenhuma pequena que, no fundo, eu achasse uma chata. Na mesma semana quebrei a regra - para dizer a verdade, na mesma noite. Passei a noite toda atracado com uma cretina terrível, chamada Anne Louise Sherman. Sexo é um troço que não entendo mesmo. Juro que não entendo.
Enquanto estava ali, em pé, fiquei pensando em dar um telefonema para a Jane - quer dizer, pedir interurbano para seu colégio e saber quando ela ia chegar, em vez de perguntar à mãe dela. Era proibido telefonar tarde da noite para as alunas, mas eu tinha bolado tudo. Ia dizer que era o tio dela. Ia dizer que a tia dela havia acabado de morrer num desastre de automóvel e que eu precisava falar imediatamente com a Jane. Tenho certeza que teria dado certinho. Só não fui em frente porque não estava com disposição. É impossível fazer um troço desses direito se a gente não está disposto.
Depois de algum tempo, sentei numa cadeira e fumei uns dois cigarros. Estava me sentindo o último dos mortais, essa é que é a verdade. Aí de repente, me deu um estalo. Apanhei a carteira e comecei a procurar um endereço que me havia sido dado por um sujeito da Universidade de Princeton, que eu tinha conhecido
numa festa no verão anterior. Acabei encontrando. O papel já tinha ficado com uma cor esquisita, por causa da carteira, mas dava para ler. Era o telefone de uma garota que o cara da Princeton tinha me dito que não era propriamente uma prostituta nem nada, mas topava uma brincadeira de vez em quando. Uma vez ele a levou a um baile em Princeton e quase foi expulso da Universidade. Ela fazia strip-tease em revistas musicais ou coisa parecida. De qualquer jeito, peguei o telefone e disquei o número dela. Chamava-se Faith Cavendish e vivia no Hotel Stanford Arms, na esquina da rua Sessenta e Cinco com a Broadway. Na certa uma espeluncazinha.
Por um momento cheguei a pensar que ela não estava em casa ou coisa que o valha. Ninguém respondia. Finalmente, alguém atendeu.
- Alô? - falei. Arranjei uma voz bastante grossa, para que ela não desconfiasse da minha idade nem nada. Mesmo sem forçar tenho uma voz um bocado grossa.
- Alô - respondeu uma voz de mulher, num tom que não chegava a ser de muitos amigos.
- É a senhorita Faith Cavendish?
- Quem é que está falando, hem? Quem é que quer falar comigo numa droga duma hora dessas?
A reação me pegou meio desprevenido.
- Bem, eu sei que é um bocado tarde - respondi, numa voz macia à bessa. - Espero que me desculpe, mas estava muito ansioso para falar com você.
No duro, eu disse isso com a voz mais macia do mundo.
- Mas quem é que está falando?
- Bem, você não me conhece, mas aqui é um amigo do Eddie Birdsell. Ele me sugeriu que, quando viesse a Nova York, procurasse você para tomarmos uns drinques.
- Quem? Você é amigo de quem?
Puxa, ela estava uma onça no telefone. Estava praticamente berrando comigo.
- Edmund Birdsell. Eddie Birdsell - respondi.
Não me lembrava direito se o nome dele era Edmund ou Edward. Só vi o cara uma única vez, numa droga duma festa idiota.
- Não conheço ninguém com esse nome. E se você pensa que fico muito satisfeita de ser acordada no meio da noite...
- Não conhece? O Eddie Birdsell? De Princeton?
A gente podia adivinhar que ela estava folheando o seu fichário mental e tudo para localizar o nome.
- Birdsell, Birdsell... de Princeton... da Universidade de Princeton?
- Isso mesmo - respondi.
- Você também é da Universidade de Princeton?
- Bem, mais ou menos...
- Ah... Como vai o Eddie? Mas que hora que você foi arranjar para telefonar...
- Ele vai indo bem. Lhe mandou muitas lembranças.
- Muito obrigada. Dê a ele minhas lembranças também. Ele é uma ótima pessoa. O que é que ele anda fazendo atualmente?
De um minuto para outro ela estava ficando simpática pra chuchu.
- Ah, você sabe, as coisas de sempre - respondi. Como é que eu ia lá saber o que é que ele andava fazendo? Mal o conhecia, nem sabia se ele ainda continuava em Princeton nem nada.
- Queridos pais, tal nos encontrarmos em algum lugarzinho para um drinque, hem?
- Por acaso você tem uma idéia de que horas são? - ela falou. - Afinal, como é seu nome, se é que posso perguntar?
De uma hora para outra ela começou a falar toda afetada, querendo bancar a gente bem.
- Você está me parecendo meio sobre o moço.
- Obrigado pelo elogio - respondi, novamente com a voz macia pra diabo. - Meu nome é Holden Caulfield.
Devia ter dado um nome falso, mas nem pensei nisso.
- Escuta, Cawffle. Não tenho o hábito de marcar encontros no meio da noite. Sou uma moça que trabalha.
- Amanhã é domingo.
- Bem, de qualquer maneira, preciso repousar para manter a forma. Você sabe como é...
- Pensei que nós podíamos tomar pelo menos um drinque juntos. Não é tão tarde assim.
- Olha, você é muito bonzinho - ela disse. - Afinal, de onde você está telefonando? Onde é que você está?
- Eu? Numa cabine telefônica.
- Ah... - respondeu. Aí houve uma longa pausa. - Bem, eu gostaria muito de encontrá-lo um dia desses, Cawffle. Você me parece muito atraente. Deve ser uma pessoa muito simpática, mas hoje já está um bocado tarde.
- Eu poderia ir à sua casa...
- Olha, normalmente eu acharia ótimo. Adoraria que você aparecesse para tomar alguma coisa, mas acontece que a minha companheira de quarto está doente. Passou a noite inteira sem conseguir pegar no sono. Há uns dois minutos ela conseguiu adormecer. Sinceramente.
- Ah, que pena.
- Em que hotel você está hospedado? Talvez nós pudéssemos nos encontrar amanhã...
- Amanhã eu não posso - respondi. - Só posso hoje à noite.
Que trouxa que eu sou. Não devia ter dito isso.
- Ora, sinto muito.
- Darei lembranças suas ao Eddie.
- Você me faz esse favor? Espero que você aproveite bem seu passeio a Nova York. É um lugar formidável.
- Sei que é. Obrigado. Boa noite - respondi. E aí desliguei.
Puxa, tinha feito uma besteira das grandes. Pelo menos devia ter marcado um encontro para um drinque ou coisa que o valha.
10
Ainda era bem cedo. Não me lembro da hora, mas não era muito tarde. Se há uma coisa que detesto é ir para cama sem estar nem ao menos cansado. Então abri as malas, tirei uma camisa limpa e fui para o banheiro, me lavei e mudei a camisa. Me deu vontade de descer e ver se estava acontecendo algum troço no Salão Lavanda. O tal Salão Lavanda era a buate do hotel.
Enquanto mudava a camisa, por pouco não dei um telefonema para minha irmã caçula, a Phoebe. Vontade de falar com ela não faltou. Ela tem um bocado de bom-senso e tudo. Mas não podia me arriscar, porque ela é muito criança e não ia estar acordada, muito menos por perto do telefone. Pensei que poderia desligar se meus pais atendessem, mas isso também não ia dar certo. Eles iam logo ver que era eu. Minha mãe sempre sabe que sou eu. Ela tem um sexto sentido, no duro. Mas bem que gostaria de bater um papinho com a Phoebe.
Valia a pena conhecê-la. Juro que ninguém nunca viu uma criança mais bonitinha e esperta do que ela. É esperta mesmo. Por exemplo, na escola ela tira cem em tudo. Na verdade, sou o único burro da família. Meu irmão D. B. é escritor e tudo, e meu irmão Allie, aquele que morreu, de quem já falei, era um crânio. O único burro sou eu mesmo. Mas valia a pena ver a Phoebe. Ela tem um cabelo meio ruivo, parecido com o do Allie, e usa um penteado bem curto no verão, com os cabelos puxados para trás das orelhas. As orelhas dela são muito bonitinhas. No inverno ela usa o cabelo comprido. Às vezes minha mãe faz tranças no cabelo dela, outras vezes não. Fica bonita mesmo. Ela só tem dez anos e é magricela como eu, mas de um magro bonito. Magrinha como uma patinadora. Uma vez fiquei olhando da janela enquanto ela atravessava a Quinta Avenida, para ir ao Central Park, e é assim que ela é, magrinha como uma patinadora. É impossível não gostar dela. Por exemplo, quando a gente conta alguma coisa, ela sabe direitinho de que diabo é que a gente está falando. A gente pode até levá-la a qualquer lugar. Se a gente leva ela para ver um filme vagabundo, por exemplo, ela sabe direitinho que é um abacaxi. Se é um bom filme, ela sabe que é um bom filme. D. B. e eu a levamos para ver um filme francês, "A Mulher do Padeiro", com Raimu. Ela vibrou. Mas o favorito dela é "Os 39 Degraus", com Robert Donat. Ela sabe a porcaria do filme todo de cor, porque já a levei para ver o troço mais de dez vezes. Por exemplo, quando o Donat chega àquela fazenda escocesa, fugindo da polícia e tudo, a Phoebe diz bem alto no cinema, ao mesmo tempo que o tal escocês na tela: "Você gosta de arenque?" Ela sabe todo o diálogo de cor. E quando o professor, aquele que no duro é um espião alemão, vai levantando o dedo mindinho aleijado, para denunciar o Robert Donat, a Phoebe é mais ligeira: levanta o dedinho no escuro, bem na frente da minha cara.
Ela é cem por cento. Todo mundo tem que gostar dela. O único problema é que, às vezes, ela é um pouco afetiva demais. Para uma criança ela é muito emotiva. É mesmo. E tem outra coisa, ela escreve livros o tempo todo, embora não termine nenhum. São todos sobre uma menina chamada Hazel Weatherfield - só
que a Phoebe escreve "Hazle". A tal da Hazel Weatherfield é uma garota-detetive que é órfã, mas o pai dela vive aparecendo. O pai é sempre um "cavalheiro alto e simpático, de uns vinte anos de idade". Eu vibro com um troço desses. Juro por Deus que ninguém pode deixar de gostar dela. Já era esperta em pequenina, quando eu e o Allie a levávamos ao parque nos domingos. Allie tinha um barquinho à vela e aos domingos costumava brincar com ele. Phoebe ia conosco. Usava luvas brancas e caminhava entre nós, como uma grande dama. Quando eu e o Allie conversávamos sobre assuntos gerais ela ficava só escutando. Às vezes, por causa do tamanho dela, a gente até esquecia que ela estava por perto. Mas não era por muito tempo. Ela interrompia a conversa de dois em dois minutos, dava uma cutucada no Allie ou em mim, e perguntava:
- Quem? Quem é que disse isso? Bobby ou a moça?
Nós respondíamos e ela dizia "Ah", e continuava prestando atenção. O Allie também vibrava com ela, quer dizer, também gostava um bocado da Phoebe. Agora ela está com dez anos já não é tão pequena, mas todo mundo ainda se esbalda com ela - todo mundo com um pouquinho de inteligência, bem entendido.
De qualquer forma, era uma pessoa com quem se tinha sempre vontade de falar pelo telefone. Mas eu estava com muito medo de que meus pais atendessem e ficassem sabendo que eu estava em Nova York, expulso do Pencey e tudo. Por isso, acabei de vestir a camisa. Aí, me aprontei e tomei o elevador para ver o movimento no saguão.
A não ser por uns caras com pinta de gigolôs e umas louras com pinta de vagabundas, o saguão estava meio deserto. Mas vinha música do Salão Lavanda, por isso fui para lá. Apesar de meio vazio, me deram uma mesa horrível, bem no fundo. Eu devia ter sacudido uma nota no nariz do maître. Em Nova York, a gente fica sabendo que é verdade essa estória de que o dinheiro fala - é sério.
A orquestra era o fim. Buddy Singer. Uma porção de metais, mas metal ruim como o quê. Também havia muito pouca gente da minha idade lá dentro. No duro mesmo, não vi ninguém da minha idade. Quase tudo coroa, desfilando com suas garotas. Menos na mesa à minha direita, onde estavam três pequenas que deviam andar beirando os trinta anos. Todas as três eram um bocado feias e, pelo tipo de chapéu que usavam, estava na cara que não eram de Nova York. Uma delas, a loura, não era de todo má. Era engraçadinha, a loura, e comecei a dar em cima dela, devagar, mas aí o garçon veio me atender. Pedi uísque com soda e disse para não misturar - falei depressa pra burro, porque se a gente gagueja eles percebem que a gente tem menos de vinte e um, e não vendem bebida alcoólica. Mesmo assim me estrepei.
- Desculpe, cavalheiro - ele disse - mas o senhor tem alguma prova de idade? Sua carteira de motorista, por exemplo?
Joguei um olhar frio pra chuchu em cima do sujeito, como se ele tivesse me ofendido, e perguntei:
- Eu lá tenho cara de ser menor de idade?
- Desculpe, cavalheiro, mas temos nossas...
- Está bem, está bem - fui logo dizendo. Resolvi deixar o negócio de lado. - Me trás uma Coca-Cola.
Ele foi saindo, mas chamei-o novamente.
- Vê se taca um pouco de rum nesse negócio, tá? - pedi. Falei com muito jeito. - Não posso ficar num lugar micha como esse completamente a seco... Vê se taca um pouco de rum, tá?
- Desculpe, cavalheiro... - ele disse, e foi-se embora.
Não fiquei com raiva, porque eles não têm culpa. Perdem o emprego se forem apanhados vendendo bebida alcoólica a menor. E a droga toda é que eu sou mesmo menor.
Comecei novamente a dar em cima das três bruxas da mesa ao lado. Quer dizer, da loura. As outras duas só numa ilha deserta. Mas não engrossei nem nada. Só castiguei na direção delas um olhar macio e sedutor. Aí, as três começaram a rir feito imbecis. Com certeza me acharam garoto demais para dar um lance desses. Aquilo me chateou pra burro. Parecia até que eu estava interessado em casar com elas ou coisa parecida. Devia ter dado uma fria nelas, mas o problema é que eu estava com vontade de dançar. Gosto muito de dançar, de vez em quando, e aquela era uma dessas vezes. Por isso, de repente, me inclinei para a frente e convidei:
- Alguma de vocês gostaria de dançar?
Não fui grosso nem nada. Com muita classe, até. Mas, puxa, também acharam isso engraçado e desandaram a rir de novo. No duro, eram três autênticas imbecis.
- Vambora - falei. - Vou dançar com vocês, uma de cada vez. Tá bom? Que tal? Vambora!
Afinal a loura se levantou para dançar, porque estava na cara que era com ela que eu estava falando, e nos dirigimos para a pista. As duas outras donas quase tiveram um ataque histérico quando nós saímos. Era preciso mesmo ser muito tapado para querer qualquer coisa com elas.
Mas valeu a pena. Como dançava a loura! Conheço muito pouca gente que dance como ela. No duro, algumas dessas garotas burras deixam a gente doido, num salão. Se a gente vai dançar com uma garota
esperta, ela passa o tempo todo se esforçando para guiar o par, ou então dança mal pra chuchu, e a melhor coisa que se tem a fazer é ficar enchendo a cara na mesa com ela.
- Você dança pra burro - falei para a loura. - Você devia ser profissional. Sério. Dancei com uma profissional uma vez, e você é cem vezes melhor do que ela. Já ouviu falar em Marco e Miranda?
- O quê?
Ela nem estava prestando atenção. Estava olhando para outro lado.
- Perguntei se você já ouviu falar em Marco e Miranda.
- Sei lá. Acho que não. Não sei.
- Bem, são dois dançarinos, ela é dançarina. Mas não é nenhum estouro. Faz tudo certinho, mas não é nenhum estouro. Sabe quando é que se vê se uma garota é uma grande dançarina?
- Quê que é?
Ela nem estava me ouvindo. A atenção dela vagava pelo resto do salão.
- Perguntei se você sabe quando é que uma garota dança bem pra burro.
- Hum, hum...
- Bem, aqui onde estou com a mão, nas tuas costas. Se eu tenho a impressão de que não tem nada debaixo, nem corpo, nem pernas, nem nada, aí é porque a garota é mesmo um estouro de dançarina.
Mas ela não estava prestando atenção. Então resolvi parar de assuntar e ficamos só dançando. Puxa, como dançava a imbecil! Buddy Singer e sua orquestra horrível estavam tocando "Just One of Those Things", e nem eles conseguiam estragar completamente a música. É mesmo o tipo da música bacana. Eu não quis dar nenhum passo complicado - detesto esses caras que ficam fazendo exibição no salão - mas levava ela pra cá e pra lá. E ela não se perdia. O mais engraçado é que pensei que ela também estivesse gostando, até que, de repente, ela me saiu com essa idiotice:
- Eu e minhas amigas vimos o Peter Lorre ontem à noite. O artista de cinema. Em carne e osso. Estava comprando um jornal. Ele é um amoreco.
- Você tem muita sorte - falei. - Você tem sorte mesmo, sabe disso?
Ela era a própria imbecilidade, mas como dançava! Não pude deixar de dar uma espécie de beijo no alto daquela testa de ignorante, bem ali onde ela repartia o cabelo. Ficou danada.
- Êi, que estória é essa?
- Nada. Estória nenhuma. Você dança um bocado. Tenho uma irmã que ainda está na titica do curso primário. Você é tão boa quanto ela, e ela é a melhor dançarina que eu conheço.
-Veja como fala, por favor.
Que finura, rapaz. Uma fidalga, pôxa.
- Vocês são de onde? - perguntei.
Mas ela não respondeu. Estava muito ocupada, observando o salão. Acho que esperava que o Peter Lorre aparecesse a qualquer instante.
- De onde vocês são? - perguntei de novo.
- O quê?
- Vocês são de onde? Não precisa responder, se não quiser. Não quero que você se canse.
- De Seattle, Washington - respondeu. Parecia até que estava me fazendo o maior favor.
- Você é um grande papo - falei. - Sabe disso?
- O quê?
Deixei pra lá. Ela não ia entender mesmo.
- Você topa dançar puladinho, se eles tocarem um número bem rápido? Sem muita palhaçada, sem virada nem nada, bem de mansinho?... Todo mundo vai sentar quando eles tocarem música rápida, menos os velhos e os gordos, e vai ter espaço de sobra, tá?
- Tanto faz - respondeu. - Êi, afinal, quantos anos você têm?
Alguma coisa nessa pergunta me irritou, sei lá o quê.
- Que droga, vê se não estraga tudo, tá? Tenho doze anos, pomba! Sou muito crescido para a minha idade.
- Escuta, já te disse. Não gosto desse teu modo de falar. Se você continuar a falar assim, vou me sentar com minhas amigas, ouviu?
Me desculpei feito um louco, porque a orquestra estava começando naquela horinha mesma uma música rápida. Ela começou a dançar um puladinho comigo - mas bem de mansinho, sem palhaçada nenhuma. Ela era boa de verdade. Bastava tocar nela. E, quando ela rodava, rebolava a bundinha de um jeito que dava gosto olhar. Ela me deixou doido. Palavra. Quando nos sentamos eu já estava meio apaixonado. Aí é que está o problema com as garotas. Toda vez que elas fazem um troço bonito, mesmo que não sejam lá nenhum tipo de
beleza ou mesmo que sejam meio burras, a gente fica apaixonado por elas, e aí não sabe mais a quantas anda. Garotas. Puxa vida, elas deixam a gente louco. Deixam mesmo.
Não me convidaram para sentar - eram ignorantes demais para isso - mas sentei assim mesmo. O nome da loura com quem eu estava dançando era Bernice qualquer coisa - Crabs ou Krebs. As duas feiosas se chamavam Marty e Laverne. Só de farra eu disse que meu nome era Jim Steele. Aí tentei começar um papo inteligente, mas era praticamente impossível. Só torcendo o braço delas. Era difícil dizer qual das três era a mais burra. E todas não paravam de se virar para tudo quanto era canto, como se esperassem que um bando de artistas de cinema fosse entrar a qualquer momento. Com certeza pensavam que os artistas de cinema, quando iam a Nova York, freqüentavam sempre o Salão Lavanda, em vez do Stork Club ou do El Morocco. Enfim, levei mais de meia hora para descobrir onde elas trabalhavam e tudo, lá em Seattle. Eram colegas de escritório em uma companhia de seguros. Perguntei se gostavam do emprego, mas até sobre um troço desses era impossível obter uma resposta inteligente daquelas três imbecis. Pensei que as duas feias, Marty e Laverne, fossem irmãs, mas ficaram muito ofendidas quando perguntei. Estava na cara que nenhuma das duas queria ser parecida com a outra, o que era compreensível. Mas, de qualquer maneira, não deixava de ser engraçado.
Dancei com todas elas - todas as três - uma de cada vez. Uma das feiosas, a Laverne, não dançava mal de todo, mas dançar com a tal de Marty era o mesmo que arrastar a Estátua da Liberdade pelo salão. A única maneira de me divertir enquanto arrastava ela para um lado e para o outro era fazendo uma horinha. Então disse a ela que tinha acabado de ver o Gary Cooper, o artista de cinema, do outro lado do salão.
- Onde? - ela perguntou, entusiasmada como o quê. - Onde?
- Que pena, você perdeu por pouco. Saiu neste justo instante. Por quê que você não olhou logo na hora que eu falei?
Ela praticamente parou de dançar, e começou a olhar por cima da cabeça de todo mundo, na esperança de afinal ver o Gary Cooper.
- Ah, que azar! - ela disse. Eu tinha partido o coração da infeliz, no duro. Fiquei com pena de ter feito aquela brincadeira. Não se deve brincar com certas pessoas, mesmo que elas mereçam.
O mais gozado veio depois. Quando voltamos para a mesa, a tal de Marty disse às outras duas que o Gary Cooper tinha acabado de sair. Puxa, a tal da Laverne e a Bernice quase se suicidaram quando ouviram aquilo. Ficaram todas nervosas, e perguntaram à Marty se ela tinha visto. Aí a danada respondeu que só tinha visto de relance. Quase não me agüentei com essa.
Estava na hora de fecharem o bar, por isso pedi dois drinques para cada uma e mais duas Coca-Colas para mim. A droga da mesa estava entupida de copos. Uma das feias, a tal da Laverne, ficou me dando o gozo porque eu só bebia Coca-Cola. O senso de humor dela era fabuloso. Ela e a tal de Marty estavam tomando Tom Collins - em pleno inverno, tá bom? Eram grossas mesmo. A loura, a Bernice, bebia uísque com água e entornava direitinho. Todas as três não pararam nem um instante de procurar artistas de cinema. Quase não abriam a boca - nem mesmo para conversar entre elas. A Marty falava um pouquinho mais do que as outras duas. Ficava dizendo umas coisinhas chatinhas e cretinas, assim como, por exemplo, chamar o toalete de mulheres de "quartinho das menininhas"; e achava que o clarinetista da orquestra, um velho entregue às baratas, era simplesmente um estouro quando se levantava e soprava um daqueles solos desanimados de dar pena. Disse que a clarineta dele era uma "flauta de mel". Que cretina. A outra bruxa, a Laverne, se achava muito espirituosa. Ficou o tempo todo me pedindo para telefonar para meu pai e perguntar se ele estava livre. Ficou perguntando se meu pai tinha algum programa naquela noite. Ela me fez essa pergunta umas quatro vezes - era espirituosa pra burro. A tal de Bernice, a loura, quase não falava. Toda vez que eu dizia alguma coisa, ela perguntava "O quê?". Isso é o tipo do troço que enche, depois de algum tempo.
De repente, quando terminaram os drinques, todas as três se levantaram na minha cara e disseram que precisavam ir para a cama. Iam levantar-se cedo para a primeira sessão do Radio City Music Hall. Tentei uma conversa para ver se ficavam mais um pouco, mas não colou. Aí nos despedimos e tudo. Eu disse que, qualquer dia desses, ia procurar por elas em Seattle, se fosse lá, mas duvido muito que eu vá. Procurar por elas, é claro.
Com os cigarros e tudo, a conta chegou a uns treze dólares. Achei que deviam ao menos se oferecer para pagar os drinques que tomaram antes de eu chegar - eu não ia aceitar, é claro, mas elas deviam ao menos se oferecer. Também não dei muita bola. Elas eram tão ignorantes, e ainda por cima usavam aqueles chapéus pavorosos, uma tristeza. E esse negócio de levantar cedo para ver a primeira sessão no Radio City Music Hall, isso me deprimia. Se alguém, alguma pequena com um chapéu horrível, vem a Nova York - lá de Seattle, Estado de Washington, pôxa - e acaba se levantando de madrugada para ir à droga da primeira sessão do Radio City Music Hall, isso me deprime tanto que não agüento. Eu teria pago cem drinques para elas se simplesmente não me tivessem dito aquilo.
Saí logo depois do Salão Lavanda. Já estava fechando mesmo, e fazia muito tempo que a orquestra tinha ido embora. Antes de mais nada, o Salão Lavanda era um desses lugares horríveis de se ficar, a não ser que se esteja com alguém que dance bem, ou que o garçon deixe a gente tomar uma bebida decente, em vez de Coca-Cola. Não há uma buate no mundo onde a gente possa ficar muito tempo, a não ser que tome umas e outras e fique logo de porre. Ou então, a não ser que a gente esteja com alguma garota que deixe o sujeito maluco.

11-20

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